Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
277/14.4TBMCN-E.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: RODRIGUES PIRES
Descritores: INSOLVÊNCIA
PEDIDO DE DIFERIMENTO
DESOCUPAÇÃO DA CASA DE HABITAÇÃO
Nº do Documento: RP20160614277/14.4TBMCN-E.P1
Data do Acordão: 06/14/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º 721, FLS.77-82)
Área Temática: .
Sumário: I - É aplicável aos insolventes singulares o benefício do diferimento da desocupação da casa de habitação previsto nos arts. 864º e 865 do Cód. do Proc. Civil, por força da remissão operada nos arts. 50º, nº 5 do CIRE e 862º do Cód. do Proc. Civil.
II - O prazo de diferimento da desocupação destina-se a permitir ao requerente que se encontra em situação de particular carência ou dificuldade, e que terá necessariamente que desocupar o local, um último prazo minimamente razoável para obter um alojamento alternativo.
III - O pedido de diferimento da desocupação do imóvel apresentado pelos insolventes não pode ser rejeitado, sem apreciação da situação económica e social destes, apenas com fundamento no período de tempo entretanto decorrido após a sua adjudicação ao credor reclamante.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 277/14.4 TBMCN-E.P1
Comarca do Porto Este – Amarante – Instância Central – Secção de Comércio – J3
Apelação (em separado)
Recorrentes: B… e C…
Recorrido: “D…, S.A.”
Relator: Eduardo Rodrigues Pires
Adjuntos: Desembargadores Márcia Portela e Maria de Jesus Pereira

Acordam na secção cível do Tribunal da Relação do Porto:
RELATÓRIO
O credor reclamante “D..., S.A.” nos autos em que são insolventes B… e C…, tendo-lhe sido adjudicado o prédio misto sito em …, freguesia de …, concelho de Marco de Canaveses, descrito na Conservatória do Registo Predial de Marco de Canaveses sob o nº 105, inscrito na matriz urbana sob o artigo 1761 e na matriz rústica sob o artigo 921, veio requerer a entrega desse imóvel.
Assim, ao abrigo do disposto no art. 828º do Cód. do Proc. Civil, conjugado com o art. 757º, nº 2, “ex vi” do art. 861º, nºs 1 e 3, do mesmo diploma e art. 17º do CIRE, requereu o mesmo que fosse investido na posse de tal imóvel, com auxílio das autoridades policiais e, se necessário, com arrombamento das portas dos prédios em causa.
Os insolventes, notificados deste requerimento, vieram então expor o seguinte:
“lº Os insolventes como pessoas de bem que são não se opõem a que a adquirente do imóvel tome posse do mesmo.
2º Sucede que os insolventes não têm conseguido arranjar uma habitação para passar a residir.
3º O que obriga ao diferimento da desocupação.
4º Os insolventes sempre residiram naquele local, não dispondo de outra casa de habitação.
5º Nela residem além dos insolventes, o filho de ambos.
6º O agregado familiar tem rendimentos que não ultrapassam os 750€.
7º Presumindo-se a carência de recursos económicos dos insolventes, pois os seus rendimentos per capita são inferiores à retribuição mínima mensal garantida.
8º Acresce que os insolventes padecem de graves doenças.
9º E o estado de insolvência prejudica-os na hora de arrendar, pois os senhorios negam-se a arrendar temendo os problemas financeiros dos insolventes.
10º Solicitando o diferimento da desocupação por período nunca inferior a 5 meses, nos termos dos artigos 864º e 865º do C.P.Civil.
Termos em que deve diferir-se a devolução do imóvel pelo período máximo legalmente aplicável.”
Indicaram duas testemunhas.
O credor reclamante sobre este requerimento pronunciou-se pela seguinte forma:
“1. Conforme consta de fls. dos autos, mormente pelo requerimento da Sra. Administradora de Insolvência datado de 20 de Junho de 2014, o bem imóvel "o prédio misto sito em …, freguesia …, concelho de Marco de Canaveses, descrito na Conservatória do Registo Predial de Marco de Canaveses sob o nº 105, inscrito na matriz urbana sob o artigo 1761 e na matriz rústica sob o artigo 921", foi adjudicado ao credor reclamante D… pelo valor de €157.400,00.
2. Neste contexto, a entidade bancária procedeu à entrega de cheque à ordem da massa insolvente no montante de €31.480,00, correspondente a 20% do valor proposto.
3. Requereu ainda, nos termos do disposto no art. 165º do CIRE e 815º do CPC, a dispensa do depósito do remanescente preço, e, ainda, a isenção do pagamento de IMT, atento o disposto nos temos previstos no art. 8º, nº 1, do Código do IMT, na Circular nº 10/2004, de 6 de Abril, da DSISTP e no art. 270º do CIRE.
4. Por douto despacho de 3 de Julho de 2014, em fls. dos autos, o requerimento supra da Sra. Administradora de Insolvência datado de 20 de Junho de 2014 foi deferido na sua totalidade.
5. Ou seja, desde há pelo menos 14 (catorze) meses que o credor reclamante D… adjudicou o bem imóvel em causa.
6. Desde esta altura [há pelo menos 14 (catorze) meses] que aguarda o envio das chaves do imóvel e a sua tomada de posse por intermédio da Sra. Administradora de Insolvência.
7. Vieram agora os insolventes requerer um "diferimento da desocupação do imóvel”,
8. Por um "período nunca inferior a 5 meses", nos temos dos arts. 864º e 865º do CPC.
9. Alegam, em síntese, que não dispõem imediatamente de outra habitação e não terem condições económicas para, a curto prazo, conseguirem outra.
10. Antes de mais, entende a credora reclamante que o "diferimento de desocupação de imóvel arrendado para habitação" é um incidente autónomo não aplicável aos presentes autos.
11. Trata-se um incidente processado por apenso à acção executiva, como forma de obstar ao despejo imediato do locado, ao abrigo do disposto nos artigos 930º-B, nº 1, alínea b) e 930º-C do Código de Processo Civil, aditados pelo artigo 5º da Lei nº 6/2006, de 27 de Fevereiro (NLAU).
12. Tal não tem qualquer aplicação nos presentes autos, uma vez que o imóvel não se encontrava arrendado.
13. Daí que tal pretensão não deve ser atendida.
14. Com efeito, ao ser sufragada tal pretensão, tal fará com que o credor reclamante continue privado da propriedade plena de um imóvel (adjudicado em Junho de 2014) que se desvaloriza de dia pata dia.
Por conseguinte, ao abrigo do disposto no art. 828º do C.P.C., conjugado com o art. 757º, nº 2, ex vi art. 861º, nºs 1 e 3, do C.P.C. e art. 17º CIRE requer a V. Exa. se digne ordenar que invista o Credor Reclamante na posse do mencionado imóvel, com auxílio das autoridades policiais e, se necessário, arrombamento das portas dos prédios em causa.”
Tendo sido cumprido o disposto no art. 865º, nº 2 do Cód. do Proc. Civil, aplicável por remissão do art. 17º do CIRE, o credor reclamante veio alegar o seguinte:
“a) Os Insolventes vêm invocar proteção nos termos dos arts. 864º e 865º ambos do CPC, contudo, nenhum dos artigos invocados pode ter aplicação concreta nos autos uma vez que se aplicam a execuções para entrega de coisa certa.
b) Muito menos se trata de imóvel arrendado para habitação, pelo que, salvo o devido respeito, que é muito, só por lapso se pode ter aludido ao art. 864º do CPC.
c) Destarte, à cautela, quanto ao pedido de pelo menos 5 meses para aqueles desocuparem o imóvel, cabe dizer que o aqui Credor adjudicou o imóvel em causa em agosto de 2014!!
d) Ora,
- há 1 ano e 5 meses que o Banco Credor é proprietário do imóvel adjudicado;
- há 1 ano e 5 meses que está o Credor impedido de dispor do imóvel que lhe pertence como melhor lhe aprouver;
- está o Credor impossibilitado de colocar o imóvel à venda;
- há 1 ano e 5 meses que os insolventes habitam no imóvel, estando a ser beneficiados;
- há 1 ano e 5 meses que os insolventes deveriam de ter começado a procurar nova habitação!!
Termos em que não pode o Credor se dignar aceitar que a posse do imóvel adjudicado em agosto de 2014 seja adiada por mais 5 meses, conforme requerido pelos Insolventes, atendendo a todos os argumentos supra expostos, por absolutamente infundado.
Mais se requer a V. Exa. se digne ordenar notificar os Insolventes para procederem à entrega imediata das chaves do imóvel em causa.”
A Sr.ª Administradora Judicial, notificada para se pronunciar, designadamente, no sentido de informar se realizou diligências de forma a promover a desocupação do imóvel na sequência da adjudicação deste ao credor hipotecário, veio dizer o seguinte:
“(…) nada tem a opor à entrega do imóvel ao proprietário, atento o lapso de tempo já decorrido.”[1]
Foi depois proferido o seguinte despacho:
“A fls. 304 e seguintes vieram os insolventes requerer o diferimento do prazo para desocupação do prédio adjudicado ao credor hipotecário.
O credor hipotecário veio-se opor, nos termos e com os fundamentos expressos a fls. 309 e ss e de fls. 316 e ss, requerendo ainda que se invista o credor adquirente do imóvel na posse do mesmo e solicitando o auxílio da força pública para o arrombamento das portas do prédio em causa.
Notificada para o efeito, veio a Srª AI pronunciar-se, dizendo que nada tem a opor à entrega imediata do imóvel, atento o tempo já decorrido.
Cumpre apreciar e decidir.
Os insolventes invocam que sempre residiram naquele local não dispondo de outro local para habitação; que nela reside o filho de ambos; que o rendimento do agregado familiar não ultrapassa os € 750; que vivem com carência económica e que padecem de doenças graves; que têm dificuldades em arrendar por se encontrarem insolventes.
Compulsados os autos, constata-se que o prédio onde os insolventes (…) foi adjudicado em Agosto de 2014, ou seja há um ano e seis meses, não tendo os insolventes demonstrado se e que diligências levaram a cabo para encontrar um outro local para residir, designadamente, que tenham requerido às instituições competentes o arrendamento de habitação social ou qualquer outra alternativa de residência.
Por outro lado, o imóvel já não lhes pertence e o período decorrido desde a adjudicação constituiu, a nosso ver, tempo suficiente para os insolventes encontrarem uma residência alternativa.
Pedem agora mais 5 meses até desocuparem o imóvel, porém, entendemos que injustificadamente, atento o tempo entretanto decorrido desde que o bem foi adjudicado ao credor hipotecário até à data de entrada do requerimento sobre o qual nos pronunciamos.
Em face de todo o exposto, decide-se indeferir o requerido pelos insolventes e, em consequência, ordena-se a entrega do imóvel ao seu actual proprietário, no prazo de 15 dias a contar da notificação presente despacho e do respectivo trânsito em julgado.
Caso não procedam à entrega do imóvel no prazo indicado, desde já se autoriza que se proceda ao arrombamento das portas com o auxílio das autoridades policiais competentes.
Notifique.”
Inconformados com este despacho, dele interpuseram recurso os insolventes B… e C…, tendo finalizado as suas alegações com as seguintes conclusões:
I. Vem o presente recurso interposto do douto despacho ad quo que indeferiu o requerimento dos insolventes para obtenção de prazo de desocupação do prédio adjudicado a favor do credor, por alegadamente já ter decorrido longo prazo após a adjudicação do imóvel.
II. O Meritíssimo Juiz devia ter-se pronunciado sobre a justiça e a necessidade do diferimento.
III. No processo de insolvência deve-se recorrer, com as devidas adaptações ao incidente de diferimento da desocupação do imóvel.
IV. Ao remeter para o artigo 930-A do Código Processo Civil através do respectivo art. 150º, nº 5, o CIRE não está a pressupor a existência de um contrato de arrendamento, mas simplesmente a determinar que, com as devidas adaptações, se deve seguir aquele regime, numa perspectiva de salvaguarda do mínimo de dignidade humana, permitindo ao insolvente, tal como se permite, no processo executivo para entrega de coisa certa, ao arrendatário habitacional, usar de um prazo de diferimento da desocupação da casa de habitação, tendo designadamente em vista manter as condições de habitação enquanto o necessitado, num prazo definido de acordo com o prudente arbítrio do tribunal, mediante a verificação de requisitos legalmente estabelecidos (como sejam os nºs 2 e 3 ainda do art. 930º-C, procura novo espaço habitacional.
V. É a salvaguarda de direitos fundamentais de ordem social e familiar (o direito à habitação – art. 65º da Constituição da República), à semelhança do que o CIRE, por exemplo, prevê quanto ao denominado “rendimento de exclusão” no instituto da exoneração do passivo restante, sob o art. 239º, nº 3, ou o processo executivo sob o art. 824º, pela impenhorabilidade de determinados rendimentos como forma de garantir o mínimo indispensável à satisfação das necessidades básicas do devedor e a da sua família.
VI. Outra fosse a interpretação dos arts. 150º, nº 5 do CIRE e 930º-A do Código Processo Civil e estaríamos a violar de forma grosseira o disposto no artigo 65º da Constituição da República Portuguesa, o que constituiria uma inconstitucionalidade.
VII. O douto despacho recorrido violou, entre outros, os artigos 930-A, 930-C e 930-D, todos do Código de Processo Civil e artigo 150º, nº 5 do Código de Insolvência e Recuperação de Empresas (CIRE) e artigo 65º da Constituição da República Portuguesa.
Pretendem assim que o despacho recorrido seja revogado e substituído por outro que admita o diferimento da desocupação do imóvel por prazo nunca inferior a 180 dias.
O credor reclamante apresentou contra-alegações, nas quais se pronunciou pela confirmação do decidido.
Cumpre então apreciar e decidir.
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FUNDAMENTAÇÃO
O âmbito do recurso, sempre ressalvadas as questões de conhecimento oficioso, encontra-se delimitado pelas conclusões que nele foram apresentadas e que atrás se transcreveram – cfr. arts. 635º, nº 4 e 639º, nº 1 do Novo Cód. do Proc. Civil.
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A questão a decidir é a seguinte:
Apurar se no presente caso foi correta a decisão da 1ª instância no sentido da rejeição do pedido de diferimento da desocupação do imóvel habitado pelos insolventes.
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Os elementos factuais e processuais relevantes para o conhecimento do presente recurso constam do antecedente relatório para o qual se remete.
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Passemos à apreciação jurídica.
1. Uma vez proferida a sentença declaratória da insolvência, procede-se à imediata apreensão dos elementos da contabilidade e de todos os bens integrantes da massa insolvente, ainda que tenham sido arrestados, penhorados, apreendidos, detidos ou objeto de cessão aos credores, excetuados os que tenham sido apreendidos por virtude de infração de caráter criminal ou de mera ordenação social – cfr. art. 149º, nº 1 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE).
Por regra, os bens devem ser imediatamente entregues ao administrador da insolvência, para que deles fique depositário, regendo-se o depósito pelas normas gerais e, em especial, pelas que disciplinam o depósito judicial de bens penhorados – cfr. art. 150º, nº 1 do CIRE.
Sem prejuízo da apreensão, o nº 5 do art. 150º do CIRE estatui que “à desocupação de casa de habitação onde resida habitualmente o insolvente é aplicável o disposto no artigo 930.°-A do Código de Processo Civil”.
Porém, uma vez que entretanto entrou em vigor o Novo Cód. do Proc. Civil é de considerar que esta remissão é atualmente feita para o art. 862º, que corresponde ao anterior art. 930º-A.
Dispõe-se neste preceito que “à execução para entrega de coisa imóvel arrendada são aplicáveis as disposições anteriores do presente título, com as alterações constantes dos artigos 863º a 866º”.
Desta norma, bem como da epígrafe do art. 864º[2] e da redação do seu nº 1, resulta que o procedimento de diferimento da desocupação se refere a situações de arrendamento para habitação. Com efeito, nesse nº 1 estabelece-se que “no caso de imóvel arrendado para habitação, dentro do prazo de oposição à execução, o executado pode requerer o diferimento da desocupação, por razões sociais imperiosas, devendo logo oferecer as provas disponíveis e indicar as testemunhas a apresentar, até ao limite de três”.
Contudo, ao remeter para este procedimento, através do nº 5 do art. 150º atrás citado, o CIRE não está a pressupor a existência de um contrato de arrendamento, mas simplesmente a determinar que, com as devidas adaptações, se deve seguir aquele regime, numa perspetiva de salvaguarda do mínimo de dignidade humana, permitindo ao insolvente, tal como se permite, no processo executivo para entrega de coisa certa, ao arrendatário habitacional, usar de um prazo de diferimento da desocupação da casa de habitação, tendo designadamente em vista manter as condições de habitação enquanto o necessitado, num prazo definido de acordo com o prudente arbítrio do tribunal, mediante a verificação de requisitos legalmente estabelecidos (como sejam os nºs 2 e 3 ainda do art.º 930º-C), procura novo espaço habitacional.
Trata-se pois de uma manifestação de salvaguarda de direitos fundamentais de ordem social e familiar (o direito à habitação – art. 65º da Constituição da República), à semelhança do que o CIRE, por exemplo, prevê quanto ao denominado “rendimento de exclusão” no instituto da exoneração do passivo restante, sob o art. 239º, nº 3, ou o processo executivo sob o art. 738º, pela impenhorabilidade de determinados rendimentos como forma de garantir o mínimo indispensável à satisfação das necessidades básicas do devedor e da sua família.
Quis assim o legislador do CIRE que, no essencial, o insolvente – presumivelmente, numa situação de maior gravidade do que a do executado – beneficiasse dos direitos concedidos aos inquilinos de habitação nos termos dos arts. 863º a 866º do Cód. do Proc. Civil por remissão do art. 862º do mesmo diploma – cfr. Ac. da Rel. do Porto de 24.11.2011, proc. 1924/10.2 TJPRT-C.P1, disponível in www.dgsi.pt..
Por conseguinte, há a concluir ser aplicável aos insolventes singulares o benefício do diferimento da desocupação da casa de habitação previsto nos arts. 864º e 865 do Cód. do Proc. Civil (neste sentido, cfr. também o Ac. da Rel. de Guimarães de 15.5.2014, proc. 327/12.9 TBPVL-G.G1, disponível in www.dgsi.pt.).
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2. O insolvente, proprietário de casa de habitação apreendida para a massa insolvente, pode assim requerer o diferimento da desocupação dessa habitação, por razões sociais imperiosas, com um dos seguintes fundamentos: carência de meios (que se presume relativamente ao beneficiário de subsídio de desemprego, de valor igual ou inferior à retribuição mínima garantida, ou de rendimento social de inserção) ou se for portador de deficiência com grau comprovado de incapacidade superior a 60% - cfr. art. 864º, nº 2, als. a) e b) do Cód. do Proc. Civil.
Na apreciação que faça do pedido deve o juiz ter em consideração as exigências da boa-fé, a circunstância do insolvente não dispor imediatamente de outra habitação, o número de pessoas que com ele habitam, a sua idade, o seu estado de saúde e, em geral, a situação económica e social das pessoas envolvidas – cfr. art. 864º, nº 2, 1ª parte, do Cód. Civil.
No caso “sub judice”, a Mmª Juíza “a quo”, que não pôs em causa a aplicação do incidente de diferimento da desocupação da casa de habitação aos insolventes singulares, depois de sumariar os fundamentos apresentados pelos requerentes nesse sentido e sem proceder à fixação de qualquer factualidade, indeferiu o requerido com a argumentação de que tendo já decorrido um ano e seis meses após a adjudicação do imóvel, esse período teria sido suficiente para que os insolventes pudessem ter encontrado uma residência alternativa.
Mais acrescentou que os insolventes não demonstraram que diligências levaram a cabo para encontrar um outro local para residir, designadamente, que tenham requerido às instituições competentes o arrendamento de habitação social ou qualquer outra alternativa de residência e concluiu não haver justificação para lhes conceder mais cinco meses para desocuparem o imóvel, atendendo ao tempo já transcorrido após a sua adjudicação ao credor hipotecário.
Em suma, entende a Mmª Juíza “a quo” que o decurso de um ano e seis meses após o imóvel ter sido adjudicado torna injustificado o pedido formulado pelos insolventes no sentido do diferimento da desocupação.
Não concordamos com este entendimento.
Conforme decorre do requerimento apresentado, os insolventes continuam a ocupar a habitação e para fundamentar o seu pedido de diferimento da desocupação invocaram essencialmente razões de ordem económica, alegando que os seus rendimentos não ultrapassam os 750,00€ mensais.
A carência económica impeditiva de obter novo local para residir constitui um dos fundamentos para requerer o diferimento da desocupação.
Porém, a Mmª Juíza “a quo” nem sequer entrou na apreciação deste fundamento, tendo-se limitado a afirmar que o período de tempo entretanto transcorrido, por, a seu ver, ser suficiente para encontrar residência alternativa, torna a pretensão dos insolventes injustificada.
Sucede que o prazo de diferimento da desocupação se destina a permitir ao requerente que se encontra em situação de particular carência ou dificuldade, e que terá necessariamente que desocupar o local, um último prazo minimamente razoável para obter um alojamento alternativo - cfr. Maria Olinda Garcia, “A Ação Executiva para Entrega de Imóvel Arrendado segundo a Lei 6/2006, de 27 de fevereiro”, 2ª ed., 2008, pág. 92.[3]
Tal como se refere no Acórdão da Relação do Porto de 14.9.2015 (proc. 5582/12.1 TBMTS-F.P1, disponível in www.dgsi.pt.) este “prazo é determinante para estabelecer o termo da ocupação, pois uma vez atingido o seu termo o insolvente tem que proceder à entrega do local, ainda que se mantenha o seu problema de natureza pessoal. Por outro lado, sem se estabelecer um termo final não pode ser ordenada a restituição à posse do adquirente.”
Entendemos, assim, diversamente da 1ª instância, que o período de tempo decorrido desde a adjudicação do imóvel ao credor reclamante, mesmo que já com alguma extensão, não é de molde a retirar ao insolvente, de forma liminar, a possibilidade de requerer o diferimento da desocupação ao abrigo dos arts. 864º e 865º do Cód. do Proc. Civil.
Conforme já se afirmou, trata-se de eventualmente conceder ao insolvente, face à sua situação de precariedade económica, um derradeiro prazo para resolver o seu problema habitacional, sendo que esse prazo nunca poderá exceder cinco meses a contar da data do trânsito em julgado da decisão que o concedeu – cfr. art. 865º, nº 4 do Cód. do Proc. Civil.
É pois um benefício temporário que é concedido ao insolvente, desde que verificado o condicionalismo previsto no art. 864º, nºs 1 e 2 do Cód. do Proc. Civil, e que sempre se esgotará num período de tempo relativamente curto.
Deste modo, não pode a decisão da 1ª instância ser mantida, impondo-se o prosseguimento do incidente de diferimento da desocupação do imóvel com a produção de prova, designadamente com a inquirição das testemunhas arroladas pelos insolventes, em obediência ao preceituado nos arts. 864º, nº 2 e 865º, nºs 2 e 3 do Cód. do Proc. Civil.
E só após produção de prova será proferida a decisão final do incidente.
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Por último, quanto às questões de constitucionalidade suscitadas nas alegações de recurso encontram-se as mesmas prejudicadas – cfr. art. 608º, nº 2 do Cód. do Proc. Civil.
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Sumário (da responsabilidade do relator – art. 663º, nº 7 do Cód. do Proc. Civil):
- É aplicável aos insolventes singulares o benefício do diferimento da desocupação da casa de habitação previsto nos arts. 864º e 865 do Cód. do Proc. Civil, por força da remissão operada nos arts. 50º, nº 5 do CIRE e 862º do Cód. do Proc. Civil.
- O prazo de diferimento da desocupação destina-se a permitir ao requerente que se encontra em situação de particular carência ou dificuldade, e que terá necessariamente que desocupar o local, um último prazo minimamente razoável para obter um alojamento alternativo.
- O pedido de diferimento da desocupação do imóvel apresentado pelos insolventes não pode ser rejeitado, sem apreciação da situação económica e social destes, apenas com fundamento no período de tempo entretanto decorrido após a sua adjudicação ao credor reclamante.
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DECISÃO
Nos termos expostos, acordam os juízes que constituem este tribunal em julgar parcialmente procedente o recurso de apelação interposto pelos insolventes B… e C… e, em consequência, revoga-se a decisão recorrida, que se substitui por outra que determina o prosseguimento do incidente de diferimento da desocupação do imóvel com produção de prova e subsequente decisão final.
As custas do presente recurso serão suportadas na proporção do decaimento, que se fixa em ¼ para os insolventes e em ¾ para o credor reclamante.
As custas do incidente serão fixadas na respetiva decisão final, conforme vencimento.

Porto, 14.6.2016
Rodrigues Pires
Márcia Portela
Maria de Jesus Pereira
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[1] Porém, nos autos surge ainda uma outra informação da Sr.ª Administradora Judicial com o seguinte teor: “…estabeleceu contactos telefónicos com o mandatário dos insolventes, para que estes procedessem à efectiva desocupação do imóvel, em resultado da venda do mesmo ao D…, S.A. Contudo, aqueles sempre alegaram que não poderiam abandonar o imóvel, porquanto enfrentavam sérias dificuldades para arranjar nova casa.”
[2] “Diferimento da desocupação de imóvel arrendado para habitação”.
[3] Cit. no Acórdão da Relação do Porto de 14.9.2015.