Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
891/22.4TXPRT-B.P2
Nº Convencional: JTRP000
Relator: LÍGIA FIGUEIREDO
Descritores: MODIFICAÇÃO DA EXECUÇÃO DA PENA DE PRISÃO
DESPACHO DE REJEIÇÃO DO REQUERIMENTO INICIAL
PRINCÍPIOS DA INVESTIGAÇÃO E DA VERDADE MATERIAL
Nº do Documento: RP20240207891/22.4TXPRT-B.P2
Data do Acordão: 02/07/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL/CONFERÊNCIA
Decisão: PROVIDO
Indicações Eventuais: 1. ª SECÇÃO CRIMINAL
Área Temática: .
Sumário: I – Invocando a requerente, deficiência grave e permanente doença oncológica, e bem assim a dependência de terceiros e a não adequação das condições do estabelecimento prisional, para a situação clínica do condenado, o requerimento apresentado não é manifestamente infundado nos termos do artº 148º do CEPMPL.
II- Impunha-se que o tribunal em obediência aos princípios da investigação e verdade material, perante a situação de detenção do condenado averiguasse as efetivas limitações advenientes da amputação e doença invocadas, num juízo atual, e compatibilidade das mesmas com a permanência em meio prisional.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 891/22.4TXPRT-B.P2
1ª secção criminal

         Acordam em conferência no Tribunal da Relação do Porto:

I – RELATÓRIO:

         No processo de Modificação da execução da Pena de Prisão, nº 891/22.4TXPRT- B do Juiz 1 do Juízo de Execução das Penas do Porto, em que é arguido/condenado AA, na sequência de requerimento de BB, irmã do Arguido para que lhe fosse modificada a execução da pena, após acórdão desta Relação de 13/9/2023 que determinou que se diligenciasse “para o cabal esclarecimento se o Arguido/condenado pretende ou não prestar o seu consentimento, e em caso afirmativo, providenciar à recolha do consentimento”, recolhido o consentimento do arguido, foi proferido o seguinte despacho:

(…)

I - BB, irmã do condenado AA, com os demais sinais dos autos, veio interpor o presente pedido de modificação da execução da pena de prisão que cumpre, com os fundamentos que se colhem no requerimento por si apresentado.

Foi junta documentação clínica e médica.

Recolheu-se o consentimento do condenado.

O Ministério Público pronunciou-se pelo indeferimento do requerido em sede liminar.

Cumpre decidir, nada obstando, não se vislumbrando a necessidade de proceder a qualquer outra diligência probatória, por inutilidade, em função dos fundamentos que se seguem.

II - Dá-se como assente a seguinte factualidade com relevo para a questão a decidir:

- O condenado nasceu em ../../1984 e cumpre no estabelecimento prisional do Porto (Custóias), após a revogação do regime suspensivo, a pena de 3 anos de prisão aplicada no processo n.º 479/19.7GAALB, pela autoria de um crime de violência doméstica, estando a sua metade e termo calculados, respectivamente, para 30.05.2024 e 30.11.2025 (doc. de fls. 15-25).

- O condenado está indiciado no processo n.º 10/21.4GAOAZ pela autoria de um crime de tráfico de estupefacientes, tendo-lhe sido aplicada, nesse processo, a medida de coacção de prisão preventiva, medida que foi revista e mantida por despacho de 24.10.2023 (doc. de fls. 126-128).

- O condenado foi internado em 15.05.2023 no Hospital de Santo António, do Porto, tendo-lhe sido feita, no dia seguinte, cirurgia de amputação do membro superior direito, na sequência de diagnóstico de condrossarcoma da omoplata localmente avançado, após o que, em 21.09.2023, lhe foi medicamente fixada uma incapacidade permanente global de 60% (docs. de fls. 9-10 e 107).

III - Apreciando.

O requerimento em apreciação tem-se como apresentado no quadro da previsão do artigo 118.º do CEP, afigurando-se que a situação de saúde e as condições pessoais invocadas pelo recluso não se enquadram em nenhuma das situações previstas nas alíneas a), b) e c) da mesma norma legal, conteúdo se dá aqui por reproduzido.

Com efeito, o quadro de deficiências/doenças alegado (amputação de membro superior), não torna, só por si, a situação pessoal do condenado como sendo de incompatibilidade com a sua normal manutenção em meio prisional [cf. a citada alínea b), sendo certo que, claramente, nenhuma das outras apontadas alíneas poderá ser convocada para o caso em exame].

O que sucede é que a realizada amputação ocorreu em momento ainda recente, encontrando-se, por enquanto, o condenado em fase de adaptação à sua nova realidade corporal, reaprendendo a realizar as suas actividades de vida diária, como é o processo natural de qualquer pessoa que é sujeita a uma tal provação (diga-se que no estabelecimento prisional existem outros casos de reclusos amputados, de membros superiores ou inferiores, que já passaram, no seu percurso de vida, por esse processo de readaptação).

 De qualquer modo, no decurso da reclusão, continuará o requerente a aceder aos cuidados de saúde necessários à sua condição pessoal/emocional, como é dever do Estado, através do sistema prisional, assegurar (artigo 53.º e ss. do RGEP).

Assim sendo, dar acolhimento à pretensão aqui deduzida pelo requerente equivaleria a uma subversão do preceituado no artigo 118.º do CEP e de todo o espírito da legislação em vigor.

Para além do que ficou dito, deve ainda considerar-se que a medida em apreço só é susceptível de ser aplicada quando a tal se não oponham fortes exigências de prevenção ou de ordem e paz social: artigo 118.º do CEP.

Ora, tal como acima constante, a tipologia criminal em presença reveste-se de acentuada gravidade, resultando fortes as (notórias) exigências de prevenção ao nível geral que operam no caso em análise.

Trata-se, neste âmbito, de preservar a ideia da reafirmação da validade e vigência do normativo penal violado (v., a propósito do lugar paralelo em que se traduz o requisito inscrito na alínea b), do n.º 2, do artigo 61.º, do Código Penal, as Actas da Comissão de Revisão do Código Penal, ed. Rei dos Livros, 1993, p. 62), o que, tendo em conta os marcos temporais acima constantes, demanda, sem dúvida, acrescido período de reclusão .

No caso concreto do crime de violência doméstica, reputa-se como elevada a necessidade de reafirmação do poder contrafáctico da norma legal em causa, atenta a especial sensibilidade do bem jurídico violado, tratando-se este tipo de criminalidade de um flagelo que continua a afectar a nossa sociedade, minando a estrutura basilar que é a família, notando-se, actualmente, uma muito maior consciência social em relação a estes fenómenos, ao que o legislador penal não tem sido indiferente.

Para além disso, também a imposição da medida de coacção de prisão preventiva no quadro de um outro processo implica que não se possa compaginar como viável a harmonização das suas necessidades cautelares com a saída do condenado do estabelecimento prisional, o que incrementaria, de forma insuportável, o atropelo às fortes exigências de prevenção ou de ordem e paz social a que alude o citado artigo 118.º, não fazendo, por outra parte, sentido desligar o condenado do cumprimento da pena de prisão ora em execução (medida penal que, evidentemente, tem precedência de execução sobre qualquer medida de coacção) para o colocar à ordem do processo que determinou a sua prisão preventiva.

IV - Pelo exposto, sem necessidade de outras considerações, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 118.º e 148.º, alínea a), ambos do CEP, por ser manifestamente improcedente, rejeito a pretensão formulada nos autos.

Condeno a requerente BB, identificada nos autos, no pagamento da taxa de justiça de 2 (duas) UC.

Notifique e comunique.

(…)


*

         Inconformada, a requerente, interpôs recurso, no qual formula as seguintes conclusões:

(…)

O despacho recorrido rejeitou liminarmente o pedido da Recorrente, que requereu a modificação de execução da pena de prisão do Arguido, seu irmão, que foi submetido a cirurgia de amputação do membro superior direito, em consequência de doença oncológica, que entretanto se mestastizou.

B) O Tribunal decidiu rejeitar liminarmente o requerimento apresentado pela sua irmã, sem dar cumprimento ao preceituado no artigo 217.º do CEPMPL, , o que constitui uma nulidade por insuficiência de instrução, pois que não foi dado cumprimento a atos legalmente obrigatórios (cfr. artigo 120.º, 2 d) do CPP), que aqui se argui.

C) Assim, sem recolher o parecer do corpo clínico do EP, do seu Diretor, sem averiguar da situação clínica do Arguido e das suas especificidades, o Tribunal realizou ciência privada, sem dispor dos conhecimentos científicos necessários para o efeito.

D) Com efeito, o artigo 128.º, 1 do CEPMPL determina que, finda a instrução, o processo é continuado com vista ao Ministério Público, se não for este o requerente para, no prazo máximo de dois dias, emitir parecer ou requerer o que tiver por conveniente.

E) Decorre dos normativos legais que a instrução apenas é encerrada depois de o tribunal estar na posse dos elementos a que se alude no artigo 127.º do CEP.

F) E os autos são conclusos ao Juiz para que este determine o arquivamento, se entender que a pretensão é infundada ou, havendo o processo de prosseguir, pode ordenar a realização de perícias e demais diligências necessárias, após o que decide no prazo máximo de dois dias (cfr. artigo 218.º, 2 do CEPMPL).

G) O elemento enunciativo do artigo 217.º, 2 é taxativo, ao estabelecer que o tribunal “promove”, e não “pode promover”, o que evidencia que se está perante um poder-dever do Juiz, e não uma mera faculdade.

H) A assim não se entender, o Tribunal recorrido está a fazer ciência privada, valorando a(s) patologia(s) do Arguido, sem que os serviços clínicos do estabelecimento prisional emitam parecer que, atento o disposto no artigo 163.º do CPP, aplicável ex vi artigo 154.º do CEPMPL, se presume subtraído à livre apreciação do julgador.

I) E o número 2 do mesmo normativo estatui que, sempre que a convicção do julgador divergir do juízo contido no parecer dos peritos, deve aquele fundamentar a divergência.

J) O Despacho recorrido padece de nulidades: o artigo 374.º, 2 do CPP, aplicável ex vi artigo 154.º do CEPMPL, determina que ao relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, sendo que o mesmo é omisso no que concerne aos factos não provados.

K) Por outro lado, o despacho recorrido é totalmente omisso sobre as condições de reclusão do Arguido no estabelecimento prisional do Porto, apesar de, no seu requerimento, a Recorrente ter feito expressa e detalhada menção às mesmas.

L) Sobre aquestão, o despacho recorrido limita-se a afirmar que as condições pessoais invocadas pelo recluso não se enquadram e nenhuma das situações previstas no artigo 118.º do CEPMPL.

M) O Despacho recorrido padece do vício previsto no artigo 410.º, 1 do CPP, pois que o mesmo não conheceu de questões que contendem com os direitos fundamentais mais basilares do Arguido, como é o seu direito à integridade pessoal, na dimensão da proibição de tratamentos degradantes (artigo 25.º da Constituição).

N) No entender da Recorrente, ao decidir quedar-se pelo silêncio sobre as condições de reclusão do Arguido no EP do Porto, que a Recorrente aludiu no requerimento inicial, ocorre uma insuficiência para a decisão da matéria de facto (cfr. artigo 410.º, 2 a) do CPP), por falta de investigação sobre as condições de reclusão no EP, quando o objeto do apenso consiste na modificação de execução da pena de prisão.

O) Assim, ao não cumprir o preceituado no artigo 127.º,2 e 3 e 128.º, 1,ambos do CEPMPL, que prescindiu das diligências probatórias legalmente obrigatórias, tal interpretação é materialmente inconstitucional, por violação do direito a um processo justo e equitativo, e da tutela jurisdicional efetiva, ínsitas nos artigos 20.º, 1 e 4 da CRP e no artigo 6.º,1 e 3 a) da CEDH, bem como dos princípios fundamentais da legalidade, segundo a qual o Estado (e os tribunais) subordinam-se à Constituição e funda-se na legalidade democrática (artigo 3.º, 2 da CRP) e no princípio do Estado de Direito democrático, segundo o qual o Estado assenta no respeito e na garantia de efetivação dos direitos e liberdades fundamentais (artigo 2.º da CRP).

P) Nos Acórdãos do TEDH Petrescu contra Portugal e Badulescu contra Portugal, Processo n.º 23190/17, Portugal foi condenado por violação do artigo 3.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, relativa à proibição de tortura, tratamento cruel, desumano ou degradante.

Q) As condições de reclusão do Arguido assumem relevância, como decidiu a Exma. Conselheira Relatora do Tribunal Constitucional que, no processo n.º 1045/2023 admitiu o recurso, por julgar que a questão assume relevância, divergindo assim do entendimento do Despacho recorrido.

R) Os tribunais nacionais estão vinculados ao Direito Internacional e ao Direito Europeu, como resulta evidente do Acórdão n.º 574/2014 e, ainda mais recentemente, do Acórdão n.º 422/2020, pelo que as condições de detenção do Arguido assumem relevância para a MEP, pelo que os artigos 118.º e 217.º do CEPMPL têm de ser interpretados e aplicado, em conformidade com a jurisprudência do TEDH, tal como decorre do artigo 16.º, 2 da CRP.

S) Diversamente do vertido no Despacho recorrido, a tal não se opõem fortes exigências de prevenção ou de ordem e paz social, pois no que concerne ao crime de violência doméstica, o Arguido foi condenado sem ter conhecimento do julgamento, pelo que está a ponderar interpor recurso extraordinário de revisão de sentença (vide Acórdão do TEDH Medenica contra Suiça, disponível para consulta em https://hudoc.echr.coe.int/eng#{%22fulltext%22:[%22\%22CASE%20Om20MEDENICA%20v.%20SWITZERLAND\%22%22],%22documentco lectionid2%22:[%22GRANDCHAMBER%22,%22CHAMBER%22],%22it

emid%22:[%22001-59518%22]}

T) Quanto à medida de coação, sempre se dirá que o Arguido não foi condenado pela prática do crime que lhe é imputado, por decisão transitada em julgado, pelo que goza da garantia constitucional de presunção de inocência.

U) À data dos factos, o Arguido era traficante-consumidor, encontra-se a tomar metadona, bem como a frequentar consultas de psiquiatria, e psicologia.

V) O Arguido tem suporte familiar e social na comunidade em que está inserido, e não merece a rejeição da comunidade em que está inserido, e tem visitas regulares no estabelecimento prisional.

W) Está a ser julgado pelos factos que motivaram a aplicação da medida de coação, pelo não há qualquer perigo de perturbação do decurso do inquérito, nem para a aquisição, conservação ou veracidade da prova.

X) Através da Lei n.º 14/2021, o legislador instituiu um regime específico para a emissão de atestado médico de incapacidade multiuso para os doentes oncológicos, sendo que o Ministério da Saúde esclarece que “O Atestado Médico de Incapacidade Multiuso é atribuído a pessoas com deficiência ou presença de uma condição clínica grave disponível para consulta emhttps://www.sns24.gov.pt/servico/atestado-medico- de incapacidade-multiuso/ .

Y) O Arguido é portador de atestado médico de incapacidade multiuso que, por ser doente oncológico, lhe é atribuído automaticamente num grau de 60%, sem sujeição junta médica, sendo que as doenças oncológicas são a única categoria de patologia em que o legislador institui um regime especial de atribuição de atestados multiuso, que opera ipso facto, sem necessidade de realização de junta médica, nos primeiros cinco anos após o diagnóstico.

Z) A Recorrente não concorda que a medida de coação de prisão preventiva no quadro de um processo de traficante-consumidor de estupefacientes não pode ser compaginada com a saída do Arguido do EP, com o  argumento de que desligar o recluso do cumprimento da pena em execução implicava desligar o mesmo de um processo para o colocar à ordem do processo que determinou a sua prisão preventiva.

AA) O artigo 216.º do CEPMPL, ao prever que têm legitimidade para requerer a modificação da execução da pena de prisão prevista no título XVI do livro I, que comtempla quer a detenção, quer a prisão preventiva, tal significa que o legislador, para efeitos de processos de MEP, equipara a pena de prisão a prisão preventiva e a detenção.

BB) Ao assim decidir, o despacho recorrido fez uma interpretação legal errónea, pois que o artigo 216.º do CEPMPL prevê um conjunto de pessoas com legitimidade para, qualquer uma delas, requerer a modificação da execução da pena de prisão prevista no título XVI do livro I, que inclui a prisão preventiva e a detenção.

CC) Deste modo, a interpretação levada a cabo no despacho recorrido,ao considerar que o decretamento da prisão preventiva constitui um impedimento à saída do recluso do estabelecimento prisional, no âmbito de um processo MEP, viola os artigos 216.º e os artigos 123.º a 132.º, mais concretamente o artigo 123.º, que constituem o título XVI do livro I do referido diploma legal.

DD) Atenta a jurisprudência do TEDH supra citada, que considerou que os estabelecimentos prisionais portugueses padecem de um problema sistémico, no que concerne à violação dos direitos humanos dos reclusos saudáveis, como é que as condições de detenção de um recluso amputado do membro superior direito, por doença oncológica que se metastizou, não suscita ao Tribunal recorrido (e aos tribunais nacionais, em geral), qualquer sobressalto?

EE) Quais as condições do EP do Porto para prestar assistência a um doente oncológico com metástases, em estado terminal?

FF) Não faz sentido aderir à CEDH, e depois os tribunais nacionais ignorarem, em absoluto, a jurisprudência emanada pelos seus órgãos jurisdicionais, em desrespeito pela Lei Fundamental.

GG) O Despacho recorrido violou o disposto nos artigos 118.º, 148.º a), 154.º, 217.º, 218.º do CEP, e os artigos 120.º, 2 d), 163.º, 374.º, 379.º, 410.º do CPP, e os artigos 1.º, 2.º, 3.º, 3, 16.º, 1 e 2, 25.º, 2,20.º, 1, 30.º, 5 , 202.º, 2 e 204.º da CRP, e dos artigos 3.º e 6.º da CEDH.

Termos em que, deve o presente recurso merecer provimento e, em consequência, revogar-se o despacho que ordenou a rejeição do presente apenso de modificação da execução da pena de prisão, ordenando o seu prosseguimento,

(…)

         A Magistrada do Ministério Público respondeu, pugnando pela improcedência do recurso.

         Nesta instância, o Exmº Procurador-Geral Adjunto “subscrevendo integralmente” a resposta do Magistrado do Ministério Público, sobre as questões suscitadas, emitiu parecer no sentido de que “o recurso deverá improceder”.

        Cumprido que foi o disposto no artº 417º nº2 do CPP a requerente apresentou resposta, que se dá por reproduzida na qual, reafirma o teor das conclusões do recurso e alega além do mais que “a doença oncológica metastizou-se,” “Nem o EP do Porto , nem o de Santa Cruz do Bispo dispõem de condições para prestar os cuidados médicos de que o mesmo carece”.


*

         Foram colhidos os vistos legais e realizou-se a conferência.

*

Constitui jurisprudência corrente dos tribunais superiores que o âmbito do recurso se afere e se delimita pelas conclusões formuladas na respectiva motivação, sem prejuízo da matéria de conhecimento oficioso.

       No caso vertente e vistas as conclusões do recurso, as questões submetidas à apreciação deste tribunal são as seguintes:

        Se ao rejeitar liminarmente o pedido da requerente o despacho recorrido incorreu na nulidade do artº 120º nº2 al d) do CPP, não ter nos termos do artº 217º do CEPMLP dado cumprimento a actos legalmente obrigatórios;

Se o despacho recorrido padece de nulidade nos termos do artº 374º nº2 do CPP ex vi artº 154º do CEPMPL;

.Se o despacho recorrido enferma do vício da insuficiência previsto no artº do artº 410º nº2al.a) do CPP.

Se “ ao não cumprir o preceituado no artigo 127.º,2 e 3 e 128.º, 1,ambos do CEPMPL, que prescindiu das diligências probatórias legalmente obrigatórias, tal interpretação é materialmente inconstitucional, por violação do direito a um processo justo e equitativo, e da tutela jurisdicional efetiva, ínsitas nos artigos 20.º, 1 e 4 da CRP e no artigo 6.º,1 e 3 a) da CEDH, bem como dos princípios fundamentais da legalidade, segundo a qual o Estado (e os tribunais) subordinam-se à Constituição e funda-se na legalidade democrática (artigo 3.º, 2 da CRP) e no princípio do Estado de Direito democrático, segundo o qual o Estado assenta no respeito e na garantia de efetivação dos direitos e liberdades fundamentais (artigo 2.º da CRP).”

. Se o artº 216º do CEPMLP contempla quer a detenção quer a prisão preventiva;

.Se as razões de prevenção ou de ordem ou paz social se opõem à modificação da pena requerida.

.Se “a interpretação de que o decretamento da prisão preventiva constitui um impedimento à saída do recluso do Estabelecimento prisional, no âmbito de um processo MEP, viola os artigos 216º e os arts 123ºa 132º”.

Se o despacho recorrido violou o disposto nos artigos 118.º, 148.º a), 154.º, 217.º, 218.º do CEP, e os artigos 120.º, 2 d), 163.º, 374.º, 379.º, 410.º do CPP, e os artigos 1.º, 2.º, 3.º, 3, 16.º, 1 e 2, 25.º, 2,20.º, 1, 30.º, 5 , 202.º, 2 e 204.º da CRP, e dos artigos 3.º e 6.º da CEDH.                                                      


*

II - FUNDAMENTAÇÃO:

À dilucidação das questões do recurso, relevam as seguintes ocorrências processuais:

.O condenado AA, deu entrada no EPP em 30/11/2022 por lhe ter sido aplicada no processo nº10/2021.4GAOAZ a medida de coacção de prisão preventiva

Desde 26/4/2023 encontra-se em cumprimento da pena de prisão três anos de prisão, na sequência da revogação da pena suspensa na sua execução, de três anos de prisão, que lhe foi aplicada no proc.479/19.7GAALB, do 1º juízo de Competência genérica de Aveiro, pela prática de um crime de violência doméstica.

.O meio da pena ocorrerá em 30 de Maio de 2024;

Os dois terços a 30 de Novembro de 2024;

E o termo da pena a 30 de Novembro de 2025;

Correndo no TEP o processo de execução de pena,891/22.4TXPRT,.BB, irmã do condenado, em 19/6/2023, nos termos do artº 216ºal.b) do CEPMPL, requereu a modificação de execução da pena de prisão de recluso portador de deficiência grave e permanente, requerendo “a imediata suspensão ou, pelo menos, a sua substituição pela prisão em regime de permanência.

O irmão da requerente, desde a sua reclusão encontra-se detido em condições degradantes e desumanas.”

 “No dia 16/5/2023º condenado, foi sujeito a amputação do membro superior direito; o motivo da referida amputação (…)foi o diagnóstico de condrossarcoma da omoplata dita localmente avançado;

(…)

O condenado deixou de conseguir efectuar, de forma adequada e decente a sua higiene pessoal;

Perante isto, os outros reclusos têm procurado auxiliar o irmão da Requerente a realizar a higiene pessoal, vestir-se e despir-se.

Por outro lado, o condenado passou a ter dificuldade em se alimentar. Pois atenta a amputação do membro superior direito, o mesmo tem dificuldade em cortar os alimentos.

Desde a alta hospitalar, que o estabelecimento prisional não providenciou pela adequação da execução da pena às vicissitudes decorrentes da situação clínica do condenado;

 (…)

A família está na inteira disponibilidade para receber o condenado no seu domicílio.

A irmã do condenado está disponível para prestar os cuidados de que o mesmo carece,

A habitação do agregado familiar do condenado dispõe de condições de habitualidade, bem como da possibilidade da execução da pena à distância.

Sobre este requerimento foi em 18/7/2023 proferido o seguinte despacho:

Visto.

A requerente tem legitimidade – art. 216.º, b do )CEP


***

(…)”

A declaração de consentimento do arguido à modificação da execução da pena encontra-se junta a fls. 121 e 183.


*

Para a decisão mostram-se ainda relevantes as seguintes normas:

 O art.º 118º do Código de Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade – sob a epígrafeModificação da execução da pena de prisão de reclusos portadores de doença grave, evolutiva e irreversível ou de deficiência grave e permanente ou de idade avançada dispõe “– que pode beneficiar de modificação da execução da pena, quando a tal se não oponham fortes exigências de prevenção ou de ordem e paz social, o recluso condenado que:

a) Se encontre gravemente doente com patologia evolutiva e irreversível e já não responda às terapêuticas disponíveis;

b) Seja portador de grave deficiência ou doença irreversível que, de modo permanente, obrigue à dependência de terceira pessoa e se mostre incompatível com a normal manutenção em meio prisional; ou

c) Tenha idade igual ou superior a 70 anos e o seu estado de saúde, física ou psíquica, ou de autonomia se mostre incompatível com a normal manutenção em meio prisional ou afete a sua capacidade para entender o sentido da execução da pena.”

Nos termos do artigo 119º do CEPMPL:

“1. A modificação da execução da pena depende sempre do consentimento do condenado, ainda que presumido.

2.(…).”

Por sua vez o regime processual relativo à “modificação da execução da pena de prisão”, encontra-se previsto nos artsº 216º a 222º do CEPMP, dispondo no que ao caso releva:

O artº 216º sob  epígrafe legitimidade

Têm legitimidade para requerer a modificação da execução da pena de prisão prevista no título xvi do livro i:

a) O condenado;

b) O cônjuge ou a pessoa, de outro ou do mesmo sexo, com quem o condenado mantenha uma relação análoga à dos cônjuges, ou familiar;

c) O Ministério Público, oficiosamente ou mediante proposta fundamentada, nomeadamente do director do estabelecimento prisional.…”

O artº 217º

“…1 - O requerimento é dirigido ao juiz do tribunal de execução das penas, que, fora dos casos de consentimento presumido, providencia pela imediata notificação do condenado, quando não seja o requerente, para que preste o seu consentimento, aplicando-se correspondentemente o disposto quanto ao consentimento para a liberdade condicional.

2 - Obtido o consentimento expresso ou havendo ainda que comprovar-se o consentimento presumido, o tribunal de execução das penas promove a instrução do processo com os seguintes elementos, consoante se trate de recluso com doença grave e irreversível, com deficiência ou doença grave e permanente ou de idade avançada:

.a) Parecer clínico dos serviços competentes do estabelecimento prisional contendo a caracterização, história e prognose clínica da irreversibilidade da doença, da fase em que se encontra e da não resposta às terapêuticas disponíveis, a indicação do acompanhamento médico e psicológico prestado ao condenado e a modalidade adequada de modificação da execução da pena;

 .b) Parecer clínico dos serviços competentes do estabelecimento prisional contendo a caracterização do grau de deficiência ou da doença, sua irreversibilidade, grau de autonomia e de mobilidade, a indicação do acompanhamento médico e psicológico prestado ao condenado e a modalidade adequada de modificação de execução da pena; ou

. c) Certidão de nascimento e parecer clínico dos serviços competentes do estabelecimento prisional contendo a caracterização do grau de autonomia e de mobilidade, a indicação do acompanhamento médico e psicológico prestado ao condenado e a modalidade adequada de modificação de execução da pena.

3. Em todos os casos o requerimento é ainda instruído com:

.a) Relatório do director do estabelecimento relativo ao cumprimento da pena e à situação prisional do condenado;

b) Relatório dos serviços de reinserção social que contenha avaliação do enquadramento familiar e social do condenado e, tendo por base o parecer previsto no número anterior, das concretas possibilidades de internamento ou de permanência em habitação e da compatibilidade da modificação da execução da pena com as exigências de defesa da ordem e da paz social;

c) (…)

No capítulo das disposições gerais do processo, e sob a epígrafe “Rejeição e aperfeiçoamento” dispõe o artº 148º do CEMPMPL :

«. Recebido o requerimento inicial, o juiz do tribunal de execução das penas, ouvido o Ministério Público, pode:

a) Rejeitá-lo, se manifestamente infundado ou quando contenha pretensão já antes rejeitada e baseada nos mesmos elementos;

b) Convidar ao aperfeiçoamento..»

A recorrente pretende a revogação do despacho recorrido.

Alega além do mais que, ao rejeitar liminarmente o pedido da requerente o despacho recorrido incorreu na nulidade do artº 120º nº2 al d) do CPP, não ter nos termos do artº 217º nº2 e 218º do CEPMLP dado cumprimento a actos legalmente obrigatórios.[1]

Com o devido respeito não lhe assiste razão.

Como decorre do artº 120 al.d) do CPP, a omissão prevista no preceito, refere-se aqueles actos cuja obrigatoriedade resulta da lei.

Ora, os actos de instrução previstos no artº 217ºnº2 do CEPMPl, apenas teriam de ser realizados no caso de não existir, rejeição liminar nos termos do artº 148º.

Tendo o Srº Juiz proferido despacho de rejeição liminar, tal despacho prejudicou na óptica processual, a efectivação das diligências previstas nas alíneas do artº 217 nº2º do CEPMPL, apenas se podendo agora apreciar se no caso estavam verificados os pressupostos para a rejeição liminar nos termos do alínea a) do artº 148º do CEPMPL.

Alega ainda a recorrente que o despacho recorrido padece de nulidade nos termos do artº 374º nº2 do CPP ex vi artº 154º do CEPMPL, por omissão de fundamentação e enunciação dos factos provados e não provados, tendo de certo em vista a nulidade prevista no artº 379º nº1 al.a) do CPP.

Porém, também esta alegação terá de improceder já que como bem responde a magistrada do MP, não obstante a remissão do artº 154º do CEPMPL nos casos omissos para o regime do Código de Processo Penal, o referido artº 374º nº2 do CPP é privativo da sentença, e como o recorrente bem refere a decisão recorrida assume a forma de despacho, nos termos do artº 97º nº1 do CPP.

Tal não significa que os despachos não devam ser fundamentados, já que tal obrigação de fundamentação resulta expressamente do regime especial do artº 146 nº1 do CEPMPL, do artº 97ºnº5 do CPP e com consagração Constitucional no artº 205º nº1 da CRP.

Porém, na falta de previsão e atento os princípios da legalidade e  tipicidade em matéria de nulidades constante do artº 118º nº1 do CPP, ainda que se verificasse falta de fundamentação, sempre tal invocação seria improcedente.

Como escreve o Prof Germano Marques da Silva, o artº 118º do CPP consagra o princípio da tipicidade também designado por princípio da legalidade e da taxatividade das nulidades,  a que se encontra sujeito o regime de nulidades, sendo que “ A norma do artº 118º nº1 do CPP não permite a sua extensão analógica[2]

Efectivamente a invocada nulidade por omissão de pronúncia e falta de fundamentação não se encontra prevista em relação aos despachos, mas tão só em relação às sentenças conforme o disposto no artºº 379º do CPP por referência ao artº 374º do CPP.

Isto é, não havendo norma que genericamente determine a nulidade de omissão de pronúncia ou falta de fundamentação, em relação a outras decisões, para além das sentenças, tal omissão apenas gera uma irregularidade nos termos do artº 123º do CPP, sujeita ao regime de arguição aí previsto.

 Ou seja, a verificar-se a alegada falta de fundamentação e omissão de pronúncia, nunca estaríamos perante a existência de nulidade, mas sim de uma irregularidade devia ter sido arguida no prazo de 10 dias, por força da norma especial do artº 152º do CEPMPL após a notificação do despacho recorrido, e perante o tribunal de primeira instância, pelo que a arguição agora efectuada é extemporânea, por já estar sanada pelo decurso do tempo.

Improcede também a invocação do vício da insuficiência previsto no artº410º nº2 al.a) do CPP,  alegadamente “por falta de investigação sobre as condições de reclusão no EP, quando o objecto do processo consiste na modificação da execução da pena de prisão” já que aquele é também um vício relativo à sentença. . Como se escreveu no ac. do STJ de 20/6/2002, (..) “ os vícios do artº 410º , citado, embora possam em certos casos estender o seu regime aos simples despachos, são claramente vício da sentença final , sobretudo, são vícios da matéria de facto.”[3]

Ora como já supra se afirmou, a decisão que rejeita o requerimento de modificação da execução da pena de prisão nega a liberdade condicional estando embora sujeita à obrigação de fundamentação decorrente do disposto no artº 146º nº1 do CEPMPL e do artº 97º nº5 do CPP, não tem o cariz de uma sentença, que conhece a final do objecto do processo nos termos do artº 97 nº1 al.a) do CPP, e muito menos é nos termos do artº 148º a) uma decisão, que se pronuncie sobre factualidade provada, mas antes sobre a factualidade alegada pela requerente.

Como tal, e sem necessidade de mais considerações, improcede a alegação dos vícios do artº 410º nº2 do CPP.

  No entanto a improcedência destas questões não significa que a decisão recorrida deva subsistir.

Como resulta do disposto no artº 148º al.a) do CPEPML, o juiz pode rejeitar o requerimento inicial, ao que agora interessa, quando aquele for manifestamente improcedente.

O despacho, dando acolhimento ao promovido pelo MP, rejeitou o requerimento da requerente, por manifesta improcedência da pretensão formulada, fundamentando e em síntese que:

 . “a situação de saúde e as condições pessoais invocadas pelo recluso não se enquadram em nenhuma das situações previstas nas alíneas a), b) e c) da mesma norma legal, conteúdo se dá aqui por reproduzido..

.(…)o quadro de deficiências/doenças alegado (amputação de membro superior), não torna, só por si, a situação pessoal do condenado como sendo de incompatibilidade com a sua normal manutenção em meio prisional [cf. a citada alínea b), sendo certo que, claramente, nenhuma das outras apontadas alíneas poderá ser convocada para o caso em exame].”

.No caso se verificam fortes exigências de prevenção geral, quer pelo tipo de criminalidade subjacente à condenação, crime de violência doméstica, tendo-se escrito “reputa-se como elevada a necessidade de reafirmação do poder contrafáctico da norma legal em causa, atenta a especial sensibilidade do bem jurídico violado, tratando-se este tipo de criminalidade de um flagelo que continua a afectar a nossa sociedade, minando a estrutura basilar que é a família, notando-se, actualmente, uma muito maior consciência social em relação a estes fenómenos, ao que o legislador penal não tem sido indiferente..”

. “ a imposição da medida de coacção de prisão preventiva no quadro de um outro processo implica que não se possa compaginar como viável a harmonização das suas necessidades cautelares com a saída do condenado do estabelecimento prisional, o que incrementaria, de forma insuportável, o atropelo às fortes exigências de prevenção ou de ordem e paz social a que alude o citado artigo 118.º”.

Alega o recorrente, e já em sede de recurso, “a metastização da patologia de base” e que “os estabelecimentos prisionais não estão preparados para lidar com tratamentos oncológicos” e que não se opõem fortes razões de prevenção ou de ordem de paz social.

Previamente à apreciação do caso concreto, importa à luz do que vem sendo firmado pela jurisprudência, fazer algumas considerações sobre a natureza do instituto da modificação da execução da pena.

 Assim e como se escreveu no ac da Rel. Évora de 16/10/2012,  “a medida prescrita pelo art. 118º do CEP visa acudir a situações extremas em que, devido a uma acentuada degradação do estado sanitário do condenado, o prolongamento da execução da pena privativa de liberdade em meio prisional seja susceptível causar grave dano à saúde, à integridade física ou mesmo á vida do condenado, em termos de colocar em cheque a sua dignidade como pessoa..”[4]

E sobre o alcance da oposição das exigências de prevenção ou de ordem e paz social, previstas no referido preceito, referiu-se no mesmo acórdão, em modo que iremos reproduzir por inteiramente concordarmos, que embora tais exigências constituem um travão de segurança, associado à defesa do ordenamento jurídico, “o juízo a formular pelo Juiz de execução de penas no sentido da ocorrência das «fortes exigências» referidas no proémio do art. 118º do CEP, que podem determinar a não aplicação da medida prevista neste normativo, terá de ser consideravelmente mais exigente do que aquele que se prenda com a verificação, por exemplo, dos imperativos de prevenção geral e especial do crime que justificam a recusa da liberdade condicional ou de outra providência tendente a facilitar a reinserção social do condenado.

Na verdade, as exigências susceptíveis de fundamentar a denegação da modificação da execução da pena terão de ser «fortes» ao ponto de, por causa delas, se ter de postergar, em última análise, o próprio direito do condenado à vida.

Nesse sentido, o travão de segurança previsto no art. 118º do CEP, orientado para a defesa do ordenamento jurídico, só deve ser accionado em verdadeiras situações-limite e não nos casos em que as exigências defensivas sejam importantes, mas, ainda assim, se quedem dentro de um certo padrão de normalidade.”(negrito nosso)

Ora, passando agora à situação dos autos, com o devido respeito por diferente entendimento, afigura-se que as exigências de prevenção ligadas à prática do crime de violência doméstica não atingem no caso concreto um patamar, impeditivo da aplicação da alteração pretendida pela requerente. Na verdade o despacho recorrido limita-se a invocar as exigências em abstracto, ligadas à natureza do crime, sem lograr, e mais uma vez com o devido respeito, demonstrar que no caso concreto as mesmas sejam acentuadas, vale dizer fortes. Sendo certo que aquilo que se retira do despacho de revogação da suspensão, é que o incumprimento do plano de reinserção social, esteve sempre umbilicalmente ligado ao contexto de dependência do consumo de estupefacientes, e que as condenações sofridas durante o período da suspensão, se reportam a crimes de condução sem habilitação legal, pelos quais foi condenado em penas de natureza não detentiva.

Por outro lado, e no que respeita à aplicação da medida de prisão preventiva nos autos de processo comum (tribunal colectivo) nº10/21.4AOAZ, muito embora a mesma não seja abrangida pelo regime da modificação da execução da pena de prisão, diferentemente, e com o devido respeito, do entendimento avançado pela recorrente, pois que tal regime, como resulta das previsões legais supra citadas, respeita a penas de prisão e não a medidas de coacção,[5] precisamente por não ser uma pena aplicada numa decisão transitada, não pode, por si, ser impeditivo formal à aplicação de tal regime nestes autos.

Como refere a decisão recorrida, o cumprimento de uma pena de prisão tem precedência de execução no cumprimento sobre uma medida de coacção, sendo que a modalidade de cumprimento daquela se pode realizar no Estabelecimento prisional ou em “Internamento do condenado em estabelecimento de saúde ou de acolhimento adequados, ou em regime de permanência na habitação” artº 120º do CEP, se verificados os pressupostos do artº 118º do mesmo diploma.

Ainda que estando em causa nos autos em que foi aplicada a medida de prisão preventiva, um crime de tráfico de estupefacientes, haveria que fazer um juízo concretizado que concluísse pela prevalência das razões de prevenção, à tutela dos bens jurídicos pessoais do condenado, como a integridade física, a saúde ou a própria vida.

Mas para tal mostrava-se necessário que o tribunal se munisse dos elementos que lhe permitissem com segurança aferir tal juízo o que não ocorreu no caso dos autos.

Ora, e passando à questão da verificação dos requisitos das alíneas das alíneas, do artº 118º do CEP, verificamos que a requerente no requerimento inicial, enquadra a sua alegação na alínea b) do referido preceito, isto é ser o condenado portador de “deficiência grave e permanente”, o que também foi considerado pela decisão recorrida, quando na mesma se escreveu “o quadro de deficiências/doenças alegado (amputação de membro superior), não torna, só por si, a situação pessoal do condenado como sendo de incompatibilidade com a sua normal manutenção em meio prisional [cf. a citada alínea b), sendo certo que, claramente, nenhuma das outras apontadas alíneas poderá ser convocada para o caso em exame].…

Na verdade, a recorrente já em sede de recurso e resposta ao parecer, veio alegar a situação de metastização, e juntar documentos, porém tais documentos não podem ser considerados por este tribunal, uma vez que foram juntos posteriormente à decisão recorrida, e como tal não puderam ser valorados por esta.

Neste sentido escrevem Leal Henriques e Simas Santos:

O objecto legal dos recursos é, assim, a decisão recorrida e não a questão por esta julgada. Na verdade, com o recurso abre-se somente uma reapreciação dessa decisão, com base na matéria de facto e de direito de que se serviu ou podia servir a decisão impugnada, pré-existente, pois, ao recurso.

Como assim, visando os recursos modificar as decisões impugnadas e não criar decisões sobre matéria nova, não é lícito na motivação ou nas alegações invocar questões que não tenham sido objecto das decisões recorridas, isto é questões novas.» - cfr. “Recursos Em Processo Penal”, Editora Rei dos Livros, 4ª ed., pág.  81 e 82.

Sem prejuízo, a qualificação jurídica dos factos cabe ao tribunal e não às partes, não sendo pelo facto de a requerente enquadrar a situação do condenado numa das alíneas do artº118º do CEP, que o tribunal ficaria impedido, se fosse o caso, de proceder ao enquadramento correcto noutra alínea, com vista à apreciação do pedido formulado pela requerente.

No caso dos autos, o que resulta do requerimento inicial não é apenas, “a amputação de membro superior”, mas também o diagnóstico de uma doença oncológica, Condrossarcoma omoplata direita localmente avançado.

Ora, afigura-se que a completa avaliação da deficiência grave e permanente invocada pela recorrente, não pode ser dissociada da doença oncológica que lhe deu causa, e da evolução que esta possa ter tido durante o período de mais de meio ano decorrido desde a apresentação do requerimento, por força das vicissitudes processuais ocorridas.

Invocando a requerente, factualmente a deficiência grave e permanente e a doença oncológica, e bem assim a dependência de terceiros, e a não adequação das condições do estabelecimento prisional, para a situação clínica do condenado, afigura-se com o devido respeito, e face ao que supra se expôs não ser o requerimento apresentado manifestamente infundado nos termos do artº 148º do CEPMPL.

Impunha-se que o tribunal em obediência aos princípios da investigação e verdade material, perante a situação de detenção do condenado averiguasse as efectivas limitações advenientes da amputação e doença invocadas, num juízo actual, e compatibilidade das mesmas com a permanência em meio prisional, se necessário através da realização de exames médicos ou perícia médico-legal, munindo-se além do mais dos elementos a que se referem as alíneas do nº 2 e 3 do artº 217º,que se mostrem aplicáveis ao caso dos autos, após o que será então continuada vista ao MP, para efeitos do disposto no artº 218º do CEP-

Só assim ficará assegurada a efectiva tutela dos direitos fundamentais do condenado consagrada  no artº 30º nº 5 da CRP e o direito a um processo equitativo de acordo com o disposto no artº 6º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, tendo –se presente a natureza urgente do regime de modificação da execução da pena previsto no artº 118º do CEPMPL com vista a assegurar em situações de grave deficiência ou doença irreversível,  a saúde e até a vida do condenado.

Como se escreveu no Ac. desta Relação de 3/8/2020 “ (…)O princípio da investigação e da descoberta da verdade material, estruturante do processo penal, também aplicável no âmbito da execução das penas, impõe ao tribunal o dever de proceder ele mesmo, oficiosamente, à realização das diligências que considere necessárias, tendo em vista a prolação de uma decisão materialmente justa. Não sendo possível fazer recair sobre os demais sujeitos processuais qualquer ónus de prova sobre os factos essenciais ou revelantes para a boa decisão da causa

Pelo exposto, o despacho recorrido não poderá subsistir, devendo ser substituído por outro que determine a instrução do requerimento nos termos do artº 217º do CEPMPL, inclusive com a realização dos exames médico-legais necessários» à caracterização do grau de deficiência, ou doença, sua irreversibilidade, grau de autonomia e de mobilidade».

Procede pois o recurso, ficando prejudicado o conhecimento da restante argumentação invocada pela recorrente, designadamente a invocada interpretação inconstitucional uma vez que não foi perfilhada.


**

III – DISPOSITIVO:

Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em no provimento do recurso interposto pela requerente/recorrente BB, revogar o despacho recorrido, que deverá ser substituído por outro que determine a instrução do requerimento nos termos do artº 217º do CEPMPL, inclusive com a realização dos exames médico-legais necessários» à caracterização do grau de deficiência, ou doença, sua irreversibilidade, grau de autonomia e de mobilidade»

Sem tributação

Elaborado e revisto pela relatora


Porto, 7/2/2024
Lígia Figueiredo
Pedro Afonso Lucas
Paulo Costa
______________
[1]. Nota-se que a referência feita pela recorrente aos arts 127 º e 128º da CEPMPL se assume como lapso, no contexto da leitura integral da motivação, por se reportarem ao regime de medidas de segurança de internamento e internamento de inimputáveis
[2] Curso de processo penal, Editorial Verbo 2008, tomo II, pág.92.
[3] Acedido in DGSI.pt (relator Pereira Madeira).
[4] Ac. Rel Évora 16/10/2012, proferido no proc.1673/10.1TXEVR-E.E1 (relator Sérgio Corvacho)
[5] Não obstante a remissão do artº 216º do CEP para o título XVI, “a modificação da execução da pen2 encontra-se regulada no título XV, pelo que há que fazer leitura correctiva.