Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1275/19.7T8PVZ.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: RODRIGUES PIRES
Descritores: SITUAÇÃO DE PANDEMIA SARS-COV-2
NORMAS EXCEPCIONAIS
SUSPENSÃO DOS PROCEDIMENTOS ESPECIAIS DE DESPEJO
APLICAÇÃO DA LEI NO TEMPO
Nº do Documento: RP202102091275/19.7T8PVZ.P1
Data do Acordão: 02/09/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - As disposições da Lei nº 1-A/2020, de 19.3., nas suas sucessivas redacções, tratam-se de normas excecionais destinadas a vigorar apenas enquanto se mantiver a situação de pandemia provocada pelo coronavírus SARS-CoV-2.
II - As normas excecionais, sempre que se reconheça que haja necessidade de estender as palavras da lei, são suscetíveis de interpretação extensiva.
III - No art. 6º-A, nº 6, al. c) da Lei nº 1-A/2020, na redação introduzida pela Lei nº 16/2020, de 29.5., prevê-se a suspensão dos procedimentos especiais de despejo nos casos em que o arrendatário por força da decisão judicial final a proferir possa ser colocado em situação de fragilidade por falta de habitação própria ou por outra razão social imperiosa.
IV - O texto deste preceito legal não acompanhou em toda a sua extensão o pensamento do legislador, isto tendo em atenção o quadro de pandemia que grassa por todo o mundo e que o justificou, porque operaria uma importante restrição no tocante à suspensão das ações de despejo, dos procedimentos especiais de despejo e dos processos para entrega de coisa imóvel arrendada, que não seria possível nos casos em que a decisão judicial final já tivesse sido proferida, mesmo que por força dessa decisão o arrendatário fosse colocado em situação de fragilidade por falta de habitação própria ou por outra razão social imperiosa.
V - Deverá assim, face à sua natureza excecional, proceder-se à interpretação extensiva do art. 6º-A, nº 6, al. c) da Lei nº 1-A/2020, de modo a que seja de admitir a suspensão de um procedimento especial de despejo em que a decisão judicial final já fora proferida, desde que reunidos os demais pressupostos previstos nesta disposição legal.
VI - Contudo, entretanto entrou em vigor a Lei nº 4-B/2021, de 2.2. que alterou a redação da Lei nº 1-A/2020, de 19.3., tendo procedido à revogação do seu art. 6º-A e aditando-lhe o art. 6º-B, com produção dos seus efeitos reportada ao dia 22.1.2021.
VII - Sucede que o novo art. 6º-B, no seu nº 11, veio solucionar as dúvidas interpretativas que eram colocadas pela redação do anterior art. 6º-A, nº 6, al. c), dele decorrendo a suspensão dos atos relativos à entrega do locado, no âmbito do procedimento especial de despejo, quando, por requerimento do arrendatário ou do ex-arrendatário e ouvida a contraparte, venha a ser proferida decisão que confirme que esse ato o coloca em situação de fragilidade por falta de habitação própria ou por outra razão social imperiosa.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 1275/19.7 T8PVZ.P1
Comarca do Porto – Juízo Local Cível de Póvoa de Varzim – Juiz 2
Apelação
Recorrente: B…
Recorrida: C…
Relator: Eduardo Rodrigues Pires
Adjuntos: Desembargadores Márcia Portela e Carlos Querido

Acordam na secção cível do Tribunal da Relação do Porto:

RELATÓRIO
B…, residente em …, França, intentou procedimento especial de despejo contra C…, residente na …, …, .., 2º andar direito, …, Póvoa de Varzim, requerendo a desocupação do locado com fundamento na resolução do contrato de arrendamento, por falta de pagamento das rendas devidas.
Notificada, a requerida veio requerer a recusa do despejo por preterição da legalidade ou, caso assim se não entenda, o diferimento da desocupação do locado por período não inferior a 5 meses.
Por decisão datada de 12.9.2019, transitada em julgado, foi diferida a desocupação do locado pelo prazo de 5 meses, cabendo ao Fundo de Socorro Social do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social suportar as rendas correspondentes a tal período.
Por requerimento de 23.9.2020 a requerente peticionou a prossecução dos autos e a desocupação do imóvel.
Sobre este requerimento incidiu o seguinte despacho datado de 28.9.2020:
“(…)
Estipula o artigo 11º, do Decreto-lei nº 1/2013, de 7 de Janeiro, que procede à instalação e à definição das regras do funcionamento do Balcão Nacional do Arrendamento e do procedimento especial de despejo, que nos casos em que o requerido tenha apresentado, nos termos do artigo 15.º-N da Lei n.º 6/2006, de 27 de fevereiro, pedido de diferimento da desocupação de imóvel arrendado para habitação, o BNA só pode converter o requerimento de despejo em título de desocupação do locado após ser notificado da decisão judicial referente ao pedido de diferimento.
Acrescenta o nº 2 que feita a conversão, o BNA disponibiliza a decisão judicial referida no número anterior ao agente de execução, notário ou oficial de justiça designado juntamente com o título de desocupação.
Ora, não tendo sido emitido título de desocupação do locado, atenta a oposição ao procedimento, e tendo esta sido julgada improcedente e diferida a desocupação por 5 meses, devem os autos ser remetidos ao Balcão Nacional de Arrendamento para conversão do requerimento de despejo em título de desocupação do locado, sem prejuízo do disposto no artigo 6º-A, nº 6, alínea c), da Lei nº 1-A/2020, de 19 de Março.
Notifique, incluindo a Requerida, e após remeta os autos a Balcão Nacional de Arrendamento.”
Notificada para se pronunciar a requerida veio alegar o seguinte:
“1.º A requerida recorreu, há vários anos, ao sector de habitação da Câmara Municipal …, em busca de uma habitação social.
2.º Sucede que, tal pedido, de habitação social, ainda não foi atendido.
3.º A requerida só não desocupou o imóvel, porque ainda não foi atendido o referido pedido de habitação social feito junto da Câmara.
4.º A requerida não dispõe imediatamente de outra habitação.
Acresce ainda que,
5.º A requerida tem problemas de saúde, padecendo de omalgias graves. DOC. 3.
6.º O estado de saúde da requerida é muito precário, pois que necessita de tratamentos fisiátricos e medicamentosos que a debilitam.
Ainda sem prescindir, sempre se dirá,
7.º A Lei n.º 1-A/2020, de 19/03, procedeu à aprovação de medidas excecionais e temporárias de resposta à situação epidemiológica provocada pelo coronavírus Sars-Cov-2, agente causador da doença covid-19.
8.º Entre as várias medidas transitórias aprovadas, o referido diploma contemplou, na alínea c), do n.º 6, do artigo 6.º-A, a suspensão das acções de despejo, dos procedimentos especiais de despejo e os processos para entrega de coisa imóvel arrendada, quando o arrendatário, por força da decisão judicial final a proferir, possa ser colocado em situação de fragilidade por falta de habitação própria ou por razão social imperiosa.
9.º O legislador teve, assim, o propósito de evitar que os arrendatários se vejam despejados de casa, com riscos inerentes para a sua saúde e de terceiros, numa altura em que se impõe a preservação das pessoas nas suas habitações.
10.º Ora, conforme supra referido, a requerida não tem outro local onde possa imediatamente passar a residir.
Termos em que se requer a suspensão da entrega do imóvel à requerente, nos termos do disposto no artigo 6.º-A, n.º 6, alínea c), da Lei n.º 1-A/2020, de 19/03.”
Juntou documentação.
Notificada para se pronunciar a requerente veio expor o seguinte:
“1. A requerente pediu a desocupação do locado com fundamento na resolução do contrato de arrendamento, por falta de pagamento das rendas.
2. A Requerida não pagou as rendas vencidas a 1.04.2016 até 28.05.2019, como de resto, e apesar de continuar a ocupar o imóvel, não paga nada.
3. Em agosto de 2019, a requerida efetuou um pedido de diferimento de desocupação de imóvel, por um período nunca inferior a 5 meses, o qual por decisão transitada em julgado, proferida em 11-09-2019, foi concedido:
“…e em consequência difiro a desocupação do locado pelo prazo de 5 meses, cabendo Ao Fundo de Socorro Social do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, suportar as rendas correspondestes a tal período.”,
4. Decorrido o lapso temporal de 5 meses, a requerente veio requerer o prosseguimento do processo com vista à desocupação do imóvel,
5. até porque o artigo 15º-O, nº 4, do Novo Regime do Arrendamento Urbano, aprovado pela Lei nº 6/2006, de 27 de Fevereiro, dispõe que o diferimento não pode exceder o prazo de cinco meses a contar da data do trânsito em julgado da decisão que o conceder.
6. Em resposta, a requerida, vem pedir a suspensão da entrega do imóvel, desta feita com sucedâneo no disposto no art. 6ºA, nº 6, alínea c) da Lei 1º-A/2020, 19/03,
7. pedido com o qual desde já a requerente não concorda e não pode concordar!
8. Como fundamento do pedido, a requerida refere mais uma vez que recorreu há vários anos ao sector de habitação da Câmara Municipal …, em busca de habitação social, juntando para tanto os documentos 1 e 2.
9. Ora, o doc. 1, é uma declaração de 20 de novembro de 2012, com aprox. 8 anos, e que não se sabe que destino ou resposta foi dado aquele pedido;
10. sendo certo ainda, que não foi junto aos autos qualquer documento que demonstre ter a requerida ao longo de todos estes anos desenvolvido esforços no sentido de lhe ser concedida qualquer habitação, ou resposta àquele pedido. Por outro lado, o doc. 2, com data de recebimento pela autarquia municipal de 24-09-2020, demonstra efetivamente isto.
11. Ou seja, que apesar de ter efetuado o pedido de diferimento do prazo para entrega do imóvel, com vista a arranjar uma casa alternativa, apenas após a Requerente vir aos autos, e após o prazo de 5 meses concedido, pedir a desocupação do imóvel, é que a requerida se movimentou, e fez novo pedido à Câmara Municipal …. Não parece ser este modo de agir, de alguém que está a agir de boa fé.
12. Mais ainda, o doc. 3, demonstra que a requerida iniciou um tratamento fisiátrico em 04-07-2019 e terminou em 19-09-2019; já nos encontramos em novembro de 2020.
13. Por fim, e não menos importante, inclusive pelo respeito que todos devem ter pelo momento de saúde pública mundial, importa referir que as medidas extraordinárias de apoio às rendas criadas no âmbito da pandemia de covid-19, e que ditam a suspensão dos despejos, das denúncias e das oposições à renovação dos contratos, não se aplicam a despejos em caso de incumprimento de pagamento,
14. Conforme o artigo 8.º, nº 2, da Lei 1-A/2020, de 19/03 que dispõe do regime extraordinário e transitório de proteção dos arrendatários, ao referir que a suspensão depende do regular pagamento das rendas devidas.
15. Destarte, vem a requerente reiterar pela outorga de título que lhe permita exercer os seus regulares direitos, nomeadamente de ver o seu imóvel desocupado, devendo ser, portanto, liminarmente indeferido o pedido de suspensão de entrega de imóvel, por falta de fundamentos ao pedido.”
Foi depois proferida decisão em 2.12.2020 com o seguinte teor:
“(…)
O primeiro diploma a estabelecer “medidas excecionais e temporárias de resposta à situação epidemiológica provocada pelo coronavírus SARS-CoV-2 e da doença COVID-19”, com direta aplicação ao regime do arrendamento urbano, foi a Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março. Entre as diversas medidas excecionais [que] o legislador estabeleceu, em matéria de arrendamento urbano, restrições à extinção do contrato, quer por iniciativa do locador, quer por caducidade, bem como estabeleceu a dilação do cumprimento da obrigação de restituir o imóvel prevista no artigo 1053.º, do Código Civil.
Esta matéria encontra-se regulada no artigo 8.º da Lei 1-A/2020 (com a redacção dada pela Lei 16/2020, de 29 de Maio e 58-A/2020, de 30 de Setembro), sob a epígrafe “Regime extraordinário e transitório de proteção dos arrendatários”, cuja aplicação depende do regular pagamento das rendas. Não se trata, contudo, do regime aplicável aos presentes autos porquanto aqui há muito ocorreu a extinção do contrato por resolução.
Por seu turno, a Lei n.º 16/2020, de 29 de Maio, que alterou e republicou em anexo a Lei n.º 1-A/2020, dispôs sobre os meios processuais destinados à extinção do contrato de arrendamento e à desocupação do local arrendado. Este diploma introduziu o artigo 6.º-A, na Lei n.º 1-A/2020, criando um “regime processual transitório e excecional”, o qual passou a regular especificamente a tramitação das diligências a realizar nos tribunais.
Estipula o artigo 6º-A, nº 6, alínea c), da Lei nº 1-A/2020, de 19 de Março, que ficam suspensos no decurso do período de vigência do regime excecional e transitório, as ações de despejo, os procedimentos especiais de despejo e os processos para entrega de coisa imóvel arrendada, quando o arrendatário, por força da decisão judicial final a proferir, possa ser colocado em situação de fragilidade por falta de habitação própria ou por outra razão social imperiosa.
A referida norma não estabelece uma suspensão total nem automática de todas as diligências a praticar nestes processos, mas apenas das diligências que corresponderem à ressalva formulada na parte final desse preceito, qual seja, “decisão judicial final a proferir” quando o seu sentido decisório possa ter como consequência direta colocar o arrendatário “em situação de fragilidade por falta de habitação própria ou por outra razão social imperiosa”.
No caso dos autos a decisão judicial já foi proferida não podendo, por isso, a sua prolação ser suspensa.
Afigura-se-nos, contudo, que o termo decisão judicial deve, também, abranger as decisões a proferir no âmbito do próprio procedimento de despejo pelo Exmo. Senhor Secretário do Balcão Nacional de Arrendamento, sob pena de a previsão deste procedimento na referida lei ficar esvaziada no seu efeito.
No caso dos autos a conversão do requerimento de despejo em título de desocupação do locado pelo Balcão Nacional de Arrendamento, que se segue à decisão proferida pelo Tribunal, deixaria a Requerida numa situação de fragilidade porquanto tanto quanto resulta dos documentos juntos aos autos a sua posição pessoal e financeira não melhorou e haverá que admitir que a situação epidemiológica, entretanto, verificada não veio facilitar a reversão daquela.
Pelo exposto e nos termos das citadas disposições legais, defiro a requerida suspensão do procedimento de despejo, ao abrigo do artigo 6º-A, nº 6, alínea c), da Lei nº 1-A/2020, de 19 de Março,
Notifique e após trânsito remeta os autos ao Balcão Nacional de Arrendamento.”
Inconformada com o decidido, a requerente B… interpôs recurso de apelação tendo finalizado as suas alegações com as seguintes conclusões:
A. A recorrente intentou em 28 de maio de 2019, Procedimento Especial de Despejo – BNA - contra C…, requerendo a desocupação do locado, com fundamento na resolução do contrato de arrendamento, por falta de pagamento das rendas devidas.
B. A recorrida desde a celebração do contrato de arrendamento, em 1 de junho de 2013, nunca pagou pontualmente a renda (200,00€), sendo que desde 1 de abril de 2016 até 28 de maio de 2019 (momento da proposição do PED), até o presente, a recorrida nunca mais pagou nada.
C. A Recorrida não se opôs ao despejo, e requereu o Diferimento da Desocupação do locado por período não inferior a 5 meses.
D. Por decisão datada de 12 de setembro de 2019 foi diferida a desocupação requerida, por 5 meses.
E. Transitada em julgado a decisão, e decorridos os 5 meses, a decisão judicial para desocupação do imóvel, deve ser tida, como “título” hábil à desocupação do imóvel, esgotando-se desta forma o poder jurisdicional.
F. Os casos de suspensão da desocupação do imóvel, após a obtenção da decisão judicial para desocupação, estão expressamente consagrados na lei.
G. A recorrida não desocupou o imóvel.
H. A recorrente quase 1 ano após a decisão requereu em 23 de setembro de 2020, a prossecução dos autos, com vista à desocupação do imóvel.
I. A recorrida responde pedindo a suspensão do procedimento, desta feita por aplicação conveniente da lei excecional e transitória pelo Covid 19, designadamente do art. 6-A, nº 6 alínea c) da Lei 1A/2020, de 19 de março, alegando não possuir habitação;
J. O MM Juiz a quo, deferiu indevidamente a suspensão há vista ser inaplicável, pelo menos nesta fase, a lei invocada, sendo um pedido em manifesto abuso de direito e até má fé.
K. A MM Juiz a quo, não observou que a Recorrida além de não pagar qualquer renda, há muito deveria ter desocupado imóvel, até porque o prazo de 5 meses fora ultrapassado.
L. Tendo a decisão transitado em julgado, pelo menos desde janeiro de 2020 que a recorrida teria de ter desocupado o imóvel. Muito antes, portanto, da implementação das medidas excecionais e temporárias de resposta à situação epidemiológica pelo coronavírus SRS-COV-2 e da doença COVID-19.
M. O MM Juiz a quo, ao motivar e fundamentar a sua decisão, no paragrafo 9º, referiu e bem, que a norma do artigo 8º não tinha aplicação in casu, na medida em que há muito terá ocorrido a extinção do contrato por resolução.
N. O MM juiz a quo ao considerar que era de se aplicar a Lei 16/2020 de 29 de maio, no seu art. 6- A, nº 6, alínea c): “As ações de despejo, os procedimentos especiais de despejo e os processos para entrega de coisa imóvel arrendada, quando o arrendatário, por força da decisão judicial final a proferir, possa ser colocado em situação de fragilidade por falta de habitação própria ou por outra razão social imperiosa;” fez aplicação errada da lei.
O. A norma diz claramente, decisão judicial final a proferir. No caso a decisão judicial final já havia sido proferida nesta fase processual.
P. Não obstante, pela Lei 58-A/2020, os prazos do art. 8 terem sido suspensos até 31 de dezembro de 2020, em todo o caso, o nº 2 do referido normativo também que a suspensão depende do regular pagamento da renda devida nesse mês, salvo se os arrendatários estiverem abrangidos pelo regime previsto no artigo 8.º da Lei n.º 4-C/2020, de 6 de abril. O que não é o caso!
Q. A Recorrente apenas pediu que os autos fossem remetidos ao BNA, para que o Sr. agente de execução com a sentença pudesse tomar as providências cabíveis, nomeadamente, tomar posse do locado, ou, no máximo, nos termos do art. 15 L, do NRAU, requeresse autorização judicial para entrada imediata no domicílio.
R. Não havia decisão judicial a proferir que colocasse a recorrida em situação de fragilidade por falta de habitação, posto que essa decisão já havia sido tomada, mostrando-se inaplicável a norma do art. 6º, nº6, alínea c) da Lei nº 1-A, de 19 de março.
S. Proferida a sentença fica logo esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa (art. 613.º, n.º 1, CPC), podendo apenas exercer no processo o seu poder jurisdicional para resolver as questões e incidentes que surjam posteriormente e não exerçam influência na sentença ou despacho que emitiu.
T. A suspensão da desocupação do locado, ainda que por aplicação de norma excecional e transitória, mas que, em verdade, não tem aplicação ao caso, porquanto não há decisão judicial final a proferir, demonstra que a decisão recorrida deve ser tida como inexistente.
U. O fundamento invocado na decisão recorrida, de que, o termo “decisão judicial final” expresso no artigo 6, devia abranger as decisões a proferir no âmbito do próprio procedimento especial de despejo pelo Sr. Secretário do Balcão Nacional de Arrendamento, não é de aceitar, pois que são âmbitos e esferas distintas. A decisão a proferir pelo Sr. Secretário sempre seria no âmbito extrajudicial.
V. O Procedimento Especial de Despejo é uma inovação instituída pela Lei nº 31/2012, de 14 de agosto, que introduziu alterações no NRAU, e se caracteriza por ser de natureza extrajudicial, com carácter híbrido (declarativo e executivo) tramitado junto do BNA, com o objetivo de permitir que a desocupação do imóvel seja realizada de forma célere e eficaz, no caso de incumprimento contratual por parte do arrendatário.
W. Todos os direitos da arrendatária/recorrida foram respeitados, designadamente os direitos fundamentais, como o direito à habitação, direito de defesa ou do acesso à justiça!
X. Mas, a decisão que ora se recorre, e interpretação conjunta das normas aplicadas, como sendo o art. 6ª, nº 6 da Lei 1-A, viola direitos fundamentais da recorrente.
Y. O MM Juiz a quo após o transito de julgado, e do decurso do prazo de 5 meses concedido para a desocupação do imóvel, deveria ter remetido os autos para “conversão do requerimento de despejo em título de desocupação do imóvel,” nos termos e para os efeitos do art. 15º E, da Lei 6/2006 de 27 de fevereiro.
Z. O artigo 15º-O, nº 4, do NRAU preceitua que que o diferimento não pode exceder o prazo de cinco meses a contar da data do trânsito em julgado da decisão que o conceder.
AA. O contrato de arrendamento foi resolvido, a recorrida não pagava até à resolução do contrato rendas; e não paga nenhum valor desde a resolução até o presente, já foi ultrapassado há muito o prazo de 5 meses; mantendo-se a recorrida no imóvel, portanto sem qualquer fundamento ou título que a legitime.
BB. Não é a recorrente que cabe o dever constitucional de prover a habitação dos cidadãos, o mesmo será dizer, que se vê coartada do seu direito de usufruir como bem entender do seu imóvel.
CC. A recorrida fundamenta o seu pedido e alegada situação de fragilidade por falta de habitação própria, sendo certo que a mesma sabe pelo menos desde 2016, data em que deixou de pagar rendas, que precisava providenciar outra habitação.
DD. A recorrida mesmo correndo termos o presente processo, só após o requerimento da recorrente para que a decisão judicial de desocupação fosse remetida ao BNA, com vista a tomar posse do locado, foi a recorrida tentar pedir ao sector de habitação da Câmara Municipal …, habitação social, conforme documento que a própria juntou com data de 23 de setembro de 2020.
EE. A recorrente não está a gozar de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição das coisas que lhe pertencem.
FF. A decisão recorrida viola o art. 20 da CRP, pois [não] estão a ser respeitados os direitos da recorrente a uma decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo, de obter tutela efetiva.
GG. A recorrida desde a decisão que lhe diferiu por 5 meses o prazo para a desocupação do imóvel que ocupa, não desenvolveu qualquer esforço para o desocupar.
HH. O PED é um procedimento com carácter urgente, tanto que não há lugar à sua suspensão durante as férias judiciais nem a qualquer dilação, assumindo os atos a praticar pelo juiz carácter urgente, evidenciando ainda mais, o erro do MM Juiz a quo, quando da interpretação extensiva realizada ao normativo da lei excecional e transitória.
II. O fundamento e motivação para o MM juiz a quo, de que deve ser feita uma interpretação da norma do art. 6º A, nº 6 alínea c) da Lei 1-A/2020, de 19 de março, por forma a que as decisões a tomar pelo Secretario do BNA se considerassem “decisões judiciais finais a proferir “ não pode proceder porquanto uma decisão judicial deve ser tomada por um órgão jurisdicional, ao passo que o BNA, é um organismo não jurisdicional, junto da Direção Geral da Administração da Justiça (DGAJ) com competência exclusiva para a tramitação do PED em todo o território nacional, Cfr. Artº 15º-A do NRAU e artº 2º do DL nº 1/2013, de 13 de janeiro.
JJ. O título para despejo já esta formado, e não há lugar a suspensão, nem mesmo por aplicação das normas excecionais e transitórias, nos termos do art. 15 J, Nº 1.
Pretende assim a revogação da decisão recorrida.
Não foram apresentadas contra-alegações.
Cumpre então apreciar e decidir.
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FUNDAMENTAÇÃO
O âmbito do recurso, sempre ressalvadas as questões de conhecimento oficioso, encontra-se delimitado pelas conclusões que nele foram apresentadas e que atrás se transcreveram – cfr. arts. 635º, nº 4 e 639º, nº 1 do Cód. do Proc. Civil.
*
A questão a decidir é a seguinte:
Apurar se foi correta a decisão de suspender o procedimento de despejo ao abrigo o art. 6º-A, nº 6, al. c) da Lei nº 1-A/2020, de 19.3.
*
Com vista à decisão do presente recurso, para além dos elementos factuais e processuais que constam do antecedente relatório, é ainda de atender ao seguinte:
A) Na decisão proferida em 12.9.2019, que diferiu a desocupação do locado pelo prazo de cinco meses, consideraram-se provados os seguintes factos:
- A requerida encontra-se desempregada desde 2 de maio de 2011 e inscrita no Centro de Emprego … desde então;
- A requerida sofreu um acidente de trabalho no âmbito de um programa ocupacional, pelo que se encontra incapacitada para exercer qualquer atividade, desde, pelo menos, 8 de fevereiro de 2012;
- Em consequência de tal acidente, a requerida foi submetida a duas intervenções cirúrgicas ao ombro direito e fez tratamentos de fisioterapia;
- O único provento auferido pela requerida é o que advém da sua pensão de velhice no valor de 148,00€;
- A subsistência da requerida depende da ajuda da sua filha e de amigos e de instituições como “D…” e a Câmara Municipal …;
- Pela requerida foi solicitado apoio, no âmbito do Fundo Local de Emergência Social, junto da Câmara Municipal …, tendo-lhe sido atribuídas verbas anuais de 664,16€, 516,67€, 265,64€ e de 233,88€, relativas aos anos de 2015, 2016, 2017 e 2019, respetivamente;
- Com a referida importância de 664,16€, atribuída pelo Município da Póvoa …, no ano de 2015, a requerida procedeu ao pagamento das rendas correspondentes aos meses de maio, junho e julho de 2015;
- Com a referida importância de 516,67€, atribuída pelo Município …, no ano de 2016, a requerida procedeu ao pagamento das rendas correspondentes aos meses de novembro e dezembro de 2015;
- A requerida recorreu, há vários meses, ao setor de habitação da Câmara Municipal …, em busca de uma habitação social, pedido que ainda não foi atendido.
B) Em 23.9.2020 a requerida dirigiu à Câmara Municipal … um pedido urgente de atribuição de habitação social, alegando que a senhoria está a efetuar diligências com vista à desocupação do locado – doc. de fls. 75.
C) Em 24.9.2020 a requerida enviou uma carta à Técnica Superior de Serviço Social da Câmara Municipal … com o seguinte teor:
“(…)
Por favor, preciso urgente uma habitação social, pois que a senhoria está a encetar diligências por forma a tomar do imóvel. Designadamente, a Sr.ª Agente de Execução informou por telefone no dia 22-09-2020 que na próxima sexta-feira vai deslocar-se ao local para tomar o processo do mesmo, tendo inclusive requerido a força policial (…)” – doc. de fls. 76.
D) A requerida, conforme resulta de declarações emitidas pela E… em 4.7.2019, 12.7.2019 e 19.9.2019, fez tratamentos de fisiatria nessa clínica – docs. de fls. 77 a 83.
*
Passemos à apreciação de mérito.
1. Na decisão recorrida a Mmª Juíza “a quo” entendeu ser de deferir a suspensão do procedimento de despejo ao abrigo do art. 6º-A, nº 6, al. c) da Lei nº 1-A/2020, de 19.3, entendimento que teve a discordância da requerente expressa nas suas alegações de recurso.
Nestas, a recorrente sustenta que a previsão da norma invocada no despacho recorrido não abrange a situação dos autos, porquanto não há decisão judicial final a proferir e neste âmbito, ao contrário do que foi entendido pela 1ª instância, não são de englobar as decisões a proferir pelo Sr. Secretário do Balcão Nacional de Arrendamento, por se situarem em terreno extrajudicial.
Em suma, a decisão judicial final já havia sido proferida.
Vejamos então.
2. O art. 6º-A, nº 6, al. c) da Lei nº 1-A/2020, de 19.3, na redação introduzida pela Lei nº 16/2020, de 29.5 em vigor à data da decisão, preceituava o seguinte:
«6. Ficam suspensos no decurso do período de vigência do regime excecional e transitório:
(…)
c) As ações de despejo, os procedimentos especiais de despejo e os processos para entrega de coisa imóvel arrendada, quando o arrendatário, por força da decisão judicial final a proferir, possa ser colocado em situação de fragilidade por falta de habitação própria ou por outra razão social imperiosa;
(…)»
A Mmª Juíza “a quo” ao analisar a possibilidade de aplicação deste normativo ao caso dos autos começou por afirmar que a decisão judicial já foi proferida e, por isso, não poderia haver suspensão.

Mas, continuando no seu percurso argumentativo, sustentou a seguir que o termo “judicial” deve abranger também as decisões a proferir no âmbito do próprio procedimento de despejo pelo Sr. Secretário do Balcão Nacional de Arrendamento, sob pena da previsão normativa daquele preceito legal ficar esvaziada de efeito.
E, prosseguindo, referiu que a conversão do requerimento de despejo em título de desocupação do locado pelo Balcão Nacional de Arrendamento, que se segue à decisão proferida pelo Tribunal, deixaria a requerida numa situação de fragilidade, tendo em atenção tanto a sua situação pessoal e financeira como o presente quadro epidemiológico.
Por isso, decretou a suspensão do procedimento especial de despejo ao abrigo da norma legal acima citada.
3. Não discordamos do caminho seguido pela Mmª Juíza “a quo”.
Tal como flui do art. 9º, nº 1 do Cód. Civil a interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada.
Com esta norma afasta-se o exagero dos objetivistas que não atendem sequer às circunstâncias históricas em que a norma nasceu, na medida em que se manda reconstituir o pensamento legislativo e atender às circunstâncias em que a lei foi elaborada.
Condena-se igualmente o excesso dos subjetivistas que prescindem por completo da letra da lei, para atender apenas à vontade do legislador, quando no nº 2[1] se afasta a possibilidade de qualquer pensamento legislativo valer como sentido decisivo da lei, se no texto desta não encontrar um mínimo de correspondência verbal.
E ao mesmo tempo que manda atender às circunstâncias – históricas – em que a lei foi elaborada, o preceito não deixa de expressamente considerar relevantes as condições específicas do tempo em que a norma é aplicada, consagrando uma nota vincadamente atualista.
Porém, o facto de o artigo afirmar que a reconstituição do pensamento legislativo deve fazer-se a partir dos textos não significa, de modo nenhum, que o intérprete não possa ou não deva socorrer-se de outros elementos para esse efeito, nomeadamente do espírito da lei – a “mens legis”.
Pode assim dizer-se que o sentido decisivo da lei coincidirá com a vontade real do legislador, sempre que esta seja clara e inequivocamente demonstrada através do texto legal, do relatório do diploma ou dos próprios trabalhos preparatórios da lei.
Contudo, quando assim não suceda, o Código faz apelo franco, como não poderia deixar de ser, a critérios de carácter objetivo, como são os que constam do nº 3 do art. 9º[2] - cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, com a colaboração de Henrique Mesquita, “Código Civil Anotado”, vol. I, 4ª ed., págs. 58/59.
Por outro lado, deverá também ter-se em atenção o disposto no art. 11º do Cód. Civil onde se estabelece que «as normas excecionais não comportam aplicação analógica, mas admitem interpretação extensiva
O recurso à analogia pressupõe a existência de uma lacuna da lei, isto é, que uma determinada situação não esteja compreendida nem na letra nem no espírito da lei. Esgotou-se todo o processo interpretativo dos textos sem se ter encontrado nenhum que contemplasse o caso cuja regulamentação se pretende, ao passo que na interpretação extensiva, encontra-se um texto, embora, para tanto, haja necessidade de estender as palavras da lei, reconhecendo que elas atraiçoaram o pensamento do legislador que, ao formular a norma, disse menos do efetivamente pretendia dizer. Mas aqui o caso está contemplado, não havendo omissão – cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit., pág. 60.
No entanto, a interpretação extensiva é admitida apenas no que concerne às normas excecionais.
Ora, no art. 1º, al. b) da Lei nº 1-A/2020, de 19.3 estatui-se que «a presente lei procede à (…) à aprovação de medidas excecionais e temporárias de resposta à situação epidemiológica provocada pelo coronavírus SARS-Cov-2, agente causador da doença COVID-19.»
Por conseguinte, daqui decorre estarmos perante normas de carácter excecional, área onde é viável o recurso à interpretação extensiva, como fez a Mmª Juíza “a quo”.
4. Acontece que relativamente ao preceito legal em apreciação não se pode ignorar que o mesmo se enquadra num diploma legal que tem a sua razão de ser na presente situação de pandemia que assola todo o mundo e é neste contexto, com todo um conjunto de efeitos negativos a nível social e económico, que a sua interpretação deve ser efetuada.
O art. 6º-A, nº 6, al. c) da Lei nº 1-A/2020, na redação introduzida pela Lei nº 16/2020, de 29.5., prevê a suspensão dos procedimentos especiais de despejo nos casos em que o arrendatário por força da decisão judicial final a proferir possa ser colocado em situação de fragilidade por falta de habitação própria ou por outra razão social imperiosa.
No caso dos autos, em que estamos perante procedimento especial de despejo, a decisão judicial final já foi proferida em 12.9.2019 no sentido, por um lado, de não recusar o requerimento apresentado pela proprietária e, por outro, de diferir a desocupação do locado pelo período de cinco meses, nos termos do art. 15º-N da Lei nº 6/2006, de 27.2. [NRAU].
Transitada em julgado esta decisão e transcorrido aquele período de cinco meses há que ter em atenção o art. 11º do Dec. Lei nº 1/2013, de 7.1, que procedeu à definição das regras de funcionamento do Balcão Nacional de Arrendamento e de tramitação do procedimento especial de despejo, onde se dispõe o seguinte:
«1. Nos casos em que o requerido tenha apresentado, nos termos do artigo 15º-N da Lei nº 6/2006, de 27 de fevereiro, pedido de diferimento da desocupação do imóvel arrendado para habitação, o BNA só pode converter o requerimento de despejo em título de desocupação do locado após ser notificado da decisão judicial referente ao pedido de diferimento.
2. Feita a conversão, o BNA disponibiliza a decisão judicial referida no número anterior ao agente de execução, notário ou oficial de justiça designado juntamente com o título de desocupação
Não é pois necessária qualquer outra decisão judicial com vista à realização do despejo, uma vez que é o próprio Balcão Nacional de Arrendamento que procede à conversão do requerimento de despejo em título de desocupação do locado.
Ora, o Balcão Nacional de Arrendamento, que tem competência exclusiva para a tramitação do procedimento especial de despejo em todo o território nacional – art. 2º do Dec. Lei nº 1/2013 -, não tem natureza jurisdicional.
Assim, ancorando-nos na letra do art. 6º-A, nº 6, al. c) da Lei nº 1-A/2020, na redação da Lei nº 16/2020, e atendendo a que no caso do presente procedimento especial de despejo já foi proferida decisão judicial final, seríamos levados a concluir que não haveria lugar à sua suspensão, pelo que se imporia acolher a argumentação explanada pela requerente nas suas alegações de recurso.
Entendemos, contudo, que o texto deste preceito legal não acompanhou em toda a sua extensão o pensamento do legislador, isto tendo em atenção o quadro de pandemia que grassa por todo o mundo e que o justificou, porque operaria uma importante restrição no tocante à suspensão das ações de despejo, dos procedimentos especiais de despejo e dos processos para entrega de coisa imóvel arrendada, que não seria possível nos casos em que a decisão judicial final já tivesse sido proferida, mesmo que por força dessa decisão o arrendatário fosse colocado em situação de fragilidade por falta de habitação própria ou por outra razão social imperiosa.
Ou seja, ainda que demonstrada a situação de fragilidade do arrendatário, um significativo número de processos e procedimentos visando o despejo – os que têm decisão judicial final – poderia prosseguir em contexto pandémico, criando ainda mais problemas sociais neste período tão conturbado a esse nível.
Para além do que se vem expondo, é também de ter em atenção que, atendo-nos à secura da letra da lei, a alínea c) do nº 6 colidiria com a antecedente alínea b), da qual flui que ficam suspensos durante o presente período excecional e transitório os atos a realizar em processo executivo ou de insolvência relacionados com a concretização de diligências de entrega judicial da casa de morada de família.
Com efeito, não se vê razão para suspender estas diligências de entrega judicial da casa de morada de família em processo executivo ou de insolvência e não suspender um despejo, mesmo que se demonstre que este colocará o arrendatário em situação de fragilidade por falta de habitação própria ou outra razão social imperiosa, porque já foi objeto de decisão judicial final.
Deste modo, porque face à natureza excecional da norma aqui em causa é de admitir, nos termos do art. 11º do Cód. Civil, a sua interpretação extensiva, entendemos que na situação em causa neste processo, referente a um procedimento especial de despejo em que a decisão judicial final já foi proferida, também é possível a sua suspensão desde que se comprove, como exigido no dito art. 6º-A, nº 6, al. c) da Lei nº 1-A/2020, que esse despejo irá colocar o arrendatário em posição de fragilidade por falta de habitação própria ou por outra razão social imperiosa.
5. Contudo, entretanto entrou em vigor a Lei nº 4-B/2021, de 2.2 que, alterando a redação da Lei nº 1-A/2020, de 19.3., procedeu à revogação deste art. 6º-A e aditou ao mesmo diploma o art. 6º-B, sendo a produção dos seus efeitos reportada ao dia 22.1.2021 – cfr. arts. 3º, 4º e 5º.
Acontece que a situação antes prevista no art. 6º-A, nº 6, al. c) da Lei nº 1-A/2020, e que detalhadamente analisámos, encontra-se agora prevista no novo art. 6º-B, nº 11, que tem a seguinte redacção:
«11 - São igualmente suspensos os atos a realizar em sede de processo executivo ou de insolvência relacionados com a concretização de diligências de entrega judicial da casa de morada de família ou de entrega do locado, designadamente, no âmbito das ações de despejo, dos procedimentos especiais de despejo e dos processos para entrega de coisa imóvel arrendada, quando, por requerimento do arrendatário ou do ex-arrendatário e ouvida a contraparte, venha a ser proferida decisão que confirme que tais atos o colocam em situação de fragilidade por falta de habitação própria ou por outra razão social imperiosa
Sucede que com este novo preceito as dúvidas interpretativas que eram suscitadas pela redação do anterior art. 6º-A, nº 6, al. c) e que acima dilucidámos se encontram solucionadas.
A expressão “decisão judicial final a proferir” dele constante, conexionada com as ações de despejo, os procedimentos especiais de despejo e os processos para entrega de coisa imóvel arrendada, foi eliminada da redacção do novo art. 6º-B, nº 11.
Assim, a suspensão dos atos relativos à entrega do locado, no âmbito destes processos ocorre quando, por requerimento do arrendatário ou do ex-arrendatário e ouvida a contraparte, venha a ser proferida decisão que confirme que esse ato o coloca em situação de fragilidade por falta de habitação própria ou por outra razão social imperiosa.
6. No caso “sub judice”, face à factualidade que foi considerada assente na decisão proferida em 12.9.2019 e à que consta da documentação junta aos autos pela requerida ao peticionar a suspensão do procedimento de despejo, há que concluir pelo preenchimento dos pressupostos previstos no referido art. 6º-B, nº 11 da Lei nº 1-A/2020 justificativos de tal suspensão.
A requerida C… é pessoa de condição social e económica humilde, auferindo uma pensão de velhice no valor de 148,00€. A sua subsistência depende da ajuda da filha e de amigos e ainda de instituições como “D…” e a Câmara Municipal …. Recorreu ao setor de habitação da Câmara Municipal … em busca de uma habitação social, mas esse pedido ainda não foi atendido.
Sofreu também um acidente no âmbito de um programa ocupacional, encontrando-se incapacitada para exercer qualquer atividade, desde, pelo menos, 8.2.2012. Em consequência desse acidente foi submetida a duas intervenções cirúrgicas e fez tratamentos de fisioterapia.
A este contexto factual, do qual resulta ser a requerida pessoa com uma vida cheia de dificuldades, soma-se a atual situação de pandemia que atinge todo o mundo e que presentemente grassa, com particular virulência, no nosso país.
Por conseguinte, é de considerar que a entrega do locado se trata de diligência que, concretizando-se, coloca a requerida em situação de fragilidade, desde logo por falta de habitação própria.
Há assim que suspender o presente procedimento especial de despejo, o que implica a improcedência do recurso interposto e a consequente confirmação da decisão recorrida.[3]
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Sumário (da responsabilidade do relator – art. 663º, nº 7 do Cód. de Proc. Civil):
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DECISÃO
Nos termos expostos, acordam os juízes que constituem este tribunal em julgar improcedente o recurso de apelação interposto pela requerente B… e, em consequência, confirma-se a decisão recorrida.
Custas a cargo da recorrente.

Porto, 9.2.2021
Rodrigues Pires
Márcia Portela
Carlos Querido
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[1] Neste número dispõe-se o seguinte: «Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.»
[2] É a seguinte a redação deste número: «Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados
[3] Uma nota ainda para referir que o decidido, apoiando-se em normas excecionais a vigorar apenas neste período de pandemia, não viola, no que toca à recorrente, o direito constitucionalmente consagrado de propriedade privada [art. 62º da CRP], nem tão-pouco o direito a um processo equitativo e o princípio da tutela jurisdicional efetiva [art. 20º da CRP].