Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
3898/10.0TXPRT-O.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MANUEL SOARES
Descritores: REVOGAÇÃO DA LIBERDADE CONDICIONAL
CRIME DOLOSO
Nº do Documento: RP201804183898/10.0TXPRT-O.P1
Data do Acordão: 04/18/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º757, FLS.42-45)
Área Temática: .
Sumário: Só em circunstâncias excepcionais é que o tribunal de execução de penas deve considerar que a condenação em pena de prisão põe crime doloso idêntico ao da pena em execução, praticado no período de liberdade condicional, não determina a sua revogação.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 3898/10.0TXTPRT-O.P1
Comarca do Porto
3ª Secção do Tribunal de Execução de Penas do Porto
Acórdão deliberado em Conferência
1. Relatório
1.1. Decisão recorrida
Por Despacho proferido em 22 de Janeiro de 2018, foi revogada a liberdade condicional do condenado B…, por ter praticado no decurso do respectivo período crime doloso pelo qual veio a ser condenado.
1.2 Recurso
O condenado interpôs recurso, invocando violação do artigo 71º nºs 1 e 2 do CP e alegando o seguinte (transcrição das conclusões):
1. O arguido é pessoa que já sofreu a sua quota na vida;
2. Teve uma vida não isenta de percalços, nomeadamente com a justiça, que o levaram ao cumprimento de pena de prisão.
3. Tendo sido alvo de aplicação da medida da liberdade condicional, aproveitou para refazer a sua vida,
4. Constituindo família e iniciando a sua actividade como vendedor ambulante, nas feiras, com a sua mulher e a sua sogra.
5. Foi pai, foi novamente pai agora em Dezembro de 2017.
6. Está inserido familiar, social e profissionalmente.
7. No decurso da liberdade condicional cometeu um crime de condução sem habilitação legal,
8. Com o único escopo de acudir a sua sogra, pessoa portadora de doença cardíaca grave.
9. Condenado ao cumprimento de prisão em regime de permanência na habitação e sob vigilância electrónica, tem cumprido exemplarmente.
10. A revogação da liberdade condicional e a sua volta à cadeia vão servir para o afastar da ressocialização em curso.
11. A decisão a quo é injusta e meramente retributiva, em clara violação da política de ressocialização do arguido, defendida pelo Direito Penal Português.

O Ministério Público respondeu ao recurso, sustentando a confirmação da decisão recorrida, dizendo, em síntese, o seguinte (resumo nosso):
- As conclusões do recurso não cumprem os requisitos legais, por falta de indicação das normas violadas e de cumprimento dos requisitos da impugnação da matéria de facto;
- Não se provou no processo próprio a alegada circunstâncias justificativa da condução sem habilitação legal, que veio a dar origem à condenação que motivou a decisão recorrida;
- A prática, no período de liberdade condicional, de um crime do mesmo tipo do que havia dado origem à condenação cuja pena estava em cumprimento, revela manifestamente que o condenado não cumpriu as obrigações impostas e inviabilizou as finalidades da reinserção em liberdade.

O Ministério Público na Relação teve vista e emitiu parecer desfavorável à procedência do recurso, opinando, sinteticamente, que a motivação do recurso não inviabiliza o seu conhecimento e que, em face da prática de novo crime doloso no período de liberdade condicional, outra decisão não poderia ser proferida do que a sua revogação.
2. Questões a decidir no recurso
A controvérsia que nos é pedido resolver é apenas a de saber se estão verificados os pressupostos para a revogação da liberdade condicional.
3. Fundamentação
3.1. O despacho recorrido
O despacho recorrido considerou, em suma, os seguintes factos como pressuposto da decisão (transcrição com adaptações formais):
1. Quando se encontrava e no EPC C…, em cumprimento da pena de prisão: NUIPC PCC 252/04.7PBLMG (triplo cúmulo jurídico) por (cúmulo jurídico 1) crime de condução sem habilitação legal, crimes de roubo consumados, crimes de roubo tentados, crime de extorsão tentada, crime de coacção grave tentada, crime de furto qualificado (pena de 3A6M de prisão e 90D de multa), por (cúmulo jurídico 2) crime de condução sem habilitação legal, crimes de roubo consumados, crime de condução sem habilitação legal, crimes de roubo qualificados consumados, crime de roubo simples consumado, crime de abuso de confiança crime de coacção grave tentada (pena de 6A10M de prisão e 250D de multa) e por (cúmulo jurídico 3) crime de condução perigosa, crime de aproveitamento de obra usurpada ou contrafeita, crime de condução sem habilitação legal (2A2M de prisão] B… viu ser-lhe concedida, por decisão de 7dezembro2015, para operar desde 11dezembro2015 (data de 5/6 de soma de penas e, como tal, em situação ope legis) e até 10janeiro2018 (sem prejuízo da alteração constante do ponto 8 infra), liberdade condicional.
2. Nessa decisão foram-lhe fixadas os deveres e regras de conduta de:
- Fixar residência, que valerá como morada jurisdicional e que não poderá alterar por prazo superior a 5 (cinco) dias sem prévia autorização do TEP competente, no Bairro , Bl , Entrada …, …, …, Peso da Régia;
- Apresentar-se a Técnico da Equipa de Reinserção Social D…, no prazo de 5 (cinco) dias após a libertação e sempre que lhe foi solicitado e, aceitando a sua tutela, comparecer às entrevistas de acompanhamento, cumprir as ordens legais e recomendações que lhe sejam transmitidas, incluindo o que se reporta ao a estabelecer e articular em termos de acompanhamento pelo CRI - Centro de Respostas Integradas do IDT - Instituto da Droga e da Toxicodependência da área da fixada residência, bem como de acompanhamento em serviço hospitalar especializado face à sua específica situação de saúde;
- Manter bom comportamento moral, social e cívico e dedicar-se ao trabalho, fazendo-o de forma regular e honesta, sem praticar infracções/crimes;
- Não acompanhar com pessoas ligadas de qualquer modo à prática de actividade ilícitas ou que, de algum modo, possam contribuir para neutralizar os efeitos da ressocialização que a liberdade condicional visa alcançar;
- Não acompanhar com traficantes ou consumidores de produtos estupefacientes e não frequentar locais conotados com o sub - mundo da droga.
3. Dessa decisão consta a advertência, e de tal foi o então recluso notificado, que, na decorrência do art. 64.°/1CP, a liberdade condicional será revogada, com a consequente execução da pena de prisão ainda não cumprida, no caso de:
- infringir grosseira ou repetidamente as obrigações e regras de conduta acima fixadas;
- cometer crime pelo qual venha a ser condenado e revelar que as finalidades que estavam na base da liberdade condicional não puderam, por meio dela, ser alcançadas.
4. A DGRSP informou em 4agosto2016 que o libertado condicional efectuara mudança de residência, sendo que tal não foi a este TEP pelo mesmo solicitado, gerando despacho do qual resultou subsequente pedido de alteração de morada, a qual veio a ser deferida com aviso de advertência.
5. A DGRSP por Relatório de Acompanhamento da LC (datado de 15novembro2015), deu conta de não identificação de situações de incumprimento.
6. A DGRSP por Relatório de Acompanhamento da LC (datado de 16março2017), deu conta de não identificação de situações de incumprimento.
7. Por decisão de 21fevereiro2017 proferida no NUIPC PCC 252/04.7PBLMG foi, entre o mais, determinado a execução por via de 176D de prisão subsidiária, de remanescente de 250D de multa.
8. Por despacho de 11julho2017, foi determinado acrescer esses 116D à LC concedida, passando a mesma a ter termo em 6maio2018.
9. Este despacho está sem trânsito, face ao surgimento do presente IRLC.
10. Entretanto, por st. de 23janeiro2017, transitada em julgado em 26setembro2017, proferida no NUIPC PE Sumário 118/17.0PGGDM Juiz 1 do Juízo Local Criminal de Gondomar - TJComarca Porto foi B… condenado pela autoria, em 25maio2017, de factos integrantes dos elementos típicos de - 1 crime de condução sem habilitação legal — 3.°/2 DL 2/98-3jan pena de 8M de prisão em regime de obrigação de permanência a habitação com vigilância electrónica iniciada em 8outubro2017 e com termo para 7junho2018
11. A DGRSP por Relatório de Acompanhamento da LC (datado de 8setembro2017), deu conta plurais e sucessivos comportamentos de violação de regras por parte do libertado condicional (falta a entrevistas após o antecedente relatório de março2017).
12. Agendada audição (para 24novembro2017), com notificação para a morada jurisdicional, o mesmo regularmente notificado compareceu e prestou declarações [entre o mais, referiu: "Estando consciente da sua situação após cumprimento efectivo de pena de prisão pelos crimes [acima referidos], diz que praticou o crime de condução sem habilitação legal, dado que a sogra se sentiu mal e levava-a aos Bombeiros de E…. Deslocaram-se a uma loja de peças, sendo que foi a sogra quem conduziu até esse local. Está arrependido. Trabalhava nas feiras (…, … e …), vendendo calçado. Está em casa há a cumprir pena desde o dia 8out2017. A esposa continua a trabalhar nas feiras. Têm 1 filho (que faz 1 ano em 10dezembro) e estão à espera duma filha (com parto agendado para 12janeiro2018)"].
3.2 Análise do mérito do recurso
O Ministério Público suscitou a questão da existência de vícios formais nas conclusões do recurso.
No nosso entendimento, porém, o recurso reúne os requisitos necessários de inteligibilidade que permitem o seu conhecimento. É evidente que o recorrente pretende a modificação da decisão que revogou a liberdade condicional, o que é suficientemente claro para delimitar o objecto material da controvérsia sujeita à nossa apreciação.
A questão a que temos de dar resposta enuncia-se com muita facilidade: deve ser revogada a liberdade condicional por o recorrente ter praticado, no decurso do respectivo prazo, crime doloso idêntico a outros pelos quais estava a cumprir pena, em circunstâncias justificativas que não foram dadas como provadas na respectiva sentença condenatória?
A nossa resposta é afirmativa, tendo em conta a evidente improcedência dos argumentos do recurso.
Os pressupostos da revogação da liberdade condicional estão regulados nos artigos 52º nºs 1 e 2, 53º, 54º als. a) a c), 55º nº 1, 56º e 57º do CP, por expressa remissão do artigo 64º nº 1 do mesmo código.
A revogação da liberdade condicional, que repristina a pena de prisão cuja execução estava interrompida, não é uma sanção pela prática de um novo crime no respectivo período. O critério material da segunda parte do artigo 56º nº 1 al. b) do CP mostra que também aqui está em causa, ainda, a vinculação da pena aos factores de prevenção. O que releva é poder ou não formular-se um juízo sobre a insubsistência da anterior previsão positiva sobre a ressocialização e a eficácia preventiva da liberdade condicional.
A norma que determina os casos em que a pena de prisão suspensa deve ser revogada – e consequentemente os casos em que a liberdade condicional o deve ser também – foi alterada em 1995, pelo Decreto-Lei nº 48/95, de 15 de Março. A revogação passou a ser admitida nos casos em que o condenado praticou no período de suspensão outro crime pelo qual veio a ser condenado, desde que se revele que os objectivos da suspensão não foram alcançados, e não apenas quando o novo crime tiver sido praticado dolosamente e a nova pena tiver sido de prisão.
Não podemos deixar de notar que, na nossa opinião, só em circunstâncias excepcionais deverá o tribunal de execução de penas considerar que condenação em pena de prisão por um crime doloso idêntico ao da pena em execução, praticado no período de liberdade condicional, não determina a sua revogação, visto que, dessa condenação resulta, em regra, uma a conclusão clara de que falhanço o prognóstico de reinserção em liberdade. O cometimento de um novo crime no período de liberdade condicional constitui um indício muito sério de que não subsiste a previsão de que o condenado se afastará da delinquência, se mantido em liberdade.
Chegados aqui, torna-se evidente que o recorrente não tem razão.
Em primeiro lugar, a justificação dada no recurso para a condenação por um novo crime de condução sem habilitação legal foi analisada na sentença recorrida, mas não foi dada como provada. Não adianta, pois, vir aqui o recorrente dizer que só praticou o crime para auxiliar a sogra que estava doente, quando isso foi afastado pelo tribunal que o condenou.
Por outro lado, também não procede a argumentação tendente a demonstrar que o recorrente se encontra plenamente inserido e em condições de ser reintegrado em liberdade, quando por esse outro crime que praticou foi condenado em pena de prisão.
O recorrente já tinha sido antes condenado mais de uma vez por crimes rodoviários. É evidente que o seu primeiro dever, para continuar a beneficiar da liberdade condicional, era não praticar novos crimes dessa natureza nesse período. Tendo-o feito, dolosamente e em circunstâncias culposas, torna-se clara a sua indiferença perante os valores normativos que estavam na base da libertação condicional.
Na motivação do recurso afirma-se que o recorrente já sofreu por não ter conseguido ter uma vida livre de percalços. É verdade. Mas isso em nada altera a nossa decisão, na medida em que esses percalços, que agora o levaram a não aproveitar o período de liberdade condicional para “refazer a sua vida” são da sua responsabilidade.
Diz o recorrente, ainda, que foi pai e que está inserido familiar, social e profissionalmente. Mas isso não é verdade. Não há inserção social quando se praticam crimes.
Finalmente, importa realçar que o afastamento da reinserção não resultará directamente da revogação da liberdade condicional, mas sim do facto de o recorrente ter ignorado intencionalmente os deveres a que estava sujeito.
Sendo assim, somos do entendimento de que o tribunal decidiu correctamente quando considerou que o crime praticado no período de liberdade condicional revelou que as finalidades de ressocialização em liberdade não foram alcançadas.
4. Decisão
Pelo exposto, acordamos em negar provimento ao recurso interposto e em confirmar a decisão recorrida.

Fixa-se a TJ do recurso a cargo do recorrente em 3 UC.

Porto, 18 de Abril de 2018
Manuel Soares
João Pedro Nunes Maldonado