Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1064/11.7TBSJM.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: FERNANDO SAMÕES
Descritores: ACÇÃO DE REIVINDICAÇÃO
CASA DA MORADA DE FAMÍLIA
RECUSA DE ENTREGA
Nº do Documento: RP201212191064/11.7TBSJM.P1
Data do Acordão: 12/19/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: REVOGADA.
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO.
Área Temática: .
Sumário: Numa acção de reivindicação, é legítima a recusa de entrega da casa de morada de família por parte do ex-cônjuge a quem a mesma foi atribuída por acordo celebrado em divórcio por mútuo consentimento, devidamente homologado, por constituir um verdadeiro direito de habitação e aquele acordo produzir efeitos relativamente ao terceiro que recebeu o prédio reivindicado do outro ex-cônjuge, por dação em cumprimento.
Reclamações:
Decisão Texto Integral:
Processo n.º 1064/11.7TBSJM.P1
Relator: Fernando Samões
1.º Adjunto: Dr. Vieira e Cunha
2.º Adjunto: Dr.ª Maria Eiró
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Acordam no Tribunal da Relação do Porto - 2.ª Secção:

I. Relatório

B…. e mulher C….. e D….., residentes na Rua …, n.º …, S. João da Madeira, instauraram, em 4/11/2011, no Tribunal Judicial daquela Comarca, onde foi depois distribuída ao 2.º Juízo, acção declarativa com processo sumário contra E…., residente no n.º … da mesma Rua, pedindo que a ré seja condenada a reconhecer o seu direito de propriedade sobre o imóvel identificado no artigo 1.º da petição inicial, que a detenção que dele vem fazendo é destituída de qualquer fundamento válido e a entregá-lo, livre e devoluto, aos autores.
Para tanto, alegaram, em resumo, que:
Adquiriram, por dação em cumprimento outorgada e registada em 20/11/2009, o direito de propriedade sobre o prédio urbano, constituído por casa destinada a habitação, de rés-do-chão, primeiro andar e logradouro, sito na Rua …, n.º .., freguesia e concelho de S. João da Madeira, inscrito na matriz predial urbana dessa freguesia sob o artigo 3.597 e descrito na Conservatória do Registo Predial de S. João da Madeira sob o n.º 4866.
Esse prédio é habitado pela ré, que nele ficou a residir após se ter divorciado de F…., de quem os autores o receberam como contrapartida do empréstimo que lhe efectuaram, no montante de 40.000,00 €.
Apesar de saber daquela aquisição e não obstante os pedidos de entrega, a ré recusa-se a entregá-lo aos autores.

A ré contestou por impugnação e excepção, alegando, em síntese, que, no âmbito da acção de divórcio por mútuo consentimento, acordou com o referido Carlos Alberto, seu ex-marido, que o 1.º andar da casa do prédio cuja entrega lhe é pedida ficaria destinado à sua habitação, na pendência daquele processo e após o divórcio; tal casa constituiu a casa de morada de família e foi por ambos construída no prédio que foi adquirido pelo F…., por sucessão, tendo-lhe sido adjudicado na partilha das heranças abertas por óbito de seus pais, acabando por ser relacionado naquele processo de divórcio como bem comum, pelo que entende ser titular do direito real de habitação sobre esse 1.º andar. Concluiu pela improcedência da acção quanto à peticionada entrega do 1.º andar da casa do prédio identificado no art.º 1.º da petição inicial.

Os autores responderam sustentando a impossibilidade de aquisição do invocado direito de habitação, por, na perspectiva da ré, não se tratar de coisa alheia, concluindo pela improcedência da excepção invocada.

Em despacho pré-saneador, de 2/2/2012, face às “incongruências” e “insuficiências” detectadas e ali referenciadas, foi a ré convidada a concretizar o teor dos artigos 4.º a 6.º da contestação e a indicar em qual dos títulos referidos no art.º 1440.º do Código Civil, para o qual remete o art.º 1485.º do mesmo diploma, funda o seu direito real de habitação, devendo, no caso de aceder ao convite, relativamente àquela concretização: tomar posição expressa sobre a natureza patrimonial da casa objecto dos autos, mormente se constituía, na vigência do seu casamento com F…., um bem próprio seu, um bem próprio do seu ex-cônjuge ou, finalmente, um bem comum de ambos; alegar os factos pertinentes ao esclarecimento da natureza patrimonial do bem, designadamente a data dos óbitos referidos no artigo 5.º da contestação, data do início e conclusão da construção da casa mencionada no artigo 6.º, assim como especificar os recursos económicos utilizados nessa construção; na eventualidade de considerar que se trata de um bem comum, esclarecer se já ocorreu a partilha do património conjugal na sequência da dissolução do seu casamento com F…. e, em caso afirmativo, indicar a quem foi atribuído o imóvel.

Acedendo ao convite, a ré esclareceu que casou com F….. sob o regime da comunhão de adquiridos e que, na constância do casamento, construíram, com o produto do trabalho e com dinheiro de ambos, a casa do prédio identificado no artigo 1.º da petição inicial; aquando do divórcio, o referido prédio integrava os acervos não partilhados das heranças abertas por óbito dos pais do F…., tendo então ficado ajustado que o 1.º andar do mesmo ficaria destinado à satisfação das suas necessidades de habitação; por escritura pública de 21/1/1992, foram partilhados os bens deixados pelos pais do F…., tendo sido adjudicado a este o referido prédio, o qual é, necessariamente, um bem próprio do mesmo, por força do disposto no art.º 1722.º, n.º 1, al. c), do Código Civil. Com essa adjudicação, tornou-se válido o anterior acto de disposição de F…. do direito de habitação a favor da ré, vertido no acordo sobre o destino da casa de morada de família, homologado por sentença que dissolveu o casamento entre ambos. Conclui, como na contestação, pela improcedência da acção quanto à entrega do 1.º andar do prédio reivindicado.

Na fase do saneamento, foi fixado o valor da acção em 48.000,00 € e, em consequência, foi mandado seguir a forma de processo ordinário; foi dispensada a audiência preliminar e proferido despacho saneador que, conhecendo do mérito da causa, julgou a acção totalmente procedente e, em conformidade, condenou a ré:
“A) a reconhecer que os autores são proprietários do prédio urbano constituído por casa destinada a habitação de rés-do-chão, primeiro andar e logradouro, sito na Rua …, n.º .., freguesia e concelho de S. João da Madeira, inscrito na matriz predial urbana da aludida freguesia sob o art. 3597 e descrito na Conservatória do Registo Predial de S. João da Madeira sob o n.º 4866;
B) a entregar aos autores o prédio identificado em A, livre de pessoas e bens, no prazo máximo de cinco meses a contar do trânsito em julgado da presente sentença”.

Inconformada com o assim decidido, a ré interpôs recurso de apelação para este Tribunal e apresentou a sua alegação com as seguintes conclusões:
“1 - Num processo de divórcio por mútuo consentimento, o acordo sobre o destino da casa de morada de família é um pressuposto essencial para a procedência do pedido – artº 1775º do C.C.
2 - Esse acordo está interligado com o direito a alimentos, que a habitação integra (artº 2003º do C.C.), vertido em acordo também exigível e sujeito a homologação, na vertente do crédito que com ele se transfere de um cônjuge para o outro.
3 - Para além dessa interligação, o acordo sobre o destino da casa de morada de família é uma emanação da protecção legal da casa de morada de família, que, como tal, é objecto de sindicância pelo Conservador ou pelo Juiz, a tal ponto que pode ser recusada a sua homologação se não estiverem acautelados os interesses dos cônjuges e dos filhos (o mesmo sucedendo com o interligado acordo sobre a prestação de alimentos ao cônjuge que deles careça) – artºs 1776º e 1778-Aº do C.C. – sendo esse acordo, depois de homologado, apenas alterável pelo Tribunal nos termos do nº 2 do artº 1793º do C.C..
4 - Assim e analisando o caso dos autos, seja o acordo sobre o destino da casa de morada de família um negócio jurídico (direito real de habitação, como defendemos, ou comodato, como se defende na douta sentença recorrida) ou não tenha essa natureza, a verdade é que, independentemente dessa caracterização, trata-se de um acordo judicialmente homologado numa acção de divórcio, com trânsito em julgado, e, como tal, a sua alteração ou mesmo a sua extinção só pode verificar-se, como antes se referiu, por decisão judicial, nos termos do nº 3 do artº 1793º do C.C..
5 - A sentença que homologou o acordo sobre o destino da casa de morada de família em causa, por constituir, por decisão judicial transitada em julgado, um ónus judicialmente imposto sobre o imóvel em causa (bem próprio do cônjuge marido), impõe-se também aos AA. e confere à R. um título bastante para habitação do prédio identificado no artº 1º da p.i. – v. Ac. TRP de 23/1/1991, in www.dgsi.pt e Ac. TRP de 23/1/1992, in C.J. ano XVII, tomo 1, pág. 230.
6 - Entender de outro modo seria permitir a extinção fácil (habilidosa) do direito judicialmente conferido, numa acção de divórcio, a um dos cônjuges de habitar a casa de morada de família e do interligado direito a alimentos, violando-se a protecção legal da casa de morada de família e do direito a alimentos e a eficácia do caso julgado formado com a sentença de homologação desses acordos; Seria o caso dos autos, como se infere do vertido na al. H) dos “factos provados”, reforçado pelo grau de parentesco dos AA. com o F….. mencionado na p.i….
7 - Do exposto resulta a improcedência do pedido de restituição do 1º andar do prédio identificado no artº 1º da p.i., por força do estatuído no nº 2 do artº 1311º do C.C..
Termos em que, e nos do muito douto suprimento de Vªs Exªs, no provimento do presente recurso, deve ser parcialmente revogada a sentença recorrida, absolvendo-se os RR. do pedido de restituição do 1º andar da casa de habitação do prédio identificado no artº 1º da p.i.”.

Os autores contra-alegaram pugnando pela confirmação da sentença recorrida.

Foi dado cumprimento ao disposto no art.º 707.º, n.º 2, 2.ª parte, do CPC.

Tudo visto, cumpre apreciar e decidir o mérito do presente recurso.
Sabido que o seu objecto e âmbito estão delimitados pelas conclusões da recorrente (cfr. art.ºs 684.º, n.º 3 e 685.º-A, n.ºs 1 e 2, ambos do CPC, este na redacção introduzida pelo DL n.º 303/2007, de 24/8, aqui aplicável, visto que a propositura da acção é posterior a 1/1/2008 – cfr. art.º 12.º do mesmo diploma) e não podendo este Tribunal de 2.ª instância conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser em situações excepcionais que aqui não relevam, a única questão que importa dirimir consiste em saber se é legítima a recusa de entrega, por parte da ré aos autores, do 1.º andar do prédio por estes reivindicado.

II. Fundamentação

1. De facto

No saneador, com valor de sentença, recorrido foram dados como provados os seguintes factos:
A) O prédio urbano constituído por casa destinada a habitação de rés-do-chão, primeiro andar e logradouro, sito na Rua …., n.º .., freguesia e concelho de S. João da Madeira, inscrito na matriz predial urbana da aludida freguesia sob o art. 3597 e descrito na Conservatória do Registo Predial de S. João da Madeira sob o n.º 4866, encontra-se inscrito no registo a favor dos autores, pela Ap. 1101 de 20.11.2009, às 11h10m.
B) Por acordo outorgado na Conservatória do Registo Predial de São João da Madeira, no balcão Casa Pronta, em 20.11.2009, designado de “Título de Dação em Cumprimento”, F…. confessou-se devedor dos autores da quantia de quarenta mil euros e declarou dar aos mesmos o prédio identificado em A, a que atribuiu valor igual ao da dívida, o que estes declararam aceitar.
C) Quando do referido em B, o prédio identificado em A encontrava-se inscrito no registo a favor de F…., pela Ap. 8 de 22.02.2006, por aquisição por partilha extrajudicial na sucessão por óbito de seus pais, G….. e mulher.
D) G…. faleceu em 05.12.1987 e H…. faleceu em 11.07.1988.
E) No dia 25.12.1973 a ré casou com F…., sem convenção antenupcial, tendo o casamento sido dissolvido por sentença proferida em 21.09.1989, transitada em julgado em 03.10.1989, no processo de divórcio por mútuo consentimento que correu termos na 2ª Secção do 1º Juízo do Tribunal de São João da Madeira, com o nº 2878/89.
F) No processo identificado em E, no acordo relativo à casa de morada de família, homologado pela sentença proferida, ficou estabelecido que: «os requerentes acordam que a parte da habitação (1º andar) da casa de morada de família é destinada à habitação da requerente mulher e que o rés-do-chão é destinado à indústria explorada pelo requerente marido.».
G) No processo identificado em E, as partes relacionaram o prédio identificado em A como bem comum.
H) A ré reside, desde então, no 1.º andar da casa identificada em A, o que os autores sabem.
I) Por escritura pública outorgada em 21.01.1992, no Cartório Notarial de São João da Madeira, designada de “Partilha”, foi adjudicado a F…. um terreno com a área de 120 m2, sito no Lugar …., no qual se encontrava construído o prédio urbano inscrito na matriz sob o artigo 3597, identificado em A.
J) Os autores solicitaram à ré, por várias vezes, a entrega do prédio identificado em A, o que esta se recusa a fazer.

2. De direito

Os factos acabados de transcrever não foram impugnados em sede de recurso, tendo até sido aceites pelas partes, não havendo fundamento para os alterar nos termos do art.º 712.º do CPC, pelo que se consideram definitivamente assentes.
Resta, pois, aplicar-lhes o direito, tendo em vista a resolução da supramencionada questão, a qual se resume a saber, como se referiu, se a ré pode recusar a entrega do 1.º andar da casa que integra o prédio reivindicado pelos autores.
É pacífico que estamos perante uma acção de reivindicação.
O art.º 1311.º do Código Civil dispõe:
“1. O proprietário pode exigir judicialmente de qualquer possuidor ou detentor da coisa o reconhecimento do seu direito de propriedade e a consequente restituição do que lhe pertence.
2. Havendo reconhecimento do direito de propriedade, a restituição só pode ser recusada nos casos previstos na lei.”
Não vem questionado o direito de propriedade dos autores sobre o prédio por eles reivindicado, melhor identificado na alínea A) dos factos provados, reconhecido na decisão recorrida, com a qual se conformou a ré, nessa parte, já que, no recurso, apenas pôs em causa a obrigação de entrega do 1.º andar do mesmo prédio, ali decretada. Aliás, jamais questionou tal direito, apesar de ter alegado na contestação que a casa foi construída na constância do matrimónio com o F…., com o produto do trabalho e dinheiro de ambos, aceitando, ainda assim, tratar-se de um bem próprio deste e que o mesmo foi validamente transmitido para os autores, mediante a dação em cumprimento invocada, que também não pôs em causa.
A ré recusa entregar aquele 1.º andar com fundamento no direito de habitação de que entende ser titular por lhe ter sido atribuído no acordo que celebrou com o seu ex-marido, quanto ao destino da casa de morada de família, no âmbito do processo de divórcio por mútuo consentimento entre ambos, conforme excepcionou na contestação por si apresentada e reitera nas alegações de recurso.
O art.º 1484.º do Código Civil preceitua:
“1. O direito de uso consiste na faculdade de se servir de certa coisa alheia e haver os respectivos frutos, na medida das necessidades, quer do titular, quer da sua família.
2. Quando esse direito se refere a casa de morada, chama-se direito de habitação.”
O art.º 1485.º do mesmo Código estatui:
“Os direitos de uso e de habitação constituem-se e extinguem-se pelos mesmos modos que o usufruto, sem prejuízo do disposto na alínea a) do artigo 1293.º, e são igualmente regulados pelo seu título constitutivo; na falta ou insuficiência deste, observar-se-ão as disposições seguintes”.
E nos termos do art.º 1490.º do mesmo diploma “são aplicadas aos direitos de uso e de habitação as disposições que regulam o usufruto, quando conformes à natureza daqueles direitos”.
Confrontando os direitos de uso e de habitação com o usufruto, Pires de Lima e Antunes Varela escreveram sugestivamente, citando Pugliese: “O usufruto é, quanto ao gozo da coisa, e a despeito da sua raiz pessoal …«o espelho fiel da propriedade; o seu titular, desde que respeite o destino económico da coisa pode comportar-se exactamente como um proprietário».
O direito de uso, mais adstrito à pessoa do titular, absorve apenas algumas das faculdades de gozo (as ligadas à utilização imediata da coisa ou ao consumo directo dos frutos) compreendidas na propriedade plena.
«O uso, conclui o mesmo tratadista, não é apenas um minus em relação ao usufruto, mas também um aliud» (in Código Civil Anotado, volume III, 2.ª edição, pág. 546).
Menezes Cordeiro afirmou: “O uso e a habitação consubstanciam direitos reais de gozo muito semelhantes ao usufruto, com uma diferença essencial: a delimitação negativa dos conteúdos respectivos, para além de obedecer aos diversos factores que configuram o usufruto, deriva, também, das necessidades do titular do direito e da sua família. Razão porque, na sequência de Venezian, se tem chamado a estes direitos «usufrutos limitados» ou «diminutivos do usufruto» (in Direitos Reais, vol. III, lições dadas ao 2.º ano, no ano lectivo de 1977/78, edição da AAFDL de 1978).
Oliveira Ascensão também escreveu: “Analogamente ao usufruto, o uso e a habitação dão o gozo temporário duma coisa; mas tomam o aspecto de usufrutos limitados, visto que esse gozo apenas é concedido na medida das necessidades pessoais” (in Direitos Reais, edição Almedina de 1978, pág. 459). E, na pág. 457 da mesma obra, definiu o direito de uso como “o direito real de gozo de uma coisa, na medida das necessidades do titular e da sua família”, acrescentando que o direito de habitação é um direito real que para a lei não constitui sequer um tipo diverso do direito de uso, por haver uma mera variação do objecto, já que, de harmonia com o n.º 2 do citado art.º 1484.º, o direito de habitação é simplesmente direito de uso quando referido a casas de morada.
Para Pires de Lima e Antunes Varela, o n.º 2 do preceito acabado de citar “refere-se a um tipo especial de uso, que é o direito de habitação. Este tem de típico o objecto (casas de morada) e a modalidade do gozo que faculta ao titular (a habitação). O usuário do prédio pode habitá-lo, instalar nele um estabelecimento, etc.. O titular do direito de habitação apenas pode usar o prédio para morar nele, e na estrita medida das suas necessidades pessoais ou familiares” (cfr. obra citada, pág. 547).
A afectação destes direitos à função de satisfazer necessidades pessoais foi afirmada por Mota Pinto a propósito da sua natureza (cfr. Direitos Reais, 1975, pág. 420).
Podemos, assim, dizer, tal como o fez Carvalho Fernandes[1] e o acórdão desta Relação de 23/3/2006, publicado na CJ, ano XXXI, tomo II, págs. 171 a 174, que os direitos de uso e de habitação são direitos reais limitados, em que os poderes de uso ou de fruição são reconhecidos ao titular segundo um critério finalista e não em termos absolutos, já que a medida de cada um daqueles direitos é a das necessidades do seu titular e respectiva família e está limitado pelo específico fim a que se destina (cfr., no mesmo sentido, o acórdão desta Relação de 15/2/2012, processo n.º 162/09.1TBVCD-J.P1, em www.dgsi.pt).
Por outro lado, o art.º 1775.º, n.º 2, do Código Civil, no segmento que agora interessa considerar, o respeitante à casa de morada de família, na redacção dada pelo DL n.º 496/77, de 25/11, vigente à data em que foi requerido e decretado o divórcio por mútuo consentimento acima aludido, impunha como requisito, entre outros, o acordo dos cônjuges sobre o destino da casa de morada da família.
E o art.º 1419.º, n.º 1, al. f), do CPC, na redacção dada pelo DL n.º 513-X/79, de 27/11, que o harmonizou com aquele preceito, passou a exigir que o requerimento para o divórcio por mútuo consentimento fosse instruído, além do mais que aqui não interessa, com o acordo sobre o destino da casa de morada da família.
Este acordo continua a ser exigido por este último normativo e pelo art.º 1775.º, n.º 1, al. d), do Código Civil, na redacção dada pela Lei n.º 61/2008, de 31/10.
O acordo assim formulado e obtido era homologado na sentença que decretasse o divórcio por mútuo consentimento, nos termos do art.º 1778.º do Código Civil, na redacção então vigente.
Segundo o entendimento do STJ, perfilhado no acórdão de 12/3/1998, publicado na CJ (STJ), ano VI, tomo I, págs. 129 a 131, que aqui seguimos, o acordo a que se referem os citados art.ºs 1775.º, n.º 2, 1778.º e 1419.º, n.º 1, al. f), respeita à utilização da casa que até aí constituía a morada da família e não ao direito de propriedade sobre a mesma.
Assim, e pondo de parte as situações em que tal morada está instalada em prédio arrendado, por não ser manifestamente o caso dos autos, importa considerar que, encontrando-se a casa de morada da família instalada em prédio próprio de um dos cônjuges, podem ambos acordar em que o outro não a quer para a sua morada ou constituir arrendamento a seu favor; e, encontrando-se instalada em prédio comum, podem os cônjuges acordar na constituição do arrendamento a favor de qualquer deles. É o que resulta, aliás, do preceituado no art.º 1793.º do Código Civil ao dispor que:
“1. Pode o tribunal dar de arrendamento a qualquer dos cônjuges, a seu pedido, a casa de morada da família, quer esta seja comum quer própria do outro, considerando, nomeadamente, as necessidades de cada um dos cônjuges e o interesse dos filhos do casal.
2. O arrendamento previsto no número anterior fica sujeito às regras do arrendamento para habitação, mas o tribunal pode definir as condições do contrato, ouvidos os cônjuges, e fazer caducar o arrendamento, a requerimento do senhorio, quando circunstâncias supervenientes o justifiquem.”
E acrescenta o n.º 3, aditado pela Lei n.º 61/2008, já citada, que “o regime fixado, quer por homologação do acordo dos cônjuges, quer por decisão do tribunal, pode ser alterado nos termos gerais da jurisdição voluntária”.[2]
Aqueles preceitos não respeitam ao direito de propriedade do prédio em que se encontra instalada a casa de morada da família. Constituindo o prédio um bem comum do casal, a respectiva partilha terá que ter lugar, após o trânsito em julgado da sentença que decretar o divórcio, mediante contrato, a formalizar por escritura notarial, ou mediante inventário.
Deste modo, é a esta luz que deve ser feita a interpretação da sentença que homologou o acordo estabelecido sobre a casa de morada de família.
No caso dos autos, mostra-se provado que os cônjuges, no âmbito do processo de divórcio por mútuo consentimento, estabeleceram o seguinte acordo: «os requerentes acordam que a parte da habitação (1º andar) da casa de morada de família é destinada à habitação da requerente mulher e que o rés-do-chão é destinado à indústria explorada pelo requerente marido.».
Pondo de lado a segunda parte do acordo relativa ao rés-do-chão, por ser irrelevante para a questão aqui em discussão, atentemos um pouco na primeira parte do acordo celebrado quanto à casa de morada de família.
Dele resulta, desde logo, que os cônjuges acordaram que o 1.º andar da casa de morada de família era destinado à habitação da requerente mulher, o que significa que continuaria a habitá-lo, sem necessidade de se constituir arrendamento nos termos do citado art.º 1793.º.
O facto de o prédio onde aquela casa está inserida ter sido relacionado, no referido processo de divórcio, como bem comum é para aqui irrelevante, pela simples razão de que não está em causa a partilha do mesmo, a qual nunca teve lugar e só poderia ocorrer necessariamente após o trânsito em julgado da sentença que decretou o divórcio, mediante as formas legalmente previstas, por contrato ou inventário.
Aliás, a ser comum, seria só a casa que terá sido por ambos construída na constância do casamento, já que o terreno onde foi implantada e a parte restante do prédio é um bem próprio do marido, por ter sido herdado dos seus pais e terem sido casados no regime da comunhão de adquiridos [cfr. art.ºs 1717.º e 1722, n.º 1, al. b), ambos do Código Civil], sendo que qualquer eventual direito sobre aquela sempre teria de ser invocado pelo interessado e fundado na alegação dos pertinentes factos.
Acontece, porém, que a demandada jamais invocou (pelo menos, nesta acção que é a única que interessa) qualquer direito de propriedade sobre o prédio reivindicado, tendo confessado que tal prédio constituiu um bem próprio do seu ex-marido e foi por ele validamente transmitido para os autores, mediante a dação em cumprimento que estes alegaram como causa de pedir da acção, com base na qual lhes foi reconhecido o direito de propriedade sobre o mesmo prédio.
Temos, assim, por adquirido para este processo que o prédio reivindicado foi um bem próprio do ex-marido da aqui ré, precisamente aquele que com ela acordou o destino da casa de morada de família nele instalada.
É unicamente este acordo e o direito que dele decorre que a ré excepciona para obstar à entrega.
A atribuição da casa de morada de família à, aqui, ré, nos termos supra referidos, sem qualquer contra-prestação e sem qualquer limitação temporal, constitui um verdadeiro direito de habitação, semelhante ao que o legislador de 1977 instituiu a favor do cônjuge sobrevivo nos art.ºs 2103.º-A a 2103.º-C do Código Civil, definido e regulado nos artigos 1484.º a 1490.º do mesmo diploma (cfr., neste sentido, o acórdão da RL de 18/2/1993, publicado na CJ, ano XVIII, tomo I, pág. 150)[3]ada constando do título que o constituiu – o mencionado acordo homologado pela sentença proferida na acção de divórcio – sobre o tempo de duração desse direito, nem sobre as circunstâncias extintivas, as causas da sua extinção são as previstas nas várias alíneas do n.º 1 do art.º 1476.º, aplicável por força do disposto no art.º 1485.º, ambos do Código Civil.
Ali, não está prevista a situação verificada nos autos.
O facto de o acordo ter sido celebrado no âmbito da acção de divórcio por mútuo consentimento, mantido nas duas conferências então legalmente exigidas e homologado na sentença que o decretou, não impede que o mesmo subsista para além daquela sentença, pois, nos termos do n.º 2 do art.º 1419.º do CPC, “caso outra coisa não resulte dos documentos apresentados, entende-se que os acordos se destinam tanto ao período da pendência do processo como ao período posterior”.
É manifesto que dos documentos apresentados nada resulta em contrário.
Logo, o dito acordo perdurou depois da aludida sentença.
Na dação em cumprimento, para além de requisitos evidentes, tais como a existência prévia de uma obrigação e a verificação do condicionalismo que deve nortear o cumprimento, é elemento fundamental o acordo do credor (cfr. art.º 837.º do Código Civil).
O credor a quem seja feita dação em cumprimento goza das faculdades que ao comprador assistem por compra de coisas com vícios jurídicos ou materiais (art.ºs 905.º a 912.º do Código Civil), podendo optar pela prestação primitiva e pela reparação dos danos sofridos (art.º 838.º do mesmo Código).
Têm sido adoptadas várias orientações relativamente à natureza da dação em cumprimento, podendo a mesma ser entendida como:
- uma modificação ulterior da relação obrigacional;
- uma novação, por substituição da antiga obrigação por nova;
- uma compra e venda ou uma troca (cfr. Menezes Cordeiro, in Tratado de Direito Civil Português, II Direito das Obrigações, Tomo IV, 2010, pág. 348 e doutrina aí citada).
Partindo do princípio que a dação em pagamento pode ter vários efeitos, incluindo a transmissão da propriedade, e que toda a sua economia está especialmente orientada para a extinção das obrigações, a doutrina nacional considera a dação em cumprimento como “… um acordo modificativo da prestação e um acto executivo”, mas em que “estes dois elementos aparecem essencialmente interligados”[4]“… um acto solutório da obrigação, assente sobre uma troca ou permuta convencional de prestações”[5]orém, Menezes Cordeiro limita-se a afirmar que “… a dação em cumprimento é, simplesmente, uma forma convencional de extinção das obrigações, através da realização de prestação diversa da prevista. Não chega a haver alteração nem da obrigação nem da prestação, isto é, da conduta devida, porque, na dação, tudo isto é tragado na voragem dos seus efeitos extintivos” (cfr. obra citada, pág. 349).
Qualquer que seja a posição adoptada acerca da natureza da dação em cumprimento, para aqui irrelevante, a verdade é que, através dela, o F…., ex-marido da ré, transmitiu para os autores o direito de propriedade sobre o prédio por estes reivindicado que logo inscreveram no registo a seu favor.
O acordo celebrado entre a ré e o seu ex-marido sobre a casa de morada de família, devidamente homologado por sentença transitada em julgado, não pode deixar de produzir efeitos quanto aos autores. É que estes sucederam ao referido F…. na titularidade do direito de propriedade sobre o prédio que reivindicam, estando assim sujeitos ao encargo que sobre ele impendia ao tempo da transmissão[6].
Os autores tinham conhecimento da situação, pois sabem que a ré reside no 1.º andar da casa que integra o prédio que reivindicam, desde a data em que se casou com o F….., de quem o receberam e de quem são sobrinhos, conforme alegaram na petição inicial, e praticamente vizinhos como também dali resulta, e que tal casa constituiu a casa de morada de família...
Ainda que se sentissem lesados, sempre poderiam gozar das faculdades que assistem ao comprador pela compra de coisas com vícios jurídicos ou materiais, se fosse esse o caso.
Mas nunca impedir o exercício do direito de habitação, legitimamente adquirido e mantido pela ré!
Este direito, apesar de limitado e pessoalíssimo, ainda não se extinguiu, pelo que se mantém.
Quer isto dizer que é legítima a recusa de entrega do 1.º andar do prédio reivindicado.
Procede, por conseguinte, a apelação, pelo que não pode subsistir a sentença recorrida, apesar de douta.

Sumariando nos termos do n.º 7 do art.º 713.º do CPC:
Numa acção de reivindicação, é legítima a recusa de entrega da casa de morada de família por parte do ex-cônjuge a quem a mesma foi atribuída por acordo celebrado em divórcio por mútuo consentimento, devidamente homologado, por constituir um verdadeiro direito de habitação e aquele acordo produzir efeitos relativamente ao terceiro que recebeu o prédio reivindicado do outro ex-cônjuge, por dação em cumprimento.

III. Decisão

Pelo exposto decide-se julgar a apelação procedente e revogar a sentença recorrida, na parte impugnada, ou seja, no que se refere à entrega do 1.º andar do prédio identificado em A, com a consequente absolvição da ré do correspondente pedido.
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Custas em ambas as instâncias pelos autores/apelados, visto que ré/apelante só contestou a obrigação de entrega e, quanto a esta, obteve êxito neste recurso.
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Porto, 19 de Dezembro de 2012
Fernando Augusto Samões
José Manuel Cabrita Vieira e Cunha
Maria das Dores Eiró de Araújo
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[1] cfr. Lições de Direitos Reais, 2.ª ed., pág. 394, também citado na decisão recorrida, mas fazendo referência à 5.ª edição, págs. 422 e segs.
[2] Com este aditamento, o legislador resolveu a questão controversa, até então debatida na jurisprudência, sobre a possibilidade ou não de alteração da decisão transitada, proferida em acção de divórcio por mútuo consentimento, homologadora do acordo sobre a atribuição da casa de morada da família com fundamento em circunstâncias supervenientes – cfr., v.g. no sentido afirmativo os acórdãos da RL de 27/5/2003, CJ, ano XXVIII, tomo III, pág. 91 e da RE de 2/12/99, CJ, ano XXIV, tomo V, pág. 275; e, no sentido negativo, os acórdãos do STJ de 2/10/2003, CJ (STJ), ano XI, tomo III, pág. 74, da RL de 18/2/93, CJ, ano XVIII, tomo I, pág. 149, da RP de 2/5/95, CJ, ano XX, tomo III, pág. 197, de 17/2/2000, CJ, ano XXV, tomo I, pág. 218 e de 5/5/2005, CJ, ano XXX, tomo III, pág. 160.
[3] Ainda no mesmo sentido, o acórdão da RC de 9/11/1999, proferido no processo n.º 2259/99, como parece depreender-se do respectivo sumário publicado em www.dgsi.pt com o seguinte teor: “O direito conferido pelo proprietário de uma casa à ré, para esta nela viver e usar, traduz-se no direito de habitação”.
[4] Cfr. Pessoa Jorge, Lições de Direito das Obrigações, 1, 1966/67, pág. 443.
[5] Antunes Varela, Das Obrigações em geral, 2.º volume, 7.ª ed., pág.184.
[6] Neste sentido, embora reportando-se a uma situação algo diversa, na medida em que estava em causa um arrendamento da casa de morada de família sobre uma habitação pertença do casal e que, por efeito do inventário subsequente à acção de divórcio, ficou a pertencer ao outro, que depois a vendeu a terceiro, o acórdão desta Relação de 23/1/1992, publicado na CJ, ano XVII, tomo I, págs. 230-232, entendeu que a sentença que o reconheceu impõe-se ao terceiro que, entretanto, a adquiriu, o que não deixa de ter alguma semelhança com a situação apreciada nestes autos.