Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
859/14.4T9MTS.P2
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MARIA DOLORES DA SILVA E SOUSA
Descritores: CONCURSO APARENTE DE CRIMES
CRIME
CHEQUE SEM PROVISÃO
CRIME DE BURLA
Nº do Documento: RP20180110859/14.4T9MTS.P2
Data do Acordão: 01/10/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC. PENAL
Decisão: PROVIMENTO PARCIAL
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º743, FLS.369-381)
Área Temática: .
Sumário: Ocorre concurso aparente entre o crime de cheque sem provisão e o de burla, se a ligação existente entre a conduta do arguido em relação à emissão sem provisão e a burla, esgota aquele na prática deste, emergindo do acontecimento ilícito global, o sentido de ilícito do crime de burla como absolutamente dominante e subsidiário o sentido de ilícito da emissão do cheque sem provisão, havendo desde logo “ unidade de sentido social do acontecimento ilícito global”, pois o que o recorrente pretendeu foi ludibriar a ofendida com duas compras que pretendia “ab initio” não pagar, não sendo o uso de cheques sem provisão mais que o processo, ou parte do processo ou instrumento de que se serviu para atingir o resultado visado.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Rec. Penal n.º 859/14.4T9MTS.P2
Comarca do Porto.
Instância Local de Matosinhos.

Acordam, em Conferência, na 2ª secção criminal do Tribunal da Relação do Porto.
I - Relatório.
No Processo Comum Singular nº 859/14.4T9MTS da secção criminal, juiz 1, da Instância Local de Matosinhos, foi submetido a julgamento o arguido B…, melhor identificado na sentença a fls. 321.
Os presentes autos após prolação da sentença de 07.03.2016 subiram a este Tribunal, onde foi proferido acórdão datado de 12 de Outubro de 2016 neste TRP onde se determinou «…declarar nula a sentença recorrida, por inobservância do disposto nos artigos 374º, nº 2 358º, n.º1 do C.P.P., a qual deverá ser reformulada pelo mesmo Tribunal, de forma a suprir o apontado vício de falta de fundamentação, na vertente de falta de apreciação crítica, devendo ainda, o mesmo tribunal proceder à comunicação ao arguido da supra mencionada alteração não substancial de factos [para o que necessariamente procederá à reabertura da audiência e consequente nova leitura da sentença]».
Após reabertura da audiência e efectuadas as diligências que o tribunal teve por convenientes foi proferida nova sentença datada de 15 de maio de 2017, depositada no mesmo dia, com o seguinte dispositivo:
«Por todo o exposto, decide-se:
I.
1.Condenar o arguido B… da prática de um crime de emissão de cheque sem provisão, p.p. art. 11.º, n.º 1, a), do Dec. Lei n.º 454/91, de 28.12, na redacção do Dec. Lei 316/97, de 19.11, na pena de 120 (cento e vinte) dias de multa;
2.Condenar o arguido B… da prática de um crime de burla, p.p. pelo art. 217.º do Código Penal na pena de 200 (duzentos) dias de multa;
3.Condenar o arguido B… pela prática dos dois crimes em concurso na pena única de 280 (duzentos e oitenta) dias de multa, à taxa diária de €6,00 (seis) euros, no montante global de 1.680,00 (mil seiscentos e oitenta euros);
4.Condenar o arguido nas custas do processo com taxa de justiça que se fixa em 2 Ucs.
II.
Julgar procedente o pedido de indemnização civil formulado pela demandante e, em consequência, condenar o demandado B… a pagar-lhe a quantia de €3.224,12 (três mil duzentos e vinte e quatro euros e doze cêntimos), acrescida de juros desde a data da notificação para contestar e até efectivo e integral pagamento.
Custas pelo demandado.
(…)»
*
Inconformado, o arguido interpôs recurso, conforme motivação de fls. 339 a 350 que terminou com as seguintes conclusões:
«a).O arguido considera que não cometeu o crime de burla pelo qual foi condenado;
b). O arguido considera que não foi suficientemente provado tal crime e que deve beneficiar da presunção de inocência;
c). Por isso, entende que deve ser alterada a sentença no que concerne à matéria de facto dada por provada eliminando-se da mesma o seguinte:
"Ao apor no primeiro cheque a data do dia seguinte, o arguido agiu com intenção de ludibriar a queixosa, assegurando-lhe que realizaria a primeira e segunda vendas, assim conseguindo que lhe fosse entregue o peixe relativo a cada uma delas antes de devolvido o primeiro cheque por falta de provisão" e "C… Lda, foi inibida do uso dos cheques desde 07/07/2014, tendo sido devidamente comunicada ao arguido tal inibição por carta datada de 08/07/2014, enviada pelo D…" antes fora dito " ... nunca foi intenção do arguido pagar o peixe que adquiriu à assistente, sendo que apenas quis criar um artificial contexto em ordem a determiná-la a vender-lhe aquele peixe causando-lhe um prejuízo patrimonial…".
d) Assim o exigem os depoimentos do arguido, da legal representante da ofendida e da testemunha K… e a cópia da carta junta aos autos pelo D… que nenhuma prova faz quanto à notificação ao arguido;
e) Mesmo que assim não seja e sem conceder, a sentença mostra-se deficientemente fundamentada quanto à apreciação crítica da prova em lado algum se justificando a matéria dada por provada na conclusão anterior já que foi, sem qualquer prova, dado o arguido por notificado da inibição do uso do cheque e foi desatendido o seu depoimento e das demais testemunhas incluindo a legal representante da ofendida.
f) Para o preenchimento do crime de burla, não basta que alguém seja enganado e determinado a sofrer ou a provocar em terceiro um prejuízo, mas exige-se um mais, ou seja, que esse erro ou engano seja provocado no visado de forma astuciosa, ou seja, como se disse no Ac. RP de 10.05.2006, proc. 0416676, em www.dgsi.pt.. " ... que haja habilidade para enganar, subtileza para defraudar, engenho para criar a aparência de uma realidade que não existe ou para falsear a realidade.
g) No caso dos autos, a sentença associa a convicção errónea da ofendida no sentido da provisão do cheque e da sua regularidade - ou seja, no sentido de que iria receber o valor titulado no cheque na data do seu vencimento - apenas à entrega de um cheque pós-datado, sem que relate qualquer outra conduta do arguido, astuciosa ou não, no sentido de convencer a ofendida naquele sentido a não ser a ideia de que sem a 2ª compra de peixe, decorridos 2 dias a vendedora não teria vendido o peixe, tese que é contrariada pela sua legal representante que declarou aceitar cheques pós-datados.
h) Declarando a ofendida que aceita cheques pós-datados a alteração se fosse intencional da data do 1º cheque para não ser detetada a tempo a sua falta de provisão conduziria a final que o crime de burla se verificaria na 2ª compra e não na primeira .... Já que a primeira sempre o arguido alcançaria com ou sem cheque pós-datado.
i) O arguido não devia ter sido condenado pelo crime de burla mas apenas por um crime de emissão de cheque sem provisão ou quanto muito deveria ter sido condenado por um crime continuado de emissão de cheque sem provisão.
J) Devendo, correspondentemente ser reduzida a condenação no pedido civil.
K) Considerando os escassos factos provados sobre as concretas circunstâncias da prática dos crimes, a ausência de quaisquer alusões ou considerações quer aos sentimentos manifestados no seu cometimento e os fins ou motivos que o determinaram - quer sobre a conduta anterior e posterior à prática dos factos, quer sobre a personalidade do agente, a sua integração social, as suas condições pessoais, nomeadamente familiares - deverão pender a favor do arguido.
l)Acresce que nenhuma prova foi feita da inibição de uso dos cheques por parte da sociedade C… Lda. ou por parte do arguido e nenhuma prova foi produzida de que tivesse sido comunicado à sociedade ou ao arguido pelo D… tal como, aliás, resulta dos factos dados por não provados, sendo que estes factos dados por não provados na sente-a em nada foram tidos em conta na decisão e fundamentação.
m). Foram, assim, violados os artigos 71º a 73º e 217º-1 do Código Penal e 374º e 375º do CPP.
Termina pedindo a revogação da sentença e a sua substituição por outra que se coadune com a pretensão exposta sendo o arguido absolvido do crime de burla.»
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Admitido o recurso, conforme fls. 352 dos autos, veio o MP junto do tribunal a quo, apresentar a sua resposta conforme fls. 357 a 363, sem formular conclusões, mas pugnando fundamentadamente pela negação de provimento ao recurso.
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Também a assistente E… ofereceu resposta ao recurso do arguido, conforme fls. 366 a 376 dos autos, rematando a mesma com as seguintes conclusões:
«A. O recurso interposto pelo arguido não tem qualquer fundamento de facto ou de direito, afigurando-se a sentença inteiramente correcta e justa tendo em conta os factos provados e o direito aplicável.
B. No quadro factual provado é manifesto que o arguido agiu com intenção de obter para si ou para a sociedade que representava enriquecimento ilícito, por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou na assistente aquando da entrega do primeiro cheque, determinando-a a praticar actos que lhe causaram (a ela assistente) prejuízo patrimonial, cometendo por isso um crime de burla p. p. 217º do CP.
C. Para além desse, o arguido praticou também um crime de emissão de cheque sem provisão p. p. pelo artigo 11º, 1, a), do Decreto-Lei n.º 454/91, de 28/12, ao emitir e entregar à assistente o segundo cheque.
Termina pedindo que o recurso interposto seja julgado totalmente improcedente e, por isso, mantida na íntegra a sentença recorrida.»
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Nesta Relação, o Excelentíssimo PGA emitiu Parecer no sentido da improcedência do recurso, referindo que se lhe afiguram sanados pelo tribunal a quo os vícios apontados no anterior acórdão do TRP «quer na fundamentação da nova sentença após as diligências para apuramento de determinado facto (comunicação bancária da inibição do uso de cheques ao arguido) e que foi levado à factualidade não provada, quer previamente, na acta de audiência de 19 de Dezembro de 2016 – cfr. fls. 269/270».
Cumprido o artigo 417º, n.º 2, do Código de Processo Penal, não houve resposta.
Colhidos os vistos, realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.
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II- Fundamentação.
Como é jurisprudência assente, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso é pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação apresentada, em que sintetiza as razões do pedido (artigo 412.º, n.º 1, do CPP), que se delimita o objeto do recurso e os poderes de cognição do Tribunal Superior.
1.-Questões a decidir:
Face às conclusões extraídas pelos recorrentes da motivação apresentada, são as seguintes as questões a apreciar e decidir:
- Violação do artigo 374º, n.º2, do CPP por falta de apreciação crítica.
- Impugnação da matéria de facto.
- Qualificação jurídica dos factos que respeitam ao crime de burla.
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2. Factualidade.
Segue-se a enumeração dos factos provados, não provados, e respectiva motivação.
«Factos provados.
A assistente E…, Lda., NUIPC ………, é uma sociedade comercial por quotas que exerce a actividade de comércio de pescado.
O arguido é gerente da sociedade comercial por quotas C…, Lda., com sede na Rua …, NUIPC ………, que tem por objecto o comércio, importação, exportação e distribuição de peixe, moluscos e crustáceos.
No dia 05.08.2014, o arguido, até à data desconhecido da assistente, deslocou-se ao posto de venda da E…, Lda., na F…, em Matosinhos, apresentou-se como gerente da empresa C…, Lda., e comprou peixe no valor de €1.566,18 (mil quinhentos e sessenta e seis euros e dezoito cêntimos).
Para pagamento do mencionado peixe, o arguido preencheu, assinou e entregou à assistente o cheque n.º ………, do D…, naquele valor.
O arguido apôs no cheque a data de 06.08.2014.
O arguido transmitiu às gerentes e funcionárias da assistente que, dentro de dois dias, deslocar-se-ia novamente àquele posto de venda para comprar mais peixe.
Apercebendo-se já depois do arguido ter abandonado o local, que o cheque tinha aposta a data do dia seguinte, a gerente da assistente, G…, contactou telefonicamente com o arguido, transmitindo-lhe que o cheque estava emitido com data do dia seguinte.
Confrontado com esse facto, o arguido pediu à gerente da assistente que depositasse o cheque só a partir do dia 06.08.2014, ao que esta acedeu pelo facto de o arguido ter assumido a intenção de comprar mais peixe no dia 07.08.2014.
Assim, no dia 07.08.2014, a assistente apresentou o referido cheque n.°………… a pagamento, na agência do Banco H…, em Matosinhos.
No dia 07.08.2014, tal como prometera, o arguido deslocou-se novamente ao posto de venda de peixe da E…, na F…, em Matosinhos, e, na qualidade de gerente da empresa C…, Lda., comprou peixe no valor de €1.600,74 (mil e seiscentos euros e setenta e quatro cêntimos).
Para pagamento desse peixe, o arguido preencheu, assinou e entregou à assistente o cheque n.º ……….., do Banco D…, no valor de €1.600,74, com data desse mesmo dia 07.08.2014.
No dia 08.08.2014, a assistente apresentou o cheque n.° ……….., a pagamento na agência do Banco H…, em Matosinhos.
Apresentados a pagamento, ambos os cheques foram devolvidos (o primeiro a 08.08.2014 e o segundo a 11.08.2014) pelo banco sacado, com a aposição no dorso dos cheques dos seguintes dizeres: "devolvido na compensação do banco de Portugal em Lisboa. Motivo: falta de provisão por mandato do banco sacado".
Confrontada com a devolução dos cheques, a gerente da assistente contactou o arguido para o telemóvel com o n.º ………, por aquele fornecido, comunicando-lhe o ocorrido e exigindo-lhe a regularização dos débitos, tendo o arguido dito que iria regularizar a situação, o que nunca veio a ocorrer até à presente data.
Ao apor no primeiro cheque a data do dia seguinte, o arguido agiu com intenção de ludibriar a queixosa, assegurando-lhe que realizaria a primeira e a segunda vendas, assim conseguindo que lhe fosse entregue o peixe relativo a cada uma delas antes de devolvido o primeiro cheque por falta de provisão.
De resto, e ao contrário do que fez crer, nunca foi intenção do arguido pagar o peixe que adquiriu à assistente, sendo que apenas quis criar um artificial contexto em ordem a determiná-la a vender-lhe aquele peixe que nunca quis pagar, causando-lhe um prejuízo patrimonial correspondente ao montante inscritos nos cheques, no valor de €1.566,18 e €1.600,74 e às despesas de devolução, no valor total de €3.224,12.
A C…, Lda., foi inibida do uso de cheques desde 07.07.2014.
O arguido sabia que o cheque n.º ……….., no valor de €1.600,74, não tinha provisão, pois não dispunha de fundos suficientes na conta sacada, para o seu pagamento, não tendo intenção de, no prazo legal, a dotar dos fundos necessários para o efeito, bem sabendo que, com tal actuação, causava à assistente um prejuízo no valor titulado por aquele cheque.
Agiu de forma voluntária, livre e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei como crime.
O arguido encontra-se desempregado.
Encontra-se inscrito no Centro de Emprego.
Vive da ajuda dos pais, com quem vive.
Do certificado de registo criminal do arguido nada consta.
Factos não provados.
O arguido e a legal representante da assistente acordaram que a venda seria feita a pronto pagamento.
O arguido encontrava-se inibido do uso de cheque, desde 07.07.2014.
A inibição do uso de cheques pela C…, Lda., foi comunicada ao arguido tal inibição por carta datada de 08.07.2014, enviada pelo D….
Motivação.
O tribunal formou a convicção com base na prova produzida em audiência de discussão e julgamento, analisada de forma conjugada e crítica à luz das regras da experiência comum.
Da certidão permanente resulta a qualidade de gerente do arguido da sociedade C….
Os originais dos cheques, com a menção de devolução por falta de pagamento constam de fls. 8 e 10.
O arguido, que se assumiu também como gerente da identificada sociedade, confirmou ter-se deslocado por duas vezes ao estabelecimento da assistente e aí ter adquirido o peixe, nas condições que esclareceu. Quanto ao primeiro cheque, confirmando o telefonema da legal representante da assistente, referiu não se ter apercebido que o tinha emitido para data diversa - esta explicação, todavia, não colheu aceitação, certo como é que, nessa sequência o arguido acabou por pedir à legal representante da assistente para apenas apresentar o cheque a pagamento a partir do dia que dele consta, o que é revelador de que o mesmo sabia que a conta não só não dispunha de fundos, como era sua intenção que aquela disso se não apercebesse antes do seu regresso dois dias depois (note-se que o arguido não conseguiu explicar quaisquer outros problemas que quisesse evitar com a apresentação do cheque a pagamento no próprio dia do telefonema).
Esse mesmo conhecimento da falta de fundos, já existente no dia da primeira compra, não podia deixar de existir também na segunda compra efectuada dois dias depois - o arguido nada referiu que lhe permitisse convencer que entretanto a conta foi creditada com dinheiro suficiente para pagamento dos valores em dívida.
Por outro lado, a legal representante da assistente esclareceu as condições em que aceitou o primeiro cheque, referindo a surpresa com o facto, e esclareceu que se soubesse que a conta não dispunha de fundos já não teria procedido à segunda venda. As testemunhas I… e J…, funcionárias da assistente confirmaram as condições de venda do peixe. A fls. 7 e 9 constam as facturas relativas à compra do peixe.
Esta prova permitiu apurar os factos tal qual se consideraram provados, resultando dela não só a venda e entrega do peixe, como a devolução dos cheques. Também o conhecimento do arguido e vontade de actuar nos termos descritos resultou da análise da prova nos termos anteriormente feitos.
A testemunha K…, igualmente gerente da sociedade ao tempo dos factos, nenhum esclarecimento relevante prestou quanto aos factos, posto que não teve neles qualquer intervenção - com pertinente relevância apenas referiu que já na altura dos factos dispunham de um frágil situação financeira.
Quanto à comunicação da inibição do uso de cheques consta a fls. 48 cópia da carta enviada pelo D… à sociedade C…, sendo que o arguido disse não ter tido dela conhecimento, não tendo sido, apesar das diligências realizadas, possível obter informação sobre a recepção, designadamente e em concreto pelo arguido. Daí que, reaberta a audiência e feitas novas diligências se tenha considerado apenas provado que a C… foi inibida do uso de cheques, como resulta do teor daquela carta, restando por provar que tal informação tenha sido comunicada em concreto ao arguido.
O arguido prestou declarações sobre a situação pessoal e o certificado de registo criminal consta dos autos.»
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3.- Apreciação do recurso.
3.1.Violação do artigo 374º, n.º2, do CPP, por falta de apreciação crítica.
Sustenta o recorrente na conclusão e) do seu recurso que a sentença mostra-se deficientemente fundamentada quanto à apreciação crítica da prova, em lado algum se justificando a matéria dada por provada na conclusão anterior [pressupõe-se que seja a conclusão c) onde consta:…entende que deve ser alterada a sentença no que concerne à matéria de facto dada por provada eliminando-se da mesma o seguinte:
"Ao apor no primeiro cheque a data do dia seguinte, o arguido agiu com intenção de ludibriar a queixosa, assegurando-lhe que realizaria a primeira e segunda vendas, assim conseguindo que lhe fosse entregue o peixe relativo a cada uma delas antes de devolvido o primeiro cheque por falta de provisão" e "A C… Lda, foi inibida do uso dos cheques desde 07/07/2014, tendo sido devidamente comunicada ao arguido tal inibição por carta datada de 08/07/2014, enviada pelo D…" antes fora dito " ... nunca foi intenção do arguido pagar o peixe que adquiriu à assistente, sendo que apenas quis criar um artificial contexto em ordem a determiná-la a vender-lhe aquele peixe causando-lhe um prejuízo patrimonial…"] já que foi, sem qualquer prova, dado o arguido por notificado da inibição do uso do cheque e foi desatendido o seu depoimento e das demais testemunhas incluindo a legal representante da ofendida.
Vejamos.
Dispõe o artigo 379º, n.º1 al. a) do CPP que: É nula a sentença: que não contiver as menções referidas no nº2 e na alínea b) do n.º3 do artigo 374º…
Dispõe o art. 374º, nº 2, do CPP que a sentença deve conter “uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto e de direito, que fundamentaram a decisão, com a indicação e exame crítico das provas que serviram para fundamentar a decisão do tribunal”.
A sentença cumpre o dever de fundamentação quando os sujeitos processuais seus destinatários, o tribunal superior (função endoprocessual do princípio da fundamentação das decisões judiciais) e a comunidade (função extraprocessual do mesmo princípio) são esclarecidos sobre a base jurídica e fáctica da decisão.
É inquestionável que a convicção a que alude o artigo 127º do CPP tem de verter-se no processo numa apreciação crítica e argumentativa que radique no respeito absoluto pelas regras e princípios legais vigentes em sede probatória, nomeadamente da lógica e das regras da experiência humana comum.
Por isso, na sentença o tribunal tem de motivar (artigo 374º, nº 2, do CPP) a apreciação que fez do caso submetido a julgamento, expondo fundamentos suficientes (com recurso a regras da ciência, da lógica e da experiência) que expliquem o processo lógico e racional que foi seguido na apreciação das provas (a razão pela qual a convicção do tribunal se formou em determinado sentido).
A resposta do tribunal deve “traduzir-se em valoração racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas de experiência e dos conhecimentos científicos” – vide neste sentido o Acórdão do Tribunal Constitucional nº 1165/96, disponível em http://www.tribunalconstitucional.pt

A presente questão é fruto de uma apressada análise da sentença, com efeito o recorrente parece não ter atentado, nesta fase inicial do seu recurso, que o facto que na anterior versão da sentença não tinha motivação bastante era a [então, provada] comunicação ao arguido da inibição do uso de cheques pela C… Lda, através de carta datada de 08.07.2014, enviada pelo D….
Tal facto consta agora do rol dos factos não provados e relativamente ao mesmo o tribunal motivou suficientemente do seguinte modo: «Quanto à comunicação da inibição do uso de cheques consta a fls. 48 cópia da carta enviada pelo D… à sociedade C…, sendo que o arguido disse não ter tido dela conhecimento, não tendo sido, apesar das diligências realizadas, possível obter informação sobre a recepção, designadamente e em concreto pelo arguido. Daí que, reaberta a audiência e feitas novas diligências se tenha considerado apenas provado que a C… foi inibida do uso de cheques, como resulta do teor daquela carta, restando por provar que tal informação tenha sido comunicada em concreto ao arguido
Além disso, a restante motivação extravasada na sentença, ultrapassada a questão da comunicação da inibição do uso de cheques pela Sociedade C… ao arguido, através de carta remetida pelo D…, explicita devidamente o iter da convicção do tribunal relativamente aos demais factos dados por provados, pois nela se encontra vertida uma exteriorização clara do raciocínio seguido pelo tribunal na formação da convicção, de modo a tornar apreensível o juízo que o levou a proferir a sua decisão em determinado sentido.
E tal juízo mostra-se compreensível e consentâneo com as regras da experiência comum, entre elas, as da lógica e da normalidade do acontecer, pelo que terá que concluir-se pela adequação e suficiência do exame crítico da prova efectuado pelo tribunal a quo.
Em face do exposto improcede claramente a questão.
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3.2. Impugnação da matéria de facto.
Da conjugação das conclusões c) e d) das conclusões de recurso do recorrente com o que consta da motivação o recorrente parece impugnar os seguintes factos.
i.- "Ao apor no primeiro cheque a data do dia seguinte, o arguido agiu com intenção de ludibriar a queixosa, assegurando-lhe que realizaria a primeira e segunda vendas, assim conseguindo que lhe fosse entregue o peixe relativo a cada uma delas antes de devolvido o primeiro cheque por falta de provisão"
ii.- "A C… Lda, foi inibida do uso dos cheques desde 07/07/2014, tendo sido devidamente comunicada ao arguido tal inibição por carta datada de 08/07/2014, enviada pelo D…"
iii.- "...nunca foi intenção do arguido pagar o peixe que adquiriu à assistente, sendo que apenas quis criar um artificial contexto em ordem a determiná-la a vender-lhe aquele peixe causando-lhe um prejuízo patrimonial....".

Relativamente ao facto ii, como já anteriormente referimos só inadvertidamente pode ter sido impugnado, visto que dos factos provados na sentença sob escrutínio apenas consta: «A C…, Lda., foi inibida do uso de cheques desde 07.07.2014.»
Passando a constar dos factos não provados: «A inibição do uso de cheques pela C…, Lda., foi comunicada ao arguido tal inibição por carta datada de 08.07.2014, enviada pelo D….
Relativamente aos restantes factos o recorrente limitou-se na motivação de recurso, a dizer o seguinte relativamente à prova que imporia decisão diversa:
«O Tribunal fundamenta a sua convicção na prova produzida em julgamento e nas declarações do arguido e certidão do registo comercial bem como os originais dos cheques.
29 - Não individualiza, ao menos em síntese, que prova ou outra prova foi produzida em audiência, designadamente pela representante da ofendida/assistente e demais testemunhas de acusação.
31 - E não fundamente nem podia fundamentar porque a prova produzida por estas em lado algum permite infirmar o que infirmou a douta sentença, isto é a existência de uma artifício com vista a enganar a vendedora e a obter um proveito ilícito.
32 - Não. A vendedora foi enganada porque o cheque (qualquer deles) não obteve provisão o que é um risco normal de qualquer cheque. Quando se aceita um cheque como forma de pagamento corremos todos esse risco e aceitamos corrê-lo. Foi esta a posição da representante da assistente que até disse mais, disse ser normal o cheque só ter provisão depois de vendido o peixe, depois de alguns dias.
33 - A testemunha K… explicou como nasceu a sociedade emitente dos cheques (a partir do desemprego do arguido), como funcionou e como se extinguiu. Explicou como adquiriu o peixe à mesma e como e porque o não pagou. Saliente-se que esta testemunha está de relações cortadas com o arguido.
34 - O arguido prestou declarações coerentes assumindo total responsabilidade pela emissão dos cheques embora com a expectativa de obter os fundos para aprovisionar a conta.
35 - Ora, nada foi tido em conta pelo Tribunal que favorecesse o arguido havendo uma clara falta de aplicação do princípio "in dúbio pro reu".
36 - Devendo ser ouvidos estes três depoimentos gravados de:
Arguido: dia 11/2/2016 do minuto 00 a 35.34, 11H40 a 12H21.24;
G…: dia 11/2/2016 do minuto 00.01 a 00.23.24, 12H21.56 a 12H45.26;
K…: 15/02/2016 do minuto 00 a 27.13, 15H29.39 a 15H56.54.
já que são os que relevam para o caso pois que as demais testemunhas nada mais acrescentaram com interesse.
37 - E alterados correspondentemente os factos dados por provados e as conclusões neles assentes.»
Posto isto, vejamos:
O julgamento decorreu com documentação das declarações prestadas oralmente na audiência, pelo que o recorrente tinha a possibilidade de impugnar a decisão proferida sobre a matéria de facto, nos termos amplos permitidos pelo art. 412º, n.º 3. do Código Processo Penal e parece que seria essa a sua pretensão.
Decorre do disposto no artigo 428.º, n.º 1 do Código Processo Penal, que as relações conhecem de facto e de direito, acrescentando-se no artigo 431.º que “Sem prejuízo do disposto no artigo 410.º, a decisão do tribunal de 1ª instância sobre matéria de facto pode ser modificada: a) Se do processo constarem todos os elementos de prova que lhe serviram de base; b) Se a prova tiver sido impugnada, nos termos do n.º 3, do artigo 412.º; ou c) Se tiver havido renovação da prova.”
Assim e de acordo com o artigo 412.º, n.º 3, “Quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar: a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida; c) As provas que devem ser renovadas”. Acrescenta-se no seu n.º 4 que “Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 364, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação.”
Para proceder à revisão da factualidade apurada em julgamento, deve o recorrente indicar os factos impugnados, a prova de que se pretende fazer valer, identificando ainda o vício revelado pelo julgador aquando da sua motivação na livre apreciação da prova.
Ora, percorrendo a motivação e conclusões de recurso verifica-se que o recorrente relativamente às provas que pudessem impor uma decisão diversa, remete para a totalidade das suas declarações e dos depoimentos das testemunhas G… e K… por referência ao início e fim dos respectivos depoimentos que foram prestados respectivamente nos dias 11.02.2016, os dois primeiros e 15.02.2016, o último.
Portanto, o recorrente limita-se num lugar e noutro do seu recurso a tecer considerações generalistas sobre as declarações ou depoimentos prestados.
Não indica, portanto, as provas que imporiam decisão diversa, limita-se a remeter para as suas declarações ou depoimentos das mencionadas testemunhas sem qualquer indicação do conteúdo específico de cada um, em relação a cada facto que considera erradamente julgado e sem indicação das concretas passagens que de cada um dos depoimentos ou declarações imporiam decisão diversa. Como a propósito refere o prof. Paulo Pinto de Albuquerque, in «Comentário do Código de Processo Penal», 4ª edição, pág. 1144 citando o Ac. do TRP de 15.11.2006, in CJ, XXXI, 5, 204: «a especificação das “concretas provas” só se satisfaz com a indicação do conteúdo específico do meio de prova ou de obtenção de prova que impõe decisão diversa da recorrida (...). Mais exatamente, no tocante aos depoimentos prestados na audiência, a referência aos suportes magnéticos só se cumpre com a indicação do número de “voltas” do contador em que se encontram as passagens dos depoimentos gravados que impõem diferente decisão, não bastando a indicação das rotações correspondentes ao início e ao fim de cada depoimento. (…)»
Os ónus de especificação tal como foram concebidos pelo legislador de 2007 têm por objectivo impor ao recorrente que relacione o conteúdo específico do meio de prova que impõe decisão diversa da recorrida com o facto individualizado que considera erradamente julgado.
No caso regra de utilização da gravação magnetofónica o tribunal de recurso procederá ao controlo da prova, mediante a audição dos registos gravados com base na indicação pelo recorrente das passagens da gravação em que funda a impugnação - Vide o referido Autor e Obra, a págs. 1144 e 1145.
No referido Acórdão deste Tribunal da Relação do Porto, de 15/11/2006 CJ, Tomo V, pág. 204, entendeu-se que: “o recorrente quando impugne a matéria de facto, por entender que determinado ponto de facto foi incorretamente julgado, tem que indicar esse ponto expressamente, a prova em que apoia o seu entendimento e, tratando-se de depoimento gravado, o segmento do suporte técnico em que se encontram os elementos que impõem decisão diversa da recorrida.”
Em consequência, a especificação das “concretas provas” só atinge a densificação normativa prevista com a indicação do conteúdo específico do meio de prova, sendo desnecessária a transcrição mas obrigatória a referência à localização das passagens relevantes no suporte técnico (veja-se que um depoimento pode prolongar-se por várias horas e mesmo dias e, para o efeito pretendido, interessar apenas um pequeno excerto do mesmo).
Do exposto, resulta que a recorrente pretendia um segundo julgamento da matéria de facto de harmonia com o critério e convicção deste tribunal ad quem, baseada em acervo probatório indistinto e genérico que interpretaria conforme melhor lhe aprouvesse, substituindo-se ao tribunal de 1ª instância em completo arrepio das normas e princípios que regem nesta sede, nomeadamente o princípio da livre apreciação da prova.
Em conclusão, a recorrente não cumpriu os ónus que a lei lhe impõe para que se possa reapreciar a matéria de facto por via dos erros de julgamento e nos termos do artigo 412º, n.ºs 2 e 3 do CPP.
Vem sendo entendido que o convite à correcção das conclusões, nos termos do preceituado no art. 417.º, n.º 3, do CPP, não se coloca [não tendo o Relator o dever de convidar o recorrente a aperfeiçoar a própria motivação do recurso quanto à matéria de facto] quando o recorrente não fez constar da própria motivação os elementos necessários ao cumprimento do disposto no artigo 412º, n.º3 do CPP, é o que acontece no caso presente, sendo jurisprudência estabilizada e com garantia de constitucionalidade que o convite é aqui inadmissível já que, por força do estatuído no n.º 4 do citado preceito legal, o aperfeiçoamento não permite modificar o âmbito do recurso que tiver sido fixado na motivação o que, no caso, necessariamente, se verificaria se as conclusões viessem a ser corrigidas - v., neste sentido, Acs. do STJ de 15/7/2004, proc. n.º 2360/04 – 5ª, in dgsi.pt e do TC n.ºs 259/2002 e 140/2004, os dois últimos em www.tribunalconstitucional.pt.
Basta assim uma avaliação sumária dos fundamentos da questão para se concluir, sem margem para dúvidas, que a mesmo está votado ao insucesso.
Impõem-se-nos duas notas ainda. Em primeiro lugar, que a inocente testemunha K… segundo a motivação do recorrente, era afinal seu sócio na C… Lda..
Ainda se dirá que a argumentação do recorrente é manifestamente desprovida de sentido, pois pretende que veio comprar peixe a Matosinhos por o peixe ser mais barato. Cara lhe ficava a viagem!!!
A sua deslocação de Leiria a Matosinhos [sede da C…, Lda., em Leiria] nas circunstâncias provadas [estando a sociedade que representava inibida do uso de cheques e sabendo o arguido, porque única pessoa que assinava os cheques da sociedade, da falta de provisão dos mesmos] percepciona-se claramente, segundo as regras da normalidade do acontecer, só podia ficar a dever-se ao facto de ser conhecido em outras praças por não pagar e ter vindo tão longe para conseguir comprar peixe e assim enganar os fornecedores, com o engodo do engano na emissão do primeiro cheque, com a entrega de cheques que não tinham provisão e com a “liberalidade” de até vir comprar mais peixe dois dias depois, com a intenção antecipada e filada de não pagar.
Não logrou o recorrente outro desiderato com a sua deslocação de Leiria a Matosinhos, numa deslocação de cerca de 200 Km, com gastos acrescidos de dinheiro e tempo, senão a de ludibriar fornecedores que não o conhecessem, o que já não aconteceria [dizem-nos as regras da experiência] nas praças de peixe mais próximas de Leiria, como Nazaré, Figueira da Foz e Aveiro, ou mesmo de Peniche e Sesimbra.
Posto isto, por manifesta improcedência improcede a questão.
*
3.3.- Qualificação jurídica dos factos que respeitam ao crime de burla.
O arguido, pressupondo que o crime de burla em causa nos autos abrange apenas o primeiro cheque, insurge-se relativamente à subsunção dos factos ao crime de burla, para tanto sustenta que versando os factos da acusação sobre um cheque pós-datado, em que a modalidade de acção "típica" se enquadra no artigo 11º/1, do regime jurídico do cheque sem provisão, o nº 3 do artigo 11º deste diploma exclui qualquer tutela penal, tornando os factos imputados ao arguido como não puníveis criminalmente e cita jurisprudência a favor e contra esta tese.
Mais defende que os factos da acusação, mesmo que analisados sem referência ao regime jurídico do cheque sem provisão, não são adequados a integrar todos os elementos típicos do crime de burla, mais concretamente o elemento astúcia concernente ao erro ou engano provocado no ofendido, pois, defende que ao preenchimento do crime de burla, não basta que alguém seja enganado e determinado a sofrer ou a provocar em terceiro um prejuízo, mas exige-se que esse erro ou engano seja provocado no visado de forma astuciosa, ou seja, como se disse no Ac. RP de 10.05.2006, proc. 0416676, em www.dgsi.pt., "...que haja habilidade para enganar, subtileza para defraudar, engenho para criar a aparência de uma realidade que não existe ou para falsear a realidade.” E argumenta que para se concluir pelo preenchimento do elemento astúcia que é pressuposto do crime de burla não baste a entrega de cheque sem provisão ou de saque irregular, uma vez que quem recebe um cheque tem consciência de que é possível a sua falta de provisão ou de inviabilidade de cobrança - para mais sendo pós-datado -, mas antes se exija uma conduta astuciosa destinada a criar no tomador o convencimento sobre a existência de provisão ou de regularidade do saque.
Mais defende que a acusação associa a convicção errónea da ofendida no sentido da provisão do cheque e da sua regularidade - ou seja, no sentido de que iria receber o valor titulado no cheque na data do seu vencimento - apenas à entrega de um cheque pós-datado, sem que relate qualquer outra conduta do arguido, astuciosa ou não, no sentido de convencer o ofendido naquele sentido a não ser a ideia de que sem a 2a compra de peixe, decorridos 2 dias a vendedora não teria vendido o peixe; e argumenta que, se a alteração da data do 1º cheque fosse intencional para não ser detetada a tempo a sua falta de provisão, tal conduziria afinal que o crime de burla se verificaria na 2a compra e não na primeira, já que a primeira sempre o arguido alcançaria com ou sem cheque pós-datado.
Conclui, portanto, que não está presente na acusação e na sentença o elemento típico "astúcia" que é pressuposto essencial ao preenchimento do crime de burla pelo qual o arguido vem acusado.

O tribunal a quo, por sua vez fundamentou a subsunção jurídica aos crimes de cheque sem provisão e de burla, do seguinte modo:
«Enquadramento jurídico-penal.
O arguido encontra-se acusado pela prática de um crime de emissão de cheque sem provisão, p.p. art. 11.°, n.° 1, a), do Dec. Lei n.° 454/91, de 28.12, na redacção do Dec. Lei 316/97, de 19.11.
Segundo o disposto no referido preceito legal comete o crime de emissão de cheque sem provisão aquele que, causando prejuízo patrimonial ao tomador do cheque ou a terceiro, emitir e entregar a outrem cheque para pagamento de quantia superior a €150,00 que não seja integralmente pago por falta de provisão ou por irregularidade do saque.
Este tipo legal de crime pressupõe, ao nível dos elementos objectivos, uma acção (a emissão do cheque) e uma omissão (a falta de provisão de fundos suficientes para o pagamento do cheque), que, no caso, se encontram preenchidos, como demonstram os factos descritos nos factos provados.
A propósito do conceito de prejuízo que integra um dos elementos objectivos do tipo foi uniformizada jurisprudência pelo Ac. Uniformização 1/2007, publicado no DR 32 Série I de 2007 de 2007.02.14, de acordo com o qual «integra o conceito de 'prejuízopatrimonial' a que se reporta o n.º 1 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 454/91, de 28 de Dezembro, o não recebimento, para si ou para terceiro, pelo portador do cheque, aquando da sua apresentação a pagamento, do montante devido, correspondente à obrigação subjacente relativamente à qual o cheque constituía meio de pagamento.»
No caso, provou-se que o arguido bem sabendo que a sociedade que representava não possuía fundos na conta sacada que permitissem o pagamento do cheque n.° ………. identificado nos factos provados e que da sua conduta resultaria um prejuízo patrimonial para a ofendida, correspondente ao valor dos produtos com mesmo adquiridos, deu indicação de preenchimento do mesmo, nele apondo a sua assinatura.
Assim, não só está preenchido o elemento prejuízo patrimonial como também os demais elementos objectivos do tipo legal em causa.
Está também provado que o arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, tendo conhecimento da falta de fundo para pagamento da quantia aposta no cheque. Surgindo, pois, o dolo sob a modalidade de dolo directo (art. 14.°, n.° 1).
Finalmente, provou-se que o cheque foi entregue na data nele aposta como sendo a da emissão, pelo que se conclui que se destinava ao pagamento imediato da quantia por ele titulada - ou seja, a tipicidade não é excluída pelo elemento negativo plasmado no (actual) art. 11.°, n.° 3, do diploma legal em análise.
E está também verificada a condição objectiva de punibilidade uma vez que a falta de provisão do cheque foi verificada nos termos e prazos da Lei Uniforme (arts. 29.° a 31.° e 41.°).
Em face disto, não restam dúvidas acerca da prática pelo arguido do crime de emissão de cheque sem provisão por que foi acusado.
*
O arguido encontra-se ainda acusado pela prática de um crime de burla simples, na forma continuada, p.e p. pelos arts. 30.º e 217.º, n.º 1, do Código Penal.
Diz-se, no art. 217.°, n.° 1, do Código Penal que «quem, com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, determinar outrem à prática de actos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.»
Está-se aqui perante o crime de burla, o qual pressupõe a verificação dos seguintes elementos típicos: i) uso de erro ou engano sobre factos, astuciosamente provocados; ii) para determinar outrem à prática de actos que lhe causem, ou a terceiro, prejuízo patrimonial; iii) intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo.
No caso, sabe-se que o arguido, pretendendo obter a entrega de peixe sem pagar o respectivo preço, se deslocou uma primeira vez ao posto de venda da assistente, onde, convencendo a sua legal representante que pretendia comprar peixe, a determinou à entrega do mesmo na quantidade e qualidade correspondente ao valor da compra, entregando-lhe para pagamento um cheque com data do dia seguinte, e uma segunda vez, onde uma vez mais, convencendo aquela legal representante que pretenda comprar peixe, a determinou à entrega do mesmo na quantidade e qualidade correspondente ao valor da compra. Sabe-se também que, quando apresentados a pagamento, os cheques foram devolvidos por falta de provisão e que, o arguido, actuando de forma livre, voluntária e consciente, sabia que a sociedade que representava não dispunha de dinheiro na conta sacada para pagar os montantes titulados pelos cheques.
Este modo de actuação demonstra claramente uma conduta astuciosa, a que presidiu um dolo inicial, por parte do arguido que, com intenção de obter um enriquecimento ilegítimo (sem causa), determinou a legal representante da assistente à prática de actos (entrega de peixe), que lhe vieram a causar prejuízo (pelo não pagamento do correspondente preço). Essa conduta astuciosa traduz-se na apresentação do arguido no estabelecimento da assistente para aquisição de peixe com a correspondente entrega dos cheques para pagamento, sendo o primeiro deles emitido com a data do dia seguinte, com o pedido posterior de que apenas a partir desse dia fosse apresentado a pagamento e a promessa de nova aquisição de peixe. Este pedido, no campo negocial e dado o valor em causa e tendo ainda em consideração a promessa de nova compra, mostrava-se facilmente aceitável, e assim o fez a legal representante da assistente.
Tudo isto, fazendo parte de um plano inicial do arguido (note-se que já na primeira aquisição o arguido anunciou o regresso para compra de mais quantidade de peixe), que bem sabia não haver fundos para pagamento do preço adquirido. A significar isto que se não tratou de uma renovação da resolução criminosa, mas de uma unidade criminosa, que afasta a solução de continuidade imputada.
Está, pois, cometido o imputado crime de burla, p. p. pelo art. 217.º do Código Penal
Vejamos.
Diferentemente do que parece entender o recorrente o crime de burla em causa nos autos refere-se a toda a actuação do arguido, incluindo a conduta referente ao segundo cheque.
Para solucionar a questão, seguiremos de perto o Ac. deste TRP de 10.07.2013, onde também é relatora a presente.
Dispõe o artigo 217º do CP:
1 - Quem, com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, determinar outrem à prática de actos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa.
2.- A tentativa é punível
3.- O procedimento criminal depende de queixa.
O crime de burla, actualmente previsto no artigo 217º, está inserido no capítulo dos crimes contra o património em geral.
São elementos constitutivos deste tipo de crime:
uma actividade enganadora e astuciosa;
a intenção de obter um enriquecimento ilegítimo;
a prática de actos pelo enganado;
o prejuízo patrimonial do enganado ou de outrem;
o duplo nexo causal, entre a actividade enganadora do agente e o erro do enganado e entre estes actos e o prejuízo patrimonial.
A conduta enganadora deve ser adequada a produzir um erro no sujeito passivo, deve será a causa do erro, pressupondo um nexo de causalidade entre ambos.
O engano ou erro consiste na provocação de uma falsa representação da realidade. O engano pode ser provocado por várias formas: por palavras ou declarações expressas, ou através de actos concludentes.
São actos concludentes do agente aqueles que não consubstanciam em si mesmos, qualquer declaração, mas, a um critério objectivo – a saber de acordo com as regras da experiência e os parâmetros ético-sociais vigentes - mostram-se adequadas a criar uma falsa convicção sobre certo facto passado presente ou futuro.
Exemplo de burla realizada através de actos concludentes a assunção de uma obrigação contratual comporta, de forma concludente, o significado adicional de que o indivíduo se encontra na disposição de cumpri-la, pelo que, faltando esta última (a disposição de cumprir), se depara com um crime de burla.
Para que o engano seja causa adequada a produzir o erro é suficiente que possa exercer influência no ânimo do sujeito passivo. O meio enganador não é, no entanto, suficiente; torna-se necessário que ele consubstancie a causa do erro, em que se encontra o burlado.
Como da mesma forma não será suficiente a simples verificação do estado de erro; necessário, será, ainda, que nesse engano resida a causa da prática pelo enganado dos actos donde decorre o prejuízo patrimonial.
O crime de burla, como crime de dano, consuma-se com a ocorrência de um prejuízo efectivo no património do sujeito passivo da infracção ou de terceiro, que passa, então, por aquele mencionado duplo nexo de imputação objectiva entre a conduta do agente e a prática pelo burlado dos actos tendentes a uma diminuição do património e, depois, entre estes e a efectiva verificação do prejuízo.
O engano é o mais melindroso dos elementos deste tipo legal, se bem que seja, em simultâneo, o decisivo. É ele que individualiza o crime de burla em face das restantes figuras de enriquecimento ilegítimo.
Enganar é fazer crer a alguém, por acção ou de qualquer forma concludente, algo que não é verdade.
Por sua vez, a par da idoneidade do meio enganador, objectivamente apreciada, deve-se tomar em consideração a personalidade do burlado.
Aquilo que pode não revelar idoneidade como meio para enganar a generalidade das pessoas, pode-o assumir, no caso concreto, em face da particular credulidade ou falta de resistência do burlado, vg, mercê da fragilidade intelectual ou inexperiência ou de especiais relações de confiança para com o agente.
A pedra de toque da distinção entre o crime de burla e o incumprimento de obrigações civis, centra-se no facto de que o crime de burla apenas tem a virtualidade de criminalizar os contratos civis, quando o propósito de enganar, precede a celebração do contrato ou ocorre no momento de celebração do contrato, determinando a vontade da outra parte.
O dolo no incumprimento das obrigações tem, ao invés, carácter subsequente e surge posteriormente à conclusão de um negócio lícito contraído de boa fé, na fase de cumprimento e execução.
Assim, apenas poderá ocorrer o crime de burla se a intenção de não cumprir existia ab initio, não podendo aqui ocorrer uma situação de dolo subsequente – vide Ac. do TRP de 16.02.2005, Cj, pag 219, Rel. Isabel Pais Martins.
O erro entende-se como o estado psicológico de falsa representação da realidade, consequência do engano e causa do acto de disposição patrimonial. Erro que tem que ser provocado astuciosamente, de forma fraudulenta. O acto concludente ou engano implícito, assume a maioria das vezes uma conduta do agente que leva associada ou implícita a ideia de que vai cumprir a contraprestação, mas em que na realidade tal propósito não existe e a sua aparência outra finalidade não tem senão a de induzir em erro o ofendido.
Apreciemos agora se a conduta provada do arguido, é susceptível de revelar o engano astuciosamente provocado.
Provou-se que:
No dia 05.08.2014, o arguido, até à data desconhecido da assistente, deslocou-se ao posto de venda da E…, Lda., na F…, em Matosinhos, apresentou-se como gerente da empresa C…, Lda., e comprou peixe no valor de €1.566,18 (mil quinhentos e sessenta e seis euros e dezoito cêntimos).
Para pagamento do mencionado peixe, o arguido preencheu, assinou e entregou à assistente o cheque n.º ……, do D…, naquele valor.
O arguido apôs no cheque a data de 06.08.2014.
O arguido transmitiu às gerentes e funcionárias da assistente que, dentro de dois dias, deslocar-se-ia novamente àquele posto de venda para comprar mais peixe.
Apercebendo-se já depois do arguido ter abandonado o local, que o cheque tinha aposta a data do dia seguinte, a gerente da assistente, G…, contactou telefonicamente com o arguido, transmitindo-lhe que o cheque estava emitido com data do dia seguinte.
Confrontado com esse facto, o arguido pediu à gerente da assistente que depositasse o cheque só a partir do dia 06.08.2014, ao que esta acedeu pelo facto de o arguido ter assumido a intenção de comprar mais peixe no dia 07.08.2014.
Assim, no dia 07.08.2014, a assistente apresentou o referido cheque n.º ………. a pagamento, na agência do Banco H…, em Matosinhos.
No dia 07.08.2014, tal como prometera, o arguido deslocou-se novamente ao posto de venda de peixe da E…, na F…, em Matosinhos, e, na qualidade de gerente da empresa C…, Lda., comprou peixe no valor de €1.600,74 (mil e seiscentos euros e setenta e quatro cêntimos).
Para pagamento desse peixe, o arguido preencheu, assinou e entregou à assistente o cheque n.º ……….., do Banco D…, no valor de €1.600,74, com data desse mesmo dia 07.08.2014.
No dia 08.08.2014, a assistente apresentou o cheque n.° ……….., a pagamento na agência do Banco H…, em Matosinhos.
Apresentados a pagamento, ambos os cheques foram devolvidos (o primeiro a 08.08.2014 e o segundo a 11.08.2014) pelo banco sacado, com a aposição no dorso dos cheques dos seguintes dizeres: "devolvido na compensação do banco de Portugal em Lisboa. Motivo: falta de provisão por mandato do banco sacado".
Confrontada com a devolução dos cheques, a gerente da assistente contactou o arguido para o telemóvel com o n.º ………, por aquele fornecido, comunicando-lhe o ocorrido e exigindo-lhe a regularização dos débitos, tendo o arguido dito que iria regularizar a situação, o que nunca veio a ocorrer até à presente data.
Ao apor no primeiro cheque a data do dia seguinte, o arguido agiu com intenção de ludibriar a queixosa, assegurando-lhe que realizaria a primeira e a segunda vendas, assim conseguindo que lhe fosse entregue o peixe relativo a cada uma delas antes de devolvido o primeiro cheque por falta de provisão.
De resto, e ao contrário do que fez crer, nunca foi intenção do arguido pagar o peixe que adquiriu à assistente, sendo que apenas quis criar um artificial contexto em ordem a determiná-la a vender-lhe aquele peixe que nunca quis pagar, causando-lhe um prejuízo patrimonial correspondente ao montante inscritos nos cheques, no valor de €1.566,18 e €1.600,74 e às despesas de devolução, no valor total de €3.224,12.
A C…, Lda., foi inibida do uso de cheques desde 07.07.2014.
O arguido sabia que o cheque n.º ……….., no valor de €1.600,74, não tinha provisão, pois não dispunha de fundos suficientes na conta sacada, para o seu pagamento, não tendo intenção de, no prazo legal, a dotar dos fundos necessários para o efeito, bem sabendo que, com tal actuação, causava à assistente um prejuízo no valor titulado por aquele cheque.
Agiu de forma voluntária, livre e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei como crime.
Ora, perante os factos provados, afigura-se-nos não haver dívidas que para além da mera entrega de cheque sem provisão, há no caso um comportamento astucioso que engloba os dois momentos do comportamento do arguido, comportamento astucioso que se destinou a duas coisas criar na tomadora a falsa convicção de existência de provisão dos cheques emitidos e efectuar as duas compras e consequentes entregas de peixe antes de a tomadora de aperceber que nenhum dos cheques tinha provisão.
O arguido propositadamente e contra o acordado [depreende-se do telefonema da legal representante da ofendida e do que se lhe segue] apôs no primeiro cheque a data do dia seguinte, portanto logo neste momento o arguido agiu com intenção de ludibriar a queixosa, e ao assegurar-lhe que realizaria a primeira e a segunda (compras) vendas, conseguiu que lhe fosse entregue o peixe relativo a cada uma delas antes de devolvido o primeiro cheque por falta de provisão.
Por outro lado, ao contrário do que fez crer, nunca foi intenção do arguido pagar o peixe que adquiriu à assistente, sendo que apenas quis criar um artificial contexto em ordem a determiná-la a vender-lhe aquele peixe que nunca quis pagar, causando-lhe um prejuízo patrimonial correspondente ao montante inscritos nos cheques, no valor de €1.566,18 e €1.600,74 e às despesas de devolução, no valor total de €3.224,12.
Resulta dos factos, que o emitente tinha premeditadamente e ab initio a intenção de não cumprir a obrigação de pagamento do preço e de obter mais do que uma entrega de peixe com o mesmo estratagema, pois com a entrega do 1º cheque com data do dia seguinte sem autorização da representante da ofendida, pretendia iludir essa sua intenção e fazer deslocar o conhecimento da falta de provisão dos cheques para momento posterior às duas compras que disse ir fazer e que efectivamente fez, e com este estratagema não só conseguiu a primeira entrega de peixe, como a segunda, tendo o referido estratagema induzido em erro a ofendida sobre as intenções do arguido de pagar o peixe e foi causa do prejuízo patrimonial da ofendida.
O artifício usado pelo arguido tendente a induzir a ofendida em erro excede qualitativamente o mero inculcar na ofendida da convicção de que o cheque ou cheques teriam provisão, e projectam uma premeditação para induzir em erro não só numa primeira venda, mas também numa segunda, antes de se poder concluir que sempre foi intenção do arguido não pagar os bens adquiridos e que usou os cheques apenas como mera aparência de honestidade e de intenção de pagar os bens adquiridos.
Houve, assim, objectivamente, um erro ou engano, próprio do tipo legal de burla, bem como um prejuízo ou enriquecimento ilegítimo. Prejuízo e dano patrimonial sofrido em consequência da entrega do peixe e do não pagamento do preço respectivo.
Temos, assim, como verificados os elementos constitutivos do crime de burla, pelo que improcede a questão posta.
*
Impõe-se ex officio, e não obstante não integrar o objecto de recurso, abordar a questão do concurso real entre o crime de burla e o crime de cheque sem provisão .
No sentido da admissibilidade do conhecimento oficioso no respeitante à qualificação jurídica já se pronunciou o STJ em acórdão de fixação de jurisprudência n.º 4/95, de 7 de junho (DR, I série-A, de 06.07.1995, p. 4298). Tal jurisprudência só fica sujeita à exigência que “ o arguido seja prevenido da possibilidade de o tribunal superior vir a qualificar os factos de forma diferente do que fizera o tribunal de 1ª instância” [Ac. do TC n.º 402/95], na medida em que a alteração da qualificação jurídica dos factos implique necessidade de defesa do arguido.
No sentido de que a qualificação jurídica dos factos e, nomeadamente, a questão do concurso real de infracções, é de conhecimento oficioso, como resulta directamente do art. 424º, nº 3, do CPP, pronunciou-se o Ac. do STJ de 31.03.2011, Rel. Conselheiro Manuel Braz; vide a propósito também os Acs. do STJ de 05.11.2008, Rel. Conselheiro Henriques Gaspar e de 24.02.2010, Rel. Conselheiro Raul Borges, todos disponíveis, no site, www.dgsi.pt.; sendo que o Ac. desta Relação do Porto de 06.05.2009 [Proc. nº 104/03.8GAVFR.P1, Relator Manuel Braz, disponível em www.dgsi.pt], se pronunciou sobre a desnecessidade de qualquer comunicação prévia desde que tal alteração não prejudique a defesa do arguido.
Como resulta do já exposto o arguido vem condenado pela prática de um crime de emissão de cheque sem provisão, p.p. art. 11.º, n.º 1, a), do Dec. Lei n.º 454/91, de 28.12, na redacção do Dec. Lei 316/97, de 19.11, na pena de 120 (cento e vinte) dias de multa; e pela prática de um crime de burla, p.p. pelo art. 217.º do Código Penal na pena de 200 (duzentos) dias de multa.
Apesar de o comportamento global do arguido ser subsumível a dois tipos legais – Burla e Emissão de cheque sem provisão –, será que deve concluir-se por um concurso efectivo de crimes, ou antes por um concurso meramente aparente?
O Prof. Figueiredo Dias, depois de ter como assente que é a unidade ou pluralidade de sentidos de ilicitude típica, existente no comportamento global do agente submetido à cognição do tribunal que decide em definitivo da unidade ou pluralidade de (…) de crimes, considera: «A ideia central que preside à categoria do concurso aparente deve pois ser, repete-se, a de que situações da vida existem em que, preenchendo o comportamento global mais que um tipo legal concretamente aplicável, se verifica entre os sentidos de ilícito coexistentes uma conexão objectiva e/ou objectiva tal que deixa aparecer um daqueles sentidos de ilícito como absolutamente dominante, preponderante, ou principal, e hoc sensu autónomo, enquanto o restante ou os restantes surgem, também a uma consideração jurídico-social segundo o sentido, como dominados, subsidiários ou dependentes; a um ponto tal que a submissão do caso à incidência das regras de punição do concurso de crimes (…) seria desproporcionada, político-criminalmente desajustada e, ao menos em grande parte das hipóteses, inconstitucional. A referida dominância de um dos sentidos dos ilícitos singulares pode ocorrer em função de diversos pontos de vista: seja, em primeiro lugar e decisivamente, em função da unidade de sentido social do acontecimento ilícito global; seja em função da unidade de desígnio criminoso; seja em função da estreita conexão situacional, nomeadamente espácio-temporal, intercedente entre diversas realizações típicas singulares homogéneas; seja porque certos ilícitos singulares se apresentam como meros estádios de evolução ou de intensidade da realização típica global» (Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2ª edição, páginas 989 e 1015).
Acresce que outra doutrina se vem pronunciando no sentido de o crime de emissão de cheque sem provisão estar numa situação de concurso aparente com o crime de burla, caso se possa considerar que a factualidade imputada preenche a totalidade dos elementos típicos dos dois crimes. Do concurso aparente existente entre as duas normas (art. 11º e artigo 217º do Código penal), traduzido numa relação de especialidade, resultaria a exclusão de uma delas, que seria, o crime de burla por ser a lei geral – vide Comentário das Leis Penais Extravagantes, Vol. II, UCE, págs. 299.
No caso a factualidade provada excede a necessária para o preenchimento dos elementos típicos do crime de emissão de cheque sem provisão e a sua totalidade preenche os elementos típicos do crime de burla, se usássemos a regra da lei especial em desfavor da lei geral parte do comportamento do arguido ficaria sem punição.
Como resulta dos factos provados, e além do mais, o arguido ao apor no primeiro cheque a data do dia seguinte, agiu com intenção de ludibriar a queixosa, assegurando-lhe que realizaria a primeira e a segunda vendas, assim conseguindo que lhe fosse entregue o peixe relativo a cada uma delas antes de devolvido o primeiro cheque por falta de provisão.
De resto, e ao contrário do que fez crer, nunca foi intenção do arguido pagar o peixe que adquiriu à assistente, sendo que apenas quis criar um artificial contexto em ordem a determiná-la a vender-lhe aquele peixe que nunca quis pagar, causando-lhe um prejuízo patrimonial correspondente ao montante inscritos nos cheques, no valor de €1.566,18 e €1.600,74 e às despesas de devolução, no valor total de €3.224,12.
A ligação existente entre a conduta do arguido em relação à emissão de cheque sem provisão e a burla, esgota aquele na prática deste, emergindo do acontecimento ilícito global, o sentido de ilícito do crime de burla como absolutamente dominante e subsidiário o sentido de ilícito da emissão do cheque sem provisão, havendo desde logo «unidade de sentido social do acontecimento ilícito global», pois o que o recorrente pretendeu foi ludibriar a ofendida com duas compras de peixe, que pretendia ab initio não pagar, não sendo o uso de cheques sem provisão mais que o processo, ou parte do processo ou instrumento de que se serviu para atingir o resultado almejado.
Por outro lado, também a estreita conexão situacional, nomeadamente espácio temporal dos factos está presente – os dois comportamento passam-se um no dia 05.08 e outro no dia 07.08 e no primeiro dia o arguido para conferir uma aparência de honestidade e capacidade patrimonial e, portanto, de que os cheques teriam provisão, desde logo referiu que voltaria à compra de peixe dois dias depois, isto é, no dia 07.08 - a forma de actuação é homogénea, sendo que as entregas dos cheques sem provisão fazem parte de um plano inicial para a realização típica global e no mesmo contexto e com a mesma vítima.
Aliás, “o artificial contexto” de que se fala nos factos provados, em ordem a determinar a arguida a vender-lhe o peixe, passa pelo uso dos cheques que o arguido sabia não terem provisão, como se a tivessem, e o estratagema de obter a entrega do peixe, de todo o peixe, antes de a ofendida se aperceber da referida falta de provisão, por isso que a sucessão de actos tal como descrita é ardilosa.
Ao entendimento de que estamos perante um concurso aparente de crimes, não se opõe nem a consideração do bem jurídico protegido, já que é predominantemente entendido que é o património do portador, no crime de emissão de cheque sem provisão e, do mesmo modo, no crime de burla, é o património globalmente considerado. Acresce que o crime de emissão de cheque sem provisão é um crime de dano, quanto ao bem jurídico, dano que consiste na causação de um prejuízo patrimonial – neste sentido Marques da Silva, Regime Jurídico-Penal dos Cheques Sem Provisão, Principia, págs. 22 - e o mesmo acontece relativamente ao crime de burla, que só se consuma com a ocorrência de um prejuízo efectivo no património do sujeito passivou ou de terceiro - vide A.M. Almeida Costa, in CCCP,II, 276.
Por outro lado, como decorre da mera comparação de regimes quer um quer outro dos tipos de ilícito em causa são punidos com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa [multa de 10 a 360 dias, no regime geral do art. 47.º, n.º 1, do Código Penal].
Pelo exposto, não é, pois, correcta a decisão recorrida no ponto em que autonomizou o crime de emissão de cheque sem provisão em relação ao segundo cheque entregue, devendo o arguido ser absolvido da acusação nessa parte.
Não implicando a alteração da qualificação jurídica dos factos necessidade de defesa, não há que accionar a notificação a que alude o referido art 424º, nº 3, última parte do CPP.
Em consequência da absolvição do arguido relativamente ao crime de emissão de cheque sem provisão, permanecerá o arguido condenado apenas na pena concreta aplicada ao crime de burla – que se nos afigura determinada de acordo com os critérios legais e adequada à culpa evidenciada nos factos e às exigências de prevenção especial e geral que do caso emergem - e, bem assim, na totalidade do Pedido de Indemnização Civil.
Procede, assim parcialmente o recurso.
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III- Decisão.
Pelo exposto, acordam os juízes da segunda secção criminal do Tribunal da Relação do Porto
Em conceder parcial provimento ao recurso e, em consequência:
1.- Absolver o arguido da prática de um crime de emissão de cheque sem provisão, p. e p. pelo art. 11.º, n.º 1, a), do Dec. Lei n.º 454/91, de 28.12, na redacção do Dec. Lei 316/97, de 19.11.
2.- Manter a condenação do arguido B… pela prática de um crime de burla, p. e p. pelo art. 217.º do Código Penal na pena de 200 (duzentos) dias de multa;
3.- Manter o demais decidido na sentença sob escrutínio.
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Sem custas, nesta instância.
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Notifique.
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Processado em computador e revisto pela relatora – artigo 94º, n.º 2, do C.P.P.
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Porto, 10 de Janeiro de 2018.
Maria Dolores da Silva e Sousa
Manuel Soares