Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
11183/21.6T8PRT-A.P2
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOÃO VENADE
Descritores: DIREITO DE RETENÇÃO
CONTRATO-PROMESSA
PROMITENTE-COMPRADOR
CUMPRIMENTO DO CONTRATO
EXECUÇÃO ESPECÍFICA
Nº do Documento: RP2023062911183/21.6T8PRT-A.P2
Data do Acordão: 06/29/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 3. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: O promitente comprador, titular de direito de retenção, ao adquirir judicialmente (execução especifica) o bem prometido vender, deixa de beneficiar do direito de retenção advindo do disposto no artigo 755.º, n.º 1, f), do C. C., por o contrato ter sido cumprido.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 11183/21.6T8PRT.P2.


João Venade.
Isoleta Almeida Costa.
Isabel Rebelo Ferreira
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1). Relatório.
Banco 1..., S. A., com sede na Avenida ..., Lisboa,
propôs contra
AA e BB, residentes na Rua ..., Habitação ..., Porto.
Ação executiva para pagamento de quantia certa, pedindo o pagamento coercivo de 1.056.503,55 EUR, alegando, em síntese, que:
- celebrou com A..., Lda. empréstimos n.º ...90, no montante de 1.100.000 EUR, com hipoteca sobre, entre outras, a fração autónoma designada pela letra Q, descrita na C. R. P. do Porto sob o n.º ...75/...-Q e inscrita na matriz predial urbana sob o art. ...39...;
- a hipoteca foi registada a favor exequente, pela inscrição lavrada com base na apresentação 73 de 2008/08/06;
- tal fração foi transmitida a terceiro, encontrando-se a mesma registada na titularidade dos executados pela inscrição lavrada com base na apresentação 535 de 2013/07/01;
- apesar de transmitida, a fração mantém-se onerada pela garantia hipotecária, sendo os seus proprietários, nessa medida, responsáveis pelo pagamento da dívida garantida, razão pela qual vão os mesmos aqui executados, nos termos do artigo 54.º, n.º 2, do C. P. C.;
- a sociedade mutuária deixou de cumprir as obrigações emergentes do contrato, devendo em 23/06/2021, 1.821.115,31 EUR;
- a mutuária foi declarada insolvente no âmbito do processo que, com o n.º 952/12.8TBEPS, do T. J.de Braga, Juízo de Comércio de Vila Nova de Famalicão, Juiz 1, pelo que não é a mesma aqui executada.
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Os autos prosseguiram, com citação dos executados que deduziram oposição à execução, a qual foi julgada procedente por decisão de 17/10/2022, revogada por Acórdão desta Relação (e secção) de 09/03/2023.
Sucede que, após a baixa deste Acórdão, se descortinou que tinha sido interposto um outro recurso pelos executados que não tinha sido apreciado, tendo os autos sido remetidos a este Tribunal da Relação.
Vejamos então.
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Por requerimento de 26/05/2022, os executados vieram apresentar, nestes autos de embargos, reclamação de créditos, contra «A..., Lda.…», alegando em resumo que:
- são titulares de direito de retenção sobre a fração «Q» do prédio em causa;
- o seu crédito ascende a 1.653.850 EUR (valor da penhora efetuada, sustentada em crédito hipotecário);
- o sustento do crédito assenta na sentença que condenou «A..., Lda.…» a praticar todos os atos necessários ao levantamento das penhoras que, à data da entrada de tal ação e, bem assim, do trânsito em julgado da mesma, recaem ou venham a recair sobre a fração prometida, mediante pagamento das dívidas exequendas aos exequentes que penhoraram ou venham a penhorar a fração ou mediante a entrega aos Autores do montante necessário para o pagamento das dívidas exequendas, respetivos juros vencidos e vincendos até integral pagamento.
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Foi então proferido, em 01/01/2022, o seguinte despacho, ora sob recurso:
«1) os executados embargantes vieram apresentar “Reclamação de Créditos”, invocando que o fazem ao abrigo do disposto no artigo 788.º n.º1 e 3 do Código de Processo Civil, em que são executados AA e BB, nos termos do requerimento com a REFª: 42385725 que aqui se dá por integralmente reproduzido.
Tal articulado de reclamação de créditos é legal e processualmente inadmissível nos presentes embargos de executado, e ademais, os executados não têm legitimidade para usar de tal mecanismo. Vejamos, dispõe o art.º 788.º do CPC no seu n.º 1 que 1 - Só o credor que goze de garantia real sobre os bens penhorados pode reclamar, pelo produto destes, o pagamento dos respetivos créditos.
Ora, os executados nesta execução são devedores, não podendo simultaneamente ser credores deles próprios.
Com efeito, o mecanismo da reclamação de créditos destina-se a créditos terceiros que gozem de garantia real sobre os bens penhorados, mas não se destina à proteção dos próprios executados, que não se podem arrogar de direitos de créditos sobre eles mesmos, quanto à exequente. Acrescenta o n.º 8 do mesmo artigo que - As reclamações são autuadas num único penso ao processo de execução, ou seja as reclamações de créditos são deduzidas num único apenso, e não em sede de embargos de executado.
Assim, ressalta à evidencia, sem necessidade de mais considerações, que a Reclamação de Créditos apresentada nestes autos é manifestamente inadmissível, pelo que se determina o seu desentranhamento, ao apresentante, bem como a oposição a esta apresentada pelo exequente, e a sua devolução aos apresentantes.».
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Inconformados, recorrem os executados, formulando as seguintes conclusões:
«A- Com a execução pretende o exequente fazer valer a garantia real sobre um imóvel de terceiros, propriedade dos apelantes, mas sobre dívida de um terceiro.
B - Para tanto, o exequente alegou a celebração de contrato de empréstimo com o n.º ...90, com a sociedade comercial A..., Lda., do montante de 1.100.000.00 euros (um milhão cem mil euro) a 31 de julho de 2008, por escritura pública de compra e venda e empréstimo com hipoteca e mandato, destinado a aquisição de doze frações para revenda - ponto 1 do requerimento executivo.
C - Tendo sido constituída hipoteca a favor do exequente sobre doze frações do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial do Porto, freguesia ... sob o n.º ...19, º e, que das doze frações, permanecem hipotecados, na presente data as frações autónomas designadas pelas letras C, P, R, S, T, Q e U.
D - Os apelantes celebraram um contrato promessa de compra e venda com a sociedade comercial A..., Lda., SA bilateral, em 27.07.2006 quanto à fracção autónoma designada pela letra Q, do prédio em regime de propriedade horizontal sinto na Rua ..., ... Porto, descrita na Conservatória do Registo Predial do Porto, freguesia ... sob o n.º ...19... e inscrita na matriz sob o artigo ...,
E - Por via deste contrato promessa de compra e venda, comprometeu-se a promitente-vendedora A..., Lda., SA a vender aos aqui apelantes a fracção Q, livre de quaisquer ónus e encargos.
F - Os ora apelantes não perderam, contudo, o interesse na aquisição da fracção Q, apesar da mora do promitente vendedor, da qual já se encontravam investidos na posse desde 23 de março de 2007, data em que A..., Lda., SA lhes entregou a chave.
G - Os apelante adquiriram a fração Q, em resultado de sentença proferida em ação de execução especifica que correu termos na 3.º Vara Cível das extintas Varas Cíveis do Porto Tribunal Judicial 595/12.6TVPRT sob o n.º 595/12.6 TVPRT e na qual a A..., Lda., SA foi condenada a ver reconhecida e declarada a compra e venda a favor dos AA.
H - Os aqui apelantes mantém interesse na manutenção do direito de retenção., nos termos do n.º 4 do artigo 871.º do Código Civil.
I - Os executados não são devedores da exequente, mas apenas titulares de um bem provido de garantia real a favor da exequente em resultado da celebração de contrato de empréstimo com o n.º ...90, com a sociedade comercial A..., Lda., do montante de 1.100.000.00 euros (um milhão cem mil euro) a 31 de julho de 2008, por escritura pública de compra e venda e empréstimo com hipoteca e mandato, destinado a aquisição de doze frações para revenda.
J - O tribunal a quo não admite a reclamação de créditos apresentada pelos executados/apelantes, com fundamento de que os reclamantes são executados nesta execução, não podendo ser simultâneo credores deles próprios.
L -Os apelantes são credores, tal como o exequente, do mesmo sujeito passivo a sociedade comercial A..., Lda., e titulares tal como o exequente, de um direito real de garantia sobre o imóvel que se encontra penhorados nos presentes autos a fracção Q, devendo, nesta, medida, ser admitida a reclamação de créditos apresentada.
M - Os apelantes, por força do artigo 758.º e 759.º n.º 3 e 871.º n.º 4 do Código Civil, mantêm interesse na manutenção do direito de retenção, apesar de serem simultâneo credores e proprietários da coisa.».
Pedem a procedência do recurso, proferindo-se decisão que admita a reclamação de créditos e que ordene o seu desentranhamento e autuação por apenso.
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Não houve contra-alegações.
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A questão a decidir é aferir da admissibilidade liminar da reclamação de créditos apresentada pelos recorrentes, com as seguintes vertentes:
- admissibilidade processual por o crédito reclamado não ser alegadamente devido pelos executados;
- admissibilidade substantiva no sentido de determinar se os reclamantes detêm algum crédito passível de ser sustentado no direito de retenção que alegam.
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2). Fundamentação.
2.1). Consideram-se assentes os seguintes factos:
«1. - No exercício da sua atividade creditícia, a Exequente celebrou com a sociedade "A..., Lda., Lda." um acordo denominado “Compra e Venda Empréstimo com Hipoteca e Mandato” mediante o qual lhe emprestou (Empréstimo n.º ...90), o montante de €1.100.000,00 (um milhão e cem mil euros), formalizado em 31 de Julho de 2008, por escritura pública, empréstimo esse destinado a aquisição de doze frações para revenda, entre elas a fração “Q” abaixo identificada, nos termos constantes do documento n.º 1 junto com o requerimento executivo, e cujo teor se dá aqui por reproduzido, sendo que, para garantia do capital mutuado pelo empréstimo supra descrito, respetivos juros e despesas, a sociedade mutuária constituiu hipoteca voluntária, em benefício da Exequente, sobre os seguintes imóveis: (…)
h) fração autónoma designada pela letra “Q” descrita na Conservatória do Registo Predial do Porto sob o n.º ...75/...-S e inscrita na matriz predial urbana sob o art. ...39...;
2 - Dentre tais imóveis, permanecem hipotecadas, na presente data, as frações autónomas designadas pelas letras (…) "Q", (…).
3 - A referida hipoteca foi registada a favor da CGD, ora Exequente, pela inscrição lavrada com base na apresentação 73 de 2008/08/06 do Porto sob o n.º ...75/...-Q e inscrita na matriz predial urbana sob o art. ...39...;
4 - A fração autónoma designada pela letra “Q” foi transmitida e encontra-se registada na titularidade de AA e BB, pela inscrição lavrada com base na apresentação 535 de 2013/07/01, registada a aquisição, por decisão judicial, transitada em julgado em 18.2.2013 - ação de execução específica de contrato promessa de compra e venda proferida no âmbito dos autos 595/12.6TVPRT (…)
5 – Por decisão proferida em 07/01/2013, na então 3.ª Vara Cível do Porto, processo n.º 595/12.6TVPRT em que eram Autores os aqui reclamantes/recorrentes e Ré «A..., Lda.…», foi esta condenada a:
- praticar todos os atos necessários ao levantamento das penhoras que, à data da entrada da ação, e bem assim, do trânsito em julgado da mesma, recaem ou venham a recair sobre a fração prometida, mediante pagamento das dívidas exequendas aos exequentes que penhoraram ou venham a penhorar a fração ou mediante a entrega aos Autores do montante necessário para o pagamento das dívidas exequendas, respetivos juros vencidos e vincendos, até integral pagamento;
- reparar os defeitos descritos no artigo 36.º, da petição inicial;
- pagar 12.264,86 EUR (danos patrimoniais) e 5.000 EUR a título de danos não patrimoniais;
- reconhecer uma compensação de valores (12.500 EUR) quanto a valor a liquidar pelos compradores no ato da escritura.
6 – Não obstante constar na sentença proferida que se condena a ali Ré a ver reconhecida e declarada a compra e venda a favor do AA (aqui executados) da fração autónoma designada pela letra Q, com um espaço para aparcamento e arrumo referentes ao 3.º andar, destinada a habitação do prédio urbano em propriedade horizontal sito no Gaveto das Ruas ... da freguesa de ... do Concelho do Porto, inscrito na matriz predial urbana sob o n.º ...94 e descrito na Primeira Conservatória do Registo Predial do Porto sob o n.º ...95, livro ..., livre de ónus e encargos, a hipoteca invocada pela exequente não foi cancelada.
7. A exequente não foi demandada na ação 595/12.6TVPRT, que correu termos pela extinta 3.ª Vara Cível do Tribunal Judicial do Porto, nem nele teve intervenção a qualquer título.
8 - A sociedade mutuária "A..., Lda." foi declarada insolvente no âmbito do processo que, com o n.º 952/12.8TBEPS, corre termos no Judicial da Comarca de Braga, Juízo de Comércio.
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Estes factos estão julgados assentes quer na decisão proferida na 1.ª instância que julgou procedente os embargos de executado quer no Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto em 09/03/2023 que revogou tal decisão, julgando os embargos improcedentes.
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2.2). Do mérito do recurso.
A). Da qualidade do reclamante.
Como ressalta do que antecede, os reclamantes, ora recorrentes e também executados, vieram aos autos de embargos de executado reclamar um alegado crédito de que serão detentores em relação à empresa «A..., Lda.…».
Esta empresa não é executada nos autos de execução, sendo os aqui recorrentes, como donos do imóvel dado em garantia desse crédito, através de hipoteca, os únicos executados.
Assim, os mesmos executados foram demandados pelo credor não por serem seus devedores mas por serem proprietários do imóvel dado em garantia; ocorre assim essa demanda ao abrigo do disposto no artigo 54.º, n.º 2, do C. P. C.: «A execução por dívida provida de garantia real sobre bens de terceiro segue diretamente contra este se o exequente pretender fazer valer a garantia, sem prejuízo de poder desde logo ser também demandado o devedor.».
Desse modo, o exequente demandou executados que não são seus devedores.
Mas, penhorado o imóvel pertencente ao terceiro não devedor, este terá de ser vendido livre dos ónus e garantias que incidam sobre o mesmo – artigo 824.º, n.º 2, do C. C. -; mas já não sucede essa extinção em relação ao direito de retenção pois o mesmo vale em relação a terceiros independentemente de registo – parte final, do mesmo artigo 824.º, n.º 2, do C. C. – (o direito de retenção resulta diretamente da lei e não de convenção particular – artigo 754.º, e seguintes, do C. C.).
Assim, mesmo vendido o bem na execução, os reclamantes podem opor o seu direito de retenção ao devedor sem necessidade de reclamar o crédito e respetiva garantia pois a mesma manter-se-á vigente; e podem opor esse direito ao adquirente posterior do bem.
Na verdade, da oponibilidade erga omnes do direito de retenção pode extrair-se que o direito de retenção já constituído ou constituído concomitantemente com a transferência da propriedade é oponível aos adquirentes do bem retido ainda que o devedor do contracrédito seja o anteproprietário – Ac. S. T. J. de 14/12/2016, rel. António Piçarra[1] , www. dgsi.pt, onde se cita Ana Taveira da Fonseca, [2] ao referir «ao contrário do que acontece com a exceção de não cumprimento, o direito de retenção é oponível não só àqueles que, no contrato, vierem a suceder nos direitos e obrigações dos contraentes, como também a todos os terceiros adquirentes da coisa retida. Da oponibilidade erga omnes do direito de retenção resulta a suscetibilidade de oposição desta garantia àqueles que tiverem adquirido a coisa depois de esta se ter constituído».
No entanto, nada impede o credor de vir reclamar o crédito a fim de ser reconhecido e verificado bem como graduado de acordo com, in casu, o direito de retenção, usando assim do seu direito de ação, eventualmente desnecessariamente.
Sucede que, na execução, o devedor («A..., Lda.…) não é parte (executado) e, pensamos que, por isso, o tribunal entendeu que deveria desde logo ser indeferida liminarmente a reclamação de créditos.
No entanto, na nossa visão, se fosse esse o único óbice à admissão da reclamação, poderia pensar-se em convidar os reclamantes a fazerem intervir na execução o devedor («A..., Lda.…») de modo a que, já tendo intervenção na execução como executada, pudesse igualmente ser reclamado um crédito em relação a si, evitando-se a perda da propriedade de um imóvel e de uma garantia de que se fosse titular (veja-se Ac. da R. G. de 17/01/2019, rel. Fernando Fernandes Freitas, www.dgsi.pt).
Note-se que se desconhece se tal intervenção poderia ocorrer por a devedora estar sujeita a um processo de insolvência que impede que corram contra si execuções – artigo 88.º, nºs. 1 e 3, do C. I. R. E. -; mas apenas referimos que se pode equacionar esse tipo de intervenção que sanaria a impossibilidade de o executado reclamar um crédito contra a sua devedora (A..., Lda.…).
Porém, pelo que infra se irá referir, não se justifica esse tipo de análise ou decisão por a reclamação não poder ser substantivamente admitida.
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B). Do crédito.
Da decisão proferida no processo n.º 595/12.6TVPRT, que correu termos pela extinta 3.ª Vara Cível do Tribunal Judicial do Porto, resulta que os recorrentes são credores de «A..., Lda.…» nos seguintes termos:
- da quantia necessária para pagar créditos exequendos de dívidas da mesma empresa;
- do direito de reparar defeitos no imóvel;
- das quantias de 12.264,86 EUR (danos patrimoniais) e 5.000 EUR a título de danos não patrimoniais;
São estes os valores que resultam daquela decisão que fazem parte da esfera obrigacional dos recorrentes enquanto credores.
A questão de constar no dispositivo da mesma decisão, na primeira alínea, que se reconhece e declara a compra e venda a favor dos Autores da fração em causa, livre de ónus e encargos, não curando aqui de saber da correção do decidido, não tem o significado de a fração ter sido vendida e comprada sem ónus, como aliás reconhecem os recorrentes pois não alegam que a hipoteca se extinguiu pela compra e venda. O que os mesmos defendem (na sua reclamação) é que têm um direito de retenção a seu favor que tem preferência sobre a hipoteca em causa, registada a favor da exequente.
A hipoteca só pode extinguir-se pelos meios legalmente previstos – artigo 730.º, do C. C. -, sendo que nenhum dos mesmos está espelhado na referida decisão como tendo ocorrido.
Por isso, o tribunal ter declarado que reconhecia a compra e venda sem ónus não tem qualquer repercussão na vigência da hipoteca.
Em suma, o crédito que os Autores detêm sobre «A..., Lda.…» é o que resulta daquelas três parcelas acima referidas e vertidas na sentença.
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B). Do direito de retenção.
Os recorrentes alegam que são titulares de direito de retenção sobre o imóvel que está penhorado à ordem da execução que constituem os autos principais (ap. ...16, de 2021/08/02). Mas os reclamantes/recorrentes são os atuais proprietários do imóvel conforme a decisão referida nos factos 5 e 6), pelo que se questiona como podem os reclamantes, serem donos do imóvel e, ao mesmo tempo, invocarem um direito de retenção sobre o imóvel que lhes pertence, visando garantirem um seu crédito provindo de negócio relacionado com a aquisição do mesmo bem (promessa de compra e venda), promessa essa que já não subsiste.
Na verdade, a partir do momento em que adquirem o imóvel, os reclamantes deixam de ser credores da empresa vendedora por causa da falta de celebração do contrato de compra e venda. Como se menciona no Ac. do S. T. J. de 27/03/1999, C. J. Acs. S. T. J., VII, II, páginas 40 a 43, «com a compra pelos Autores-Recorrentes do andar sujeito ao direito de retenção de que eram titulares, operação jurídica de natureza substantiva estrita, pela confusão de direitos, extingue-se aquela sujeição real que afetava o bem vendido.», confusão esta regulada nos artigos 868.º e seguintes, do C. C..
Mas aqui surgem duas questões que, a nosso ver, importa mencionar.
A primeira está relacionada com o alcance do direito de retenção no caso de ter sido celebrado um contrato promessa de compra e venda, direito que se encontra regulado no artigo 755.º, n.º 1, f), do C. C. – goza de direito de retenção o beneficiário da promessa de transmissão ou constituição de direito real que obteve a tradição da coisa a que se refere o contrato prometido, sobre essa coisa, pelo crédito resultante do não cumprimento imputável à outra parte, nos termos do artigo 442.º.
Ou seja, o promitente comprador, obrigado a entregar o imóvel objeto do contrato promessa, enquanto detentor lícito do mesmo, pode recusar essa entrega se for titular de um crédito que resulta do não cumprimento do contrato imputável ao promitente vendedor, crédito esse previsto no artigo 442.º, do C. C..
Este, nos seus nºs. 2 a 4, dispõe que:
2 - Se quem constitui o sinal deixar de cumprir a obrigação por causa que lhe seja imputável, tem o outro contraente a faculdade de fazer sua a coisa entregue; se o não cumprimento do contrato for devido a este último, tem aquele a faculdade de exigir o dobro do que prestou, ou, se houve tradição da coisa a que se refere o contrato prometido, o seu valor, ou o do direito a transmitir ou a constituir sobre ela, determinado objectivamente, à data do não cumprimento da promessa, com dedução do preço convencionado, devendo ainda ser-lhe restituído o sinal e a parte do preço que tenha pago.
3 - Em qualquer dos casos previstos no número anterior, o contraente não faltoso pode, em alternativa, requerer a execução específica do contrato, nos termos do artigo 830.º; se o contraente não faltoso optar pelo aumento do valor da coisa ou do direito, como se estabelece no número anterior, pode a outra parte opor-se ao exercício dessa faculdade, oferecendo-se para cumprir a promessa, salvo o disposto no artigo 808.º
4 - Na ausência de estipulação em contrário, não há lugar, pelo não cumprimento do contrato, a qualquer outra indemnização, nos casos de perda do sinal ou de pagamento do dobro deste, ou do aumento do valor da coisa ou do direito à data do não cumprimento.
O crédito que beneficia do direito de retenção é aquele que resultar deste artigo, desde logo:
- pagamento de sinal em dobro;
- o valor da coisa, deduzido do valor pago.
Não vamos entrar aqui na análise mais detalhada sobre qual a indemnização que pode servir de sustento ao direito de retenção no sentido de só se admitir esse direito quando tiver sido prestado sinal ou se, mesmo não tendo sido prestado, pode haver indemnização pelo valor da coisa ou se pode estar em causa qualquer indemnização pelo incumprimento que não a prevista no n.º 2, do citado artigo 442.º, do C. C. (aqui, pensamos que teria de ter sido convencionada, conforme n.º 4, do mesmo artigo 442.º).
E não vamos efetuar essa análise porque, de acordo com o alegado pelos reclamantes/recorrentes e face ao que está registado no registo predial, o imóvel foi adquirido através do instituto da execução específica (artigo 830.º, n.º 1, do C. C.)[3] que é uma forma de cumprimento do contrato e não uma indemnização pelo incumprimento definitivo.
Na decisão mencionada nos factos 5 e 6, como vimos, há a condenação da Ré a ver reconhecida e declarada a compra e venda entre as partes (reclamantes e «A..., Lda.…») – o que aproxima a decisão da execução específica – mas também se condena a aí Ré/vendedora a reconhecer uma compensação de valores quanto a valor a liquidar pelos compradores no ato da escritura – o que nos induz dúvidas sobre como se celebra uma escritura pública quando se declara a compra e venda através de decisão judicial -, não sendo possível obter a resposta da mesma decisão por ser de fundamentação sumária.
Mas, como já dissemos, o imóvel encontra-se registado a favor dos ora recorrentes tendo como causa a transmissão de propriedade através da execução específica (ap....35 de 01/07/2013, documento 4, junto com o requerimento executivo); assim, de acordo com o alegado e com o que consta do registo, efetivamente os reclamantes/recorrentes terão adquirido o imóvel através desse instituto e, com isso, terão conseguido o cumprimento do contrato, o que não dá direito ao uso de direito de retenção.
Os créditos titulados pelos recorrentes não podem assim derivar do incumprimento definitivo pois o contrato foi cumprido (judicialmente) mas, porventura, da mora no seu cumprimento.[4]
Por isso é que não é necessário aferir se tais créditos, no caso de incumprimento definitivo do contrato, poderiam estar abrangidos pelo direito de retenção mesmo que, literalmente, não se enquadrassem no n.º 2, do artigo 442.º, do C. C. pois, repete-se, o contrato foi cumprido.
A segunda questão está relacionada com a alegação dos reclamantes de que poderia o direito de retenção ainda estar vigente, apesar de serem donos do imóvel, porque nisso têm interesse.
Esta questão, neste momento, acaba por ter interesse teórico pois já concluímos que não existe direito de retenção quando o contrato-promessa foi cumprido.
E, efetivamente, como alegado, há o entendimento (pelo menos doutrinário) de que, em certos casos, mesmo que o retentor acabe por adquirir a propriedade do bem retido, possa ainda usar o direito de retenção, numa situação análoga ao previsto no artigo 871.º, n.º 4, do C. C. para a hipoteca que se estingue por confusão (meio que já vimos que foi o modo como se extinguiu o direito de retenção), o qual dispõe que:
- a reunião na mesma pessoa das qualidades de credor e de proprietário da coisa hipotecada ou empenhada não impede que a hipoteca ou o penhor se mantenha, se o credor nisso tiver interesse e na medida em que esse interesse se justifique.
Neste caso da hipoteca, o credor hipotecário adquire o bem e, por isso, deixava de fazer sentido poder usar essa garantia para se fazer pagar através de um bem sua propriedade; mas se, por exemplo, ainda for credor de alguma quantia e existir um outro credor com uma garantia posterior à sua hipoteca, acabaria então por ficar prejudicado ao não poder usar a sua hipoteca em relação a um outro credor em relação ao qual tinha preferência. Neste caso, na medida do seu crédito ainda em dívida, pode este credor usar a mesma hipoteca para ser graduado à frente do outro credor (veja-se Antunes Varela e Pires de Lima, Código Civil Anotado, 2.º, página 163).
E, de igual modo, se o retentor adquire a propriedade do imóvel, deixando de poder invocar o direito de retenção por ser algo que lhe pertence mas surge um outro credor (hipotecário, por exemplo, como é o caso dos autos) que estaria graduado após o retentor se este pudesse usar tal direito de retenção e se fosse credor de uma quantia derivada do incumprimento do contrato promessa, poderá entender-se que, por analogia, também pode invocar o direito de retenção tal como o pode fazer o credor hipotecário.
Vejamos, se o retentor adquire o imóvel extrajudicialmente, pode o seu direito de crédito pelo incumprimento definitivo do contrato promessa manter-se total ou parcialmente vigente e, neste caso, mesmo sendo dono do imóvel, pode fazer usar aquele direito de retenção em proteção do seu crédito resultante daquele incumprimento.
Por exemplo, os reclamantes tinham comprado o imóvel a outra pessoa que não «A..., Lda.…» mas mantinham um crédito pelo incumprimento definitivo do contrato promessa; poderia ser injusto, terem adquirido o imóvel e verem-no servir de meio de pagamento de um dívida que tinha garantia posterior à deles e, assim, usariam o direito de retenção para cobrarem o seu direito de crédito ainda vigente, analogamente ao que pode fazer o credor hipotecário que adquire a propriedade do imóvel hipotecado (veja-se Almeida Costa, Direito das Obrigações, 9.ª, página 1043, nota 2, onde se faz referência ao supra citado Acórdão do S. T. J. de 25/03/1999, Ana Taveira da Fonseca, A oponibilidade do direito de retenção, página 9.[5])
Mas a partir do momento em que a aquisição do imóvel é feita judicialmente, ao promitente vendedor, através da execução específica, assim se cumprindo o contrato, o promitente comprador deixa de ser credor daquele por um valor derivado do incumprimento definitivo, tendo optado por cumprir o contrato e assim, ficar ressarcido. Os outros créditos já são alheios ao incumprimento definitivo e, por isso, alheios ao direito de retenção.
Outros créditos onde se inclui o que eventualmente resulte do pagamento do valor da hipoteca, seja por força da sub-rogação prevista no artigo 592.º, do C. C. (Ac. R. P. de 01/10/2013, rel. Vieira e Cunha, www.dgsi.pt) seja por força do acordada transmissão livre de ónus e encargos.
Ali (artigo 592.º, do C. C.) pode estar em causa a sub-rogação do dono do imóvel que, com claro interesse em eliminar o ónus sobre o seu imóvel, após ter pago o valor da hipoteca, pode reclamar o valor pago ao devedor hipotecário (Antunes Varela e Pires de Lima, Código Civil Anotado, 2.º, página 608); aqui (convenção de transmissão livre de ónus) estará em causa o incumprimento de uma cláusula contratual da promessa mas não o incumprimento definitivo desse mesmo contrato pois o mesmo foi judicialmente cumprido.
Daí que, também neste caso, não podem os reclamantes beneficiar daquele direito de retenção, mesmo que por razões de analogia com o credor hipotecário.
Em suma, os reclamantes não detêm um crédito sobre a empresa devedora que seja beneficiária da garantia que alegam, pelo que não deve ser admitida liminarmente a sua reclamação, confirmando-se assim a decisão recorrida.
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3). Decisão.
Pelo exposto, julga-se improcedente o presente recurso e, em consequência, confirma-se a decisão recorrida.

Custas do recurso a cargo dos recorrentes.

Registe e notifique.



Porto, 2023/06/29.
João Venade.
Isoleta de Almeida Costa.
Isabel Ferreira.
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[1] IV - O direito de retenção, reconhecido ao promitente-comprador que obteve tradição da coisa a que se refere o contrato prometido, constitui um direito real de garantia, com eficácia erga omnes, produzindo efeitos contra eventuais adquirentes da coisa.
[2] Da recusa de cumprimento da obrigação para tutela do direito de crédito, em especial na exceção de não cumprimento e no direito de retenção, teses, Almedina, 2015, páginas 368 e 369.
[3] Se alguém se tiver obrigado a celebrar certo contrato e não cumprir a promessa, pode a outra parte, na falta de convenção em contrário, obter sentença que produza os efeitos da declaração negocial do faltoso, sempre que a isso não se oponha a natureza da obrigação assumida.
[4] Analisando, exaustivamente, a necessidade de ocorrer incumprimento definitivo e os créditos que beneficiam de direito de retenção, temos o Ac. da R. P. de 07/12/2018, desta mesma secção, rel. Aristides Rodrigues de Almeida, www. dgsi.pt
[5] II Colóquio sobre o Código Civil https://www.stj.pt/wp-content/uploads/2017/05/int_oponibilidadedireitoretencaoo_anataveiradafonseca.pdf