Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2614/08.1TDPRT-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MELO LIMA
Descritores: ESCUSA
OFENDIDO
ADVOGADO
Nº do Documento: RP201011172614/08.1TDPRT-A.P1
Data do Acordão: 11/17/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: INCIDENTE DE ESCUSA.
Decisão: DEFERIDO.
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: É motivo de escusa o facto do ofendido ser, noutros processos, mandatário judicial (advogado) da juíza.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Nº 2614/08.1TDPRT-A.P1 [ESCUSA]

Relator: Melo Lima

Processo
Acordam, em conferência, na 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:
Relatório.
1. B………., Juíza de Direito a exercer funções na .ª Vara Criminal do Círculo do Porto, suscitou INCIDENTE DE ESCUSA, com os seguintes fundamentos, em síntese:
i. No dia de ontem foram-me apresentados para despacho os autos de Processo Comum que seguem termos sob o n° 2614/08.1TDPRT por terem sido distribuídos para julgamento à subsecção desta Vara a que presido, em que figura como arguido C……….;
ii. Nesses autos foi lavrado despacho de apensação aos mesmos aqueles outros que seguiam termos sob o n° 314/07.9SMPRT em que figura, igualmente, como arguido C………., sendo-lhe imputada a pratica, em autoria material, na forma continuada e em concurso real, de um crime de difamação agravada, de um crime de injuria agravada e de um crime de ameaça, p. e p. pelos arts. 180°, n° 1, 182°, 181°, n° 1 e 184° com referencia ao art. 132°, n° 2, ai j) do Código Penal na versão em vigor à data da pratica dos factos e p. e p. pelos arts. 180°, n° 1, 181°, n° 1, 182° e 184° com referencia ao art. 132°, n° 2, ai. l) e 153°, n° 1, todos do Código Penal;
iii. Como ofendido nestes últimos autos de processo aludidos consta o Exmo. Sr. Dr. D………., que exerce a profissão de Advogado;
iv. Acontece que o Exmo. Sr. Dr. D………. é, desde há cerca de seis anos, meu representante judicial e forense; sendo que presentemente quem a representa junto do Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto em dois processos judiciais pendentes;
v. Não obstante tal nunca me foram relatados quaisquer dos factos constantes do libelo acusatório;
vi. Tal circunstancialismo, que não é susceptível de pôr em crise os princípios de imparcialidade, justiça e busca da verdade material por que sempre norteei o meu exercício na judicatura, pode, todavia, pôr em crise a confiança na boa administração da justiça, dada a referida relação de mandato forense e judicial;
vii. Assim sendo, e por pugnar, em todos os momentos, pela transparência e pela eficácia da boa administração da justiça e pela confiança dos cidadãos naquele que, em meu entender, é o ultimo reduto do Estado de Direito Democrático e do Direito e Justiça, mas ainda porque em nenhum momento quereria ver posta em crise a confiança de nenhum interveniente processual, nem mesmo de qualquer cidadão, no modo como exerço as funções em que estou investida, venho rogar a V. Exa. que, nos termos do disposto no artigo 43º do CPP, escuse a ora subscritora de intervir nos presentes autos nesta fase de julgamento.

2. Colhidos os Vistos, cumpre conhecer e decidir.

II Fundamentação

1. São factos processualmente adquiridos relevantes para o conhecimento do presente incidente: os factos acima descritos em I sob os itens I a iv (inclusive)

2. Conhecendo

Nos termos do artigo 43º nº1 da lei penal adjectiva (CPP):
«1. A intervenção de um juiz no processo pode ser recusada quando correr o risco de ser considerada suspeita, por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade.
2. Pode constituir fundamento de recusa, nos termos do nº1, a intervenção do juiz noutro processo ou em fases anteriores do mesmo processo fora dos casos do artigo 40º.
3……………………………………………………………………………………………………………………………
4. O juiz não pode declarar-se voluntariamente suspeito, mas pode pedir ao tribunal competente que o escuse de intervir quando se verificarem as condições dos nºs 1 e 2.»

2.1 O direito a um tribunal independente e imparcial faz parte do núcleo de direitos fundamentais reconhecidos a todos os indivíduos:
“Qualquer pessoa tem direito a que a sua causa seja examinada, equitativa e publicamente, num prazo razoável, por um tribunal independente e imparcial.” [1]
Deste modo, num Estado de direito, a solução jurídica dos conflitos há-de fazer-se sempre com observância de regras de independência e de imparcialidade, qual exigência do próprio direito de acesso aos tribunais, consagrado na Lei Fundamental.
A independência do tribunal há-de ser assim já uma garantia do próprio Estado de direito democrático, já elemento definidor da essência do próprio tribunal, enquanto órgão de soberania que administra a justiça.
Independência/Imparcialidade comummente analisadas numa dupla vertente: a perspectiva subjectiva - dizer também: a “independência vocacional”,[2] a ‘atitude interna’ super partes, a ‘postura’ “fora e acima das paixões e interesses que no pleito se agitam” [3] - e a perspectiva objectiva - na ideia de que o desempenho do cargo de juiz seja rodeado de cautelas legais destinadas a garantir a sua imparcialidade e a assegurar a confiança geral na objectividade da jurisdição.
Se relativamente àquela pode valer a presunção da sua existência até prova em contrário [4], já relativamente a esta uma tal presunção seria manifestamente insuficiente. [5]
No ensinamento do mestre de Coimbra, Figueiredo Dias:
“[...] tanto a doutrina [...] como a jurisprudência [....] europeias têm tomado em igual linha de consideração a dimensão objectiva e subjectiva da imparcialidade; sendo certo que, se alguma preponderância é dada a alguma destas dimensões, ela se refere à dimensão objectiva; não só porque a demonstração da imparcialidade ou da parcialidade subjectiva (íntima) do juiz é de difícil alcance e demonstração, como porque, acima de tudo, se pretende colocar os tribunais, na sua actividade julgadora, a salvo de suspeições ou desconfianças que desmereçam a sua função jurídico-social. Na frase, ainda aqui lapidar, de Cavaleiro de Ferreira, ‘não importa, aliás, que na realidade das coisas o juiz permaneça imparcial, interessa, sobretudo, considerar se em relação com o processo poderá ser reputado imparcial”. [6]
Nesta perspectiva objectiva assumem particular relevância as cautelas legais: ao nível primário da Lei Fundamental, pelas garantias da “inamovibilidade” e da “irresponsabilidade”[7]; depois, ao nível da definição normativo-adjectiva, pela definição das situações de suspeição e/ou de impedimento.
Num e outro caso, com vista a garantir a imparcialidade real do julgamento e a assegurar a confiança geral na objectividade da jurisdição.
Mas ainda aqui não é de somenos importância o papel do juiz.
Se ao quadro legal dos impedimentos e suspeições subjaz o princípio geral de direito de que “é tarefa da lei velar por que, em qualquer tribunal e relativamente a todos os participantes processuais reine uma atmosfera de pura objectividade e de incondicional juridicidade”, não é menos certo que “pertence a cada juiz evitar, a todo o preço quaisquer circunstâncias que possam perturbar aquela atmosfera, não [...] - enquanto tais circunstâncias possam fazê-lo perder a imparcialidade, mas logo enquanto possa criar nos outros a convicção de que ele a perdeu [...]”[8]
Conjugadamente.
Importa que o juiz que julga o faça com independência.
Importa, também, que o seu julgamento surja aos olhos das partes quanto do público como um julgamento objectivo e imparcial.
Num e outro caso, a confiança da comunidade nas decisões dos seus magistrados é essencial para que os tribunais ao administrar a justiça actuem “em nome do povo”.
Decorrente daquele princípio da independência e da imparcialidade do tribunal, aqueloutro princípio da igualdade de armas .
A significar que o processo de um Estado de direito tem de ser um processo equitativo e leal [due process of law, fair process], no qual cada um das partes há-de poder expor as suas razões de facto e de direito perante o tribunal antes que este tome a sua decisão .
Com um conteúdo preceptivo que, em formulação positiva, obriga a que o tribunal promova (construa) a igualdade entre as partes e que, em formulação negativa, proíbe que o juiz crie situações de desigualdade substancial entre as partes.

Dizer, então.
Se é certo que a consagração do princípio do juiz natural consubstancia uma salvaguarda dos direitos do arguido alicerçada na Lei Fundamental (Artigo 32º da Constituição da República) também as garantias da preservação da imparcialidade e isenção do juiz – assim na vertente subjectiva (ou postura interna) quanto na vertente objectiva (por referência à percepção externa) encontram suporte bastante na mesma Constituição (Artigos 203º e 206º) e podem traduzir-se sob a forma, nomeadamente, de impedimentos, recusas, escusas, com consagração expressa na lei penal adjectiva.
Num e outro casos “a necessidade (e a conveniência) de preservar o mais possível a dignidade profissional do magistrado visado e, igualmente, por lógica decorrência e inevitável acréscimo, a imagem da justiça em geral, no significado que a envolve e deve revesti-la”. [9]

2.2 Sob apreciação, a escusa solicitada pela Exma. Juíza B………..
Incidente que, pelo que vem de ser exposto, tem por objectivo: confirmar a existência de motivo sério e grave adequado a gerar desconfiança sobre a imparcialidade do juiz.
A questão a decidir é, então: consente a factualidade provada a formulação de um juízo de ocorrência de motivo grave e sério adequado a gerar a desconfiança sobre a imparcialidade da Exma. Juíza Requerente?
Aceita-se, sem esforço, que no âmbito da escusa deve valer um critério de aferição mais lato, visto estar posta em causa desde logo a atitude d’alma do próprio juiz.

Como bem se decidiu no Acórdão do STJ de 10 de Out. de 2002:
«Importa usar de uma certa flexibilidade (ou de um menor rigorismo) sempre que se pondere sobre a razoabilidade de um pedido de escusa, uma vez que o juízo a respeito dessa razoabilidade – ao invés do que sucede na recusa – implica, forçosa e fundamentalmente, com as inerentes dificuldades e delicadeza, a valorização de uma atitude subjectiva assumida pelo magistrado escusante, atitude esta cuja razão de ser é de custosa sindicância por parte de quem tenha de fazer aquela ponderação e emitir aquele juízo».
«Assim sendo, torna-se óbvio que os elementos objectivos (probatórios da sentida necessidade do que se pede) hajam apenas de conter ou possuir um mínimo de relevância, o mínimo que baste à concessão da escusa» [10]

In casu.
Sem necessidade de particulares lucubrações exegético-normativas aquele exigível mínimo de relevância ocorre na situação sub iudicio, que o mesmo é dizer, os elementos objectivos em causa têm força bastante de modo a justificar-se o deferimento da pretensão de escusa formulada.
O punctum saliens tem exactamente a ver com a relação Mandante/Mandatário de que os factos adquiridos dão conta e da relação de especial confiança que entre um e outro se deve estabelecer, a ponto de originar, como de todos sabido, relativamente ao Mandatário, o dever do sigilo profissional.
Esta relação de confiança necessariamente pressuposta numa qualquer relação cliente /advogado é suficiente para gerar desconfiança sobre a imparcialidade do juiz caso o mesmo venha a presidir a um julgamento em que o seu advogado é parte interessada.
Deixou-se referido que se é importante que o juiz seja isento, independente e imparcial, não importa menos que o seu julgamento surja aos olhos das partes quanto do público como um julgamento objectivo e imparcial.
A presidência de um julgamento em processo em que a pessoa ofendida é advogado do juiz, inquinaria inexoravelmente a imagem da justiça como a iuris dictio que pelo mesmo juiz viesse a ser proferida.

Destarte, tanto basta para que se conclua pelo deferimento da escusa solicitada.

Decidindo.
São termos em que:
Na prevalência dos fundamentos invocados, defere-se o requerimento de escusa deduzido pela Exma. Juíza B……….
Sem custas.

Porto, 17 de Novembro de 2010
Joaquim Maria Melo de Sousa Lima
Élia Costa de Mendonça São Pedro

________________________
[1] Artigo 6º nº 1 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, aprovada pela Lei nº 65/78 de 13/10.
Vide, ainda: Artigos 32º e 206º da Constituição da República Portuguesa; Artigo 11º da Declaração Universal dos Direitos do Homem; Artigos 14º e 15º do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos.
[2] “A independência dos juízes é acima de tudo, um dever – um dever ético-social. A ‘independência vocacional’, ou seja, a decisão de cada juiz de ‘ao dizer o direito’, o fazer sempre esforçando-se por se manter alheio - e acima – das influências exteriores, é, assim, o seu punctum saliens. A independência, nesta perspectiva, é sobretudo uma responsabilidade que terá a ‘dimensão’ ou a ‘densidade’ da fortaleza de ânimo do carácter e da personalidade moral de cada juiz .”Ac. Nº 227/97 Tribunal Constitucional , in DR – II Série , nº146 , 7383
[3] A. Reis - C.P.C. Anotado 1º, 388
[4] “O Tribunal europeu dos Direitos do Homem (TEDH) tem entendido que a imparcialidade se presume até prova em contrário; e que, sendo assim, a imparcialidade objectiva releva essencialmente de considerações formais e o elevado grau de generalização e abstracção na formulação de conceito apenas pode ser testado numa base rigorosamente casuística, na análise in concreto das funções e dos actos processuais do juiz.” Manuel Simas Santos e Manuel Leal-Henriques, Código de Processo Penal Anotado – Vol. I, 3ª Ed. 2008, pág.304 [Sublinhados do Relator]
[5] “Necessita-se de uma imparcialidade objectiva que dissipe todas as dúvidas ou reservas, porquanto mesmo as aparências podem ter importância de acordo com o adágio do direito inglês justice must not only be done; it must also be seen to be done.
Deve ser recusado todo o juiz de quem se possa temer uma falta de imparcialidade, para preservar a confiança que,, numa sociedade democrática, os tribunais devem oferecer aos cidadãos” Ireneu Barreto, “Notas para um Processo Equitativo...” in Documentação e Direito Comparado, nºs 49/50 , pp 114 e 115.
No mesmo sentido:
“...quando a imparcialidade do juiz ou a confiança do público nessa imparcialidade é justificadamente posta em causa, o juiz não está em condições de ‘administrar justiça’. Nesse caso, não deve poder intervir no processo, antes deve ser pela lei impedido de funcionar –deve, numa palavra, poder ser declarado iudex inhabilis.” In Acórdãos do Tribunal Constitucional, 11º Vol. Pág. 951.
[6] Citado no já referido Ac. nº 227/97 do T.Constitucional.
[7] Vide Artigos 5º e 6º da Lei 21/85 . Ainda, artigo 4º da Lei 3/99 de 13/1 .
[8] Figueiredo Dias - Direito Processual Penal I, 1974, Pág. 320
[9] Ac.STJ de 99.05.27 Processo nº323/99
[10] Processo Nº1237/02.5