Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
80/13.9T3OVR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: EDUARDA LOBO
Descritores: TRIBUNAL COMPETENTE
DIFAMAÇÃO
CONSUMAÇÃO
FACTOS DESONROSOS
Nº do Documento: RP2014100880/13.9T3OVR.P1
Data do Acordão: 10/08/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: É competente para conhecer de um crime de Difamação cometido em escrito remetido por via postal o tribunal do lugar onde foi aberto o escrito, pois só aí chegou ao conhecimento de terceiros a expressão ofensiva [consumação].
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 80/13.9T3OVR.P1
1ª secção

Acordam, em conferência, na 1ª secção do Tribunal da Relação do Porto

I – RELATÓRIO
No âmbito do Processo Comum com intervenção do Tribunal Singular que corre termos no Juízo de Instância Criminal de Ovar, Comarca do Baixo Vouga, com o nº 80/13.9T3OVR, foi submetido a julgamento o arguido B…, tendo a final sido proferida sentença, depositada em 06.11.2013, que condenou o arguido pela prática de um crime de difamação p. e p. no artº 180º do Cód. Penal, na pena de 90 dias de multa à taxa diária de € 6,00 e a pagar ao demandante civil C… a quantia de € 500,00 a título de indemnização.
Inconformado com a sentença condenatória, dela veio o arguido interpor o presente recurso, extraindo das respetivas motivações as seguintes conclusões:
1. No exercício da função de julgar deve o juiz “procurar a mais justa solução do caso concreto”. Fica assim o tribunal vinculado a enquadrar nas especificidades do caso concreto os múltiplos interesses jurídico-sociais que o caso suscita;
2. A sentença recorrida revela uma incorreta aplicação das regras e princípios fundamentais plasmados no Código Penal (nomeadamente quanto ao disposto no artº 40º) e na própria Constituição da República, que conduziu à condenação do arguido, agravada pela aplicação de uma pena de multa e condenação cível exageradas e excessivas atentas as circunstâncias do caso concreto;
3. O Tribunal da Comarca de Ovar faz uma interpretação errónea das regras de competência territorial, por não saber apreciar o momento e a data da prática do facto alegadamente criminoso;
4. Consta da sentença proferida que o arguido enviou aos autos de processo de execução a correr na Comarca do Baixo Vouga um requerimento alegadamente difamatório, o qual fora rececionado nesse Juízo no dia 16 de Janeiro de 2013;
5. Tal requerimento foi enviado via postal registada em 14 de Janeiro de 2013, pelo que desde logo e atentas as regras legais plasmadas no artº 3º do Código Penal, teria de se considerar como a data da prática do alegado facto difamatório a data de 14 de Janeiro de 2013 e não a data de 16 de Janeiro de 2013 como veio o Tribunal a quo a entender;
6. Tal requerimento ao ser apresentado via postal registada foi enviado desde a área de competência territorial de outro Tribunal que não o da Comarca de Ovar, pelo que não se vislumbra como possa o Tribunal a quo arrogar-se territorialmente competente para derimir os presentes autos;
7. Atento o disposto no artº 7º do Código Penal, considera-se o facto praticado no lugar em que o agente atuou, in casu, no lugar em que o arguido/recorrente efetuou o envio da carta registada contendo o requerimento alegadamente difamatório por ser esta a data e local legalmente considerados como tendo o arguido apresentado o requerimento em juízo;
8. O lugar da prática do facto ilícito é uma regra basilar para determinar a competência territorial do Tribunal competente para decidir, conforme disposto na Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais;
9. Considerando que tal facto ocorreu claramente fora da área da comarca do Baixo Vouga, por se ter de considerar como praticado o facto no momento e lugar em que o arguido/recorrente enviou via postal registada o requerimento em crise, não pode deixar de pugnar-se pela declaração da incompetência territorial do tribunal a quo, da Comarca do Baixo Vouga;
10. O arguido sempre colaborou na descoberta da verdade material ao longo de todo o julgamento, contrariamente ao assistente que com discurso confuso acabou revelando ter apenas uma única intenção com os presentes autos – obter vantagem patrimonial;
11. Primeiramente começou o assistente por declarar expressamente não conhecer o arguido, nem nunca ter estado na residência do arguido/recorrente, para mais tarde ter vindo admitir ter estado na residência do arguido ainda que em circunstâncias diferentes das relatadas pelo arguido e por outras testemunhas;
12. Tal postura, ainda que não estando o assistente sujeito a juramento legal, revela desde logo pouca importância quanto à descoberta da verdade material, agravada com a declaração a final a instâncias do Meritíssimo Juiz pretender ver o arguido condenado a “pagar-lhe qualquer coisa”;
13. Resulta claro da sentença e da prova produzida que o assistente se deslocou a casa do arguido, tendo as testemunhas D… e E… identificado sem qualquer dúvida o assistente como tendo estado na morada do arguido, reafirmando ambos terem-no visto (conhecimento pessoal direto) aparentando notório estado de embriaguez;
14. Atento o conhecimento direto das testemunhas e tendo em conta que todas elas referiram que o Assistente estaria, ou pelo menos aparentava, estar embriagado não se compreende como a sentença recorrida conclui pela não aplicação de exceptio veritatis;
15. A sentença proferida não se revela justa e adequada à verdade dos factos e à prova produzida em julgamento;
16. É o arguido condenado pelo Tribunal a quo por chamar embriagado ao Assistente e com isso o ter ofendido na sua honra e consideração, o que de todo não corresponde à realidade;
17. “Embriagado” é o vocábulo gramatical menos ofensivo e mais cordial para alguém se referir ao estado de embriaguez de outro. Não foi utilizada qualquer expressão de linguagem popular e/ou mais comum como o seria o vocábulo “bêbedo” mas sim a forma gramaticalmente menos ofensiva existente na língua Portuguesa, vocábulo que a revestir qualquer conotação ofensiva da honra e consideração sempre terá de ser extremamente ténue;
18. O Arguido/recorrente reconhece não ser uma pessoa muito letrada, no entanto não conhece qualquer outro vocábulo menos ofensivo da honra para descrever tal situação que o utilizado “embriagado”;
19. Analisando por outro prisma, é “justo” o assistente vir arrogar-se ofendido na sua honra por alguém lhe haver dirigido o vocábulo “embriagado”?? Não estaremos perante um excesso de zelo?? Não podemos esquecer que o Assistente é Solicitador de Execução e por força do exercício profissional foi já alvo certamente de outras expressões muito mais ofensivas da sua honra. Apresentou queixa contra todos os sujeitos que proferiram tais vocábulos? Não concerteza, nem seria expetável que o fizesse;
20. Não se concebe que o assistente se tenha sentido lesado na sua honra e consideração por alguém lhe ter chamado “embriagado”. Não se vislumbra como pode o Assistente vir a juízo alegar ter ficado muito triste, desgostos, deprimido, humilhado na sua reputação e como referiu uma testemunha (filho do assistente) tendo ficado muitas noites sem dormir devido à conduta do Arguido?
21. O arguido não praticou qualquer facto típico, ilícito e culposo, o que sempre terá de conduzir à absolvição, por em modesto entender se ter limitado a descrever uma situação real;
22. Nunca o arguido teve qualquer intenção de difamar ou prejudicar a honra e/ou consideração do assistente, ou por outras palavras, nunca o arguido revelou qualquer dolo de ofender a honra do assistente;
23. A conduta tipificada e punida pelo artº 180º do Cód. Penal, só poderá conduzir a condenação em sede de negligência;
24. Acresce que o nº 2 do artº 180º do Código Penal, resume ainda outras circunstâncias especiais de impunibilidade do agente, às quais o Tribunal a quo erradamente não deu qualquer relevância;
25. Das declarações do arguido, e dos depoimentos das duas testemunhas presentes aquando da visita do assistente à residência do arguido, resulta que o assistente estava efetivamente, ou pelo menos aparentava estar, embriagado;
26. Todas as pessoas que estiveram na presença do assistente aquando da visita à residência do arguido ficaram convencidos (“com a impressão”, “com a sensação”) de que o assistente estaria efetivamente embriagado, o que face ao disposto no nº 2 do artº 180º do Código Penal é relevante;
27. O Tribunal, na aplicação da medida concreta da pena aplicada ao arguido excedeu claramente a função punitiva da pena, atendendo ao caso concreto;
28. Ficou provado que o arguido nunca tinha praticado qualquer crime desta natureza;
29. O arguido nunca havia sido alvo sequer de qualquer acusação penal;
30. O crime praticado pelo arguido decorreu em circunstâncias especiais, conforme se alegou em sede de julgamento, que não foram devidamente atendidas em sede de decisão;
31. Com a prática do crime de difamação, o arguido não retirou qualquer benefício económico, nem nunca a pretendeu obter, ao contrário do manifestado pelo assistente tendo para o efeito extravasado claramente a verdade dos factos;
32. O arguido admitiu a prática dos factos de que vinha acusado, confissão integral e sem reservas, facto que parece não ter sido relevado em sede de fixação da medida da pena enquanto atenuante da censurabilidade da conduta já de si de relevância ténue atentas as circunstâncias do caso concreto;
33. A sentença recorrida não atende às circunstâncias pessoais do arguido, reformado por invalidez, que referiu em sede de audiência de julgamento auferir menos de € 380,00 de reforma;
34. A pena de multa ora recorrida de 90 dias, à taxa de € 6,00, que traduz o montante global de € 540,00, representa uma pena demasiado onerosa para o arguido, violando claramente o princípio da adequação e proporcionalidade das penas vigente no ordenamento jurídico-penal nacional;
35. Perante as capacidades económico-financeiras do arguido, deve a pena de multa ser reduzida para o prazo mínimo consagrado na lei, fixando-se o montante da taxa diária no mínimo legal e/ou especialmente atenuado, sem que com isso esteja posta em causa a natureza e função punitiva da pena criminal;
36. A aplicação ao arguido de pena próxima dos mínimos legais, em número de dias e taxa diária, mostrar-se-ia justa, adequada e proporcional ao facto típico, ilícito e culposo praticado, e às condições sócio-económicas do arguido;
37. O arguido pugna pela absolvição penal;
38. A indemnização cível constitui a obrigação de o arguido repor o facto/bem jurídico lesado;
39. O bem jurídico lesado nos presentes autos alegadamente foi a honra do assistente, pelo que poderá o arguido ser condenado à reparação de tal bem jurídico, sem que com isso se onere em demasia o arguido uma vez que também a indemnização cível deve estar balizada pelo princípio da adequação legalmente consagrado;
40. Foi manifesto durante todo o julgamento a humildade do arguido/recorrente que, por mais que uma vez, pretendeu apresentar desculpas ao assistente pelo sucedido, facto a que este se mostrou absolutamente insensível, chegando efetivamente a referir que pretendia ver a condenação do arguido a “pagar-lhe qualquer coisa”;
41. A fixação do quantitativo de € 500,00 de indemnização a pagar pelo arguido ao assistente não reflete a gravidade da conduta do agente, nem a importância penal do bem jurídico ofendido, nem tão pouco a extensão da ofensa, como também se revela demasiado oneroso para as circunstâncias pessoais do arguido;
42. A condenação no pagamento de indemnização de € 500,00 ao assistente como forma de reparação da lesão da honra e consideração deste não reflete também o grau de dolo do arguido que sempre afirmou nunca teve qualquer intenção de ofender a honra do assistente;
43. A condenação do arguido na publicação de um escrito a publicar num jornal diário da área da residência do assistente mostrar-se-ia justa, adequada e proporcional ao caso concreto e às circunstâncias em que decorreu a prática do facto bem como às condições do arguido.
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Na 1ª instância o Ministério Público respondeu às motivações de recurso, concluindo pela sua improcedência.
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Neste Tribunal da Relação do Porto o Sr. Procurador-Geral Adjunto limitou-se a apor o seu visto.
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Efetuado exame preliminar e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência.
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II – FUNDAMENTAÇÃO
A sentença sob recurso considerou provados os seguintes factos: (transcrição)
1. No dia 16 de Janeiro de 2013, o Arguido entregou no Proc. nº 1462/09.6 do Juízo de Execução de Ovar, da Comarca do Baixo Vouga, um documento/requerimento por si assinado, com número de registo de entrada 3560216, que
2. Entre outros, continha os seguintes dizeres: “Sendo que após essa data, apenas por uma única vez foi alvo de uma visita por parte do Sr. Agente de Execução e do Mandatário da Exequente, num final de tarde (cerca das 19h30/20h00) cuja data não sabe precisar, encontrando-se ambos altamente embriagados e por esse motivo o fiel depositário recusou travar qualquer conversação com os mesmos (…)”.
3. Esses escritos referiam-se e visaram o Assistente;
4. O Arguido bem sabia que aquele documento iria ser incorporado, como o foi, no Proc. 1462/09.6TBOVR do Juízo de Execução de Ovar, da Comarca do Baixo Vouga, e que iria ficar acessível ao público em geral, como ficou, e nomeadamente a diversas pessoas conhecidas, amigos e funcionários do Assistente e funcionários do Juízo de Execução de Ovar, tendo, assim, todos tomado conhecimento daqueles dizeres;
5. Com os dizeres transpostos do documento/requerimento supra referido, o Arguido quis ofender, como ofendeu, o bom nome, a honra, a reputação e consideração do ora Assistente, tendo agido livre e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei;
6. O Arguido não tem antecedentes criminais;
7. No decurso da audiência formulou o desejo de pedir desculpa ao Assistente;
8. O Arguido aufere uma reforma de 379,00€, tem dois filhos com 35 e 33 anos de idade; e frequentou a 4ª Classe;
9. O Arguido é conotado como boa pessoa, trabalhadora e amigo do seu amigo, por parte dos seus Pares;
10. O Assistente é conotado como bom profissional, ficou incomodado com a conduta acima descrita do Arguido, e sentiu-se humilhado na sua reputação.
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Foram considerados não provados os seguintes factos: (transcrição)
● Com a conduta do Arguido o Assistente tenha ficado muito triste, desgostoso, deprimido e doente.
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A matéria de facto encontra-se motivada nos seguintes termos: (transcrição)
A motivação da decisão de facto tem como objetivo primacial o de aprimorar junto dos sujeitos processuais, de forma contundente, a força persuasiva do julgamento da matéria de facto, tarefa erigida de acordo com o princípio ínsito no artº 127º do Código de Processo Penal.
Para a presente decisão de facto o Tribunal estribou-se primacialmente nas declarações do próprio Arguido que atestou o facto de ter assinado o requerimento/missiva de fls. 8, o qual havia sido escrito pelo seu Advogado.
Por outra via, no que respeita à entrega em Juízo e sua divulgação o Tribunal atentou no carimbo de entrada aposto em tal documento.
O conteúdo do mesmo derivou da sua análise, de onde deriva a imputação da expressão “altamente embriagados”, sendo que a intenção de ofender, e consciência criminosa, emerge da apontada expressão conjugada com a normalidade do acontecer e da formação que o Arguido possui, bastante para inculcar a ideia da punibilidade da sua conduta. Aliás, veja-se que E…, testemunha indicada pelo Arguido e do seu meio social, teve bastante relutância na reafirmação da apontada expressão.
O melindre sentido pelo Assistente derivou dos testemunhos prestados por F…, G… e H…, não obstante não termos valorado os segmentos declaratórios de F… e H…, relativamente à ausência de sono e depressão, porquanto os mesmos não se compadeceram com a normalidade do acontecer em situações análogas e bem assim com a ausência de precisão das referidas patologias.
A consideração sentida pelo Arguido estribou-se nos depoimentos de D… e E….
A ausência de antecedentes criminais do Arguido ancorou-se no respetivo certificado.
Por fim, que não por último, quanto à eventual exceptio veritatis, ou fundamento sério para considerar como verdadeira a imputação, cumpre afirmar que, pese embora algumas discrepâncias nas declarações do Arguido e depoimentos de I…, D… e E… (veja-se que I… confirmou o facto de ter estado no local, mas a hora diversa; e que D… e E… referiram ter visto uma pessoa no apontado local identificável como o Assistente), inexistiu qualquer prova cabal em ordem à sua sustentação.
Por último, as condições pessoais do Arguido foram sustentadas pelo próprio, o qual não mereceu qualquer infirmação.
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III – O DIREITO
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar[1], sem prejuízo das de conhecimento oficioso, designadamente os vícios indicados no art. 410º nº 2 do C.P.P.[2].
No caso em apreço, das motivações de recurso é possível concluir que as questões que o recorrente pretende ver apreciadas por este tribunal resumem-se a saber se:
- o tribunal recorrido é competente em razão do território para o julgamento dos presentes autos;
- se o tribunal deveria ter concluído pela aplicação da exceptio veritatis, em virtude de as testemunhas inquiridas terem referido que o assistente estaria ou, pelo menos, aparentava, estar embriagado;
- se a expressão utilizada é suscetível de ofender a honra e consideração do assistente e se o recorrente agiu com intenção (dolo) de ofender a honra ou bom nome do assistente;
- se a pena aplicada é demasiado onerosa para o recorrente, quer quanto ao número de dias quer quanto à respetiva taxa diária;
- se a indemnização arbitrada é demasiado onerosa para as condições pessoais do recorrente.
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a) Quanto à competência do tribunal recorrido:
A exceção de incompetência territorial do Tribunal do Baixo Vouga – Ovar para o julgamento dos presentes autos foi deduzida pelo arguido/recorrente na contestação apresentada em 03.10.2013 [cfr. fls. 120] e sobre ela se pronunciou o tribunal recorrido no despacho proferido em 11.10.2013 [cfr. Fls. 127] e notificado ao recorrente em 14.10.2013 [cfr. fls. 129].
Assim sendo, à data da interposição do presente recurso – 09.12.2013 – já a decisão impugnada havia transitado em julgado.
Contudo, sempre se dirá que não assiste razão ao recorrente.
Resulta dos autos que o arguido reside em …, Porto de Mós e que o requerimento em que terá sido proferido a expressão ofensiva da honra e consideração do assistente deu entrada no Juízo de Execução de Ovar – Comarca do Baixo Vouga, dirigido ao Proc. nº 1462/09.6TBOVR.
Nos termos do artº 19º nº 1 do Cód. Penal “é competente para conhecer de um crime o tribunal em cuja área se tiver verificado a consumação”.
No caso em apreço é imputada ao arguido a prática de um crime de difamação cometido por escrito (vide art° 182° n° 1 do Cód. Penal).
Como refere o Prof. Faria Costa[3] os elementos do tipo “se estruturam em dois grandes segmentos: um, o segmento da ofensa propriamente dita, que pode ser concretizado por quem quer que seja; o outro segmento, o segmento do rodeio ou do enviesamento, exige que as condutas anteriormente descritas se não façam diretamente ao ofendido mas se levem a cabo dirigindo-se a terceiros”.
Assim, para o preenchimento do tipo em causa não basta a existência da ofensa, é necessário ainda «o segmento do rodeio ou do enviesamento», pelo que o crime se consuma logo que “chegue ao conhecimento de uma pessoa diversa do ofendido, pessoa que tenha conhecimento da natureza ofensiva da expressão”[4], já que a difamação pressupõe uma relação tipicamente triangular, enquanto a injúria se basta por uma conexão bipolar[5].
No caso sub judice, independentemente de saber se o escrito de fls. 8 foi remetido via postal do local de residência do arguido, sita em Porto de Mós, ou se foi entregue diretamente no Tribunal de Execução de Ovar, o certo é que só neste Tribunal se consumou o imputado crime de difamação, uma vez que só aqui chegou ao conhecimento de terceiros a expressão ofensiva referida à pessoa do assistente, ou seja, só na área da Comarca de Ovar se completou a aludida relação triangular.
Não há dúvidas, por isso, que o Tribunal de Ovar é competente em razão do território para o julgamento do crime de difamação imputado ao arguido[6].
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b) Da verificação da causa de justificação prevista no nº 2 do artº 180º do Cód. Penal:
Dispõe este preceito que:
A conduta não é punível quando:
a) A imputação for feita para realizar interesses legítimos; e
b) O agente provar a verdade da mesma imputação ou tiver tido fundamento sério para, em boa fé, a reputar verdadeira.
A este respeito alega o recorrente que do depoimento das testemunhas inquiridas em audiência, que transcreve parcialmente, resulta que o assistente “estaria, ou pelo menos, aparentava, estar embriagado”.
Atenta a expressão constante do escrito – “encontrando-se ambos altamente embriagados” – não se vislumbra como pretende o recorrente fazer a prova da veracidade da imputação quando ele próprio admite que as testemunhas não foram categóricas em afirmar que o assistente se encontrava embriagado, na medida em que afirmam que “estaria, ou pelo menos, aparentava, estar embriagado”.
Aparentar estar embriagado é algo completamente diferente de estar “altamente embriagado”.
Por outro lado, para a verificação da apontada causa de justificação, não basta que se prove a veracidade da imputação ou que o agente tinha fundamento para, em boa fé, a reputar como verdadeira. É ainda necessário que o agente tenha atuado com vista à realização de interesses legítimos, revelando-se a necessidade e proporcionalidade para o fim visado.
Com efeito, para viabilizar a causa de justificação prevista na alínea a) do n.º 2 do artigo 180.º ou a causa de exclusão da ilicitude prevista no artº 31º nº 2 al. b), ambos do Código Penal, é necessário haver proporcionalidade e necessidade do meio utilizado em função dos interesses a salvaguardar (cfr. José de Faria Costa, ob. cit., pág. 620: “a necessidade só existe quando a forma utilizada para a divulgação da notícia se mostra indispensável para a realização dos interesses protegidos”).
A densidade dos direitos em questão não permite afirmar uma manifesta supremacia do direito do arguido, de crítica à conduta pública do assistente, sacrificando o direito ao bom-nome e reputação deste, tanto mais que as circunstâncias concretas do caso não exigiam o sacrifício do último daqueles direitos para funcionamento do direito do arguido (que nem se provou, nem tão pouco se alegou, pretender proteger), que é como quem diz, este último não carecia em absoluto da formulação do juízo ofensivo para fazer valer o seu ponto de vista, razão pela qual não poderá prevalecer-se da causa de justificação.
Da factualidade provada não resulta que o arguido tenha seguido um caminho de adequação e proporcionalidade de modo a preservar até onde fosse possível o direito à honra e consideração que era e é atributo do assistente.
Do exposto se conclui que não pode o arguido beneficiar da causa de exclusão da ilicitude a que alude o n.º2 do art. 180.º do Código Penal, nem vemos motivos para excluir a ilicitude da sua conduta em face das regras gerais constantes do art. 31.º do Código Penal, designadamente, do seu n.º2, alínea b), em que se prevê que não é ilícito o facto praticado no exercício de um direito.
Pelo exposto, improcede mais este fundamento do recurso.
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c) Da qualificação jurídico-penal da conduta:
Alega o recorrente que o vocábulo utilizado é o menos ofensivo da honra para descrever uma situação real e que não agiu com intenção de ofender a honra ou o bom nome do assistente.
Convém, a este respeito, referir que «materialmente a difamação pode definir-se como a atribuição a alguém de facto ou conduta, ainda que não criminosos, que encerre em si, uma reprovação ético-social».
E, como escrevia Beleza dos Santos[7], «não deve considerar-se ofensivo da honra e consideração de outrem, aquilo que o queixoso entende que o atinge, de certos pontos de vista, mas aquilo que razoavelmente, isto é, segundo a sã opinião da generalidade das pessoas de bem, deverá considerar-se ofensivo daqueles valores individuais e sociais».
Dentro desta orientação decidiu-se no Ac. da R. Évora de 02.07.1996[8] “que um facto ou juízo, para que possa ser havido como ofensivo da honra e consideração devida a qualquer pessoa, deve constituir um comportamento com objeto eticamente reprovável de forma a que a sociedade não lhe fique indiferente, reclamando a tutela penal de dissuasão e repressão desse comportamento. Supõe, pois, a violação de um mínimo ético necessário à salvaguarda sócio-moral da pessoa, da sua honra e consideração”.
Ora, escrever num requerimento dirigido a um processo em curso e que dele passou a fazer parte integrante, que o assistente, no exercício da sua função como agente de execução, se apresentou “altamente embriagado” constitui uma afirmação que pretende traduzir e traduz efetivamente uma imagem de um profissional que age com total falta de zelo e aprumo, dando uma imagem pública de desmazelo e desleixo. Uma coisa será apelidar de embriagado um qualquer cidadão que se encontre num bar em confraternização com amigos e que se excedeu no consumo de bebidas alcoólicas. Outra, bem diferente, é afirmar que um profissional no exercício das suas funções se apresenta “altamente embriagado”.
Quanto ao elemento subjetivo de um ilícito penal dir-se-á que o mesmo não é suscetível de apreensão direta por pertencer ao foro íntimo de cada um, pelo que só pode ser captado através de presunções legais, em conexão com o princípio da normalidade e das regras da experiência que permitam inferi-lo a partir de factos materiais comuns entre os quais avulta o preenchimento da materialidade da infração.
Portanto, a partir de determinados factos e à luz das regras da experiência podemos concluir pela intencionalidade pela forma como agiu o arguido. Portanto, a intenção com que o recorrente agiu retira-se, extrai-se, da matéria de facto. É através da realidade factual que lhe está subjacente que o Tribunal, recorrendo às regras da experiência, tem de concluir pela intencionalidade ou não do agente.
É óbvio que alguém que atua, na forma e nas circunstâncias em que o arguido o fez, mesmo que não tivesse instrução (o que não é naturalmente o caso) tem consciência das palavras que está a escrever, sabendo o seu significado e sabendo que, com as mesmas, vai atingir o visado. Ao escrever as expressões em causa, sabendo portanto, o seu significado, o arguido tem que representar como possível que irá ofender o visado na sua honra e consideração.
Como se sabe, o elemento subjetivo neste tipo de ilícito, vem a traduzir-se na vontade livre de praticar o ato com a consciência de que as expressões utilizadas ofendem a honra e consideração alheias, ou pelo menos são aptas a causar aquela ofensa, e que tal ato é proibido por lei.
A este título, o tipo legal exige o dolo em qualquer das suas modalidades: dolo direto, necessário e eventual, mas não o chamado dolo específico, consistente na intenção específica de ofender (animus diffamandi vel injuriandi), como sinónimo de o fim ou motivo do agente ser um elemento requerido pelo tipo subjetivo, a ponto de tal intenção ser excluída quando o fim ou motivo visados fossem de outra natureza: o fim de narrar, ensinar, corrigir, brincar, segundo a teoria dos diversos animi: animus narrandi, docendi, corigendi, jocandi. Essa teoria está hoje completamente ultrapassada, defendendo-se doutrinária e jurisprudencialmente que o elemento subjetivo se basta com o chamado dolo genérico: a simples consciência de que as expressões utilizadas são aptas a ofender a honra e consideração de uma pessoa, considerando o meio social e cultural e a “sã opinião da generalidade das pessoas de bem. Não é necessário que tais expressões atinjam efetivamente a honra e consideração da pessoa visada, produzindo um dano de resultado, bastando a suscetibilidade dessas expressões para ofender. É que o crime em causa é um crime de perigo, bastando a idoneidade da ofensa para produzir o dano[9].
A questão do dolo nos crimes contra a honra, foi pois suficientemente tratada na doutrina e jurisprudência, para se chegar à conclusão de que se mostra suficiente, para preenchimento do tipo, a ocorrência de um dolo genérico.
Parece-nos evidente que o requerimento junto ao processo de execução enviado pelo arguido, contendo juízos de valor negativos, sobre a postura pública do assistente, é suscetível de ofender a honra e consideração do mesmo.
E também nos parece que o arguido não podia deixar de ter consciência dos efeitos atentatórios, para aqueles valores pessoais, que a expressão utilizada provocaria.
Não vemos, por isso, razão para alterar a decisão quanto à qualificação jurídico-penal constante da sentença sob recurso.
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d) Quanto à medida da pena:
Alega o recorrente que a pena aplicada é demasiado onerosa, violando claramente o princípio da adequação e proporcionalidade das penas.
O recorrente tece considerações sobre os critérios a atender na determinação da medida concreta da pena, invoca factos que não constam da matéria de facto provada, sem que tenha previamente impugnado a decisão nessa parte, a qual se tem, assim, por definitivamente fixada, e termina, insurgindo-se contra a pena fixada que reputa de exagerada quer quanto ao número de dias, quer quanto à taxa diária, sem qualquer preocupação em observar o disposto no artº 412º nº 2 do C.P.P..
Acresce que o recurso interposto é totalmente omisso quanto à formulação expressa do pedido recursivo e, como se sabe, de acordo com o princípio dispositivo decorrente do artigo 412.º, o recurso comporta um pedido, o qual se desdobra no seu objeto imediato ou declarativo e no seu objeto mediato ou consequência material[10].
O recorrente deveria ter terminado as conclusões com a formulação de um pedido, concretizando a pena que, em seu entender, o tribunal recorrido deveria ter aplicado, por ser a pena justa e adequada ao caso concreto.
Por outro lado, como vem sendo decidido de modo uniforme pelos tribunais superiores “a intervenção do tribunal de recurso pode incidir na questão do limite ou da moldura da culpa assim como na atuação dos fins das penas no quadro da prevenção; mas já não na determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exato da pena, exceto se tiverem sido violadas regras de experiência ou se a quantificação se revelar de todo desproporcionada”[11].
Ora, no caso em apreço, considerando a moldura abstrata prevista na lei - prisão até seis meses ou multa até 240 dias – o grau de ilicitude da conduta, a intensidade do dolo, a ausência de juízo de auto-censura, bem como as fortes necessidade de prevenção geral entendemos que a pena aplicada, muito próximo do seu terço inferior, se revela adequada e suficiente para satisfazer as finalidades da punição, não merecendo qualquer censura.
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e) Do pedido de indemnização civil:
Sustenta o recorrente que a quantia fixada a título de indemnização, no valor de € 500,00, não reflete a gravidade da conduta, nem a importância penal do bem jurídico ofendido, revelando-se demasiado onerosa para as condições pessoais do arguido.
Estabelece o art. 399.º do Cód. Proc. Penal que “É permitido recorrer dos acórdãos, das sentenças e dos despachos cuja irrecorribilidade não estiver prevista na lei”.
O direito ao recurso é uma das facetas do acesso ao direito e uma das dimensões da tutela jurisdicional efectiva, que tem assento no art. 20º da C.R.P.
No entanto este princípio geral de recorribilidade das decisões judiciais, não é ilimitado, podendo haver restrições, tanto relativas à matéria penal, como à matéria cível.
Assim e segundo a jurisprudência do Tribunal Constitucional, as limitações excecionais ao recurso, justificam-se sempre que essa restrição seja proporcional e se contemporize com o acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva, sendo certo que não existe um direito constitucional ilimitado a um segundo grau de jurisdição.
Tratando-se de matéria penal essa restrição será apenas aceitável quando se confinar a decisões penais não condenatórias ou então que não afetem a liberdade ou outros direitos fundamentais do arguido[12].
Por sua vez, tratando-se de matérias diversas da penal o Tribunal Constitucional tem entendido que existe um genérico direito de recurso dos atos jurisdicionais com um conteúdo mínimo de eficácia relativamente à obtenção de justiça, estando apenas vedada a abolição total do sistema de recursos ou a sua afetação substancial[13].
Nesta conformidade tem-se entendido que o critério de admissibilidade de recurso em função das alçadas do tribunal de que se recorre e do valor da sucumbência, tal como tem vindo a ser fixado pelo legislador ordinário, mostra-se proporcional e adequado.
Ora, os casos de inadmissibilidade do recurso relativamente à matéria penal, estão, para além de outras disposições específicas, como as dos artº. 42º nº 1, 45º, nº 6, 219º nº 1, 310º nº 1, 391º e 391º-F, expressamente assinalados no art. 400º nº 1.
Por sua vez, no que respeita à decisão sobre indemnização cível, no nº 2 deste artº. 400º, preceitua-se que “Sem prejuízo do disposto nos artigos 427º e 432º, o recurso da parte da sentença relativa à indemnização civil só é admissível desde que o valor do pedido seja superior à alçada do tribunal recorrido e a decisão impugnada seja desfavorável para o recorrente em valor superior a metade desta alçada”.
Assim, a admissibilidade do recurso – na parte da decisão respeitante ao pedido de indemnização civil - está dependente da verificação cumulativa de um duplo requisito: (1) que a causa tenha valor superior à alçada do tribunal de que se recorre; (2) que a decisão impugnada seja desfavorável para o recorrente em valor superior a metade da alçada do tribunal que proferiu a decisão de que se recorre.
No caso dos autos, o assistente/demandante formulou pedido cível em 27.05.2013, sendo que o valor peticionado ascendia a € 2.000,00.
Ora, sendo a alçada dos tribunais de 1ª instância, à data em que foi formulado o referido pedido cível, de € 5.000,00 (art. 24º nº 1 da Lei nº 3/99 de 13/1 - LOFTJ - na redacção do Dec-Lei nº 303/2007, de 24/8) é manifesto que, nem o valor do pedido é superior à alçada do tribunal da 1ª instância, nem a decisão é desfavorável para o recorrente em valor superior a metade desta alçada.
Por isso, nos termos do artº. 400º nº 2 do CPP, é inadmissível o recurso dessa parte da decisão.
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IV – DECISÃO:
Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação do Porto em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido B…, confirmando consequentemente a sentença recorrida.
Custas pelo arguido/recorrente fixando-se a taxa de justiça em 4 UC’s – artº 8º nº 9 do RCP e tabela III anexa.
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Porto, 08 de Outubro de 2014
Eduarda Lobo
Alves Duarte
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[1] Cfr. Prof. Germano Marques da Silva, "Curso de Processo Penal" III, 2ª ed., pág. 335 e jurisprudência uniforme do STJ (cfr. Ac. STJ de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, p. 196 e jurisprudência ali citada).
[2] Ac. STJ para fixação de jurisprudência nº 7/95, de 19/10/95, publicado no DR, série I-A de 28/12/95.
[3] In Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, 2ª edª., pág. 913.
[4] Cfr. Luís Osório, Notas ao Código Penal Português, vol. III, pág. 321.
[5] Neste sentido, v. Ac. do STJ de 18.01.2006, Proc. nº 05P4221, citado por Faria Costa in ob. cit., pág. 912.
[6] Neste sentido, decidiu o Ac. da Relação de Guimarães de 17.02.2010, Des. Nazaré Saraiva, disponível em www.dgsi.pt.
[7] Estudo atrás citado, pág. 168.
[8] In CJ, 1996, Tomo IV, pág. 295.
[9] Assim o entende uma parte muito significativa da doutrina (entre nós, Faria e Costa, no Comentário Conimbricense do Código Penal e Beleza dos Santos, no estudo «Algumas considerações jurídicas sobre crimes de difamação e injúria», Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 92, n.º 3152).
[10] Cfr. Ac. desta Relação do Porto de 21.09.2011, Proc. nº 762/09.0TAVNG.P1, Des. Joaquim Gomes, disponível em www.dgsi.pt
[11] Cfr., entre outros, Ac. desta Relação do Porto de 11.07.2007, Proc. nº 0742984, Des. Artur Oliveira, disponível em www.dgsi.pt.
[12] Cfr. Acs. do Trib. Constitucional nºs. 265/94, 322/93, 610/96, 189/2001.
[13] V. Acs. do Trib. Constitucional nºs. 287/90, 447/93, 249/94, 270/95, 337/96, 496/96, 182/98 e 335/2006.