Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
97/17.4T8MTS-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MARIA CECÍLIA AGANTE
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
ALTERAÇÃO NO ALVARÁ DE LOTEAMENTO
PEDIDO DE DEMOLIÇÃO DE HABITAÇÃO
Nº do Documento: RP2018020697/17.4T8MTS-A.P1
Data do Acordão: 02/06/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO (LIVRO DE REGISTOS Nº 809, FLS 218-222)
Área Temática: .
Sumário: I - Compete aos tribunais administrativos a apreciação de um pedido de demolição de uma habitação que os Réus construíram na cave da sua moradia, fundado na alteração que provoca no alvará de loteamento emitido para a edificação de moradias unifamiliares.
II - O poder de demolição traduz o exercício de um poder administrativo que só pode materializar-se se não forem repostos os cânones da legalidade urbanística.
III - É mesmo indispensável que não seja viável uma solução que possa salvar a construção, podendo até justificar a alteração do alvará de loteamento, o que envolve uma análise do foro administrativo.
IV - Questão que não tem natureza incidental das restantes pretensões formuladas e que, por isso, transporta a incompetência absoluta do tribunal quanto àquele pedido.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Tribunal Judicial da Comarca do Porto
Juízo Local Cível de Matosinhos – J4
Processo 97/17.4T8MTS-A

Acórdão

Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

1. Relatório
1.1. B... e marido, C..., residentes na Rua ..., ..., ..., instauraram ação declarativa, sob a forma de processo comum, contra D... e marido, E..., residentes na Rua ..., ..., ..., pedindo a sua condenação a:
a) Remover a escada e estendal para secagem de roupas que colocaram na cobertura da garagem, tonando-a não acessível;
b) Remover as chapas onduladas metálicas que colocaram no muro de meação ou substituí-las por vedação em vidro transparente ou translúcido;
c) Retirar a exaustão de fumos, vapores e cheiros que colocaram na empena virada para a moradia dos autores ou, pelo menos, a desviar essa exaustão para o nível do telhado da sua habitação;
d) Retirar a habitação que construíram na cave do seu prédio, repondo-a para arrumos e em moradia unifamiliar, tal como se encontra licenciado.
Alegam, em síntese, que são donos de um prédio urbano melhor identificado no artigo 1º do petitório, o qual confronta com um outro prédio dos Réus, no qual estes iniciaram obras de ampliação e alteração, sem licenciamento, e, aumentando a área total do prédio em 30,94 m2, transformaram uma cave para arrumos numa habitação. Como a licença de loteamento define que cada lote se destina a uma moradia unifamiliar, sem ter sido efetuada a alteração do alvará de loteamento, os Réus têm de repor a cave tal como estava licenciada.

1.2. No despacho saneador, foi relegado para a decisão final o conhecimento da exceção perentória de prescrição do direito invocado pelos réus em sede de reconvenção. Tabelarmente foi declarado que inexistem “outras exceções, nulidades ou vícios que obstem ao conhecimento do mérito da causa.” Após fixação do objeto do litígio, o despacho exara que “os autores invocam nos artigos 20º a 24º e 30º a 36º da sua petição inicial, bem como os factos que os réus reconvintes invocam no seu articulado, mormente nos artigos 61º a 65º, 75º a 77º, não será levada aos temas da prova”, por se tratar de matéria que se prende com o direito administrativo e extravasa o âmbito do direito civil.

1.3. Irresignados, os autores interpuseram recurso desse segmento do despacho saneador, assim rematando as suas alegações:
“A.- Os recorrentes intentaram ação contra os proprietarios do prédio vizinho (os ora recorridos) a quem imputam a pratica de actos violadores do seu direito de propriedade e dos seus direitos de personalidade
B.- No douto despacho saneador foi entendido que a matéria factual dos artigos 20º a 24º e 30º a 36º da petição inicial é do foro administrativo, extravasando do âmbito do direito civil; ou seja, o Tribunal judicial seria incompetente em razão da matéria, face ao disposto no art. 64º do C.P. Civil, o que determinaria, quanto a tal material, a sua incompetência absoluta – Art. 96º al. a) do C.P. Civil. e daí que a mesma não fosse levada aos temas de prova.
C.- Como resulta do art. 64º do C.P. Civil, os tribunais judiciais tem uma competência fixada pela negativa, na medida em que “São da competência dos tribunais judicial as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional” (de igual sentido são os arts. 40º e 80º da Lei 62/2013 de 26 de Agosto (Lei da Organização do Sistema Judiciário).
D.- A competência material dos Tribunais Administrativos esta definida no art. 40º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF)
E.- “A regra básica de atribuição de competência aos tribunais administrativos é a de estarem em causa litígios emergentes de relações jurídicas administrativas” - Ac. Tribunal da Relação de Guimarães de 26/01/2017 (Jusnet 865/2017).
F.- No caso concreto, a questão coloca-se entre dois particulares, sem intervenção de qualquer entidade pública e não está em causa qualquer relação jurídica administrativa; os recorrentes não poem em causa a actuacão de qualquer entidade administrativa, não está em causa qualquer acto ou contrato administrativo, nem a responsabilidade do Estado ou de qualquer outro ente público.
G.- E, por isso, para apreciação dos factos constantes dos artigos 20º a 24º e 30º a 36º da petição inicial é competente o tribunal judicial e tal matéria terá de ser levada aos temas da prova.
H.- A apreciação destas questões sempre seria da competência do Tribunal Judicial, mesmo que extravasassem da sua competência, nos termos do art. 91º do C.P. Civil; são questões directamente relacionadas com o objecto de causa, relevantes para a decisão que,face aos pedidos, são da competência dos tribunais judiciais e, também por esta razão, tal matéria factual terra de ser levada aos temas de prova
I.- Ao decidir em contrário, o douto despacho saneador violou o disposto nos artos. 64 e 91º do C.P. Civil e 40º e 80º da Lei 62/2013 (LOSJ).
TERMOS EM QUE
Deve ser dado provimento ao presente recurso, declarando-se o tribunal judicial competente em razão da matéria para apreciação da factualidade constante dos artigos 20ª 24º e 30º a 36º da petição inicial e, consequentemente, determinar-se a correção do despacho saneador, de modo a que tais factos sejam levados aos temas de prova, como parece ser de justiça”.

1.4. Não consta dos autos resposta à alegação dos recorrentes.

2. Objeto recursivo
Ante as conclusões da alegação recursiva dos recorrentes, que delimitam o âmbito do recurso [artigos 635º/4 e 639º do Código de Processo Civil (CPC)] cabe decidir se o pedido formulado sob a alínea d) é do conhecimento dos tribunais comuns ou dos tribunais administrativos.

3. Fundamentação jurídica
Relativamente a factos relevantes, com interesse para a decisão a proferir, importa considerar os fundamentos enunciados pelos Autores na petição inicial e que se deixaram sumariamente enunciados no relatório que antecede.
Sendo Autores e Réus vizinhos, aqueles atribuem a estes a violação do seu direito de propriedade e dos seus direitos de personalidade, formulando os pedidos que acima estão identificados. Contudo, sob a alínea d) pedem a condenação dos réus a “retirar a habitação que construíram na cave do seu prédio, repondo-a para arrumos e em moradia unifamiliar, tal como se encontra licenciado”. Como deixámos decantado, no que respeita a este concreto pedido, alegam que os Réus, na parte posterior da sua habitação, aumentaram a área de implantação e da cave para arrumos de 22,50 m2, ou seja de 84,65m2 para 107,20m2 e aumentaram a área do rés-do-chão para habitação em 8,39m2, isto é de 84,65m2 para 93,04m2, a ponto de o aumento total da área atingir 30,94m2, ou seja, passou de 207,67m2 para 238,61m2. Aduzem ainda que os Réus alteraram a licença de loteamento inicialmente emitida e subverteram esse licenciamento, na medida em que transformaram a cave, destinada a arrumos, numa habitação sem qualquer autorização administrativa. Mais acrescentam que a licença de loteamento define que cada lote se destina à construção de uma moradia unifamiliar e, sem alteração ao Alvará de Loteamento, os Réus subverteram a licença e transformaram a área da cave, destinada a arrumos, numa outra habitação independente, sem que os Autores ou os proprietários dos restantes lotes tenham sido ouvidos sobre tal alteração. Finalizam com a alegação de que a alteração do loteamento os prejudica porque o aumento da densidade populacional desvaloriza os lotes, prejudica a possibilidade de uso das infraestruturas que a operação de loteamento exigiu e que foram dimensionadas para moradias unifamiliares, como acontece com as baias de estacionamento.
O recurso impugna o segmento do despacho de fixação do objeto do litígio que exara não levar aos temas da prova a matéria aduzida pelos Autores nos artigos 20º a 24º e 30º a 36º da petição inicial por se prender com o direito administrativo e extravasa o âmbito do direito civil. Daí entendem os recorrentes que o tribunal considera ser incompetente em razão da matéria, embora não haja qualquer declaração expressa de incompetência absoluta relativamente àquele pedido, nem os Réus foram dele absolvidos da instância. De facto, a declaração inscrita pelo tribunal a quo, não obstante não extrair as consequências processuais que se impunham, parece pressupor a incompetência do tribunal em razão da matéria quanto ao referido pedido, mas a declaração, per se, é anódina. Aliás, é incompreensível que, tendo o tribunal detetado a questão, não tenha extraído as consequências processuais correspondentes; ao deixar prosseguir os termos processuais quanto ao dito pedido, a final, com a prolação da sentença, sempre teria que emitir declaração expressa de absolvição da instância ou do pedido. Ainda assim, como a incompetência absoluta é do oficioso conhecimento do tribunal (artigo 97º do CPC) e as partes tiveram a oportunidade de sobre ela se pronunciarem (artigo 3º/3 do CPC), está este Tribunal da Relação legitimado a conhecer dessa exceção.
Os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais, ao passo que aos tribunais administrativos e fiscais compete o julgamento das ações e recursos contenciosos que tenham por objeto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais (artigos 211º e 212º da Constituição da República Portuguesa). É assim que o artigo 64º do CPC assevera a natureza residual da competência dos tribunais comuns, ao estabelecer que são da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional.
Desta proposição resulta que a competência dos tribunais judiciais para o pedido sob destaque supõe a indagação se o seu conhecimento integra a jurisdição de outros tribunais, em concreto, a jurisdição dos tribunais administrativos. O mesmo é dizer que, quando a causa não entra na competência de qualquer tribunal especial, então é competente o tribunal comum[1]. O mesmo é dizer que a competência material dos tribunais comuns é aferida por critérios de atribuição positiva e de competência residual.
O artigo 4º/1 do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF, aprovado pela lei n.º 13/2002, de 19 de fevereiro), ao definir o âmbito da jurisdição administrativa, dispõe que compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal, além do mais, a apreciação de litígios que tenham por objeto a tutela de direitos fundamentais e outros direitos e interesses legalmente protegidos no âmbito de relações jurídicas administrativas e fiscais [alínea a)] e a fiscalização da legalidade das normas e demais atos jurídicos emanados por órgãos da Administração Pública, ao abrigo de disposições de direito administrativo ou fiscal [alínea b)]. Por seu turno, a relação jurídica de direito administrativo é tida como “aquela que confere poderes de autoridade ou impõe restrições de interesse público à Administração perante os particulares, ou que atribui direitos ou impõe deveres públicos aos particulares perante a administração”[2].
Logo, é necessário atentar na relação jurídica envolvida pelo pedido formulado na ação sob a alínea d) e a respetiva a causa de pedir. Como enunciámos, pretendem os Autores que o tribunal condene os Réus a demolir a habitação que construíram na cave do seu prédio, porque ela altera o alvará de loteamento emitido, o qual só contempla moradias unifamiliares, o que se reconduz à defesa de direitos e interesses legalmente protegidos dos demandantes no âmbito de relações jurídicas administrativas. Não está em causa uma apreciação meramente incidental do processo de loteamento para julgar uma pretensão civilista dos Autores, essa contemplada pelo artigo 91º do CPC, mas um pedido de natureza estritamente administrativa, que é o de saber se o alvará de loteamento comporta a ampliação da moradia edificada no lote e/ou se a falta de licenciamento a tal construção transporta a sua demolição. Não se trata de dirimir um litígio referente às questionadas relações de vizinhança e, quanto a elas, o julgador pode, se necessário, convocar normas de direito administrativo, designadamente as restrições ditadas pelo interesse público, bastando, para o efeito, que tais questões sejam conexas com o foro administrativo.
Ao invés, está em jogo a demolição de uma edificação por violação de um alvará de loteamento: desde logo, esse poder de demolição traduz o exercício do poder administrativo que nem sequer opera por si; é condicionado pelo respeito do princípio da proporcionalidade, constitucionalmente consagrado pelo artigo 18º da Constituição da República Portuguesa, a ponto de a demolição só poder materializar-se se não forem repostos os cânones da legalidade urbanística. Vale por dizer que a demolição por violação do alvará apenas terá lugar em caso de total inviabilidade da respetiva legalização, designadamente através da realização de trabalhos de correção ou de alteração, sendo a demolição a última ratio. Ora, o procedimento de legalização da edificação não licenciada e não contemplada no alvará de loteamento cabe na esfera dos poderes administrativos do Presidente da Câmara Municipal, única entidade competente para determinar e averiguar se a obra, depois das necessárias modificações, ficará conforme às disposições legais e regulamentares convocáveis. Em suma, se a construção que os Autores pretendem ver demolida passar a observar as prescrições legais aplicáveis, terá de produzir-se o correspondente ato de licenciamento da obra, matéria que, por envolver relações jurídico-administrativas estritas, cabe na competência dos tribunais administrativos. E nem sequer basta que a ordem de demolição surja como “vinculada” em face dos dados atuais, pois é indispensável que não seja viável uma outra solução, menos drástica, que possa salvar a construção de uma forma legal, podendo até justificar a alteração do alvará de loteamento[3].
Tudo a legitimar a confirmação da decisão recorrida, embora com a explicitação dos efeitos processuais de absolvição dos réus da instância no tocante ao pedido formulado sob a alínea d), devido à incompetência absoluta do tribunal.

Decaindo no recurso, são as custas suportadas pelos apelantes (artigo 527º/1 do CPC).

4. Dispositivo
Face ao exposto, acordam os Juízes do Tribunal da Relação do Porto em julgar improcedente o recurso e, confirmando a decisão recorrida, extrair os efeitos de absolvição dos Réus da instância relativamente ao pedido formulado sob a alínea d), devido à incompetência absoluta dos tribunais comuns para conhecer desse pedido.
Custas a cargo dos recorrentes.
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Porto, 06 de fevereiro de 2018
Maria Cecília Agante
José Carvalho
Rodrigues Pires
_________
[1] José Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, volume I, 3ª ed., pág. 201.
[2] Freitas do Amaral, Direito Administrativo (Lições aos alunos do curso de Direito em 1988/89), volume III, pág. 439.
[3] In www.dgsi.pt: Ac. do STA de 28/05/2015, processo 0440/13.