Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0346422
Nº Convencional: JTRP00035563
Relator: ANTÓNIO GAMA
Descritores: MAUS TRATOS ENTRE CÔNJUGES
Nº do Documento: RP200405120346422
Data do Acordão: 05/12/2004
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Área Temática: .
Sumário: O crime de maus tratos exige uma pluralidade de condutas ou, no mínimo, uma conduta complexa, que revista gravidade e traduza, por exemplo, crueldade ou insensibilidade.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam, em audiência, no Tribunal da Relação do Porto:

O Tribunal Judicial da Comarca de S. João da Madeira decidiu, além do mais que agora irreleva, condenar o arguido pela prática, em autoria material e concurso real:
- de um crime de homicídio qualificado, na forma consumada, p. e p. pelos artºs 26º, 30º, n.º 1, 131º, 132º nºs 1 e 2, al. d), in fine, g), in fine e i), na pena de 17 (dezassete) anos de prisão.
- de um crime de maus tratos a cônjuge, na forma continuada, p. e p. pelos art. 26.º; 30.º, n.º 2 e 152º n.º 2 do C. P., na redacção introduzida pela Lei n.º 7/2000, de 27 de Maio, na pena de 3 (três) anos de prisão.
- de um crime de detenção ilegal de arma, p .e p. pelas disposições combinadas dos artºs 6º, n.º 1, da Lei n.º 22/97, de 27/7 e 1º, 1. al. b), do D.L. n.º 207-A/75, de 17/04, na pena de 1 (um) ano de prisão.

Em cúmulo jurídico na pena única de 19 anos de prisão.

Inconformado com a condenação o arguido interpôs o presente recurso rematando a pertinente motivação com as seguintes conclusões, que se transcrevem:

1- Entendeu o tribunal recorrido condenar o arguido A.............. pela prática, em autoria material e concurso real, de um crime de homicídio qualificado p.p. pelos artºs 26º, 30º n.º 1, 131º, 132º nºs 1 e 2 al. d) in fine, g) in fine e i) na pena de 17 (dezassete) anos de prisão, de um crime de maus tratos a cônjuge, na forma continuada, p. e p pelos art. 26º, 30º, n.º 2, 152º n.º 2 do CP na redacção introduzida pela Lei n.º 7/2000 de 27 de Maio na pena de 3 (três) anos de prisão, de um crime de detenção ilegal de arma p.p. pelas disposições combinadas dos artºs 6º n.º 1 da Lei n.º 22/97 de 27/07 e 1º al. b) do DL n.º 207-A/75, de 17/04 na pena de 1 (um) ano de prisão, e operado o cumulo jurídico o condenou na pena única de 19 anos de prisão

2- Para tanto considera provados e não provados os factos constantes do douto acórdão, que se consideram aqui reproduzidos para todos os devidos e legais efeitos.

3- Não se vê dos documentos examinados e da reprodução integral das inquirições que foram levadas a efeito e para o qual se remete na totalidade, onde se baseou o Tribunal a quo para considerar provado estes factos quando, bem pelo contrário, todo o depoimento das testemunhas 3 da acusação- B.......... (vizinha do casal e amiga da C........), 12 da acusação e 1 da defesa- D........., 13 da acusação e 3 da defesa- E........., 2 da defesa- F........., 4 da defesa- G........, 5 da defesa- H............ e I................ vão em sentido completamente oposto à matéria dada como provada. Nem mesmo a testemunha 4 da acusação- J............., afasta de forma verosímil estes testemunhos. As restantes testemunhas só conheceram a C........... após o abandono desta do lar conjugal (2002) ou no caso das empregadoras e marido pouco antes desta data (2001).

4- Estas testemunhas apresentam uma versão bastante diferente do decidido pelo Tribunal recorrido pelo que cumpre salientar:
Houve um erro grosseiro de apreciação da prova, impugnando-se a decisão proferida sobre matéria de facto, porquanto não se vê na reprodução integral das inquirições que foram levadas a efeito, onde se baseou o Tribunal a quo para considerar provado praticamente a acusação e não provada praticamente e contestação.

5- Os depoimentos das testemunhas citadas no douto acórdão, para o qual se remete na totalidade, impõem decisão diversa da recorrida, no sentido de não ter ficado provado que o arguido A............ cometeu um crime de maus tratos a cônjuge, um crime de detenção ilegal de arma e um crime de homicídio qualificado.

6- Trespassa ao longo de toda a leitura do acórdão contradição insanável de fundamentação e erro notório na apreciação da prova.

7- DA CONDENAÇÃO PELO CRIME DE MAUS TRATOS A CÔNJUGE, na forma continuada, p. e p. pelos art. 26º, 30º, n.º 2, 152º n.º 2 do CP na redacção introduzida pela Lei n.º 7/2000 de 27 de Maio na pena de 3 (três) anos de prisão

8- O Crime de maus tratos a cônjuge é em si mesmo um crime continuado, i.e., pressupõe uma reiteração das respectivas condutas, pelo que o arguido, a ser condenado, seria sempre por um crime de maus tratos a cônjuge, e não por um crime continuado, uma vez que para o preenchimento do crime exige-se uma continuação (cfr. Código Conimbricense, Parte especial I, pág. 334, § 9).

9- Tendo ficado provado única e exclusivamente um crime de ofensa à integridade física, ocorrido em Janeiro do ano de 2001, e não tendo sido exercido o direito de queixa deveria ter sido o arguido absolvido deste crime.

10- A não se entender assim o Tribunal só poderia alicerçar uma condenação em factos ocorridos após a data em que entrou em vigor a alteração introduzida pela Lei 7/2000, de 27 de Maio, “Lex severior”, e a data em que o arguido e a C.......... deixaram de viver como marido e mulher, i.e. em Abril de 2002.

11- O Tribunal a quo ao dar como provado o crime de maus tratos a cônjuge refere “condutas concretizadas em maus tratos físicos, psíquicos e ameaças ao longo de vários anos (negrito, itálico e sublinhado nosso) viola a proibição constitucional da retroactividade da Lei Criminalizadora (Art.º 29 da C.R.P) uma vez que o Tribunal a quo não poderia ter considerado as acções anteriores à alteração levada a cabo pela Lei 7/2000, uma vez que estas são, evidentemente, irrelevantes sob o aspecto jurídico-penal.

12- Por outro lado o sujeito passivo deste crime só pode ser uma pessoa que se encontre, para com o agente, numa relação de subordinação existencial (não é o caso), de subordinação laboral (não é o caso), ou numa relação de coabitação conjugal ou análogo (in casu e após Abril de 2002 arguido e C........., deixaram de coabitar conjugalmente (cfr. Código Conimbricense, Parte especial I, pág. 333, § 6).

13- Se neste tipo de crime se protege as pessoas que vivem em situação análoga à dos cônjuges, não se pode estender esta protecção a quem mantém juridicamente o estatuto de cônjuge, mas não coabita conjugalmente, uma vez que não “existem factores externos que arrastam o arguido para a reiteração das suas condutas, como é o caso da situação exterior de convivência com a vítima na mesma casa” (negrito, itálico e sublinhado nosso)”

14- Assim sendo e não obstante se entender que o arguido deve ser absolvido do crime de maus tratos a cônjuge, sempre se dirá que a ser condenado só o poderia ter sido por 1 crime de maus tratos a cônjuge, por factos ocorridos depois da entrada em vigor da Lei 7/2000 e Abril de 2002

15- Pelo que a pena aplicada em concreto, 3 anos de prisão (por um crime de maus tratos na forma continuada) é manifestamente excessiva, devendo ter sido situada no mínimo legal, 1 ano.

16- DA CONDENAÇÃO POR UM CRIME DE DETENÇÃO ILEGAL DE ARMA, p. e p pelas disposições combinadas dos art.º 6º, n.º 1, da Lei n.º 22/97, de 27/7 e 1º, 1. al. b), do D.L. n.º 207-A/75, de 17/04, na pena de 1 (um) ano de prisão.

17- Nenhuma arma foi apreendida ao arguido que pudesse ser manifestada ou registada, ou que fosse propicia à obtenção de licença, uma vez que não se consegue registar, manifestar ou obter licença de uma pistola de alarme ou de uma carabina de marca “Crosman” (vulgar chumbeira)!!!

18- Sendo assim nunca poderia o arguido ser condenado, como efectivamente o foi pelo art.º 6º, n.º 1 da Lei n.º 22/97 de 27 de Junho, alterada pela Lei n.º 98/2001 de 25 de Agosto.

19- Pelo que deve o arguido ter sido absolvido pela prática deste crime.

20- Ainda que assim se não entendesse, este crime é punido com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa até 240 dias,

21- pelo que deve ser alterado o acórdão ora posto em crise e o arguido a ser condenado, condenado, no que concerne a este crime, em pena de multa, e nunca na pena de prisão de um ano, pena esta por demais exagerada.

22- DA CONDENAÇÃO POR UM CRIME DE HOMICIDIO QUALIFICADO, na forma consumada, p. e p pelos art.º 26º, 30º, n.º 1, 131º, 132º nºs 1 e 2, al. d) in fine, g) in fine e i), na pena de 17 (dezassete) anos de prisão.

23- “O arguido entrou em estado depressivo e em baixa médica, tendo sido pedido apoio da consulta de psiquiatria do H. (Hospital) de S.J.M”- Facto dado com provado pelo Tribunal a quo.

24- Todos os depoimentos das testemunhas que o conheciam referem-se ao seu estado como “Trololó”, “de quem se enganava no caminho para casa e fazia mais de 1000Kms por não conseguir regressar a casa”, “de quem andava irreconhecível pela rua, como se fosse um pobre de pedir, contrariamente ao que sempre fora”, “que chorava sendo inimaginável tempos antes esta situação”, entre outros - Remete-se nesta parte para a reprodução integral das inquirições que foram levadas a efeito, nomeadamente das testemunhas 12 da acusação e 1 da defesa- D....................., 13 da acusação e 3 da defesa- E....................., 2 da defesa- F.........., 4 da defesa- G.................., 5 da defesa- H............. e I............ e mesmo da testemunha 4 da acusação- J...............,

25- Não poderia o Tribunal a quo deixar de ter em conta que no dia 05 de Dezembro de 2002 houve um diálogo mantido entre o arguido e a C............. “cujo teor não foi possível apurar”

26- Não sendo possível apurar o diálogo não se pode depreender qual a motivação de tal conduta.

27- Até porque e conforme refere o Dr. Jorge de Figueiredo Dias in Código Conimbricense, Parte especial I, pág. 33, § 15 in fine), “a situação pode ser um tal que a motivação, se bem que expressa, não possa em definitivo valer como especial censurabilidade ou perversidade (ou motivo fútil dizemos nós), maxime, por se ligar a um estado de afecto particularmente intenso (v.g., o ciúme ligado à paixão).”

28- E dúvidas não existiram por parte do Tribunal a quo quanto à depressão que assolava e ainda hoje assola o arguido (um ano e meio volvidos desde Abril de 2002).

29- Depressão não é futilidade, é uma doença caracterizada por um abatimento físico e psicológico caracterizado por tristeza, embotamento emocional e afectivo por inibição das funções intelectuais, e portanto ligado a um estado de afecto particularmente intenso, nas palavras do Dr. Figueiredo Dias.

30- Assim sendo, in casu, não se verifica o previsto no art.º 132º 2 al. d)

Art.º 132º, n.º 2 al. g) …”utilizar meio particularmente perigoso ou que se traduza na prática de crime de perigo comum”

31- Entendeu o Tribunal a quo verificado este exemplo padrão porquanto “traduzida na utilização da referida arma calibre 6,35 mm”

32- Não podia o Tribunal afirmar que era uma arma de calibre 6,35 mm, pois nem o exame do Laboratório de Policia Cientifica o diz.

33- Além disso e conforme escreve o Dr. Figueiredo Dias in Código Conimbricense, Parte especial I, pág. 37, § 24), “a generalidade dos meios usados para matar são perigosos e mesmo muito perigosos.” Exige a lei que eles sejam particularmente perigosos, “sob pena de outra forma - aqui sim!-, de se poder subverter o inteiro método de qualificação legal e de se incorrer no erro político-criminal grosseiro de arvorar o homicídio qualificado em forma-regra do homicídio doloso.”

34- Assim sendo, in casu, não se verifica o previsto no art.º 132º 2 al. g)

Art.º 132º, n.º 2 al. i) …”ter persistido na intenção de matar por mais de 24 horas”
35- Entendeu o Tribunal a quo verificado este exemplo padrão porquanto “está bem patente no facto do arguido há muito andar a ameaçar a esposa de morte, caso o deixasse, intenção que claramente se desenhou na sua mente a partir do momento em que foi citado para a acção de divórcio, em 28/11/02, com marcação da tentativa de conciliação para 12/12/02.”

36- Na óptica do Tribunal a quo, e de acordo com os factos que considerou provados e que se refutam por completo, sendo este recurso também da matéria de facto, há premeditação já antes de arguido e C............ se casarem!!!

37- O Tribunal a quo considera também provado que “no dia 5 de Dezembro de 2002, antes das 8.00h, o arguido muniu-se da arma calibre 6,35 marca “FN”, ..., carregando-a com, pelo menos, cinco munições de igual calibre...”

38- Há uma manifesta contradição insanável de fundamentação e erro notório na apreciação da prova.

39- O arguido voluntariamente entrega-se na GNR, pálido, a tremer, sem conseguir falar, sem saber sequer se a C............. tinha ou não falecido (as regras da experiência afastam a premeditação numa situação destas).

40- Assim, e sem necessidade de maiores considerandos nesta matéria, não se verifica o exemplo padrão previsto no art.º 132º al. i)

41- Não obstante não se verificar nenhum dos exemplos padrão, sempre se dirá que ainda que algum se verificasse, a qualificação deveria em definitivo a ser negada.

42- Por outro lado o estado de depressão do arguido, sempre constituiria um elemento atenuador da capacidade de determinação livre do arguido e, consequentemente, de diminuição da sua capacidade de culpa, devendo a pena ter sido especialmente atenuada.

43- O arguido não só possibilitou a descoberta da verdade como foi o único elemento que contribuiu decisivamente para a mesma, pois entregou-se voluntariamente e imediatamente seguido à ocorrência do facto e confessou a prática do facto. Não existem testemunhas presenciais, nem o mesmo é reconhecido por nenhuma das testemunhas em audiência de julgamento, pelo que pelo seu importante contributo a pena deveria também por aqui ter sido especialmente atenuada.

44- É prejudicial à justiça, que todos nós buscamos, considerar que a confissão é uma circunstância de valor atenuativo pouco acentuado, quando neste caso foi o que possibilitou a condenação do arguido!

45- O cumulo jurídico efectuado ao arguido ultrapassou em muito os factos e a personalidade do arguido.

46- Foram violados os art.º 152º n.º 2, 131º, 132º n.º 1 e .2 al. d), g) i), 70º a 73º, art.º 77º do Código Penal, o art.º 127º, art.º 340º, art.º 120 n.º 2 al. d), do Código do Processo Penal, art.º 6º n.º 1 da Lei n.º 22/97, D.L. 207-A/75 e art. 32º n.º 2, e art.º 29 da Constituição da Republica Portuguesa.

Admitido o recurso o Ministério Público respondeu concluindo pela manutenção da decisão recorrida.

Já neste Tribunal o Ex.mo Procurador Geral Adjunto foi de parecer que o recorrente deveria ser convidado a dar cabal cumprimento ao disposto no art.º 412º nºs 3 e 4 do Código Processo Penal.
Pelo relator foi então proferido o seguinte despacho:
«Dispõe-se no art.º 412º do Código Processo Penal:
A motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões (...) em que o recorrente resume as razões do pedido.
(....)
Quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar:
Os pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
As provas que impõem decisão diversa da recorrida;
(.....)
4. Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) fazem-se por referência aos suportes técnicos, havendo lugar a transcrição.

Lida a motivação do recorrente constata-se que o comando legal transcrito não foi respeitado. Assim, o recorrente não especifica os pontos que considera incorrectamente julgados, nem concretamente as provas que impõem decisão diversa, nem, finalmente, faz referência aos suportes técnicos.
Acontece que entretanto ocorreu já a transcrição integral dos depoimentos prestados em audiência de julgamento. Não faz agora sentido continuar a apelar aos suportes magnéticos.
Assim, e sob cominação de rejeição do recurso quanto à matéria de facto, art.º 690º n.º 4 do Código Processo Civil , ex vi, art.º 4º do Código Processo Penal, convido [E o convite é apenas quanto às conclusões e não quanto à motivação sob pena de se facultar ao recorrente um novo prazo para, pela primeira vez, impugnar a própria decisão recorrida, o que, consabidamente, não tem qualquer apoio legal, cfr. Ac do TC de 18.6.02 DR 2ª Série de 13.12.02, pág. 20373, 1ª coluna. Tal implica, também e obviamente, que as conclusões se refiram à motivação e não apareçam ex novo desligadas e sem nexo com a alegação.] o recorrente a:
- Especificar nas suas conclusões os pontos de facto que considera incorrectamente julgados.
- Especificar as provas que impõem decisão diversa da recorrida, e a sua identificação e localização precisa, nas transcrições efectuadas».

Perante tal convite o recorrente permaneceu inerte.
O Ex.mo Procurador Geral Adjunto foi então de parecer, que o recurso, quanto à matéria de facto deve ser rejeitado. No mais acompanhou a posição do Ministério Público na 1ª instância.
Cumpriu-se o disposto no art.º 417º n.º 2 do CPPenal e após os vistos realizou-se audiência, não tendo sido suscitadas nas respectivas alegações novas questões.

Factos provados:
O arguido e a vítima, C.............., nascida a 17.02.64, conheceram-se quando esta tinha cerca de 18 anos de idade, e passaram a viver juntos por alturas em que a mesma ficou grávida do filho de ambos, J................, nascido a 01.11.1983 .
Quando o J............. nasceu, o arguido acabara de se divorciar de um primeiro casamento, do qual tem uma outra filha, actualmente com 21 ou 22 anos.
Muito embora já vivessem juntos há cerca de dez anos, o arguido e a vítima contraíram casamento civil apenas em 16.09.91.
Nessa altura, o casal vivia numa casa arrendada, sita em ........., Oliveira de Azeméis, onde viveram cerca de doze anos.
No entanto, quer antes, quer depois do casamento, a convivência do casal nunca foi harmoniosa.
Desde que passaram a viver juntos, o arguido impunha à vítima a sua vontade e as suas decisões quanto à vida de ambos. A vítima acedia e fazia o que o arguido dissesse, pois o mesmo exercia autoridade e ascendência sobre ela.
Os conflitos entre o casal começaram a ser cada vez mais frequentes, o arguido quando discutia com a esposa, chamava-lhe puta, arrastava móveis ou atirava com objectos para o chão, até que passou a agredi-la, desferindo-lhe empurrões, puxões de cabelo e murros na cabeça.
Quando já eram casados e o filho de ambos já frequentava a escola, sendo que ainda viviam em ......., na sequência de tais agressões, a C................. refugiou-se, pelo menos por duas vezes, em casa de seus pais, sita no concelho de Gaia.
Só que, decorridos alguns dias, o arguido acabava por a encontrar e convencia-a a voltar para casa, prometendo-lhe que os conflitos não voltariam a acontecer.
Por ter medo do arguido, pois sabia que o mesmo era bastante violento e tinha várias armas em casa, a C............ nunca apresentou queixa contra o arguido e escondeu sempre dos amigos de ambos, vizinhos e familiares, o que se passava entre o casal.
Por seu lado, o arguido fazia questão de mostrar aos amigos e vizinhos que o casal vivia em harmonia. Para tal, por diversas vezes, designadamente, durante o Verão de cada ano, o arguido convidava os seus amigos para tomarem refeições em sua casa, e nessas ocasiões, procurava sempre estar de bem e falar de bons modos para a esposa.
A C..............., em 26 de Fevereiro de 1994, decidiu consultar o Dr. O.............., no Centro Médico da Praça, que face aos sintomas de cefaleias, insónias, tonturas, alterações da memória, instabilidade psico - emocional, miastenia, a medicou com antidepressivos tricíclicos, ansiolíticos e neurolépticos, e mais tarde, encaminhou-a para o Instituto de Oncologia do Porto, onde esteve internada para exames médicos, em Agosto de 1999, sem que lhe tivesse sido detectado qualquer problema oncológico, mas apenas problemas do sistema nervoso.
Nessa altura, o casal já residia num apartamento sito na R. .............., n.º .., 5.º andar, onde estiveram cerca de três ou quatro anos.
Apesar da mudança de residência e das melhores condições de habitabilidade do casal, o arguido nada mudou, impunha a sua vontade à vítima e, quando discutia com ela, chamava-lhe puta, e de seguida, agredi-a, a maior parte das vezes, com puxões de cabelos e murros no abdómen ou noutras partes do corpo, que não fossem visíveis e de modo a não deixar marcas.
Outras vezes, quando discutiam, no momento em que a vítima se fosse deitar, o arguido dizia-lhe:
«És uma puta!»
Depois, empurrava-a da cama para fora, impedindo-a de dormir com ele.
No decurso de tais discussões, ou sempre que a vítima manifestava vontade de deixar de viver com o arguido, este seguida, dizia-lhe:
«Se fizeres isso, eu mato-te!».
Na verdade, das vezes que o arguido a levou ao hospital, ou das vezes em que a vítima manifestava vontade de receber tratamento médico, na sequência de agressões que aquele lhe provocava, o arguido dizia-lhe:
«Agora, vê lá se te lembras de dizer que eu te bati, depois vês o que te acontece! Vê lá é se te lembras de dizer que caíste»!
Por isso, em data não apurada, mas que se pensa ter sido no ano de 1999, por decisão do arguido, que preferia viver numa casa com quintal, o casal vendeu o apartamento e adquiriram ambos um terreno com uma casa bastante degradada, sem condições de habitabilidade, em Cucujães, para onde mudaram ainda antes de iniciadas as obras de restauro do rés - do - chão dessa casa, onde depois passaram a viver.
A partir da altura em que mudaram para Cucujães, e mesmo após as obras que efectuaram, a C............. passou a viver em piores condições de habitabilidade e de conforto, pois a casa era velha e pequena, tinha que se deslocar para São João da Madeira para trabalhar, as despesas eram cada vez maiores, quer com a casa, quer com os estudos do filho, pelo que , a vítima não se sentia bem, nem gostava de ali viver.
Por outro lado, durante os anos que residiram nesta casa, entre 1999 e 2002, os desentendimentos e discussões com o arguido passaram a ser ainda mais frequentes, e ao mesmo tempo, o arguido assumia cada vez menos o pagamento das despesas com o sustento da família.
Nessa altura, sempre que discutiam, o arguido proibia a vítima de conduzir o veículo automóvel de ambos, dizendo-lhe:
«Estão aqui as chaves do carro, (colocando-as em local visível), se andares com ele, já sabes o que te acontece».
Outras vezes, o arguido impedia a esposa de dormir com ele, obrigando-a a sair da cama de ambos, e chegou a fechar-se em casa e impedir a vítima ou o filho de aí entrarem.
Com medo que o arguido a agredisse, a vítima nunca se atreveu a conduzir o veículo automóvel de ambos, caso o arguido a proibisse de o fazer e muitas vezes foi forçada a dormir no sofá, ou com o filho de ambos.
No entanto, à medida que o filho de ambos crescia, o relacionamento deste com a mãe tornou-se cada vez mais forte e mais próximo, e o filho encorajava a mãe para que esta se separasse do arguido.
Ao mesmo tempo, por já não aguentar mais esconder tal sofrimento, a vítima passou a desabafar com pessoas amigas, designadamente, com as pessoas para quem trabalhava, contando-lhes o que o marido lhe fazia, e começou a tomar consciência de que poderia deixar de viver naquele “inferno”, caso se separasse do arguido.
Por isso, teve a iniciativa e a coragem para dizer ao arguido que pretendia deixar de viver com ele e que queria divorciar-se.
Enquanto a vítima e o arguido viveram juntos, sempre que a vítima falava ao arguido da separação de ambos ele dizia-lhe:
«Para onde tu fores, eu hei-de encontrar-te e mato-te!»,
ou então, «Se fizeres isso, eu mato-te ».
A C............ foi aguentando tais pressões, medos e angustias, pois por um lado, tinha muito medo do arguido e sabia que ele tinha várias armas em casa e seria bem capaz de as usar, desferindo-lhe um tiro, mas por outro lado, tinha consciência de que para terminar com tal sofrimento e angústia era forçoso separar-se dele.
Assim, deixou passar a época festiva do Natal do ano 2000, e em inícios de Janeiro de 2001, estabeleceu contacto com a Dr.ª L.............., advogada, no escritório desta, sito nesta cidade, no sentido de se inteirar dos custos de um processo de divórcio.
Na sequência de tal consulta, a mesma advogada dirigiu uma carta ao arguido, datada de 19.01.2001, onde mencionava:«a fim de tratar assunto do seu interesse».
No dia 21.01.2001, à hora do jantar, o arguido começou a discutir com a vítima, por esta não ter colocado na mesa um prato para ele.
No decurso da discussão, usando a força das mãos, o arguido ergueu a mesa da cozinha, fazendo com que todos os objectos que se encontravam em cima caíssem ao chão.
De seguida, dirigiu-se à vítima, empurrou-a contra a parede, puxou-lhe os cabelos e desferiu-lhe, com bastante força, um murro no rosto, ao mesmo tempo que lhe disse:
«Sua puta!».
E só não prosseguiu com as agressões porque o filho de ambos interveio em defesa da mãe.
Em consequência de tais agressões, a C............., beneficiária da Segurança Social Portuguesa com o n.º .............., sofreu traumatismo ligeiro da articulação temporal mandibular esquerda, conforme resulta dos elementos clínicos de fls. 13 e do exame de perícia médico-legal de fls. 41, que lhe determinaram directa e necessariamente, cinco dias de doença, com incapacidade para o trabalho.
No entanto, com medo do arguido, a vítima nem sequer pensou em apresentar queixa, ou sequer dirigir-se ao hospital para receber tratamento médico, pois entendia que se o fizesse, o marido iria ser chamado à polícia e ela temia que o mesmo a matasse, pois já por várias vezes, na sequência de desavenças entre o casal, designadamente, no dia referido em 38.º, o arguido havia dito, bastante convicto e furioso, que a matava se ela apresentasse queixa crime contra ele.
No dia 25 de Janeiro de 2001, a C........... procurou, de novo, a referida advogada, no sentido de lhe pedir que não estabelecesse qualquer contacto com o arguido, pois o mesmo andava bastante agressivo e sentia muito medo que ele a agredisse ainda mais ou a matasse.
Foi a advogada quem, nesse dia, dizendo-lhe que a circunstância de a vítima receber tratamento médico não faria desencadear, sem mais, um processo crime contra o arguido, a convenceu a dirigir-se ao hospital desta cidade.
Decorridos alguns meses, em data que não foi possível apurar, mas que se pensa ter sido ainda durante o ano de 2001, na sequência de outra das muitas discussões entre o casal, no interior da residência de ambos, motivada pelo facto de a vítima dizer ao arguido que iria sair de casa, o mesmo desferiu-lhe vários empurrões e puxões de cabelos.
E, logo de seguida, munido de uma faca de cozinha, o arguido encostou-a ao corpo da vítima e disse-lhe, em tom sério e ameaçador:
«Se deres mais um passo para fora da porta, eu mato-te!»
Mais uma vez, apavorada e com receio que o arguido cumprisse as ameaças que lhe vinha fazendo, a vítima manteve-se a viver com o arguido.
No ano lectivo 2001/2002, o J.............., filho do casal, passou a frequentar o «Curso de Tecnologia e Artes Gráficas», no Instituto Técnico de Tomar, e só vinha a casa aos fins - de - semana.
Nessa altura, a C............... teve a preocupação de aderir a um seguro de vida, que cobrisse qualquer acidente do qual resultasse a sua morte, e indicou como beneficiário, no caso da sua morte, o filho J............ .
As discussões e conflitos entre o casal, além de serem cada vez mais frequentes e insustentáveis para a vítima, que já vivia aterrorizada com as palavras e atitudes do arguido, passaram a ser motivadas pelo facto de o filho de ambos não ajudar o pai nos trabalhos de reconstrução da casa, ou simplesmente, pelo facto de este sair com os amigos aos fins-de-semana.
Perante tal desgaste e sofrimento físico e psicológico, por um lado, e por ter sido motivada pelo filho, por outro, por alturas de Janeiro ou Fevereiro de 2002, a vítima decidiu sair da companhia do arguido e passar a viver numa casa arrendada.
Para comunicar tal decisão ao arguido, ou para acertarem pormenores da separação, a vítima escolheu momentos em que ambos se encontravam na presença de um casal amigo, a testemunha D........... e esposa, pois temia que aquele a agredisse quando abordassem tal tema.
Assim, após ter transmitido ao arguido tal decisão, no dia 28.04.2002, encorajada pelo filho e aproveitando o facto de o marido não se encontrar em casa nesse dia, a C........... mudou alguns dos seus haveres e roupas para uma casa que arrendara, sita na R. ............, n.º ......., 5.º esq., nesta cidade.
Logo no dia seguinte, a vítima passou a dormir nessa casa, ainda sem água nem luz, pois o arguido, no dia 28 de Abril de 2002, disse-lhe que não a deixava ficar mais nenhum dia na residência de ambos.
Só que, o arguido nunca se conformou com a separação, pois nunca admitiu que a esposa o abandonasse ou tivesse suficiente determinação para se separar dele.
Por isso, convencido de que a ruptura do casal nunca seria definitiva, o arguido telefonava várias vezes à C.............. e procurava-a à porta do prédio onde a mesma passou a residir com o filho de ambos, ou noutros locais do percurso que a mesma fazia, a pé, para se inteirar de todos os seus movimentos e rotinas.
E, decorrido cerca de um mês após a separação do casal, o arguido passou a dirigir-se à residência da vítima, na R. ............., em São João da Madeira, pelo menos uma vez por semana, dizendo-lhe que queria que ela voltasse para a sua companhia.
Perante isso, a vítima não deixou de falar com o arguido ou de atender os telefonemas que ele lhe fazia para o telemóvel, pois o J.......... dizia-lhe que não seria conveniente cortar de vez o seu relacionamento com o pai, para ver se ele acabava por aceitar a separação.
No entanto, à medida que a vítima foi dizendo ao arguido que não pretendia voltar a viver com ele, o mesmo passou a provocar encontros com ela, quer no trajecto que a mesma fazia da sua residência para os seus locais de trabalho, quer no trajecto inverso, e ao fim do dia, na residência da R. ..............., pelo menos uma vez por semana.
Várias vezes, quer pessoalmente, quer ao telefone, quando a vítima transmitia ao arguido que já não existiam hipóteses de reconciliação entre ambos, ele respondia-lhe, em voz alta e em tom sério e ameaçador:
«Eu mato-te!».
Em data que não foi possível apurar, mas que se sabe ter sido entre Maio e Agosto de 2002, ao final da tarde, o arguido dirigiu-se à residência da C............. e disse que queria entrar para falar com ela.
Nesse dia, o arguido quis manter relações sexuais com a vítima no interior da residência desta, o que não chegou a acontecer, pois a C............ recusou-se a tal e disse-lhe que pretendia que se divorciassem.
Desde então, o arguido dirigiu-se várias vezes à residência da C..............., mas esta nunca mais lhe abriu a porta.
Ao ver-se impedido de estar com a vítima, designadamente, desde o dia 28 de Agosto de 2002 até ao dia 2 de Setembro de 2002, por várias vezes, o arguido tentou, através do telefone, a reconciliação, mas como a C............... recusou ficou exaltado e disse-lhe:
«Se não me abres a porta, vou aí e deito a porta abaixo».
A partir de então, o arguido passou a seguir todos os movimentos da vítima, inteirou- se de cada um dos locais e de cada um dos dias da semana em que a mesma prestava serviço como empregada doméstica, do percurso que a mesma fazia, a pé , desde a sua residência até cada um dos locais de trabalho, e vice - versa, e esperava-a em vários locais desses trajectos com o propósito de a intimidar e de a deixar assustada e sem liberdade para seguir a sua vida sem ele.
No dia 2 de Setembro de 2002, pelas 11h40, a C............. decidiu fazer a denúncia de fls. 2.
Na semana seguinte, no dia 6 de Setembro de 2002, cerca das 21.00h, o arguido dirigiu-se à R. ..........., e aproveitando a porta da entrada do prédio aberta, dirigiu-se ao patamar da residência da C............., tocou à campainha, ao mesmo tempo que tapou com uma das mãos o visor da porta para que a vítima não o visualizasse.
Receosa de que se tratasse do arguido, a C........... não abriu a porta e manteve-se em silêncio dentro de casa.
Apavorada com o estado de exaltação do arguido e com medo que o mesmo tivesse a dita arma com ele e concretizasse as ameaças que lhe vinha fazendo, a C.............. pediu a intervenção da P.S.P., pelo telefone, fazendo referência à denúncia que ali fizera na semana anterior.
Depois, manteve-se com a porta fechada até um dos dois elementos da P.S.P. que aí se deslocou conduzir o arguido para o exterior do prédio.
Quando abriu a porta, a C........... estava a tremer, apavorada, e ainda ouviu o arguido dizer que desta vez ela estava protegida pela polícia, mas havia de chegar um dia em que ela iria precisar de ajuda e ninguém a socorreria.
Ainda nessa semana, a C........... decidiu procurar a sua advogada, a Dr.ª L.......... e pediu-lhe que interviesse no processo a que deram início as denúncias anteriormente referidas e que pretendia divorciar-se do arguido.
No seguimento de tal pedido, a Dr.ª L............... endereçou uma carta ao arguido, onde mencionava o assunto: «divórcio», solicitando a comparência do mesmo no seu escritório no dia 23 de Setembro de 2002, pelas 19.00h.
O arguido não compareceu a tal encontro, pois estava cada vez mais inconformado com a circunstância de não conseguir que a vítima voltasse para a sua companhia.
Por seu lado, ao deparar-se com a falta do arguido ao encontro sugerido pela sua advogada, a C............ sentiu-se cada vez mais assustada e desprotegida, pois tinha consciência e estava convicta de que, face a tudo o que vinha acontecendo, a qualquer momento, o arguido iria matá-la.
Por isso, durante a semana, apenas saía de casa para trabalhar, evitava entrar no prédio ou na sua residência sozinha e o J............. passou a vir a casa todos os fins-de- semana.
Não obstante, o arguido insistia em encontrar-se com a vítima, e telefonava várias vezes para o telefone fixo da residência dela.
Como não conseguia o seu objectivo, em data que não foi possível apurar do mês de Novembro de 2002, o arguido telefonou à C............., dizendo que pretendia entregar-lhe duas cartas que tinha em seu poder, endereçadas ao filho de ambos.
Mas a C..........., logo que se inteirou do respectivo remetente, disse ao arguido para se desfazer de tais cartas, que as mesmas não tinham interesse para o J.............., pois este já havia comunicado a alteração da sua residência nos locais de maior interesse.
A partir desse dia, o arguido guardou as cartas e pensou usar o pretexto de as entregar à vítima para poder encontrar-se com ela.
Entretanto, no dia 20 de Novembro de 2002, deu entrada no Tribunal Judicial de São João da Madeira, a acção de divórcio litigioso intentada pela C........... contra o arguido.
No dia 28 de Novembro de 2002, o arguido recebeu uma carta registada com aviso de recepção, correspondente à citação para a realização de conferência e tentativa de conciliação no referido processo de divórcio litigioso, de teor igual ao de fls. 157.
E passou a dirigir-se à cidade de São João da Madeira, no seu veículo automóvel, todos os dias úteis, passeando-se a pé, junto às residências onde a vítima prestava serviço, designadamente, às horas que o mesmo conhecia como sendo as de início ou de entrada da mesma para os respectivos locais de trabalho.
No dia 3 de Dezembro de 2002, cerca das 17.30h, o arguido dirigiu-se para a Rua ..............., onde sabia que a vítima prestava serviço há vários anos, na habitação do n.º ...., ...º D.º do Edifício «....................», às terças - feiras, durante todo o dia e, às quartas-feiras, da parte da manhã.
Logo que se apercebeu que a C............ saiu do Edifício «..............» e se dirigiu para um estabelecimento de supermercado sito ao cimo dessa rua, conhecido como « Mini-Mercado .......», ou « Mini-Mercado da ..... », para aí fazer compras, como era habitual nos dias em que trabalhava no referido edifício, seguiu-a, a pé, mas de forma a que aquela não se apercebesse da sua presença.
Quando a vítima já se encontrava no interior do supermercado, o arguido atravessou a rua, e continuou a caminhar na direcção do trajecto que habitualmente a vítima fazia para regressar a casa quando fazia compras naquele estabelecimento, com o propósito de lhe fazer uma espera em local ermo, próximo daquele local, junto à passagem de nível do comboio.
No entanto, a vítima avistou o arguido do interior do supermercado e telefonou à sua patroa, P................, pedindo-lhe que fosse ao seu encontro no supermercado e que a levasse a casa, de carro, como veio a acontecer.
No dia seguinte, quarta-feira, o arguido dirigiu-se, mais uma vez para São João da Madeira, e durante a tarde, permaneceu na R. ........., junto a outro dos edifícios onde a vítima se encontrava a trabalhar, sempre com o propósito de se cruzar com a vítima.
No final dessa tarde, quando regressou a casa, a C............ apercebeu-se que o arguido a seguiu, a pé, no percurso que fez até à sua residência.
Pelo que, teve medo de entrar no prédio onde residia sozinha e esperou junto ao estabelecimento de padaria, «.........», sito ali próximo, por companhia, já que sabia que uma vizinha sua, a Q............., costumava entrar em casa cerca das 18.30h.
Reflectindo sobre as perseguições que o arguido lhe vinha movendo, a vítima convenceu-se de que iria morrer.
Conhecendo o local e a hora onde a mesma começaria a trabalhar no dia seguinte, quinta - feira, o arguido planeou esperá-la no sítio mais ermo do trajecto que a mesma habitualmente fazia, a pé, desde a sua residência até ao citado Edifício «................», na R. ..............., nesta cidade, adiante descrito,
E decidiu fazer uso da citada correspondência dirigida ao filho de ambos, que ainda tinha em seu poder, para forçar a vítima a aproximar-se dele.
Assim, no dia 5 de Dezembro de 2002, antes das 8.00h, o arguido muniu-se da arma calibre 6,35 mm, marca «FN», de dimensões idênticas à fotografada a fls. 359 (a coronha tinha menos cerca de meio centímetro), carregando-a com, pelo menos, cinco munições de igual calibre, sendo quatro delas as descritas no auto de exame de balística do Laboratório da Polícia Científica da P.J., constante de fls. 489 a 498, cujo teor aqui se dá por inteiramente reproduzido, arma que tinha na mesinha cabeceira do seu quarto e das duas cartas endereçadas ao J.........., identificadas no relatório pericial de fls. 499, e dirigiu-se para São João da Madeira, no seu veículo automóvel, marca, «Ford», modelo, « Escort », matrícula, «..-..-DI », cor branco, com o propósito de por termo à vida da C............. .
Chegado a São João da Madeira, o arguido parou o veículo automóvel que conduzia na Av. ........., nesta cidade, no sentido ascendente, e na direcção poente - nascente, na metade direita da faixa de rodagem, atenta a direcção em que seguia, - vide foto n.º 15, constante de fls. 357 -, por forma a avistar a vítima, quando a mesma descesse a referida avenida e entrasse no «Caminho das .....», trajecto que a mesma habitualmente fazia, a pé, às quintas – feiras, desde a sua residência até à R. ..........., entre as 8.00h e as 8.30h.
Cerca das 8.10h, o arguido avistou a C.......... a descer a Avenida Eng. .........., no sentido nascente – poente, e depois, a descer uma rampa que dá acesso ao «Caminho das ........», pelo que, deixou de a avistar, e ela também não o conseguiria ver, caso olhasse para a Avenida.
De imediato, conforme planeara, o arguido saiu do carro, colocou a arma que tinha em seu poder no bolso direito do casaco em pele que trazia vestido e manteve a mão direita dentro do mesmo bolso, a segurar a arma. Na outra mão, o arguido segurou as duas cartas endereçadas ao J..............
Depois, o arguido atravessou a faixa de rodagem, e após percorrer cerca de dez metros, entrou no descampado onde se situa o tal caminho em terra batida, por forma a surpreender a vítima, surgindo-lhe pelo seu lado esquerdo e em linha perpendicular ao seu sentido de marcha.
Ao deparar-se com o arguido a caminhar na sua direcção, exibindo-lhe as cartas, a vítima parou a menos de um metro de distância daquele, e após um curto diálogo entre ambos, cujo teor não foi possível apurar, o arguido puxou da arma que trazia no bolso do casaco e apontou-a ao corpo da esposa.
Ao ver a arma, a vítima deu um grito e correu para o interior do descampado, no sentido Sul - Norte, tentando esconder-se atrás de um veículo automóvel, cor azul claro, que ali se encontrava parado.
De imediato, o arguido também avançou na direcção da C............ e a uma distância que não foi possível apurar mas que se sabe ser inferior a dois metros da vítima, efectuou dois disparos na direcção do peito dela.
Um destes dois disparos atingiu a vítima no ombro direito, e o outro, no cotovelo direito, pelo que, ao sofrer o primeiro disparo, a mesma tombou para o lado esquerdo, sobre o ombro do mesmo lado, e ainda em queda, foi atingida pelo segundo disparo.
Não satisfeito, e para se certificar de que a esposa ficaria sem vida, o arguido abeirou-se do corpo, já tombado sobre o solo, inclinou-se sobre o mesmo e, a uma distância deste nunca superior a meio metro, efectuou outros dois disparos sobre a cabeça da vítima.
Um destes outros dois disparos atingiu a vítima no pescoço, e o outro na cabeça.
De seguida, o arguido abandonou o local, em direcção ao seu veículo automóvel, a caminhar, com as mãos nos bolsos do casaco que trazia vestido.
Quando o arguido subia a inclinação que dá acesso à Av. ........, deparou-se com os gritos da testemunha M......................, que avançava para ele, com uma vassoura na mão e a cerca de dez metros de distância daquele.
Nessa altura, o arguido apontou a arma na direcção de M.............., estendendo o braço direito, pelo que, a testemunha permaneceu no mesmo sítio, imóvel, por alguns instantes.
Após, o arguido voltou costas em direcção ao seu veículo automóvel, sentou- se ao volante e iniciou a marcha, subindo a Av. ........... em direcção ao «Mercado Municipal», entenda-se, o cruzamento desta com a Av. Dr. Renato Araújo, voltou à direita, circulando no sentido Norte - Sul, sempre em frente, acabando por se dirigir às instalações da G.N.R. desta cidade, sitas na R. Fonte Cova.
Desconhece-se, até ao dia de hoje, o destino ou paradeiro da arma e de dois dos respectivos invólucros.
Não obstante todas as diligências possíveis efectuadas pela P.S.P., pelos Bombeiros desta cidade e por uma equipa cinotécnica constituída por um binómio detector de explosivos, no local onde ocorreram os factos, durante os dias 5 e 6 de Dezembro de 2002.
A arma de fogo que com que o arguido efectuou os disparos é semi -automática, pois houve extracção dos invólucros e tem, aproximadamente, onze centímetros de comprimento.
Os dois invólucros encontrados junto do corpo da vítima correspondem a munições de calibre 6,35mm.
A janela de extracção das pistolas calibre 6,35mm são sempre do lado direito.
As armas de fogo calibre 6,35 mm, semi-automáticas, extrai os invólucros, e normalmente, projecta-os a uma distância nunca superior a 1,50 metros, sempre com um ligeiro desvio para cima e para a direita.
O «Caminho das .....» é um carreiro em terra batida, situado num descampado, configura uma paralela à Av. ........... e situa-se num plano inferior a esta e nas traseiras dos edifícios aí construídos, do lado direito para quem desce a mesma, dando acesso à R. Alexandre Herculano.
Em consequência dos quatro disparos efectuados pelo arguido sobre o corpo da vítima, esta sofreu os seguintes ferimentos visíveis externamente, conforme relatório de autópsia, constante de fls. 227 a 231, cujo teor aqui se dá por inteiramente reproduzido, e que lhe determinaram, de forma directa e necessária a morte.
«Na cabeça: orifício na região temporal direita (11 por 5 mm) com esquírolas no cabelo a 4,7 cm do polo superior do pavilhão auricular.
No pescoço: orifício na região cervical direita irregular (7 por 4 mm), com orla de contusão superior, localizado a 5,2 cm do lobo da orelha direita, em direcção inferior e posterior.
No tórax: orifício na região anterior do ombro direito com halo de escoriação e mais medialmente equimose com hematoma subcutâneo com três centímetros de diâmetro.
Membros superiores: orifício na região olecraniana direita (8 por 5 mm), porção superior, com mobilidade anómala, sugerindo fractura cominutiva».
A morte C................... foi devida a traumatismo torácico.
A tipologia das lesões que a mesma apresentava é compatível com lesão perfurante de projéctil.
Foram encontrados no corpo da vítima, ao todo, quatro projécteis, sendo o responsável pela morte o que a alvejou no ombro direito.
Na sequência da busca efectuada à residência do arguido, no dia 5 de Dezembro de 2002, pelas 12.30h, foram encontradas as seguintes armas, pertença do mesmo:
uma pistola de alarme, com o número 576, marca RS com tapado de 5,8 cm de comprimento, calibre 8 mm, com carregador cilíndrico em latão de cor amarela e base em metal; um carregador e seis cartuchos, que têm na base a marca com o símbolo «Bolota», que se supõe serem da marca do fabricante, um já detonado que, no entanto, não causa qualquer perigo, objectos melhor descritos e examinados a fls. 182;
uma carabina de marca «Crosman», modelo 2100 lassic, com um cano de alma lisa, com coronha cerca de 30 cm de comprimento e com capacidade para um tiro, cujo sistema de funcionamento é de percussão central e directo, melhor examinada a fls. 183.
No dia 23 de Outubro de 2002, o arguido havia vendido uma espingarda numa loja de armas sita no Centro Comercial «.........», em Oliveira de Azeméis:a «R........., Ldª » e ficou com todas as referidas neste despacho em seu poder.
O arguido não possuí licença de uso e porte de armas, embora seja titular de licença de uso e porte de arma de caça válida para os anos de 2001 a 2003.
A vítima viveu durante vinte anos um crescendo estado de sofrimento e angústia, motivado pelo carácter violento e autoritário do arguido, forçada a satisfazer todas as suas vontades e a aceitar todas as suas decisões.
Durante os vinte anos em que viveu com o arguido, a C............... sentiu-se bastante abalada, física e psicologicamente, apresentando-se, enquanto viveu com o arguido, sempre triste, desgostosa e desmotivada pelo facto de o arguido discutir com ela, de a ameaçar de morte e a atingir na sua integridade física e moral e na sua dignidade de mulher, esposa e mãe, conforme acima descrito.
O arguido sempre exerceu sobre ela uma enorme pressão, no sentido de a amedrontar e de a impedir de decidir deixar de viver com ele.
O arguido agiu com o propósito de maltratar fisicamente e psicologicamente a ofendida, sua esposa, querendo atingi-la na sua integridade física, na sua honra e dignidade, e por forma a deixá-la desgostosa e abalada, bem sabendo que praticava actos proibidos e punidos por lei.
Neste propósito, o arguido agiu ao longo dos cerca de vinte anos em que viveu com a arguida no pressuposto de que podia exercer sobre ela ascendência física, psicológica, sexual e social, valendo-se da circunstância de terem um filho comum e de auferir um salário superior ao da vítima.
Por outro lado, serviu-se da intimidade da vida familiar e do pretexto de constituir com a vítima e o filho uma família para praticar tais factos de forma repetida e num crescente grau de violência e autoridade.
O quadro de ansiedade, de medo e de instabilidade psico-emocial que a vítima foi desenvolvendo impediu-a de ganhar coragem para se separar do arguido e permitiu ao arguido continuar a agir sempre da mesma forma enquanto viveram juntos.
O arguido quis matar a C............, pelo menos desde que foi citado na acção de divórcio, e apenas porque não aceitou que a mesma deixasse de viver com ele.
O arguido sabia manusear armas.
Desde que a comprou, há cerca de 10 anos, o arguido limpou-a várias vezes na presença da vítima e costumava guarda-la no quarto de casal.
Agiu sempre livre e conscientemente, sabendo que praticava actos proibidos e punidos por lei.
O seguro de vida a que se refere a acusação pública, foi feito junto de um amigo do casal, o Sr. G............ .
O arguido entrou em estado depressivo e em baixa médica, tendo sido pedido apoio da consulta de psiquiatria do H. de S.J.M.
O arguido, no E.P., queixa-se de falhas de memória e fortes dores de cabeça, estando a ser medicado e acompanhado por psicóloga e psiquiatra.
O arguido é pessoa trabalhadora e amigo do seu amigo,
Sendo ainda hoje por todos quanto o conhecem estimado e respeitado.
O arguido é primário; auferia € 500 como motorista e nasceu em 19/06/60.

2. Factos não provados.
O arguido dizia que a mulher tinha amantes, que andava metida com o patrão.
O arguido evitava os conflitos na presença do filho.
Quando a vítima dizia ao arguido que não queria viver com ele e que iria com o filho de ambos para a casa dos seus pais, o arguido respondia-lhe:
«Se quiseres ir, vai, mas vais ter o “diabo” para aturar »!
Em data não apurada de Fevereiro de 1998, no decurso de uma discussão entre o casal, o arguido desferiu-lhe vários empurrões e um murro no rosto, que lhe provocaram as lesões descritas nos elementos clínicos de fls. 11, cujo teor aqui se dão por inteiramente reproduzidas, Da ficha clínica conste como motivo do atendimento: «doença», mas tal deve-se ao facto de a vítima não ter dito perante o médico ou quem a atendeu no hospital qual a causa das lesões.
Os conflitos entre o casal foram-se agravando ainda mais, à medida que as despesas aumentaram, quer com a educação do filho de ambos, quer com a prestação para pagamento da dívida contraída para aquisição do apartamento, e também à medida que o arguido deixou de contribuir para as despesas da casa.
O arguido começou a gastar mais dinheiro em jantares e saídas que fazia com os amigos, e por outro lado encontrou uma forma de fazer com que a vítima não ganhasse autonomia financeira para deixar de viver com ele.
O arguido disse para a esposa “vou aí e dou-te um tiro! Um dia destes, vou aí e faço explodir esse prédio, se te encontro com alguém, mato os dois!».
No dia 2 de Setembro de 2002, cerca das 11.15h, a C........ saiu de casa e deparou-se com o arguido, ao cimo da R. ..............., parado, à espera dela.
Ao vê-lo, a C.......... não quis falar com ele e o arguido ainda percorreu cerca de 100 metros atrás da esposa, mas logo que se apercebeu que a C......... entrou na Esquadra da P.S.P., deixou de a perseguir.
Furioso, o arguido começou a gritar:
«Ou abres a porta, ou deito tudo abaixo e dou-te dois tiros na cabeça !
E acrescentou que a vítima era uma vigarista, que o havia roubado e abandonado cheio de dívidas, juntamente com o filho de ambos.
O arguido visualizou o n.º do telefone fixo da esposa, numa das vezes em que entrou em casa desta.
No dia 28/11/02, o arguido preparou a arma calibre 6,35 mm, marca «FN», carregando-a com, pelo menos, cinco munições de igual calibre.
Com o propósito de matar a esposa, o arguido dirigiu-se a S. João da Madeira, nos dias 3 e 4 de Dezembro de 2003.
Nessa tarde, a vítima veio à janela da residência onde se encontrava a trabalhar e apercebeu-se da presença do arguido, parado nessa rua, de pé, e a fumar muito.
A vítima teve a preocupação de procurar o duplicado da apólice do seguro de vida que tinha feito a favor de seu filho e de o colocar em local visível, em cima de uma mesa, no interior da sua residência.
Ainda nessa noite, a vítima telefonou ao J......... e disse-lhe, referindo - se ao arguido :
«Ele vai-me matar, ele vai cometer uma loucura, ele não está bem!».
De seguida, o arguido apanhou dois dos invólucros que estavam caídos no chão, correspondentes a dois dos disparos que efectuou e, ao abandonar o local, levava a arma e os invólucros escondidos num dos bolsos.
Ainda antes de entrar nas instalações da G.N.R, o arguido, de modo não apurado, desfez-se da arma com que efectuou os disparos e de dois dos respectivos invólucros.
O arguido levava com ele a arma calibre 6,35mm nos trajectos que fazia enquanto motorista de longo curso.
O arguido chegou, em Carregosa, a viver sozinho com o J...... pois a C........... tinha-os abandonado a ambos, sendo a vizinha do lado que ficava com o J.......... quando o arguido ia trabalhar, até que a C........... resolveu dias depois retornar a casa,
O facto do arguido ser divorciado e ter um filho do anterior casamento fazia com que a C............ tivesse constantes ataques de ciúmes.
A C........, a 26 de Fevereiro de 1994, consultou um médico, mas fê-lo porque o arguido, que naquela data estava a trabalhar na ilha da Madeira, ao regressar a casa encontrou a mesma muito magra, e preocupado com a sua saúde, aconselhou-a a ir procurar um médico, por forma a averiguarem a causa de tal estado.
Quando foram residir para o apartamento sito na Rua .............., n.º .., 5º andar, o arguido em função do trabalho que tinha à data só vinha a casa ao fim de semana e muitas vezes só ao Domingo pois trabalhava ao Sábado.
A C............ tinha acesso às contas bancárias, cheques, multibanco, caderneta da Caixa Geral de Depósitos, e até ia muitas das vezes receber e depositar o seu ordenado, nomeadamente o auferido na firma onde laborou antes de ser preso preventivamente, a saber S............. & ..........., L.da, tendo inclusive recebido um cheque de reembolso de IRS, enviado em nome do arguido, que assinou, levantou e usou da forma que entendeu, não dando sequer qualquer satisfação ao arguido.
O arguido não só contribuía para as despesas domésticas como também contribuía em termos monetários com uma quantia que era gasta com o sogro. Efectivamente, quando o mesmo estava doente, era entregue uma quantia em dinheiro para tomarem conta dele, o que era dividido pelos filhos(s) e genros/noras.
E não obstante a C.............. ter uma conta só sua e dinheiro que dizia ser só seu, era do dinheiro de ambos (ordenado do arguido) que era paga essa quantia, sendo que quando este acabou por falecer a herança passou a ser só dela.
O arguido, na firma onde trabalhava, à data, tinha alojamento e alimentação paga em Lisboa.
A venda do apartamento foi decisão tomada pelo arguido e pela C............, dado que o apartamento onde residiam tinha muitos problemas, nomeadamente de humidades, tendo sido a C............... e o J..... os primeiros a irem ver a casa, pedindo ao arguido para a ir ver, o que acabou por acontecer num fim de semana, acabando a casa por interessar aos três.
No apartamento pagavam cerca de 50.000$00 de prestação e na casa foram pagar cerca de 39.000$00, com a possibilidade de tirarem da terra diversos géneros alimentícios.
O arguido não gostava que a C............. andasse com o carro quando o mesmo apresentava problemas mecânicos, receando o arguido que a mesma ficasse no meio da estrada, (o que chegou a acontecer algumas vezes, acabando o arguido por entrar em contacto com o mecânico) e não permitiu que a mesma fosse para Tomar com o J..... de carro sem o seguro em dia.
Foi com o dinheiro de ambos (ordenado do arguido) e não com o dinheiro de C......... que esta acabou por tirar a carta de condução.
O arguido dirigiu-se ao escritório da Dr.ª L............. não tendo esta comparecido no mesmo na data e hora marcada
Por várias vezes a C............... não fez o jantar tendo o arguido ido jantar fora com seu filho J...... sem que isso tivesse de alguma forma feito o arguido discutir com a C........... .
Não existe qualquer mesa na cozinha.
O seguro de vida foi feito com a intenção de cobrir acidentes de trabalho e algumas doenças de que fosse acometida a C.........., dado nenhuma das suas patroas efectuar descontos para a Segurança Social.
O arguido só dizia alguma coisa das suas saídas quando o J..... chegava muito tarde a casa.
Houve uma discussão familiar, como qualquer casal tem, derivado do facto de terem combinado irem os três passar a Páscoa com familiares, e fruto do facto de o J..... ter chegado por volta das 5H00 a casa, deixaram de cumprir o acordado com familiares, o que deixou o arguido bastante triste.
A C............ abandonou o lar conjugal ficando acordado que ficariam amigos e que continuariam a visitar-se, bastando que o arguido lhe telefonasse ou vice versa.
E assim aconteceu. Quando o arguido combinava com a C................ ir a casa dela, dava-lhe um toque para o telemóvel e esta vinha abrir a porta, pois a campainha estava avariada.
A C........... continuou a ir a casa do arguido, excepto ao fim de semana quando o J...... vinha a casa, arrumava-lhe a mesma e chegou mesmo a dar-lhe uma pulseira em ouro, tudo fazendo para levar o arguido a acreditar que a mesma o amava e queria ficar com ele.
O arguido começou a perder o discernimento e a sentir-se confuso devido a comportamentos contraditórios da C...........
O referido estado depressivo terá diminuído a capacidade de avaliar e de querer do arguido
Fruto da situação que não conseguia perceber e que tentava por todas os meios entender,
De tal forma que deixou de conseguir controlar os seus sentimentos, o seu querer a sua capacidade de avaliar
Não compareceu efectivamente no escritório da Dr.ª L............. no dia 23 de Setembro de 2002, pelas 19H00, visto que na primeira carta que lhe foi enviada apareceu e a Dr.ª L............ faltou, e depois porque todo o comportamento da C............... apontava ora para o divórcio ora para a reconciliação.
O acompanhamento que tem sido efectuado no E.P. não tem sido suficiente quer para o ajudar a recuperar as suas perdas de memória quer o estado psicológico em que se encontra,
Quer trabalhar para mandar dinheiro para o seu filho J..... .

3. Exposição dos motivos de facto.
A convicção do Tribunal para o apuramento dos factos provados e não provados fundamentou-se na ponderação, análise crítica e conjugação dos seguintes elementos probatórios:
-Declarações do arguido, referiu a sua situação familiar e profissional, as cartas que recebeu da Dr.ª L.............., os estudos do filho em Tomar, o seguro de vida feito pela vítima a favor do filho, a saída destes do lar para irem viver sozinhos para S.J.M., o seu inconformismo acerca de tal separação, a sua tentativa, já após tal separação, em manter relações sexuais com a esposa e recusa desta, a intervenção da PSP no dia 6/9/02, o ter comunicado á vítima que lhe queria entregar duas cartas, que tinha uma arma 6,35mm e onde a costumava guardar, bem como as encontradas na busca feita a sua casa, a venda que fez da espingarda; apesar de invocar falhas de memória, acabou por dizer que o conteúdo das suas declarações à Mmª J.I.C. corresponde à verdade e por admitir ter posto termo, a tiro, à vida de sua mulher por não aceitar a separação.

-Prova documental:
- documentos de fls. 13,153,480,154,487,326 a 329,638 a 644 e 662.

- elementos clínicos de fls. 319 a 333 e de fls. 376 a 402 e
- informação médica de fls. 487;
- auto de denúncia de fls. 27 e participação de fls. 28;
- auto de exame de perícia médico-legal de fls. 41 e 42;
- auto de reconhecimento de fls. 67 e 68 :
- croquis de fls. 81 e 82 e planta topográfica de fls. 83 e 84;
- certidão do processo de divórcio litigioso n.º ....../02, do ..... Juízo deste Tribunal, constante de fls. 129 a 160;
informação da Direcção Nacional da P.S.P. de fls. 199;
- cópia da apólice de um seguro de vida de fls. 300 a 303;
- auto de reconstituição do facto de fls. 344 a 359;
- Listagens de chamadas efectuadas e recebidas da TMN de fls. 411 a 423 e da «Cabo Visão», de fls. 470 a 479;
- Certidão do despacho do Presidente do Conselho da Ordem dos Advogados do Porto de fls. 441;
- Certidão do assento de nascimento do arguido de fls. 480;
- C.R.C., fls. 570.

Prova Pericial:
Relatório da autópsia de fls. 228 a 232;
Auto de exame de perícia médico-legal de fls. 313 e 314;
Auto de exame de balística de fls. 339 e 340;
Relatórios de exames do Laboratório de Polícia Científica de fls. 449 a fls. 461; de fls. 489 a 492 e de fls. 493 a 503.

Prova testemunhal:

O depoimento do filho arguido, J…….., pela sua clareza, segurança e conhecimento revelado da vida do casal, fruto do que observava, foi determinante para estabelecer os contornos da vivência do casal do arguido, traduzida nas referidas ameaças e maus tratos físicos e psíquicos infligidos à falecida. Depoimento este, conjugado com o das empregadoras da vítima, a quem esta, por fim, passou a confidenciar toda a violência do arguido para consigo, ou seja, os depoimentos seguros e convincentes (coincidentes, em muitos pontos, com a narrativa do filho do casal ) da Dr.ª P........... (para quem a falecida trabalhou como empregada doméstica e que referiu, p.ex., como foi buscar a vítima ao supermercado, a pedido desta, quando esta viu que o arguido a perseguia) e marido Dr. T...... (disse que a vítima andava em pânico), Dr.ª U.......... (igualmente empregadora da vítima, até Dez./02 e que referiu como esta se mostrava convicta de que iria morrer às mãos do arguido, nomeadamente a partir do momento em que este não se apresentou no escritório da advogada Dr.ª L..........., mas que “ preferia isso a viver com ele”), o depoimento da referida advogada (descreveu o estado em que a vítima lhe apareceu, receosa do arguido para pôr a acção de divórcio, mas, ao mesmo tempo, determinada por já não suportar mais os maus tratos, ameaças e perseguições), o da vizinha da vítima, Q............ (prestou um depoimento sereno e convincente, dizendo que viu o arguido a tentar entrar em casa e a mulher a opor-se, ouviu a conversa em que ele queria sexo e ela não, mandando-o falar com a sua advogada, assistiu á intervenção da P.S.P., ao arguido dizer que deitava a porta abaixo, que a vítima esperou pela sua companhia, com medo de entrar em casa e descreveu-a como uma pessoa que andava “arrasada” com toda a descrita situação) o da comerciante V........... de cujo estabelecimento de mini mercado a vítima era cliente (observou o arguido a rondar o estabelecimento, quando a mulher se encontrava no interior do mesmo, em 3/12/02, dizendo esta que “é hoje que ele me vai matar” e telefonando a vítima para a Dr.ª P...... a pedir-lhe que a fosse buscar) e, ainda, o depoimento de D........ (amigo do casal que reconheceu ter a vítima escolhido a sua companhia e a de sua mulher para comunicar, com mais apoio, ao arguido a sua intenção de separar-se dele; mais disse que o arguido é trabalhador e amigo do seu amigo)
No que tange aos maus tratos, apesar de algumas testemunhas (nomeadamente E............, D…………, F............, G.........., H......... e N.............. - as quais, por outro lado, referiram ser o arguido pessoa trabalhadora e amigo do seu amigo), que conviviam com o casal, terem afirmado que este tinha um relacionamento normal, a verdade é que tal entendimento (de pessoas que, como é óbvio, ignoram, eles mesmo o disseram, aliás, o que se passava quando o casal estava só) é, claramente, contrariado pelo referido depoimento do filho do casal que o observou e cuja versão, depois, encontra eco nos depoimentos daquelas pessoas a quem a vítima, por último, já se abria, dando conhecimento do que realmente se passava.

O depoimento da psicóloga que tem acompanhado o arguido, Dr.ª X........., autora dos “Diários” de fls. 638 e ss. - parte de psicologia - desde 26/5/03, referiu que apenas pode diagnosticar ao arguido uma depressão e não um quadro de perda de memória. Depoimento do neurocirúrgião Dr. O............., que confirmou o diagnóstico que fez à vítima, quando esta o consultou em 26/2/94. Depoimento da amiga do casal Z........ que disse ter-lhe a vítima confidenciado receber maus tratos do marido.
A testemunha M......... descreveu de forma clara, serena e convincente tudo o que observou nos momentos que antecederam e se seguiram aos disparos feitos pelo arguido na direcção de sua mulher e manteve o reconhecimento que fez a fls. 68.
Os elementos da PSP, A1...... (disse ter elaborado o auto de fls. 2, que a vítima procurava evitar o contacto com o arguido e que se queixou de ameaças e de maus tratos), A2......... e N................ (deslocaram-se a casa da vítima, aí chamados por esta que não queria falar com o arguido, presente no local e que proferiu a expressão “que estava protegida pela polícia mas que havia de chegar um dia em que iria precisar de ajuda e ninguém a socorreria”, A3........, A4........., A5........., A6........... e A7........ - este último da GNR (deslocaram-se ao local onde a C………. foi assassinada, confirmaram o reconhecimento de fls. 68, o facto do arguido se ter entregue, de seguida, à GNR, alegando que matara a mulher a tiro, a circunstância de não terem encontrado quer a arma, quer dois dos cartuchos, mais referiram a busca que fizeram a casa do arguido, a reconstituição do crime, com o arguido a perceber e a responder ao que lhe era perguntado).

O Direito
Por despacho de fls. 818, o relator, considerando o disposto no art.º 412º do Código Processo Penal, entendeu que o recorrente não tinha especificado os pontos que considerava incorrectamente julgados, nem, concretamente, as provas que impunham decisão diversa, nem fazia referência aos suportes técnicos, pelo que convidou o recorrente, e sob cominação de rejeição do recurso quanto à matéria de facto, art.º 690º n.º 4 do Código Processo Civil , ex vi, art.º 4º do Código Processo Penal, a:
- Especificar nas suas conclusões os pontos de facto que considera incorrectamente julgados.
- Especificar as provas que impõem decisão diversa da recorrida, e a sua identificação e localização precisa, nas transcrições.
Devidamente notificado nada disse ou requereu o recorrente.

Como o recorrente não acolheu o convite do relator para especificar nas suas conclusões os pontos de facto que considerava incorrectamente julgados e especificar as provas que impunham decisão diversa da recorrida, e a sua identificação e localização precisa, nas transcrições, não se conhece do recurso quanto à matéria de facto, nos termos amplos do art.º 412º n.º 3 do Código Processo Penal, art.º 690º n.º 4 do Código Processo Civil, ex vi, art.º 4º do Código Processo Penal.

O nosso poder de cognição, em matéria de facto, vai mover-se, apenas, no âmbito do art.º 410º nºs 2 e 3 do Código Processo Penal.

O recurso, neste caso, pode ter como fundamento, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência, art.º 410º n.º 2 do CPPenal:
insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;
erro notório na apreciação da prova.
O vício tem que resultar da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência. Não se pode ir fora da decisão buscar outros elementos para fundamentar o vício invocado, nomeadamente ir à cata de eventuais contradições entre a decisão e outras peças processuais, como por exemplo recorrer a dados do inquérito, da instrução ou do próprio julgamento[S. Santos e L. Henriques, Recursos em Processo Penal, 5.ª ed. pág. 70/71].
O recurso pode ainda ter como fundamento, mesmo que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, a inobservância de requisito cominado sob pena de nulidade que não deva considerar-se sanada, art.º 410 n.º 3 do CPPenal.

Suscita o recorrente a existência de contradição insanável de fundamentação e erro notório na apreciação da prova.
Verifica-se contradição insanável da fundamentação ou entre os fundamentos e a decisão, quando há uma incompatibilidade, não ultrapassável através da própria decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação probatória e a decisão[Aut. e ob. cit. pág. 63].
Ou seja: há contradição insanável da fundamentação quando, fazendo um raciocínio lógico, for de concluir que a fundamentação leva precisamente a uma decisão contrária àquela que foi tomada ou quando, de harmonia com o mesmo raciocínio, se concluir que a decisão não é esclarecedora, face à colisão entre os fundamentos invocados; há contradição entre os fundamentos e a decisão quando haja oposição entre o que ficou provado e o que é referido como fundamento da decisão tomada; e há contradição entre os factos quando os provados e os não provados se contradigam entre si ou de forma a excluírem-se mutuamente[Simas Santos, , cfr. Simas Santos, Recursos..., 5ª ed. pág. 63 e 64].

Consubstancia erro notório na apreciação da prova, a falha grosseira e ostensiva na análise da prova, perceptível pelo cidadão comum, talvez melhor por um juiz normal - com a cultura e experiência da vida e dos homens que deve pressupor-se num juiz chamado a apreciar a actividade e os resultados probatórios - na sugestão de Castanheira Neves[Castanheira Neves, Sumários de Processo Criminal, 1968, pág. 50-1.], denunciadora de que se deram provados factos inconciliáveis entre si. Há um tal vício quando um homem médio, rectius, um juiz normal, perante o que consta do texto da decisão, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente se dá conta de que o tribunal violou as regras da experiência ou se baseou em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios ou se desrespeitaram regras sobre o valor da prova ou das leges artis.
Coisa diversa, e corrente, é a não aceitação pelo recorrente, da forma e do resultado da valoração e apreciação da factualidade produzida em audiência, efectuada pelo tribunal, segundo as regras da experiência e a livre convicção, cfr. art.º 127º do CPPenal.
Não se verifica erro notório na apreciação da prova se a discordância resulta da forma como o tribunal teria apreciado a prova produzida[Ac. do STJ de 19.9.90, BMJ 399º 260]. O erro notório na apreciação da prova, art.º 410º, n.º 2, al. c) do CPPenal, não tem nada a ver com a eventual desconformidade entre a decisão de facto do julgador e aquela que teria sido proferida pelo próprio recorrente[Ac. do STJ de 1.7.98 Proc. N.º 548/98 e Ac. do STJ de 21.10.98 Proc. n.º 961/98].
Ora é isso que ocorre no caso: o recorrente não aceita a apreciação que o tribunal fez da prova; na sua ópitca, não ficou provado que cometeu os crimes de maus tratos a cônjuge, de detenção ilegal de arma e de homicídio. Acontece que convidado o recorrente a concretizar as alegadas generalidades, quedou-se inerte.

Lido o acórdão e concretamente a factualidade apurada e não provada e respectiva motivação, não vislumbramos [mesmo partindo do critério mais exigente do juiz normal - com a cultura e experiência da vida e dos homens, que deve pressupor-se num juiz chamado a apreciar a actividade e os resultados probatórios - em vez do cidadão comum, correntemente invocado na nossa jurisprudência,] à luz do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, os alegados vícios, ou quaisquer outros, pelo que temos a matéria de facto como definitivamente assente.

Suscita o recorrente várias questões de direito.
Quanto ao crime de maus tratos a cônjuge, entende o recorrente que:
não devia ter sido condenado pela prática de crime continuado, uma vez que para o preenchimento desse crime se exige-se já a continuação;
que provando-se única e exclusivamente um crime de ofensa à integridade física, ocorrido em Janeiro do ano de 2001, não tendo sido exercido o direito de queixa deveria ter sido o arguido absolvido deste crime;
que a condenação só se podia alicerçar em factos ocorridos após a data em que entrou em vigor a alteração introduzida pela Lei 7/2000, de 27 de Maio, “Lex severior”, e a data em que o arguido e a C......... deixaram de viver como marido e mulher, i.e. em Abril de 2002;o tribunal a quo ao dar como provado o crime de maus tratos a cônjuge refere “condutas concretizadas em maus tratos físicos, psíquicos e ameaças ao longo de vários anos” viola a proibição constitucional da retroactividade da Lei Criminalizadora (Art.º 29 da C.R.P) uma vez que o Tribunal a quo não poderia ter considerado as acções anteriores à alteração levada a cabo pela Lei 7/2000, uma vez que estas são, evidentemente, irrelevantes sob o aspecto jurídico-penal;
por outro lado o sujeito passivo deste crime só pode ser uma pessoa que se encontre, para com o agente, numa relação de subordinação existencial (não é o caso), de subordinação laboral (não é o caso), ou numa relação de coabitação conjugal ou análogo (in casu e após Abril de 2002 arguido e C............., deixaram de coabitar conjugalmente);
o arguido a ser condenado só o poderia ter sido por 1 crime de maus tratos a cônjuge, por factos ocorridos depois da entrada em vigor da Lei 7/2000 e Abril de 2002;
finalmente a pena aplicada em concreto, 3 anos de prisão (por um crime de maus tratos na forma continuada) é manifestamente excessiva, devendo ter sido situada no mínimo legal, 1 ano.

A função do tipo de ilícito de maus tratos, e naquilo que agora nos importa, é prevenir as frequentes e por vezes subtis, formas de violência no âmbito da família. Resultou de uma dupla ordem de razões: o crime de ofensas corporais simples deixa de fora comportamentos censuráveis; por outro lado a consciencialização ético-social dos tempos recentes àcerca da gravidade destes comportamentos. As sucessivas alterações legislativas, e o aceso debate que as acompanhou, são disso prova eloquente. A ratio do tipo não está na protecção da comunidade familiar, mas sim na protecção da pessoa individual e da sua dignidade humana. O âmbito punitivo deste tipo de crime inclui os comportamentos que, de forma reiterada, lesam esta dignidade. Em última instância o bem jurídico protegido é a saúde, bem jurídico complexo que abrange a saúde física, psíquica e mental[Taipa de Carvalho, Comentário Conimbricense, I pág. 332].
Para se configurar maus tratos... exige-se uma pluralidade de condutas, ou no mínimo uma conduta complexa, que revista gravidade e traduza, v.g. crueldade, insensibilidade[Ac do STJ de 14.11.97 CJ S V, T III, pág. 235]. Taipa de Carvalho, ob. cit. pág. 334, vai mais longe: o tipo de crime pressupõe, segundo a ratio da autonomização, uma reiteração das respectivas condutas. Por outro lado um tempo longo entre dois ou mais dos referidos actos afastará o elemento reiteração ou habitualidade pressuposto, implicitamente, por este tipo de crime. No mesmo sentido se tinham pronunciado já Teresa Beleza, Mulheres, Direito, Crime ou a Perplexidade de Cassandra, pág. 363, e em Maus Tratos..., pág. 19, 21, Maia Costa, TJ nºs 8 e 9 pág. 15-17, o Ac. do TRPorto de 22.3.95 CJ XX T II pág. 227.
Cabe liminarmente referir que o recorrente faz uma leitura muito subjectiva da matéria de facto provada, omitindo e ignorando ostensivamente o que não lhe interessa, numa violação flagrante dos mais elementares deveres de lealdade processual. Só que, essa atitude, não surte qualquer efeito prático. A circunstância de o arguido afirmar que apenas se provou um crime de ofensa à integridade física, não tem, como é a todas as luzes evidente, a virtualidade de apagar o que em contrário resulta da matéria de facto provada. É tapar o sol com a peneira.
É destituída de valor a afirmação de que a condenação só se podia alicerçar em factos ocorridos após a data em que entrou em vigor a alteração introduzida pela Lei 7/2000, de 27 de Maio....., “Lex severior” e até à data em que o arguido e a C............... deixaram de viver como marido e mulher, i.e. em Abril de 2002. Em primeiro lugar o crime de maus tratos está tipificado desde a entrada em vigor do Código Penal em 1983. Depois, na parte do texto legal que aqui releva, o art.º 152º mantém-se inalterado desde a revisão levada a cabo pelo Decreto Lei n.º 48/95, de 15 de Março. Mas, mesmo que o entendimento propugnado pelo recorrente fosse procedente, a factualidade apurada nesse período temporal permite censurar jurídico penalmente o arguido pela prática do crime de maus tratos na sua forma continuada.
Acresce que não há qualquer fundamento para limitar os factos relevantes à data em que o arguido e a C............. deixaram de viver como marido e mulher, i.e. em Abril de 2002. Há patente confusão do recorrente. O art.º 152º utiliza um conceito jurídico claro, cônjuge; ora como o casamento ainda não tinha sido dissolvido relevam todos os factos ocorridos até ao evento letal. O art.º 152º apenas refere cônjuge, não exige, cumulativamente, a coabitação conjugal. Esse requisito de coabitação apenas é exigido para as situações análogas, e por óbvias razões. Se é certo que Taipa de Carvalho[Comentário Conimbricense, I pág. 333], parece num primeiro momento exigir também para os cônjuges a coabitação conjugal, logo de seguida e de modo inequívoco corrige a afirmação: cônjuge ou quem com o agente conviver em condições análogas às dos cônjuges. Nem se compreende que fosse de outro modo. O dever de respeito - o especial dever de respeito entre os cônjuges - subsiste até ser decretado o divórcio. Abra-se aqui um pequeno parêntesis para referir que o dever de respeito é o mais importante dos deveres conjugais. O fim do casamento é constituir uma família mediante uma plena comunhão de vida cfr. art.º 1577 º do CCivil e, portanto, falta ao respeito devido ao outro cônjuge, todo o cônjuge que age de modo a frustar a justa expectativa do seu consorte naquela plena - perfeita - comunhão - participação comum - de vida - de actividade - que na sociedade actual pressupõe forçosamente fidelidade, coabitação, cooperação e assistência. Filia-se na eminente dignidade da pessoa humana, bem jurídico, com assento constitucional e tanto pode ser violado no seu aspecto físico como moral. Aquele traduz-se na obrigação imposta de não lesar fisicamente o outro; o dever de respeito moral traduz-se na obrigação de não lesar moralmente o outro[Ferreira Pinto, Causas do Divórcio pág. 60 /61, A. Varela Direito da Família pág. 345 e P. Lima e A. Varela CCA vol. IV pág. 256 /7.]

A criminalização dos maus tratos reflecte em boa medida o relevo deste dever jurídico de respeito.
Se é certo que normalmente os maus tratos, mesmo entre os casados, ocorrem num contexto de coabitação, do tipo legal não resulta - no caso de casamento - essa exigência. A coabitação é exigida, e por óbvias razões, para os que convivem em condições análogas: sem coabitação não há união de facto.
Porque razão é que o cônjuge que por ser vítima de maus tratos abandona a casa, havia de deixar, por essa razão, de ser protegido dos maus tratos caso eles continuem? Como eloquentemente demonstra o caso dos autos, os maus tratos não cessaram com a separação, mas continuaram em crescendo até ao evento letal.
Mesmo em caso de simples separação subsistem todos os deveres conjugais, daí que, mesmo numa situação de separação, pode ocorrer crime de maus tratos a cônjuge.

A qualificação da conduta apurada como crime continuado não nos merece censura. Como entendeu a decisão recorrida a conduta do arguido preenche a previsão do art.º 152º Código Penal, e na forma continuada. A circunstância de a norma em apreço pressupor uma pluralidade de condutas, ou no mínimo uma conduta complexa, que revista gravidade e traduza, v.g. crueldade, insensibilidade, etc., como já dissemos, não afasta nem é incompatível com a possibilidade de ocorrer crime continuado, desde que verificados os pressupostos deste. No caso, as múltiplas condutas do arguido, concretizadas em maus tratos físicos, psíquicos e ameaças, à sua mulher, ao longo de vários anos, actuação que, não obedecendo ao mesmo dolo, se mostra interligada por factores externos que arrastaram o arguido para a reiteração das suas condutas, como é o caso da situação de convivência com a vítima na mesma casa, configuram crime continuado, art.º 30º do Código Penal.
Depois, o recorrente parte de um falso pressuposto, que a moldura penal abstracta do crime continuado é mais severa, do que a do crime simples, quando a moldura penal abstracta é a mesma.

Quanto à questão da pena concreta aplicada, que o recorrente entende manifestamente excessiva, devendo ter sido situada no mínimo legal, 1 ano, será oportunamente apreciada aquando nos debruçarmos sobre a medida de todas as penas aplicadas.

No particular da detenção da arma as questões suscitadas pelo recorrente são as seguintes:
Como não foi encontrada a arma do crime, o arguido não podia ter sido punido, o princípio in dubio pro reo não permite que o tribunal possa dar como assente que a arma não encontrada tinha essas características, pelo que devia ter sido absolvido da prática desse crime; a ser punido devia ter sido em pena de multa, e não, em pena de prisão.
A circunstância de a arma não ter sido encontrada apenas significa isso: que não foi encontrada. Não inviabiliza a prova de que era detida pelo arguido, e, menos ainda, que o arguido não era titular da pertinente licença de uso e porte. Finalmente também não impossibilita o apuramento das respectivas características, desde logo porque o exame dos projécteis e cápsulas nela usados, veícula informação suficiente. Daí que, neste contexto, convocar o princípio in dubio pro reo, é, no mínimo, esforço inglório. Tanto mais que esse princípio não foi convocado pelo tribunal aquando da decisão da matéria de facto e não se vê que esse procedimento seja de sindicar.
Quanto à questão da escolha da pena será abordada oportunamente.

Quanto ao homicídio, o arguido não contesta que violou, na sua variante extrema, o bem jurídico supremo que era a vida da sua mulher C................. .
O que não aceita é que a sua conduta preencha o tipo de ilícito qualificado, art.º. 132º nºs 1 e 2 al. d), g) e i), do CPenal.

Nesse tipo legal pune-se o homicídio qualificado: morte causada em circunstâncias que revelem "especial censurabilidade" ou "perversidade" do agente, sendo susceptível de revelar especial censurabilidade, entre outras, as circunstâncias elencadas no n.º 2 do art.º 132º C. Penal, e, naquilo que aqui nos interessa, al. d) ser determinado por qualquer motivo torpe ou fútil, g) utilizar meio particularmente perigoso ou que se traduza na prática de um crime de perigo comum; i) agir com frieza de ânimo, com reflexão sobre os meios empregados ou ter persistido na intenção de matar por mais de vinte e quatro horas.

É a consagração da técnica dos "exemplos padrão" (Regelbeispieltechnik).
O art.º. 132º não consagra o exemplo padrão para dele retirar o efeito agravante de forma imediata, antes ele é feito funcionar por referência a uma cláusula agravante determinada[F. Dias, Direito Penal Português 1993, pág. 204, Teresa Serra, Homicídio Qualificado, pág. 70 e Anabela Rodrigues, A determinação da Pena Privativa de Liberdade, pág. 597].

Tais circunstâncias não são taxativas, nem implicam, por si só, a qualificação do crime. Pode o juiz considerar como homicídio qualificado a conduta do agente que não se acompanhe de qualquer das circunstâncias aí descritas, mas sim de outras, - homicídio qualificado atípico - e pode, por outro lado, deixar de operar tal qualificação apesar da existência clara de uma ou mais dessas circunstâncias - homicídio simples atípico[F. Dias CJ. XII Tomo 4 pág. 51 e Teresa Serra, ob. cit. pág. 126].
Como salientou E. Correia[Actas, parte especial, pág. 21 a 24.] na "Comissão Revisora" as circunstâncias enunciadas no n.º 2 não são elementos de tipo, antes elementos da culpa. Portanto, não são de funcionamento automático. Pode verificar-se qualquer das circunstâncias referidas nas várias alíneas e nem por isso se pode concluir pela especial censurabilidade ou perversidade do agente. Assim também o vem entendendo, pacificamente, a jurisprudência[Desde o início da vigencia do Código Penal, Ac. S.T.J. 11.05.83 BMJ 327º 458 e Ac. S.T.J. de 8.2.84 BMJ 334º 258, Ac. S.T.J. de 5.01.83 BMJ 323º 121, Ac. S.T.J. 26.04.89 BMJ 386º 237º, Ac. S.T.J. 5.12.90 BMJ 402º 195; entendimento que subsiste Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 4.7.96 CJ S IV, Tomo 2, 222]. Outros, como Fernanda Palma[Direito Penal Parte Especial, 1983, pág. 43] e Teresa Serra[Ob. cit. pág. 65 e segts], sustentam que nem todas as circunstâncias referidas no n.º 2 do art.º 132º são elementos da culpa. As circunstâncias previstas nas al. a), b) e f) [agora parcialmente al. g)] implicam um maior grau de ilicitude. Contudo não deixam de acrescentar que a verificação de qualquer das circunstâncias previstas no n.º 2 do art.º 132º, seja ela relativa ao facto ou ao agente, significando um aumento da ilicitude ou da culpa, só constitui um indício da existência de especial censurabilidade ou perversidade do agente que fundamenta a moldura penal agravada do homicídio qualificado.
Assim, preenchido que está o tipo fundamental do art.º 131º do CPenal, impõe-se-nos, desde já, a tarefa de averiguar se a apurada conduta configura especial censurabilidade ou perversidade - típica ou atípica - do agente.

Como salienta M. Fernanda Palma,[Ob. cit. pág. 43] a análise das circunstâncias do n.º 2 do art.º 132º do Código Penal revela que elas são basicamente de duas espécies:
a) Circunstâncias relativas ao modo de ser objectivo da acção;
b) Circunstâncias relativas à implicação pessoal do agente na acção.
Na conclusão também F. Dias[Comentário Conimbricense do Código Penal pág. 29] e Teresa Serra[Ob. cit. pág. 62].
Nas primeiras se filia a da al. g) do n.º 2 do art.º. 132 CPenal. Aí é notória a existência do maior desvalor da acção objectivamente considerada para a ordem jurídica. Há nessa circunstância uma maior ilicitude, diz Teresa Serra[Ob. cit. pág. 95.].
Nas segundas cabem as al. d) e i).
A al. d) tipifica o motivo fútil, que a decisão recorrida considerou verificado.
A noção de motivo inclui a referência à vontade de quem age, e caracteriza o fim que leva a própria vontade a agir. O motivo é o precedente de carácter psicológico causal da acção[Giuseppe Bettiol Direito Penal, Parte Geral, III, 1973, pág. 131].
Motivo fútil, não é a ausência de motivo. Fútil é o motivo da actuação que, avaliado segundo as concepções éticas e morais ancoradas na comunidade, deve ser considerado pesadamente repugnante, baixo ou gratuito, de tal modo que o facto surge como produto de um profundo desprezo pelo valor da vida humana[F Dias Comentário..., I pág. 32.]. Motivo fútil, traduz o egoísmo intolerante, prepotente, mesquinho, que vai até à insensibilidade moral. Ora se o motivo é o antecedente psíquico da acção, teremos um motivo fútil sempre que seja possível estabelecer uma desproporção manifesta, entre a gravidade do facto e a intensidade ou a natureza do motivo que impeliu o agente à acção.
No caso o que impeliu o arguido à acção foi, como certeiramente se assinala na decisão recorrida, não aceitar a separação: o arguido matou a esposa apenas porque não aceitou que a mesma deixasse de viver com ele.
A atitude do arguido, face à concepção actual da comunidade perante o divórcio, tão frequente, certamente que repugna, sendo de reputar de fútil. Tanto mais que ele já se tinha divorciado uma vez, e sobre ele impendia um especial dever jurídico de respeito pela sua mulher, art.º 1672º do Código Civil.

Na al. i) acolhe-se como exemplo padrão qualificador a premeditação, cujo conceito o legislador não fornece. Cumpre dizer, por relevante, que esta circunstância, em alguns ordenamentos penais é por excelência, quando não unicamente, a determinante de um homicídio agravado, até ao ponto de só ela justificar, como sucedia no nosso direito penal do século XIX, Código Penal de 1852, a aplicação da pena de morte[F. Dias, Comentário... loc. cit. aqui seguido de perto e Maia Gonçalves, CP Anotado comentário ao art.º 132º.].
A controvérsia pregressa acerca desta qualificativa e dos seus diversos sentidos e formulações é grande[Eduardo Correia Direito Criminal II pág. 295 e Maia Gonçalves ob. e loc. cit.].
Para uns a agravante da premeditação tem subjacente o frigido pacatoque ânimo, da doutrina Italiana [Carmignani], frieza de ânimo significa sangue frio, insensibilidade e indiferença[Ac da RC de 15.2.84 CJ IX T1 pág. 71.].
Para outros a maquinação do crime de forma a facilitar a sua execução e a dificultar a defesa da vítima, a ponderação dos prós e dos contras da doutrina Alemã [ Katzenstein, Gerland e Liszt], indiciando uma acrescida perigosidade; para outros ainda a baixeza dos motivos que conduziram ao homicídio; para outros finalmente a firmeza, tenacidade e irrevogabilidade da resolução indiciada pela sua persistência durante um apreciável lapso de tempo e, como tal, reveladora de uma forte intensidade da vontade criminosa[Eduardo Correia Direito Criminal II pág.295 e segts Beleza dos Santos RLJ 67º 306 e F. Dias, Comentário..., pág.39.].
Como refere F. Dias[F. Dias, Comentário... pág. 39.] o CP de 1982 reuniu sob o conceito de premeditação alguns dos entendimentos que diferentes ordenamentos lhe conferiam: a frieza de ânimo, a reflexão sobre os meios empregados e o protelamento da intenção de matar por mais de 24 horas. Esta concepção continuou a ser sufragada pela Reforma de 1995, que apenas eliminou o conceito englobante de premeditação, mas deixou subsistir os seus possíveis entendimentos, e ficou intocada na Reforma de 1998.
Volvendo a nossa atenção ao caso dos autos conclui-se, sem sombra de qualquer dúvida, que o arguido produziu a morte da sua vítima, agindo com reflexão sobre os meios empregados, tendo persistido na intenção de matar por mais de 24 horas.
A matéria de facto, que novamente convocamos, não deixa margem para qualquer dúvida:
O arguido quis matar a C............, pelo menos desde que foi citado na acção de divórcio, e apenas porque não aceitou que a mesma deixasse de viver com ele.
No caso há pertinácia da resolução, a mora habens. A decisão do arguido, pode ser taxada de fria e reflectida no que ao modus operandi e meio empregue respeita. E foi de tal modo e a tal ponto ostensiva, que a própria vítima, dias antes de evento letal, reflectindo sobre as perseguições que o arguido lhe vinha movendo, convenceu-se de que iria morrer, que o arguido a ia matar.
Como refere o Supremo Tribunal de Justiça[Acórdãos de 15.4.98, BMJ 476º, 238, e de 30.9.99 SASTJ n.º 33, 94 (citado Por Maia Gonçalves, Código Penal 15º ed. pág. 470).] - e é o caso dos autos, com a minuciosa preparação do evento fatal - a frieza de ânimo está relacionada com o processo de formação da vontade de praticar o crime e é entendida como a conduta que traduz reflexão e sangue frio na preparação do ilícito, insensibilidade indiferença e persistência na sua execução.
Verifica-se, assim, a predita circunstância qualificativa.

Quanto à al. g) as coisas apresentam matiz diverso.
O evento letal foi possibilitado pelo uso de uma arma, não registada nem manifestada. O A. não era possuidor de licença para o seu uso e porte.
Esta factualidade preenche a previsão típica do art. 6º da Lei n.º 22/97. Este ilícito penal, como de resto o art.º 275º do CPenal, é indiscutivelmente um tipo de ilícito de perigo comum. Efectivamente o art.º 275º está inserido sistematicamente no cap. III "Dos crimes de perigo comum" do Título IV da Parte Especial do Código Penal. Ora o art.º 6º da Lei n.º 22/97, tem um conteúdo normativo simétrico ao art.º 275º. Portanto está "formalmente" verificada indiciada [Indizwirkung] a previsão da circunstância da al. g) do art.º 132º n.º 2º do Código Penal.
Não vemos porém como, no caso, o meio utilizado, a arma, que como vimos configura crime de perigo comum, só por si, possa revelar especial censurabilidade ou perversidade.
É sabido que grande parte dos homicídios são levados a cabo com o uso de armas de fogo. Dir-se-á, aí está a justificação para a agravação. Mas atenção a precedente afirmação/consideração tem a ver com "prevenção geral" e a qualificação do art.º 132º só opera com elementos relativos "culpa".
O modo de ser objectivo da acção não permite uma censurabilidade "especial". O A. utilizou a sua arma como podia ter utilizado outro meio ou objecto. A acção delituosa não se mostra especialmente censurável por causa da utilização desse meio.
Por outro lado a conduta do agente, agora no seu enfoque subjectivo e no que ao uso da arma respeita, não atinge a perversidade que é pressuposta no art.º 132º. Como recentemente escreveu F. Dias[Comentário Conimbricence do Código Penal, Tomo I pág. 37], exigindo a lei, para a qualificação, que os meios utilizados sejam particularmente perigosos, há que concluir duas coisas: ser desde logo necessário que o meio revele uma perigosidade muito superior à normal nos meios usados para matar (não cabem seguramente no exemplo padrão e na sua estrutura valorativa revólveres, pistolas, facas ou vulgares instrumentos contundentes); em segundo lugar, ser indispensável determinar, com particular exigência e severidade, se da natureza do meio utilizado - e não de quaisquer outras circunstâncias acompanhantes - resulta já uma especial censurabilidade ou perversidade do agente. Sob pena, de outra forma - aqui, sim! -, de se poder subverter por inteiro o método de qualificação legal e de se incorrer no erro político - criminal grosseiro de arvorar o homicídio qualificado em forma - regra do homicídio doloso. Já quanto aos crimes de perigo comum adianta o mesmo autor que a ligação entre este exemplo padrão e o tipo de culpa agravado deve fazer-se através da falta de escrúpulo em princípio revelada pela utilização de um meio adequado à criação ou produção de um perigo comum. Mas avisa: a utilização de qualquer destes meios não determina por si o tipo de culpa agravado[F. Dias, Comentário... pág. 38.].
Daí que, e, em conclusão, apesar de a utilização da arma proibida denunciar quer um maior grau de ilicitude quer uma culpa mais intensa, não é de molde a que, se tenha por preenchida a previsão do art.º 132 n.º 1 e 2 al. g). Em situação idêntica assim também decidiu o Supremo Tribunal de Justiça[Ac. S.T.J. 5.01.83 BMJ 323º 181 e segts, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15.12.99 SASTJ, 36, 60 (citado Por Maia Gonçalves, Código Penal 15º ed. pág. 470 ).]

Acrescente-se, porém, que caso se entendesse, que a circunstância de o homicídio ter sido perpetrado com arma de fogo o qualificava, perderia autonomia a infracção de detenção de arma proibida do art.º 6º da Lei n.º22/97, quer do simétrico art.º 275º CPenal, ficando consumida pela punição do homicídio qualificado[Ac do STJ de 27.2.91 BMJ 404º 233].

Em conclusão a factualidade apurada configura a "especial censurabilidade ou perversidade do agente" típica al. d) e i) do n.º 2 do art.º 132º do Código Penal.

A atenuação especial coloca-se no domínio da determinação da moldura penal abstracta e nada tem a ver com a pena em concreto. A determinação da moldura penal abstracta é um prius relativamente à pena em concreto. Daí que se imponha abordar agora esta questão.
Não contesta o recorrente a sua condenação pela prática do crime de homicídio, entende é que não se verifica o tipo de ilícito qualificado, devendo antes ter sido condenado numa pena especialmente atenuada.

O instituto da atenuação especial da pena tem na sua génese uma ideia pragmática de que a capacidade de previsão do legislador é limitada e não raro a vida fornece exemplos que o legislador não previu. Ora nesses casos, quando a responsabilidade do agente seja menor que o pressuposta pelo legislador na formulação do tipo legal, imperativos de justiça e proporcionalidade, impõem a recurso a uma válvula de segurança do sistema. A atenuação especial da pena só pode ter lugar em casos extraordinários ou excepcionais, isto é, quando é de concluir que a adequação à culpa e às necessidades de prevenção geral e especial não é possível dentro de uma moldura geral abstracta escolhida para o tipo respective[F Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, 1993, pág. 304 e Ac. do STJ de 10.11.99 citado por Maia Gonçalves CPAnotado,15ª ed. pág. 256].

No caso cabe liminarmente referir que a pretensão do recorrente é desajustada. A conclusão pela existência de circunstâncias que demonstrem a especial censurabiliadde do homicídio exclui a possibilidade de aplicação de pena especialmente atenuada, com base no art.º 72º do Código Penal. A especial censurabilidade ou perversidade, fundamento da qualificação do homicídio no art.º 132º do Código Penal, tem como base, conforme as diversas circunstâncias, um maior grau de [ilicitude] e/ou culpa, [da conduta] do agente. Por sua vez a atenuação especial é possibilitada - para além dos casos expressamente previstos na lei, o que não é o nosso caso - pela existência de circunstâncias anteriores contemporâneas ou posteriores ao crime que diminuam por forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade de pena.
Assim, tendo-se concluído pela especial censurabilidade, e essa apreciação é uma apreciação global, não compartimentada, da conduta do agente, está excluída a possibilidade de aplicação de pena especialmente atenuada, sob pena de flagrante contradição. Há uma incompatibiliadde entre os dois institutos, a aplicação de um deles afasta a aplicação do outro[Neste registo o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 2.5.96 (citado Por Maia Gonçalves, Código Penal 15º ed. pág. 469).].
Mas, mesmo que assim não fosse, as alegadas circunstâncias não relevam com o efeito que o recorrente lhes atribui. Alega o recorrente o estado de depressão, a entrega voluntária imediata e seguida à ocorrência e a confissão.
Quanto à depressão apenas se apurou que depois dos factos entrou em estado depressivo. Não se provou que antes da prática dos factos o arguido começou a perder o discernimento e a sentir-se confuso devido a comportamentos contraditórios da C......... nem que o referido estado depressivo terá diminuído a capacidade de avaliar e de querer do arguido. Fruto da situação que não conseguia perceber e que tentava por todas os meios entender.
De tal forma que deixou de conseguir controlar os seus sentimentos, o seu querer a sua capacidade de avaliar.
Esta ocorrência, estado depressivo subsequente aos factos, não possibilita uma atenuação especial, como é evidente.
A circunstância de se ter entregue, não resulta da factualidade assente.
Quando à confissão, parcial como resulta de fls. 745, era uma inevitabilidade, pouco relevo merece.
Não revestem estas circunstâncias relevo para funcionarem como atenuantes especiais. Foram consideradas apenas, e bem, em sede de determinação da medida concreta da pena.

Da escolha da pena.
O crime de detenção de arma, do art. 6º, da Lei n.º 98/2001, é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias.
Critério basilar na escolha da pena quando, em alternativa, há que escolher entre pena não detentiva e pena privativa de liberdade é a preferência que se deve dar à pena não privativa de liberdade, sempre que esta realize de forma adequada e suficiente as finalidades de punição cfr. art.º 70º.
A circunstância de, no teor literal da lei, a pena de multa vir mencionada em segundo lugar, depois da pena de prisão, não deve, em nada, prejudicar o reconhecimento de que a pena de multa é em todos estes casos a pena em abstracto legalmente preferida[Eduardo Correia RLJ 123º 102, F. Dias Direito Penal-2 1998 pág. 128-9, R. Cordeiro, Jornadas CEJ, 239, Ac RE 6.11.84 BMJ 343º396, Anabela Rodrigues em anotação ao Ac do STJ de 21.03.90 na RPCC I , pág. 248 e segts, Ac do TConstitucional de 15.6.89 BMJ 388º 176]

O ilícito em apreço não pode considerar-se como de grande criminalidade; situa-se uns patamares abaixo, na pequena criminalidade. E afirmamos isto com base na gravidade da reacção penal. Ora, como é sabido, foi propósito do legislador, já em 1982, dar expressão prática à convicção da superioridade político criminal da pena de multa face à de prisão no tratamento da pequena e média criminalidade, cfr. ponto 10 do Preambulo do CP.
Propósito reforçado com a Reforma como resulta da parte especial do CP e foi destacado na Comissão de Revisão, Actas e Projecto, MJ 1993 pág. 78, por F. Dias.
Esse postulado de política criminal foi vincado de seguida na lei de autorização legislativa Lei nº35/94 de 15 de Setembro, art.º 2ºal) c) " ...com o objectivo de valorizar a pena de multa(...)na punição da pequena e média-baixa criminalidade."
No preâmbulo do DL nº48/95 de 15 de Março, que aprovou a Reforma, escreveu-se no ponto 4.º "Impõe-se, pois, devolver à pena de multa a efectividade que lhe cabe"; "a pena de prisão deve ser reservada para situações de maior gravidade e que mais alarme social provocam, designadamente a criminalidade violenta e ou organizada...".
No caso a decisão recorrida optou por uma pena de prisão. E optou bem, pois, no caso concreto, a pena de multa não realiza de forma adequada e suficiente as finalidades de punição.

Da medida da pena:
Toda a pena serve finalidades exclusivas de prevenção, geral e especial. A pena concreta é limitada, no seu máximo inultrapassável, pela medida da culpa. Dentro deste limite máximo ela é determinada no interior de uma moldura de prevenção geral de integração, cujo limite superior é oferecido pelo ponto óptimo de tutela dos bens jurídicos e cujo limite inferior é constituído pelas exigências mínimas de defesa do ordenamento jurídico. Dentro desta moldura de prevenção geral de integração a medida da pena é encontrada em função de exigências de prevenção especial, em regra positiva ou de socialização, excepcionalmente negativa ou de intimidação ou segurança individuais[F. Dias, Temas básicos da doutrina penal, 2001, pág. 110-111, art.º 18º n.º 2 da CRP, art.º 40 n.º 1 e 2 do CPenal, Anabela Rodrigues, Sistema Punitivo Português, Sub Judice, 1996 Caderno 11, pág. 11 e segts, O Modelo de prevenção na determinação da medida concreta da pena, RPCC, 12, n.º 2, 2002, pág. 147 e segts., Ac. Rel. Coimbra, 9.11.83 CJ VIII t. 5. pág. 73 e E. Correia R.L.J. 118, pág. 355 e C. J. VII t.1 pág. 7 e Ac. STJ de 21.06.89 BMJ 388º 254 e Ac. do STJ de 10.4.96. CJ S IV T 2 pág. 168.]

A culpa jurídico penal é o ficar aquém das exigências de conformação da personalidade com aquela que a ordem jurídica supõe e o ter que responder por essa diferença, quando ela, como no caso, fundamenta um facto ilícito[F. Dias, Liberdade Culpa e Direito Penal, pág. 208]. Atender-se-à às exigências de prevenção geral e especial.
No caso considerando o alto grau de ilicitude, indiciado pelos bens jurídicos em causa, o grau de dolo - dolo directo - e o modo de execução, tendo ainda em atenção que quanto aos maus tratos, eles foram tantos e tal ordem que a vítima chegou a consciencializar que o arguido ia acabar com a vida dela, que a ia matar, tendo presente uma ideia de necessidade e proporcionalidade[E. Correia, Direito Penal III (1), 1980, pág. 8 e F. Dias Direito Penal –2 pág. 255.], consideramos as penas parcelares e única aplicadas ajustadas.

Decisão:
Na improcedência do recurso mantém-se a decisão recorrida.
Custas pelo recorrente fixando-se a taxa de justiça em 10 UC.

Porto, 12 de Maio de 04.
António Gama Ferreira Ramos
Rui Manuel de Brito Torres Vouga
Joaquim Rodrigues Dias Cabral
Arlindo Manuel Teixeira Pinto