Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
174/19.7T8MTS.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOAQUIM CORREIA GOMES
Descritores: INEPTIDÃO DA PETIÇÃO INICIAL
CONVOLAÇÃO E SEUS PRESSUPOSTOS
ATRIBUIÇÃO DA CASA DE MORADA DE FAMÍLIA
Nº do Documento: RP20200528174/19.7T8MTS.P1
Data do Acordão: 05/28/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Apenas a falta absoluta do núcleo factual da causa de pedir, por inexistência absoluta ou ininteligibilidade integral da sua materialização, gera uma petição inepta, enquanto a sua insuficiência ou imprecisão, seja na exposição, seja na concretização, torna uma petição deficiente, havendo neste caso lugar a um despacho de aperfeiçoamento.
II - Um “despacho de convolação processual” de uma providência cautelar comum para um incidente de atribuição da casa de morada de família, desacompanhado de um despacho de aperfeiçoamento, não permite gerar expectativas de que seguindo esse “novo caminho” esteja assegurado ao demandante o vencimento da ação, mas já gera expectativas de que os factos essenciais alegados e o pedido formulado estão em consonância com os pressupostos elementares da relação jurídico-processual, pelo que a sentença ao considerar inepta a petição inicial viola as expectativas jurídicas decorrentes da confiança ou segurança jurídicas propiciadas por aquele primeiro despacho.
III - O pedido inicialmente formulado de “reposição da água, gás e luz no imóvel da casa de morada de família ao Requerente” e que “enquanto todas as questões de direito, referentes à legitima propriedade do imóvel não se encontrem decididas, seja concedido ao Requerente o direito de permanecer no mesmo”, o qual corresponde à consequência material (condennatio), tem implícito um pedido de atribuição do arrendamento da “casa de morada de família”, que, por sua vez, equivale à declaração jurídica propriamente dita (pronunciatio).
IV - A atribuição da casa de morada de família após a ruptura da vida em comum, mormente quando está em causa a titularidade do direito de propriedade entre os membros do ex-casal, tanto pode implicar a celebração de um contrato de arrendamento urbano com prazo certo, como por duração indeterminada.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Recurso n.º 174/19.7T8MTS.P1
Relator: Joaquim Correia Gomes;
Adjuntos; António Paulo Vasconcelos, Filipe Caroço
Acordam na 3.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto
I. RELATÓRIO
1.1 No processo n.º 174/19.7T8MTS do Juízo de Família e Menores de Matosinhos, J4, da Comarca do Porto, em que são:

Recorrentes/Autor (A): B…

Recorridos/Ré (A): C…

foi proferida sentença em 16/dez./2019 que julgou inepta a petição inicial “por falta de pedido e causa de pedir, com consequente nulidade de todo o processo com a absolvição da requerida da instância (artigos 186º, nº 1 e 2, al. a), 278º, nº 1, alínea b), ambos do Código de Processo Civil).”
1.2. O A. em 10/jan./2019 interpôs contra a A. um procedimento cautelar comum em que requereu a reposição da água, gás e luz no imóvel que tinha sido habitado por si e pela R, quando viveram em união de facto, numa habitação registada em nome da desta última, mas para a qual o primeiro também contribuiu monetariamente, formulando o seguinte pedido:
“Nestes termos e nos demais de direito, requer a V. Exª. a reposição da água, gás e luz no imóvel da casa de morada de família ao Requerente.
Ademais, requer que enquanto que todas as questões de direito, referentes à legitima propriedade do imóvel não se encontrem decididas, seja concedido ao Requerente o direito de permanecer no mesmo.”
1.3. Por despacho proferido em 21/jan./2019 foi considerado o seguinte:
“Face ao exposto, o meio processual utilizado pelo requerente não é adequado à afirmação e determinação do seu direito, pelo [que], após a correspondente baixa, deve-se corrigir a distribuição e ser os presentes autos remetidos à distribuição como incidente de atribuição de casa de morada de família”.
1.4. Por despacho proferido em 18/fev./2019 foi determinada a realização de uma tentativa de conciliação em 06/mar./2019, pelas 09H00, que por despacho de 25/fev./2019 e mediante requerimento foi transferida para 14/mar./2019, pelas 9H30, sendo que por despacho de 28/fev./2019 foi novamente transferida, desta vez para 20/mar./2019, pelas 09H00.
1.5. No dia 20/mar./2019 realizou-se a Tentativa de Conciliação a qual foi infrutífera, aguardando-se prazo para deduzir oposição.
1.6. A R. contestou em 01/abr./2019, aceitando que viveu em condição análoga às dos cônjuges com o A., partilhando uma casa da primeira, tendo em outubro de 2018 havido ruptura daquela relação havida entre ambos. Mais sustentou que para haver a atribuição da casa de morada de família ao primeiro, teria o mesmo que pedir a declaração judicial da dissolução da união de facto (artigo 8.º, n.º 1, al. b) n.º 2 da Lei n.º 7/2001), o que não foi feito. Termina requerendo a sua absolvição da instância e que o processo seja considerado nulo.
1.7. Por despacho de 07/mai./2019 foi designado para produção de prova o dia 03/jun./2019, pelas 14H30.
1.8. No decurso da designada diligência de 03/jun./2019, foi proferido o seguinte despacho:
“Defere-se a suspensão do processo por 15 dias e findo tal prazo se apenas chegarem a acordo quanto à dissolução da união de facto, mas já não quanto à utilização da casa de morada de família, fica desde já a requerida notificada para juntar prova quanto atribuição da casa de morada de família.”
1.9. O A. mediante requerimento de 18/jun./2019 e invocando a concordância da R. expôs o seguinte:
“1. Requerente e Requerida, vêm conjuntamente requerer a V/Exa. a dissolução da união de facto e a sua formalização por este Tribunal.
2. Mais requerem – uma vez que as partes não se encontram de acordo em mais nenhum ponto – a V/Exa. o prosseguimento dos presentes autos, com a tramitação dos ulteriores trâmites legais”
1.10. Por despacho proferido em 02/jul./2019 foi designada produção de prova para 16/set./2019, pelas 9H30.
1.11. Em 16/set./2019 e a partir de então presidida por outra Senhora Juíza, foram inquiridas as testemunhas arroladas, tendo aí estes autos sido informados da propositura da ação cujo processo tem o n.º 2020/18.0T8PVZ, que corre termos no Juízo Central Cível da Póvoa de Varzim, J4, da Comarca do Porto, com vista à determinação da propriedade do imóvel onde o A. e a R. habitaram.
1.12. Por despacho proferido em 09/out./2019 foi decidido o seguinte:
“Tendo, in casu, o requerente omitido o pagamento da taxa de justiça relativa ao requerimento inicial após a notificação do indeferimento do pedido de apoio judiciário, o que ocorreu já após os articulados e detetado após a produção de prova, deverão os presentes autos aguardar que o requerente junte tal pagamento, sem prejuízo do disposto no artigo 281.º, do NCPC, ou seja, da deserção e extinção da instância.”
1.13. Por despacho proferido em 11/nov./2019 foi decidido o seguinte:
“Tendo o requerente pago a taxa de justiça urge agora apreciar a falta da requerida. Como já se adiantou a requerida não pagou a taxa de justiça nem juntou documento comprovativo do pedido de isenção.
Assim, cumpra, em relação à requerida, o disposto no art.º 570.º do CPC.”
1.14. Por despacho proferido em 25/nov./2019 foi decidido o seguinte:
“Mostram-se regularizados os pagamentos das respetivas taxas de justiça. Todavia, antes de proferir decisão, urge apreciar questões prévias à mesma, sendo que para tal se nos afigura pertinente uma conferência com as partes.
Assim, designo próximo dia 11 de dezembro, pelas 9h15 para conferências entre as partes.”
1.15. Na referida conferência realizada em 11/dez./2019, cuja acta designou como sendo “Tentativa de Conciliação”, foi proferido o seguinte despacho:
“Atendendo a que as partes não lograram obter acordo, determino que seja aberta conclusão.”
2. O A. insurgiu-se contra aquela sentença, interpondo recurso da mesma em 03/fev./2020, pugnando pela sua revogação, determinando o prosseguimento dos autos de modo que se “decida em conformidade com a prova produzida” ou então que “o Recorrente seja notificado para aperfeiçoamento da sua peça processual e, nesse seguimento, o Tribunal decida em conformidade com a prova produzida”, apresentando as seguintes conclusões:
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3. Admitido o recurso, foi o mesmo remetido a esta Relação onde foi autuado em 27/fev./2020, realizando-se o exame preliminar e cumprindo-se os vistos legais.
4. Não existem questões prévias ou incidentais que obstem ao conhecimento do recurso.
5. O objeto deste recurso incide sobre a ineptidão da p.i. e a nulidade do processo.
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II. FUNDAMENTOS
O Novo Código de Processo Civil (Lei n.º 41/2013, de 26/jun., DR I, n.º 121 – NCPC) estabelece no artigo 186.º as causas de ineptidão, as quais conduzem à nulidade de todo o processo, estando aqui em causa a sua alínea a), segundo a qual tal ocorre “Quando falte ou seja ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir” – sendo nosso o negrito. Próximo daquela noção de ineptidão está a petição deficiente, o que sucede, seguindo agora o artigo 590.º, n.º 4 do NCPC, quando aquele articulado apresenta “insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada”, pois neste caso há lugar a convite ao aperfeiçoamento. A leitura destes segmentos normativos deve efetuar-se de modo conexionado e mediante a orientação legal do artigo 2.º do NCPC e constitucional do artigo 20.º, n.º 4 da Constituição, assegurando-se o direito a um processo justo e equitativo na modalidade de obtenção de uma decisão judicial em prazo razoável. E na decorrência do dever de gestão processual (artigo 6.º NCPC), bem como do princípio de justiça imanente ao Estado de Direito Democrático (artigo 2.º Constituição), será de conceder primazia às decisões que procuram uma justiça substantiva, em detrimento de expedientes processuais, muitas vezes mais preocupados com leituras estatísticas dos registos de pendências.
No que concerne ao ónus de alegação das partes encontramos no artigo 5.º, n.º1 do NCPC a sua regra nuclear, ao estabelecer que “Às partes cabe alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as exce[p]ções invocadas” – sendo nosso o negrito, assim como adiante. Precisando esta carga narrativa, será de destrinçar aquilo que está a cargo de cada uma das partes, designadamente quem demanda (autor) e quem é demandado (réu).
Começando pelo demandante e de acordo com o artigo 552.º, n.º 1, alínea d) do NCPC “Na petição, com que propõe a ação, deve o autor: Expor os factos essenciais que constituem a causa de pedir e as razões de direito que servem de fundamento à ação”, enquanto mediante a alínea e), deve “Formular o pedido”. No que concerne ao demandado ou réu, deverá este, face ao preceituado no artigo 572.º, alínea b), “Expor as razões de facto e de direito que se opõe à pretensão do autor” e alínea c) “Expor os factos essenciais em que se baseiam as exce[p]ções deduzidas, ...”, impondo-se, como regra, que toda a defesa seja deduzida na contestação, cabendo-lhe um preciso ónus de impugnação (573.º, 574.º, n.º 1, ambos do NCPC). Mas o que são factos essenciais e o que é um pedido, conceitos operativos da linguagem jurídica, usualmente invocados?
Na decorrência do artigo 581.º NCPC, mas através do seu n.º 3, a causa de pedir corresponde à sua razão de ser factual (ratio petitum), ou seja, ao facto jurídico subjacente a esse pedido. Deste modo e no que respeita à noção de causa de pedir, o legislador afastou-se de um conceito puramente naturalista de facto, para assumir um conceito jurídico de facto. Assim, factos jurídicos são os acontecimentos ou circunstâncias da realidade, decorrentes tanto da conduta humana, como de ocorrências da natureza ou resultantes de qualquer outra origem (v.g. robótica), que têm relevância jurídica, como já deixámos referenciado no Ac. TRP de 10/jan./2019, acessível em www.dgsi.pt, assim como os demais a que não se fala uma menção expressa da sua origem – na sintética e lapidar expressão do já esquecido Ac. do STJ de 07/nov./1969 (BMJ 191/219), factos são “fenómenos da natureza ou manifestações concretas dos seres vivos”. Existem, no entanto, os designados factos institucionais, os quais incorporam ou reproduzem a configuração de padrões sociais comuns de designação da realidade, ainda que com conotações jurídicas, que a jurisprudência tem assinalado como expressões de uso corrente, “ligados à concretização de certos factos” (Ac. STJ 02/dez./1982, BMJ 322/308) – tal sucede, por exemplo, com a palavra “emprestar”, como se referiu neste último acórdão, ou “renda” no âmbito de um contrato de arrendamento, para designar a contraprestação monetária a cargo do arrendado.
Por sua vez e por via instrumental do n.º 2 do artigo 581.º, do NCPC, pedido (petitum) significa o efeito jurídico pretendido, desdobrando-se este em duas vertentes: i) a declaração jurídica propriamente dita – pronunciatio (v.g. declaração/reconhecimento do direito de propriedade); ii) a subsequente consequência material – condennatio (v. g. entrega ou restituição da propriedade). Nalgumas situações, pode-se aferir a partir desta última o carácter implícito daquela, como de resto tem sido seguido pela jurisprudência, de que é exemplo o Ac. STJ de 02/dez./2008 (Cons. Hélder Roque) no âmbito de uma ação de reivindicação e mais recentemente o Ac. TRP de 08/mar./2019 (Des. Rui Moreira) relativamente à execução específica de um contrato-promessa.
Mas os poderes de cognição do tribunal não estão limitados aos factos essenciais invocados pelas partes, como decorre do n.º 2 do citado artigo 5.º do NCPC, porquanto “Além dos factos articulados pelas partes, são ainda considerados pelo juiz:” os outros que não sejam essenciais. E estes são os factos instrumentais que resultem da instrução da causa (a), os factos complementares ou concretizadores (b) assim como os factos notórios ou de conhecimento oficioso (c) (5.º NCPC). Será o âmbito global desta factualidade, factos essenciais a cargo das partes e factos não essenciais que o tribunal está vinculado, por razões de ofício, a conhecer, que fixam o objeto do litígio. E daí que surjam os temas de prova (596.º, n.º 1 NCPC), assim como a vinculação temática por parte do tribunal, através da subsequente sentença (607.º, n.º 3; 607.º, n.º4, NCPC).
Deste primeiro quadro jurídico, podemos assentar o seguinte em relação à construção da petição inicial e ao enquadramento dos poderes disciplinadores do tribunal: i) a petição visa propiciar à defesa o conhecimento do thema petitum e, em conjugação com a contestação, apresentar ao tribunal o thema decidendum, mediante a descrição de um núcleo factual essencial e inteligível; ii) a falta absoluta deste núcleo factual, por inexistência absoluta ou ininteligibilidade integral da sua materialização, gera uma petição inepta, enquanto a sua insuficiência ou imprecisão, seja na exposição, seja na concretização, torna uma petição deficiente.
A natureza de um processo de jurisdição voluntária não afasta liminarmente estas características, mas apenas compatibiliza as mesmas com as regras específicas e mais espontâneas expressas no artigo 986.º NCPC. Assim e segundo estas, permite que o tribunal faça sobressair o princípio da livre investigação dos factos e da prova, mediante um juízo de necessidade (artigo 986.º, n.º 2), fixando-se como critério de julgamento a conveniência e a oportunidade, em detrimento de critérios de estrita legalidade (artigo 987.º), assim como a possibilidade de alteração superveniente das resoluções judiciais (artigo 988.º, n.º 1).
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Haverá agora que balizar um segundo quadro jurídico, atendendo que mediante o despacho judicial foi convolada uma providência cautelar comum para um incidente de atribuição de casa de morada de família. Assim, será de atender ao preceituado no artigo 990.º, n.º 1 do NCPC, segundo o qual “Aquele que pretenda a atribuição da casa de morada de família, nos termos do artigo 1793.º do Código Civil, ou a transmissão do direito ao arrendamento, nos termos do artigo 1105.º do mesmo Código, deduz o seu pedido, indicando os factos com base nos quais entende dever ser-lhe atribuído o direito”. Para o efeito, dispõe aquele artigo 1793.º, através do seu n.º 1 que, “Pode o tribunal dar de arrendamento a qualquer dos cônjuges, a seu pedido, a casa de morada da família, quer essa seja comum quer própria de outro, considerando, nomeadamente, as necessidades de cada um dos cônjuges e o interesse dos filhos do casal.” Por sua vez e de acordo com o artigo 4.º da Lei n.º 7/2001 (DR I-A, n.º 109), alterada pela Lei n.º 23/2010, de 30/ago. (DR I, n.º 168), que veio estabelecer o regime jurídico das uniões de facto, “O disposto nos artigos 1105.º e 1793.º do Código Civil é aplicável, com as necessárias adaptações, em caso de ruptura da união de facto”.
No caso em apreço não podemos dizer que o requerimento inicial se encontra absolutamente ausente de factos e não foi formulado qualquer pedido. Tanto um como outro existem. No que concerne aos factos, será de relembrar que os mesmos foram alegados no pressuposto de uma providência cautelar. Por sua vez, no que concerne ao pedido, temos dois momentos distintos: o primeiro, logo no início quando foi requerida “a reposição da água, gás e luz no imóvel da casa de morada de família ao Requerente”, assim como que “seja concedido ao Requerente o direito de permanecer no mesmo”; o segundo, mediante requerimento de 18/jun./2019, invocando a concordância da R., foi exposto que o “Requerente e Requerida, vêm conjuntamente requerer a V/Exa. a dissolução da união de facto e a sua formalização por este Tribunal”.
Assim, haverá lugar ao despacho de aperfeiçoamento e o mesmo tem agora plena oportunidade? É o que iremos ver de seguida, começando por precisar o seu fundamento normativo e depois apontar o sentido que tem perdurado na jurisprudência. O convite ao aperfeiçoamento tem a sua base no disposto no artigo 580.º, n.º 2, alínea b) e n.º 4 do NCPC, preceituando-se neste último segmento normativo que “Incumbe ainda ao juiz convidar as partes ao suprimento das insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada, fixando prazo para a apresentação de articulado em que se complete ou corrija o inicialmente produzido.”
No que concerne ao despacho de aperfeiçoamento, o Tribunal Constitucional, como sucedeu com o Ac. n.º 536/2011 (DR II, n.º 243, tem considerado que não existe, no âmbito do processo civil, “um genérico direito ao aperfeiçoamento” (§ 8), perspetivando o mesmo a partir do direito fundamental a um processo equitativo (20.º, n.º 4 Constituição). Por sua vez, a jurisprudência das Relações tem mantido a propósito posicionamentos díspares, sendo um mais restritivo e outro mais amplo na relevância conferida ao despacho de aperfeiçoamento e das consequências da sua ausência. No primeiro posicionamento e como sucedeu com o Ac. TRL de 24/jan./2019 (Des. Manuel Rodrigues) “O convite ao aperfeiçoamento de articulados previsto no artigo 590.º, n.ºs 2, alínea b), 3 e 4, do CPC, não compreende o suprimento da falta de indicação do pedido ou de omissões de alegação de um núcleo de factos essenciais e estruturantes da causa de pedir”. Daí que “Tal convite destina-se somente a suprir irregularidades dos articulados, designadamente quando careça de requisitos legais, imperfeições ou imprecisões na exposição da matéria de facto alegada”. Pelo que “As deficiências passíveis de suprimento através do convite têm de ser estritamente formais ou de natureza secundária, sob pena de se reabrir a possibilidade de reformulação substancial da própria pretensão ou da impugnação e dos termos em que assentam (artigos 590.º, n.º 6 e 265.º, do CPC).” No segundo alinhamento tem sido considerado que o despacho de aperfeiçoamento tem um carácter vinculado, pelo que a sua ausência conduz à uma nulidade processual – neste sentido Ac. TRC de 19/dez./2012 (Des. Maria Domingas Simões), ainda que tirado antes do NCPC, Ac. TRL 15/mai./2014 (Des. Ezaguy Martins).
Mas este caso tem contornos específicos – como de resto todos os casos – decorrente daquele iniciático despacho judicial convolador e em virtude de estarmos perante um processo de jurisdição voluntária. E tanto aquele despacho, como a natureza deste processo, terá de ser perspetivado de um modo responsável pelo tribunal recorrido, independentemente de quem seja o(a) juiz(a), seja mediante um ajustado dever de gestão processual, seja mediante os poderes de investigação atribuídos no âmbito dos processos de jurisdição voluntária, mas ambos perspetivados a partir do princípio da confiança ou da segurança jurídica.
No princípio constitucional de confiança ou da segurança jurídica encontra-se imanente a ideia de um Estado de Direito Democrático, consagrado no artigo 2.º da Constituição. Mediante o mesmo, pretende-se assegurar a preservação dos direitos já consagrados ou então salvaguardar as expectativas jurídicas que podiam vir a ser judicialmente reconhecidas. Este postulado de segurança assenta num mínimo de certeza que os cidadãos devem ter na ordem jurídica de um Estado de Direito Democrático, passando, assim, a proteger a confiança na previsibilidade do Direito e nas subsequentes decisões judiciais. E este desiderato não é apenas uma exigência constitucional dirigida ao legislador, mas também deve ser orientado para o julgador, de modo a estabelecer e a esclarecer os propósitos regulativos da vida em sociedade (3.º da Constituição).
A jurisprudência constitucional desde muito cedo que tem construído este princípio da confiança (Ac. Comissão Constitucional n.º 463, de 13/jan./1983, DR n.º 78, p. 133 e BMJ 314/141; Ac. Tribunal Constitucional, doravante TC, n.º 11/83, 17/84, 86/84, 303/90, 93/94, todos acessíveis em www.tribunalconstituciona.pt, assim como os demais), vindo essencialmente a dirigir o mesmo para efeitos de conformação legislativa (Ac. TC n.º 287/90; 233/91; 285/92; 237/98; 473/92; 161/93; 486/96; 559/98; 580/99; 141/2002; 449/2002; 11/2007; 615/2007; 158/2008), muito embora também o oriente para os sentenciamentos judiciais, mormente quando está em causa o seu caso julgado (Ac. TC n.º 330/90; 270/99).
Seguindo agora o alinhamento jurisprudencial anteriormente referido, podemos dizer que existe a violação do princípio da confiança quando perante uma certa situação de facto a mesma for desconsiderada de um modo inadmissível e arbitrário, seja quanto aos direitos já constituídos, seja no que concerne à afetação de legítimas expectativas adquiridas. No caso em apreço, está em causa esta última modalidade, podendo quanto à mesma estabelecerem-se os seguintes três critérios operativos: (a) a eliminação ou minoração de expectativas mediante uma alteração do posicionamento judicial, relativamente à qual era legítimo que os destinatários dessa decisão pudessem vir a esperar de uma futura decisão judicial, mas que no presente deixou de ser; (b) quando essa mutação judicial não visa proteger outros direitos ou interesses que estejam constitucionalmente tutelados e sejam preponderantes relativamente àqueles outros; (c) essa ponderação deve ser submetida a um teste de proporcionalidade, o qual, a nosso ver, desdobra-se em quatro vetores, a saber: adequação (i) necessidade (ii), justa medida (iii) e interesse legítimo (iv).
Ora um “despacho de convolação processual” não permite gerar expectativas de que se seguindo esse “novo caminho” esteja assegurado ao demandante o vencimento da ação. Nada disso. Mas já gera expectativas de que os factos essenciais alegados e o pedido formulados estão em consonância com os pressupostos elementares da relação jurídico-processual. Pois não tem sentido, indicar um certo “processo” quando o caminho está “juridicamente minado” ou então conduz a um “precipício jurídico”, por ausência de certos factos alegados ou de um específico ou singular pedido. E foi isto que aqui sucedeu, porquanto aquele “despacho de convolação processual” não foi acompanhado de um “despacho de convite ao aperfeiçoamento”. No entanto, não nos podemos esquecer, que estamos no âmbito de um processo de jurisdição voluntária.
É certo que o pedido inicialmente formulado não foi no sentido de atribuição do arrendamento da “casa de morada de família”, que é típico desse incidente, mas antes de “reposição da água, gás e luz no imóvel da casa de morada de família ao Requerente” e que “enquanto [que] todas as questões de direito, referentes à legitima propriedade do imóvel não se encontrem decididas, seja concedido ao Requerente o direito de permanecer no mesmo”. Daqui resulta que o demandante deu preferência ou exclusividade à consequência material (condennatio), omitindo a declaração jurídica propriamente dita (pronunciatio), mas esta pode ser deduzida daquela, porquanto está implícita na mesma.
No que concerne à atribuição do arrendamento da casa de morada de família, chamamos a atenção que o Código Civil prevê distintos tipos de contratos, bastando cotejar o artigo 1094.º, n.º 1, segundo o qual “O contrato de arrendamento urbano pode celebrar-se com prazo certo ou por duração indeterminada”. Assim, a atribuição do arrendamento da cada de morada de família não significa que seja sempre um contrato “vitalício”, podendo ser por um “período determinado”. Daí que a atribuição da casa de morada de família após a ruptura da vida em comum, mormente quando está em causa a titularidade do direito de propriedade entre os membros do ex-casal, tanto pode implicar a celebração de um contrato de arrendamento urbano com prazo certo, como por duração indeterminada.
Por sua vez, estando em causa um processo de jurisdição voluntária, o tribunal recorrido tem poderes reforçados para indagar a factualidade aqui em causa, partindo do pressuposto de que o A. e a R. viveram em união de facto, que já terminou, e que o segundo invoca a necessidade da “morada da casa de família”, não sendo necessário e de modo a retardar uma sentença de mérito, que haja agora lugar a um despacho de convite ao aperfeiçoamento. Daí que se imponha a revogação da sentença recorrida de modo a serem fixados os factos pertinentes ou então, caso seja necessário, indagar os mesmos no âmbito dos seus poderes de cognição no âmbito de um processo de jurisdição voluntária.
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Tendo o recorrente obtido provimento no recurso, mas sem que tenha havido oposição, as custas serão atendidas a final – cfr. 527.º, n.º 1 e 2 NCPC.
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No cumprimento do disposto no artigo 663.º, n.º 7 do NCPC, apresenta-se o seguinte sumário:
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III. DECISÃO
Nos termos e fundamentos expostos, delibera-se conceder provimento ao recurso interposto pelo A. B…, e, em consequência, revoga-se a sentença recorrida.

Custas deste recurso a atender a final.

Notifique.

Porto, 28 de maio de 2019
Joaquim Correia Gomes
António Paulo Vasconcelos
Filipe Caroço