Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
4419/10.0TBVLG-G.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: FREITAS VIEIRA
Descritores: EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
PERÍODO DE CESSÃO
ENCERRAMENTO DO PROCESSO DE INSOLVÊNCIA
Nº do Documento: RP201809134419/10.0TBVLG-B.P1
Data do Acordão: 09/13/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º143, FLS.121-127)
Área Temática: .
Sumário: I – O regime de exoneração do passivo restante, particularmente no que concerne à sujeição do devedor insolvente a um conjunto de obrigações, severamente limitativas da sua autodeterminação pessoal e patrimonial – nº 4 do artº 239º do CIRE – mas também por implicar a proibição de execuções sobre os bens do devedor destinadas à satisfação dos créditos sobre a insolvência – nº 1 do artº 242º do CIRE – pressupõe a determinação clara do início e termo do período de cessão.
II – Nesse sentido foi previsto um período de duração fixo de cinco anos para o período de cessão, fazendo-se coincidir o início desse período de cessão com o momento do encerramento do processo de insolvência - cfr nº 2 do artº 239º e nº 1 do artº 244º do CIRE.
III – E tendo em vista obviar ao protelamento do início do período de cessão passou a prever-se no artº. 230º, nº. 1, alínea e) do CIRE, após a alteração introduzida pela Lei nº 16/2012 de 20.04 de 2012, que o juiz deverá declarar o encerramento do processo de insolvência no despacho inicial do incidente de exoneração do passivo restante referido na alínea b) do artigo 237.º do CIRE.
IV – Nos casos em que não houver sido declarado o encerramento apesar de ter sido proferido o despacho inicial de exoneração do passivo restante, haverá de atender ao regime provisório previsto no nº 6 do seu artº 6º, do DL 79/2017, de 30 de Junho, nos termos do qual o período de cessão do rendimento disponível se considera nesses casos iniciado na data de entrada em vigor do referido decreto-lei.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: APELAÇÃO N.º4419/10.0TBVLG-G.P1
Relator: Desembargador Freitas Vieira
1º Adjunto: Desembargador Madeira Pinto
2º Adjunto: Desembargador Carlos Portela

ACORDAM NA SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO

Em 31/05/2011 foi proferido despacho a admitir liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante formulado pelos insolventes, e fixado o período de cessão de cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência, em conformidade com o disposto no artigo 239.º, n.º 2, do CIRE.

O Administrador de Insolvência veio, entretanto, informar que o encerramento dos autos estava dependente, primeiro da liquidação e depois do rateio final, estando a liquidação encerrada.

A 28/01/2014 foi proferido despacho a ordenar a remessa dos autos à conta.

O processo esteve, entretanto, sem movimentação entre 04/07/2014 e 27/09/2016 por força da reestruturação judiciária ocorrida em 2014.

A 24/01/2018 foi proferido novo despacho que atendendo ao consagrado no artigo 6.º, n.º 6, do D.L. n.º 79/2017, de 30-06, determinou que o início do período de cessão da exoneração do passivo restante se considerava iniciado a 01-07-2017.

Não conformado recorrem os insolventes B…, e mulher C…, formulando em síntese das correspondentes alegações as seguintes CONCLUSÕES:
a) Em 16/12/2013, por douto despacho, foi ordenada a notificação do senhor Administrador de Insolvência para dizer o que tivesse por conveniente quanto ao eventual encerramento dos autos;
b) Em 07/01/2014, foi proferido novo douto despacho, no qual foi ordenada nova notificação do senhor Administrador de Insolvência para, em 10 dias “esclarecer em que termos deverá ser ordenado o encerramento do processo por referência ao art.º 230, do CIRE”;
c) A essas notificações, o senhor Administrador de Insolvência respondeu a dizer em que estado se encontrava a liquidação e nos dois últimos requerimentos informou que a liquidação estava encerrada;
d) Mais disse que faltaria apenas o rateio final, mas que tinha conhecimento que alguns tribunais, para efeitos de exoneração do passivo, consideravam o encerramento do processo naquela fase;
e) Em 28/01/2014, por douto despacho, foi ordenada a remessa dos autos à conta;
f) Foi elaborada a conta final do processo e realizados os devidos atos processuais decorrentes da elaboração da nota final de custas, designadamente notificações e fixação de editais;
g) O processo esteve sem movimentação entre 04/07/2014 e 27/09/2016 por força de profunda alteração judiciária ocorrida em Portugal e que determinou a transição do presente processo de um tribunal para outro;
h) Os insolventes são alheios – e não podem ser prejudicados – pelo facto do senhor Juiz em 28/01/2014 ter-se limitado a ordenar a remessa dos autos à conta e não ter, expressamente, declarado o encerramento do processo;
i) A remessa dos autos à conta tem como prossuposto o encerramento do processo;
j) Entender-se de outra forma, seria retirar in casu o efeito pretendido ao instituto da exoneração do passivo restante e prejudicar os insolventes por vicissitudes processuais e judiciárias foram do comum e a que são completamente alheios.
k) O princípio do “fresh start”, visando a reintegração dos devedores na vida económica seria violado, caso se considerasse que, in casu, só cerca de 6 anos após o despacho inicial do deferimento do pedido de exoneração do passivo restante e 3 anos e meio após a remessa do processo à conta, é que se iniciará o período de cessão.
l) Até porque, como se disse, face ao douto despacho a ordenar a remessa dos autos à conta na sequência das notificações ao senhor Administrador de Insolvência para o efeito de encerramento do processo;
m) A douta decisão recorrida, com o devido respeito por opinião contrária, violou o espírito e a letra dos Arts. 230º nº 1 e), 235º e 2377º b) do CIRE.
Nestes termos e nos melhores de Direito deve o douto despacho recorrido ser revogado e substituído por outro que fixe a data de 28/1/2014 como início do período de cessão, data em que foi ordenada a remessa dos autos à conta, fazendo-se assim inteira e sã Justiça

O objeto do recurso mostra-se circunscrito à questão relativa à determinação do início do período de cessão, que os recorrentes sustentam dever ter-se como iniciado na data em que foi ordenada a remessa dos autos à conta, e não a 01-07-2017, conforme foi determinado.

Apresentam-se como relevantes para a decisão os factos seguintes que se consideram assentes a partir da tramitação processual dos autos:

- Aquando da sua apresentação à insolvência os requerentes apresentaram pedido de exoneração do passivo restante;
- Este requerimento foi objeto de apreciação em despacho proferido a 31-5-2011 no qual se decidiu inexistirem fundamentos para indeferimento liminar do pedido assim deduzido, sendo decidido a obrigação dos requerentes de cederem o seu rendimento disponível durante o período de cessão, ressalvado o valor ali fixado e tido como adequado para o seu sustento minimamente digno , bem como a sua sujeição durante aquele período às demais obrigações previstas no nº 4 do artº 239º do CIRE.
- A 23-12-2013º administrador da insolvência veio informar estar terminada a liquidação, tendo sido alienados todos os bens conhecidos;
- A 21-01-2014 o administrador da insolvência veio informar não estar ainda efetuado o rateio de que nos termos do artº 230º do CIRE depende o encerramento do processo;
- A 28/01/2014, por douto despacho, foi ordenada a remessa dos autos à conta;
- A 12-02-2014 é exarada informação pela secretaria de remessa dos autos à conta a qual foi nessa mesma data elaborada;
- O processo esteve, entretanto, sem movimentação entre 04/07/2014 e 27/09/2016 por força da reestruturação judiciária ocorrida em 2014.
- A 24/01/2018 foi proferido novo despacho que atendendo ao consagrado no artigo 6.º, n.º 6, do D.L. n.º 79/2017, de 30-06, determinou que o início do período de cessão da exoneração do passivo restante se considerava iniciado a 01-07-2017.
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A possibilidade de concessão da exoneração do passivo restante, prevista nos artigos 235º a 248º do CIRE, tem em vista possibilitar que o devedor pessoa singular que se veja colocado numa situação de insolvência, possa vir a retomar uma atividade económica, liberto das dívidas que não tenham obtido pagamento integral no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste processo.
Nos termos do regime instituído por aquelas normas a possibilidade de exoneração do passivo restante está reservada aos devedores que tenham mantido no período que antecedeu a situação de insolvência, e depois, durante o período de cessão, uma atuação transparente e leal para com os credores.
Nesse sentido, a atuação do insolvente que requereu a concessão da exoneração do passivo restante é sujeita a apertado escrutínio.
Desde logo em termos de admissão liminar do requerimento – artº 238º do CIRE.
Mas sobretudo durante o período de cinco anos posteriores à admissão do requerimento, para este efeito denominado de período de cessão. Durante esse período o insolvente que requereu a concessão da exoneração do passivo restante, fica sujeito a um conjunto de obrigações, severamente limitativas da sua autodeterminação pessoal e patrimonial – nº 4 do artº 239º do CIRE - que são condição da posterior concessão da exoneração do passivo restante – artº 243º, nº 1-a) e 244º do CIRE - implicando, nomeadamente, que todo o rendimento disponível do insolvente auferido durante aquele período se considere cedido ao fiduciário, à exceção do estritamente necessário para o seu sustento, para ser aplicado no pagamento das custas e encargos da insolvência e para distribuição pelos credores – nº 2 do artº 239º, nº 1 do artº 241º do CIRE.

A determinação do início e termo do período de cessão reveste por isso importância manifesta para o insolvente.
Mas também para os credores, uma vez que durante o referido período não são permitidas execuções sobre os bens do devedor destinadas à satisfação dos créditos sobre a insolvência – nº 1 do artº 242º do CIRE - nem é admitida a concessão de qualquer tipo de vantagens a qualquer credor ou terceiro em detrimento dos demais credores – nº 2 do referido preceito.
O regime assim instituído pressupõe por isso uma clara delimitação do período de cessão sob pena de total subversão da finalidade que lhe está subjacente.
Nesse sentido foi previsto um período de duração fixo de cinco anos para o período de cessão, fazendo-se coincidir o início desse período de cessão com o momento do encerramento do processo de insolvência - cfr nº 2 do artº 239º e nº 1 do artº 244º do CIRE.
Para além disso, e tendo em vista obviar ao protelamento do início do período de cessão passou a prever-se no artº. 230º, nº. 1, alínea e) do CIRE, mercê de alteração introduzida pela Lei nº 16/2012 de 20.04 de 2012, que o juiz deverá declarar o encerramento do processo de insolvência, quando este ainda não haja sido declarado, no despacho inicial do incidente de exoneração do passivo restante referido na alínea b) do artigo 237.º do CIRE.
Não houve no entanto o cuidado de conjugar o assim estatuído, com o previsto em termos de efeitos do encerramento do processo no artº 233º do CIRE, suscitando-se a necessidade de conciliar o disposto na referida alínea e) do nº 1 do artº 230º do CIRE com o disposto nas alíneas a) e b) do nº 1 do artº 233º do CIRE que não sofreu qualquer alteração com a Lei nº 16/2012.
Com efeito nos termos do disposto no nº 1 do artº 233º do CIRE, com o encerramento do processo de insolvência cessam todos os efeitos que resultam da declaração de insolvência – cgr alínea a) do citado normativo – nomeadamente o devedor recupera o poder de disposição sobre os seus bens, que deixam de poder ser reservados ao pagamento dos credores, e o administrador da insolvência perde os poderes que com essa finalidade lhe assistiam, desde logo em termos de liquidação dos bens apreendidos ou suscetíveis de serem apreendidos para a massa insolvente.
A considerar-se este regime também nos casos em que o encerramento do processo ocorre logo no despacho inicial do incidente de exoneração do passivo restante referido na alínea b) do artigo 237.º do CIRE, isso implicaria, nos casos em que ainda houvessem bens aprendidos ou suscetíveis de apreensão, beneficiar de forma inadmissível o devedor insolvente, possibilitando-lhe subtrair tais bens ao pagamento dos créditos da insolvência, contrariamente ao que é a finalidade última do processo de insolvência – artºs 1º, 36º-g) 46º-1,do CIRE.
Na procura da concordância prática entre o regime previsto na nova alínea e) do nº 1 do artº. 230º do Cire, com os efeitos do encerramento do processo tal como previstos no nº 1 do artº 233º do mesmo diploma, apresentavam-se como possíveis duas posições.
- Relegar para momento posterior ao rateio, o encerramento do processo, com sacrifício do regime previsto na alínea e) do nº 1 do artº 230º do CIRE;
- Declarar o encerramento do processo no despacho inicial sobre o pedido de exoneração do passivo restante, observado assim o regime previsto naquele preceito, mas apenas para efeito da delimitação do início do período de cessão.
A jurisprudência dos tribunais nomeadamente dos tribunais da Relação[1] com apoio em setores representativos da doutrina [2], começaram por adotar o primeiro entendimento.

O DL n.º 79/2017, de 30 de Junho veio no entanto acolher a segunda das opções ao alterar o artº 233º do CIRE do qual passou a prever-se, no seu nº 7 do mesmo que “O encerramento do processo de insolvência nos termos da alínea e) do n.º 1 do artigo 230.º, quando existam bens ou direitos a liquidar, determina unicamente o início do período de cessão do rendimento disponível”. Ou seja, passou a prever que o encerramento do processo deva ser declarado, quando houver pedido de exoneração do passivo restante, logo no despacho inicial, embora sem os demais efeitos que nos termos do artº 233º do CIRE estão associados ao mesmo.
Este mesmo diploma estabelece que as alterações por si introduzidas são imediatamente aplicáveis incluindo aos processos pendentes.
No entanto o legislador, certamente ciente da prática e entendimento diversos seguidos até aí pelos tribunais e pela doutrina, estabeleceu no entanto no nº 6 do seu artº 6º, como norma provisória que “ Nos casos previstos na alínea e) do n.º 1 do artigo 230.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18 de março, em que não tenha sido declarado o encerramento e tenha sido proferido o despacho inicial de exoneração do passivo restante, considera-se iniciado o período de cessão do rendimento disponível na data de entrada em vigor do presente decreto-lei.”

A situação dos autos encontrava-se assim claramente abrangida na previsão desta norma já que não havia ainda sido declarado o encerramento do processo.
E por isso o despacho recorrido, proferido a 24/01/2018, que em conformidade com aquele artigo 6.º, n.º 6, do D.L. n.º 79/2017, de 30-06, determinou que o início do período de cessão da exoneração do passivo restante se considerava iniciado a 01-07-2017, tinha total apoio legal.
É certo que os recorrentes têm razão quando se insurgem quanto ao facto de não ter sido antes declarado o encerramento do processo, até porque já estava terminada a liquidação e havia sido elaborada a conta, restando apenas a conta e o rateio final a realizar pela secretaria – artº 182º do CIRE. Em condições normais remetidos os autos à conta em 28-01-2014, e elaborada a mesma, seguir-se-ia o rateio e o encerramento do processo, iniciando-se nesse momento o período de cinco anos de cessão. No entanto, por razões que os autos não esclarecem totalmente, mas imputadas à reorganização judiciária dos tribunais, o processo esteve sem movimentação entre 04/07/2014 e 27/09/2016.
Mas certo é também que só agora, passados cerca de 4 anos, vieram reclamar de tal facto.
A solução não passa assim por fazer retroagir o início do período de cessão à data em que os autos foram remetidos à conta, como pretende o recorrente. Desde logo porque essa solução não tem apoio legal já que o legislador sempre fez coincidir o início do período de cessão com o encerramento do processo, seja este declarado no despacho inicial conforme disposto no artº 230º/1-e) do CIRE, seja posteriormente, em despacho autónomo, como era prática e entendimento seguidos pelos tribunais e pela doutrina. Acresce que só dessa forma é possível estabelecer com clareza e precisão o início de tal período e consequentemente o início das obrigações que do mesmo decorrem para o insolvente.
Por outro lado a solução encontrada pelo legislador para os casos em que à data da entrada em vigor do DL n.º 79/2017, de 30 de Junho não tivesse sido ainda declarado o encerramento apesar de ter sido proferido o despacho inicial de exoneração do passivo restante, como foi o caso dos autos, foi a de estabelecer uma data - o dia 1 de Julho de 2017, data da entrada em vigor do referido DL n.º 79/2017 - como sendo a do início do período de cessão – nº 6 do artº 6º do DL n.º 79/2017, de 30 de Junho.
Finalmente porque, apesar da razão que assiste quanto às desvantagens decorrentes do anómalo atraso processual ocasionado pela reorganização judiciária, que efetivamente não lhes é imputável, mas que apenas tardiamente invocam, não existem particulares prejuízos que possam ser invocados, na medida em que durante esse período, os insolventes não entregaram efetivamente quaisquer quantias ao fiduciário.

No seguimento do exposto acordam os juízes nesta secção cível do Tribunal da Relação do Porto em julgar improcedente o recurso, confirmando a decisão recorrida.

Custas pelos recorrentes.
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Síntese conclusiva:
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Porto, 13 de setembro de 2018
Freitas Vieira (Relator)
Madeira Pinto (1º Adjunto)
Carlos Portela (2º Adjunto)
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[1] Ac da Relação do Porto de 28-11-2013, Proc. Nº 915/12.3TJPRT-E.P1; Ac da Rel de Coimbra de 28-10-2014, Proc. Nº 2544/12.2TBVIS. C1 ; da Rel. De Guimarães de 07-5-2015, Proc. Nº 498/14.0TBGMR-G.G1.
[2] A. Soveral Martins, Um Curso de Direito da Insolvência, Almedina, 2015, a páginas 344 e 540 a 542; Carvalho Fernandes e João Labareda, CIRE Anotado, 2.ª Edição, Quid Juris, pg. 875.