Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
655/11.0TBFLG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: CARLOS QUERIDO
Descritores: CESSÃO DA POSIÇÃO CONTRATUAL
PRESTAÇÕES SUPLEMENTARES
ESCRITO PARTICULAR
INTERPRETAÇÃO DO CONTRATO
Nº do Documento: RP20150504655/11.0TBFLG.P1
Data do Acordão: 05/04/2015
Votação: MAIORIA COM 1 VOT VENC
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Na interpretação dos contratos, prevalecerá, em regra, a vontade real do declarante, sempre que for conhecida do declaratário; faltando esse conhecimento, a declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante.
II - A interpretação das cláusulas contratuais envolve matéria de facto quando importa a reconstituição da vontade real das partes, constituindo matéria de direito quando, na impossibilidade de apuramento de tal vontade, há que averiguar qual o sentido deduzido do comportamento do declarante por um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário.
III - Só após se concluir, face ao confronto dos meios probatórios, pela inviabilidade de reconstituição da vontade real das partes manifestada num escrito particular (em sede de impugnação da decisão da matéria de facto), se deverá recorrer às regras interpretativas previstas nos artigos 236.º e seguintes do Código Civil.
IV - Questionando-se se através de um escrito particular as partes acordaram que o autor cedia a sua posição contratual nas prestações suplementares por ele constituídas a favor da ré sociedade, mediante pagamento do 2.º réu (sócio restante), a acrescer ao valor acordado para a cessão de quotas e reembolso dos suprimentos, e resumindo-se o recurso à impugnação da decisão matéria de facto, poderá proceder-se nessa sede à aplicação das regras interpretativas enunciadas, com vista a uma resposta definitiva quanto à demonstração ou não do facto em causa.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 655/11.0TBFLG.P1

Sumário do acórdão:
I. Na interpretação dos contratos, prevalecerá, em regra, a vontade real do declarante, sempre que for conhecida do declaratário; faltando esse conhecimento, a declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante.
II. A interpretação das cláusulas contratuais envolve matéria de facto quando importa a reconstituição da vontade real das partes, constituindo matéria de direito quando, na impossibilidade de apuramento de tal vontade, há que averiguar qual o sentido deduzido do comportamento do declarante por um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário.
III. Só após se concluir, face ao confronto dos meios probatórios, pela inviabilidade de reconstituição da vontade real das partes manifestada num escrito particular (em sede de impugnação da decisão da matéria de facto), se deverá recorrer às regras interpretativas previstas nos artigos 236.º e seguintes do Código Civil.
IV. Questionando-se se através de um escrito particular as partes acordaram que o autor cedia a sua posição contratual nas prestações suplementares por ele constituídas a favor da ré sociedade, mediante pagamento do 2.º réu (sócio restante), a acrescer ao valor acordado para a cessão de quotas e reembolso dos suprimentos, e resumindo-se o recurso à impugnação da decisão matéria de facto, poderá proceder-se nessa sede à aplicação das regras interpretativas enunciadas, com vista a uma resposta definitiva quanto à demonstração ou não do facto em causa.

Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I. Relatório
B… intentou em 25.03.2011, no Tribunal Judicial de Felgueiras, acção declarativa ordinária contra C…, Lda. e D… e esposa E…, formulando os seguintes pedidos de condenação dos réus: a) que sejam os segundos réus D... e esposa E… condenados a pagar ao autor a quantia de 79.807,96€, a cujo pagamento/restituição se obrigou o segundo réu por negócio/convenção junto a fls. 26 e 27 dos autos, acrescida de juros legais desde a data da assinatura do acordo referido, ou quando assim se não entenda, desde 08.11.2010, ou ainda, quando assim se não entenda, desde a citação até efectivo e integral pagamento; subsidiariamente, e para o caso do primeiro pedido ser julgado improcedente, b) que seja declarada a nulidade da constituição de todas as prestações suplementares constituídas pelo autor em favor da primeira ré C…, no valor global de 79.807,96€, e inscritas nos últimos balanços anuais desta, e consequentemente, condenada esta primeira ré no seu reembolso ao autor, com juros legais desde a citação até integral pagamento.
Para fundamentar as respectivas pretensões alegou o autor em síntese: em 09/04/2010, o autor e o segundo réu, este por si e em representação da primeira ré, outorgaram no Cartório Notarial de Celorico de Basto, a cessão de quotas do primeiro para o segundo, e para a referida representada deste, C…, Lda, nas proporções constantes da referida escritura, que teve por objecto a divisão, cessão e unificação de quotas, nos moldes lá exarados e a renúncia à gerência por banda do autor; paralelamente, e na mesma data daquela escritura de cessão de quotas, o autor foi reembolsado pela primeira ré do valor dos suprimentos que lhe havia efectuado até aquela data, no montante de 43.956,00€; sucede que ao tempo das aludidas cessões de quotas, o autor tinha efectuado a favor da primeira ré “prestações suplementares” no valor de 79.807,66€, correspondentes a metade das prestações suplementares globais com que os então únicos sócios – o autor e o segundo réu -, tinham contribuído para a sociedade, conforme resulta da inscrição contabilística nos últimos balanços anuais da primeira ré; o autor e o segundo réu haviam acordado antes da aludida escritura e como parte integrante do conjunto do negócio, que o primeiro cederia a sua posição contratual nas prestações suplementares constituídas por ele autor na primeira ré, ao segundo réu, por aquele mencionado valor de 79.807,66€, visando o adquirente transferi-las para seu nome no âmbito da sociedade primeira ré, a fim de as inscrever como por si efectuadas ou lhe pertencendo, nos competentes registos de escrituração comercial, ou obter o seu reembolso junto da sociedade; o autor e o segundo réu chegaram a assinar, também em 09/04/2010, um documento que visava a cedência pelo 1º ao 2º das prestações suplementares no aludido valor de 79.807,66€ “por valor igual ao seu valor nominal”; quando tal documento já estava assinado em duplicado pelos aludidos intervenientes maridos, o segundo réu anunciou que não tinha consigo o pagamento devido, ficando então combinado entre o autor e sua esposa, e ele segundo réu, que dentro de 2/3 dias este procederia ao pagamento e só depois a esposa do 1º assinaria o documento que titulasse tal cessão; porém, tal não ocorreu, o que corresponde, por parte do segundo réu, ao incumprimento de obrigação contratualmente assumida, gerando, pois, a obrigação de indemnizar, cujo valor corresponde, precisamente, ao da obrigação não cumprida, atento o dano causado; se assim não se entender, sempre, face ao regime legal das prestações suplementares, que consta dos artigos 210º e ss do código das sociedades comerciais, a constituição das prestações suplementares que se encontram inscritas na contabilidade, foi feita contra lei imperativa, o que determina a sua nulidade, com efeito retroactivo e a consequência de tal nulidade é a de ser restituído quanto houver sido prestado.
Contestaram os réus e reconvieram, concluindo, desde logo, pela improcedência total da acção, mais aduzindo a litigância de má fé por parte do autor e pedindo a intervenção principal da mulher do autor, para efeitos de contra ela proceder ainda o pedido reconvencional deduzido.
Para justificarem a improcedência da acção alegaram os réus em síntese: o preço acordado na escritura a que alude o autor foi estipulado com referência ao valor das prestações suplementares por aquele efectuadas, razão pela qual o documento a que o autor reconduz o acordo no sentido do pagamento daquelas, a acrescer ao valor da cessão da quota, apenas se destinou a efeitos contabilísticos, posto que, ao contrário do alegado, nunca o segundo réu se comprometeu a pagar outra quantia; o facto de o autor vir agora reclamar a restituição dessas prestações suplementares, constitui um “venire contra factum proprium”, dada a declaração que fez no contrato, convocando, pois, o instituto do abuso do direito, no que interessa ainda à pretensão subsidiária.
Em sede reconvencional alegam os réus contestantes: o comportamento de má fé do autor e a presente acção acarretam-lhes prejuízos, causando danos à boa imagem e bom-nome de todos os réus, junto dos fornecedores, bancos e clientes em geral; o fácil acesso de todos em geral aos meios informáticos leva a que a existência deste processo judicial seja já do conhecimento de terceiros, que se relacionam com o segundo e terceiro réus e principalmente com a primeira ré sociedade; terceiros esses – alguns – que já têm confrontado os réus com esta acção, levando-os a ter que dar explicações sobre a situação; e, bem assim, de outros que, nada dizendo, podem concluir que os réus são “caloteiros”; o que é mais grave na actual conjuntura difícil de mercado; pelo que o autor deve ser condenado como litigante de má-fé, em valor a arbitrar equitativamente.
Concluem, pois, peticionando a condenação do autor a satisfazer-lhes as indemnizações pelo dano moral e litigância de má fé caracterizadas.
O autor veio tomar posição quanto à reconvenção e intervenção principal deduzidas, pronunciando-se desde logo no sentido da inadmissibilidade de ambas e sempre pela respectiva improcedência, nos termos que do articulado respectivo melhor resultam.
Em 24.02.2012 foi proferido despacho, no qual: foi dispensada a audiência preliminar; foi decidido indeferir a intervenção principal da esposa do autor, requerida pelos réus na contestação; foi considerada processualmente inadmissível pretensão reconvencional deduzida pelos réus; foi proferido saneador tabelar, aferindo-se positivamente a totalidade dos pressupostos processuais; foi condensada a factualidade relevante, com definição da matéria factual assente e organização da base instrutória.
Realizou-se a audiência de julgamento, após o que em 27.11.2014 foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:
«Tudo visto, julgo a presente acção improcedente, por não provada, absolvendo os RR da totalidade dos pedidos deduzidos, a título principal e subsidiário.
Custas da acção pelo Autor.
Julgo improcedente a pretensão de condenação do Autor como litigante de má fé, absolvendo-o do pedido de condenação a satisfazer aos RR uma indemnização a tal título.
Sem tributação, nesta parte.».
Não se conformou o autor e interpôs recurso de apelação, apresentando alegações, onde formula as seguintes conclusões:
1) Na presente acção, o Autor e aqui recorrente veio, em primeira mão, reclamar dos Réus D… e esposa, o pagamento do valor correspondente a metade das prestações suplementares que se encontravam relevadas na contabilidade da sociedade C…, Lda, da qual foram únicos sócios e com iguais percentagens no seu capital, em consequência da obrigação por estes últimos assumida no documento particular datado de 09/04/2010 que formalizou a cedência do direito de crédito àquelas prestações suplementares sobre a mencionada sociedade. E subsidiariamente vinha exigir da sociedade o reembolso do valor correspondente à metade das prestações suplementares inscritas na contabilidade da sociedade, por decorrência da nulidade nessa prestação, em virtude da obrigatoriedade da sua realização não constar da contrato de sociedade nem haver deliberações anteriores que as legitimassem.
2) Contra-argumentaram os Réus, aduzindo que no negócio que envolveu a venda quota social ficou acordado que o valor respeitante à cedência da quota seria de 350.000€ ao que acresceria o crédito de suprimentos no montante de 43.956,00€, nada mais havendo a pagar, uma vez que o valor respeitante ao crédito das prestações suplementares estava já incluído naquele, do negócio, tendo o documento particular assinado, datado de 09/04/2010 servido unicamente para efeitos contabilísticos.
3) Saneado o processo e realizada a audiência de julgamento dela sobrevieram os factos dados como provados e não provados, sendo que a convicção do tribunal para tal adveio da documental junta indicada e sem considerar qualquer dos depoimentos ali prestados e, em relação à questão de dilucidar acerca da cedência das prestações suplementares, formalizada através do documento particular datado de 09/04/2010 e a que se reporta a alínea f) dos factos provados, considerou a equivocidade da declaração constante de tal documento, não logrando [o tribunal] alcançar o verdadeiro sentido a extrair do mesmo.
4) Já nas alegações orais produzidas no final da audiência de julgamento, pela voz do advogado subscritor desta peça recursória, abandonou a arguição da nulidade das prestações suplementares e o pedido que com base na mesma havia formulado.
5) O recorrente, desta feita assistido pelo advogado signatário, também entende que uma tal nulidade não existe, estando inteiramente de acordo quanto às considerações dogmáticas tecidas ao longo da douta fundamentação da sentença recorrida, pelo que, em relação às prestações suplementares realizadas é incontroverso que: (i) as mesmas foram realizadas e, (ii) em consequência da sua realização, ambos os sócios eram credores da sociedade a título de prestações suplementares no montante de 79.807,96€ cada um.
6) O recorrente dissente, porém, quanto ao desfecho da acção, porque entende que da interpretação a extrair do documento particular com base no qual reclamou dos Réus singulares o pagamento da quantia peticionada, por si e conjugado com a regras da experiência, convocando as regras de interpretação a fazer, deveria ser outra bem diferente.
7) Entende, igualmente, que o tribunal “a quo”, em virtude da neutralidade de interpretação a que chegou quanto ao teor de tal documento incorreu em erro de julgamento, quer de direito, quer quanto à matéria de facto, no tocante a este quando deu como não provado: “Autor e 2º R. marido acordaram, antes da escritura a que se alude em A) e, como parte integrante do conjunto do negócio, que o primeiro cederia a sua posição contratual nas prestações suplementares constituídas por ele na 1ª Ré, ao 2º R. marido mediante o pagamento pelo 2º Réu ao 1º do valor de 79.807,96€, a acrescer ao valor acordado para a cessão quotas e ao valor do reembolso dos suprimentos.”
8) A questão a decidir neste recurso consiste em saber se, em face do documento particular datado de 09/04/2010 o Réu D…, sócio da C…, Lda assumiu perante o antigo sócio e aqui Autor, a obrigação de pagamento da quantia de que aquele era credor da sociedade a título de prestações suplementares, no valor de 79.807,96€ e, caso assim seja, se não é então possível concluir que antes da escritura da cedência de quota as partes haviam negociado também a cedência o crédito de prestações suplementares que o Autor tinha na sociedade mediante o pagamento a efectuar por aquele sócio, de montante igual ao desse crédito?
9) Julgamos que dos elementos probatórios dos autos é possível a obtenção da resposta positiva às duas questões.
10) O ponto de divergência entre A. e Réus reside em saber se a cedência do crédito de prestações suplementares era feita tendo como contrapartida o pagamento de igual montante, ou não.
11) Na versão dos Réus esta cedência – a do crédito do montante das prestações suplementares tal como consta do documento particular datado de 09/04/2010 – era feita sem qualquer contrapartida, porque englobada no valor do negócio que invocaram ser de 393.956,00€, argumentando que o documento em causa se destinou unicamente para efeitos contabilísticos.
Este facto, que vinha alegado pelos Réus, mereceu a resposta de “não provado” – vide ponto 3 dos factos não provados da sentença.
12) Na tese dos Réus a cedência do crédito de prestações suplementares no significativo montante de 79.807,696€ seria feita a título gratuito, posto que nada havia (segundo os Réus) a pagar por tal transmissão.
13) Acontece que as prestações suplementares, integrando embora os capitais próprios da sociedade, não fazem parte do seu capital social. Na verdade, constituindo um crédito de quem as realiza, tais prestações suplementares são, ao contrário das entradas e reforços de capital, reembolsáveis, com uma dada restrição, única, prevista na lei – artº 213º/1/3 do CSC – qual seja a da situação líquida da sociedade, após o reembolso, não ficar inferior à soma do capital e da reserva legal.
14) Como se sustenta na douta sentença recorrida, e é inquestionável, “o crédito às prestações suplementares é cindível da quota social, podendo, nomeadamente, ser cedido, transmitido ou vendido.” (sic)
15) Se as partes quisessem transmitir pelo preço da quota os créditos de suprimentos de prestações suplementares não só teriam consignado isso na escritura, como não teria havido qualquer pagamento adicional para além dos 350.000,00€, nem celebrado o contrato de cedência de posição contratual relativo às prestações suplementares tal como fizeram através do documento particular na data da escritura.
16) Tão pouco faria sentido que, tendo a sociedade também adquirido uma participação social, e até de valor nominal superior àquele por que foi adquirida a do 2º R. marido, não fosse contemplada na cedência do crédito de prestações suplementares se – ao contrário do que sucedeu – por tal cedência nada houvesse a pagar ao Autor.
Com efeito, na versão dos Réus fica sem se perceber a que título o Autor teria cedido sem qualquer contrapartida ou obrigação de pagamento ao então seu sócio o crédito de prestações suplementares, se havia cedido em percentagem até maior da sua quota social à própria sociedade?
17) Não tendo o tribunal conhecido/apurado a vontade real dos declarantes, outra não pode ser a interpretação a fazer do mesmo senão em função das regras ditadas pelo artº 236º/1 e 237º do C Civil para dela extraír uma interpretação plausível, de acordo com os ditames do artº 236º, que consagra o princípio da impressão do normal destinatário, e do artº 237º do C Civil, visto que não foi possível conhecer a real vontade das partes, tal como o deixou expresso o tribunal recorrido na douta sentença.
18) E assim sendo, haverá que recorrer à interpretação de acordo com o princípio da impressão do normal destinatário, consagrado nos artº 236º/1 do C Civil e da contida para a situações duvidosas, prevista no artigo seguinte.
19) Importa por isso atentar no clausulado do contrato denominado de Contrato de Cedência de Posição Contratual Nas Prestações Suplementares”, datado de 09/04/2010, junto aos autos – cláusulas 2ª e 3ª – dele resultando inequívoco entre as partes existiu a vontade de transmitir ao Réu marido, o crédito do Autor relativo a prestações suplementares.
20) A expressão o 2º outorgante “cede” não deixa margem a dúvidas quanto a tal intenção.
21) Na mesma cláusula pode ler-se que: …cede …, por valor igual ao seu valor nominal. Esse valor nominal, no contexto gramatical da afirmação constante da cláusula, não pode ser outro que não o valor de 79.807,96€ referente ao crédito de prestações suplementares que o 2ºoutorgante detinha na sociedade.
22) Referir-se pelo “preço de” ou “por valor igual ao seu valor nominal”, depois de indicar esse concreto valor é exactamente o mesmo e significa que a cedência foi (era) efectuada pelo valor, pelo preço, tendo contrapartida, o pagamento de 79.807,96€, ficando, por conseguinte, afastada qualquer interpretação que permita concluir que o negócio de cedência desse crédito foi gratuito ou sem contrapartida.
23) E também não cabe numa interpretação que conduzisse à solução que o valor estaria integrado no valor a pagar da quota social. Não só porque, como se aduziu, não foi somente o 2º Réu marido o cessionário da participação alienada pelos Autores, mas também e em percentagem maior, a própria sociedade, que assim, deveria então ficar com um crédito na proporção da quota que adquiriu, como nenhuma das quotas divididas do Autor foram objecto de cedência pelos respectivos valores nominais.
24) Sendo assim, a expressão “pelo valor nominal”, não pode ser interpretada como respeitando ao valor nominal da quota, tanto mais que nem foi por esse valor que a quota, depois da divisão, foi cedida.
25) Ao contrário do que parece deixar sugerido a douta sentença não foi o Autor que exigiu da Ré sociedade nem do sócio que o pagamento referente às aquisições das quotas e ao reembolso de suprimento tivesse sido efectuado por meio de cheques visados. Nem isso resulta dos factos provados!...
26) Ao referir-se que “com a cedência nada mais têm a reclamar” significa que os Autores já tinham celebrado a escritura de cedência das quotas, doutro modo arriscavam-se a ter que celebrá-la sem nada receberem, uma vez que, ao declararem que com a cedência do crédito de prestações suplementares nada mais tinham a reclamar da sociedade, em relação, pelo menos, a esta, obrigados estariam a ceder-lhe a quota sem que dela pudessem exigir-lhe o que fosse.
27) Daqui se infere, com suficiente razoabilidade e segurança, que o contrato, embora com a mesma data da escritura, se lhe seguiu temporalmente. Ou seja, foi assinado depois do acto da escritura e isto ajuda a perceber o que realmente se passou tal como se deixou descrito no corpo das alegações deste recurso.
28) O facto de no contrato não se aludir ao momento do vencimento da obrigação de pagamento, não inviabiliza que o Réu não tivesse (ou tenha) que pagar aquele montante, visto estar em causa uma obrigação pecuniária e no domínio das chamadas obrigações puras ou sem prazo fixo, o credor ter o direito de exigir do devedor, a todo o tempo, o respectivo pagamento, nos termos previstos no artº 777º/1 do C Civil. Do que resulta que o Autor pudesse, em qualquer altura, exigir dos Réus singulares o referido pagamento, não relevando, por isso, e muito menos em seu desfavor, a ausência de fixação de tal prazo de cumprimento.
29) A cedência do crédito relativo às prestações suplementares implicou uma venda; pelo valor nominal do crédito dessas prestações.
30) Assim sendo, na dúvida – se dúvida houvesse – quanto ao sentido da declaração, ou clausulado do referido contrato, prescreve o artº 237º do C Civil que “prevalece, nos negócios gratuitos, o menos gravoso para o disponente e, nos onerosos, o que conduzir ao maior equilíbrio das prestações.”
31) De acordo com este princípio – o do equilíbrio das prestações – a interpretação que melhor se ajusta é a da obrigação de pagamento do valor das prestações suplementares que o Autor detinha na sociedade C…, Lda, no montante de 79.807,96€. Desde logo porque o Réu marido nada tem a perder na medida em que se tornou credor da sociedade do valor de tais prestações.
32) De todo o exposto resulta que, é entendimento do recorrente que, em face do documento particular que constitui o contrato denominado de “Contrato de Cedência de Posição Contratual Nas Prestações Suplementares”, datado de 09/04/2010 junto aos autos (documento a que se laude na alínea f) dos factos provados) e da interpretação a extrair dele, conjugado com as regras da experiência, foi incorrectamente julgada a factualidade constante do ponto 1 dos factos não provados.
33) Em função de tais meios probatórios deveria ter sido como provado o seguinte: Autor e 2º Réu marido acordaram, como parte integrante do negócio da cedência da quota social que aquele possuía na 1ª Ré, que o primeiro lhe cederia o crédito relativo a prestações suplementares pelo mesmo montante de 79.807,96€, que o segundo lhe pagaria em acréscimo do valor acordado pela cessão de quotas e ao valor do reembolso de suprimentos.
O que faz, requerendo a alteração da matéria de facto, em cumprimento do disposto no artº 640º/1 do NCPC.
34) Resultando do contrato que sobre os Réus singulares impende a obrigação de pagamento ao Autor do montante de 79.807,96€. Verificando-se que não o tendo efectuado, pelo menos desde a data da interpelação efectuada por via da notificação judicial avulsa, ou, quando não assim, então a partir da citação, os Réus singulares incorrerem em mora e na consequente obrigação de indemnizar o Autor, por incumprimento culposo da sua parte, correspondendo a indemnização à obrigação do pagamento dos respectivos juros de mora – tudo, nos termos conjugados dos artºs 405º, 406, 577º, 578º (ou artºs 424 e 425º), 874º, 879º, 762º, 772º, 798º, 804º, 805º/1 e 559º, todos do Código Civil, sendo de presumir a culpa dos Réus no incumprimento, por força do disposto no artº 799º do mesmo diploma.
35) O tribunal recorrido incorreu ainda em erro de julgamento em matéria de Direito, porquanto não atendeu às regras de interpretação dos contratos, previstas nos artºs 236º/1 e 237º, ambos do C Civil e o não aplicar os normativos antecedentemente invocados, de que resultaria a procedência da acção e a consequente condenação dos Réus singulares no pedido que contra eles vem formulado.
Termos em que deve ser dado provimento ao presente recurso e por via disso, ser alterada, conforme proposto a matéria de facto com a consequente revogação da decisão, devendo, em conformidade, proferir-se douto acórdão que julgue procedente a acção condenado os 2ºs Réus no pagamento ao Autor/recorrente da quantia de 79.807,96€, referente ao crédito de prestações suplementares objecto de cedência, acrescida dos juros vencidos e vincendos até integral pagamento, como é da maior Justiça.
Os réus responderam às alegações de recurso do autor, terminando a sua alegação com as seguintes conclusões:
1. No caso há a considerar os seguintes factos, provados, relevantes:
a) - O A. era titular de quota no valor nominal de 50.000,00€;
b)- O A. tinha um crédito de suprimentos, no valor de 43.956,00€;
c)- O A. tinha efetuado um montante de 79.807,66€, a título de prestações suplementares;
d)- O A. dividiu a sua quota de 50.000,00€ em 2: Uma no valor nominal de 25.500,00€, cedida à Sociedade Ré, pelo preço de 160.000,00€; Uma no valor nominal de 24.500,00€ cedida ao 1ºR., pelo preço de 190.000,00€;
e)- A escritura de Divisão e Cessão de Quotas realizou-se em 9/04/2010;
f)- Nessa mesma data, foi outorgado o documento sob o título “Contrato de Cedência de Posição Contratual nas Prestações Suplementares”, de cujo teor não consta a obrigação, dos R.R., de pagar o preço, prazo ou forma de pagamento;
g)- A acta nº 29 da sociedade, de 30/01/2010, da qual consta deliberação unânime dos sócios, aprovando a aquisição, pela Sociedade Ré, de quota do A., no valor nominal de 25.500,00€, pelo preço de 160.000,00€ e pagamento na data da escritura;
h)- A acta nº 30 da sociedade, de 30/03/2010, da qual consta deliberação unânime dos sócios, aprovando as contas da empresa à data de 30/11/2009 – trata-se do balanço especial;
i)- A acta da sociedade, avulsa, de 9/04/2010, da qual consta deliberação unânime dos sócios, aprovando a restituição dos suprimentos efectuados por ambos os sócios, no montante de 43.956,00€ cada;
j)- Todos os pagamentos ao A/apelante foram efectuados através de cheques visados;
2. Na Douta Sentença, ora em recurso, em “3 Convicção do Tribunal” consta o seguinte:
“…o depoimento do contabilista da 1ª Ré, F… corroborou a necessidade de elaboração de um documento para efeitos da contabilidade, relativo ás prestações suplementares, declarada ao ilustre mandatário do Autor que interveio no negócio de transmissão da quota daquele..”- não tirando daí, é certo, qualquer consequência.
“…já a ausência de referência no documento assente em F) ao prazo ou modalidades de pagamento de um preço ou valor ou á declaração de recebimento do mesmo, na falta ainda de entrega de cheque ou outro meio de pagamento na ocasião, como atestado (“agravado este significado indiciário pela atestada exigência pelo A. quanto à quantia relativa ao preço de transmissão da quota e à restituição de suprimentos, de cheques visados) de acordo com juízos de normalidade e regras de experiência, induzem a maior probabilidade da cedência sem contraprestação das prestações suplementares…”
3. Não resulta da factualidade, qualquer deliberação social, no sentido da restituição das prestações suplementares;
4. O valor recebido pelo A. ascendeu a 393.956,00€ (190.000,00€, mais 160.000,00€, mais 43.956,00€);
5.Tal como resulta da Acta nº 30, respeitante ao balanço especial, o valor patrimonial da participação social do A. (incluindo o valor das prestações suplementares) ascendia a 356.586,90€;
6. Ora, o A recebeu, a título do negócio realizado, o sobredito valor de 393.956,00€, largamente superior à soma dos valores nominais da quota (50.000,00€), suprimentos (43.956,00€) e prestações suplementares (78.807,66€), que dá o total de 172.763,66€; e, ligeiramente inferior à soma do indicado valor patrimonial e dos suprimentos (no total de 400.486,90€),
7. A verdade é que, tal como confessado pelo R.R., a pequeníssima diferença, relativamente ao valor do negócio, por si sempre considerado, justificou-se por se ter verificado um pagamento total, a pronto, ao invés de pagamento a prazo, inicialmente previsto.
8. Certo, pois, que A. efetivamente recebeu, pelo negócio que realizou, o preço acordado pela sua participação social (que incluía o valor das prestações suplementares) e o crédito de suprimentos que tinha sobre a sociedade.
9. Ou seja, recebeu o valor acordado, sendo claro que nada resulta da factualidade assente em contrário.
10. Como bem resulta da data da acta nº 29 (com data de 30/01/2010), em que consta a deliberação de aprovação da aquisição, pela sociedade, de quota própria, o negócio entre A. e 2ºR. foi ajustado em data bem anterior à da efectiva transmissão da quota (ocorrida em 9/04/2010); sendo certo que envolveu, necessariamente, outros actos: é o caso da aprovação do balanço especial, verificada em 30/03/2010 (acta nº30), por imperativo legal (nos termos em que a cessão ocorreu).
11. Quanto à aprovação da restituição dos suprimentos (acta avulsa) e documento “Contrato de Cedência de Posição Contratual nas Prestações Suplementares”, estes foram assinados simultaneamente com a escritura de Divisão e Cessão de Quota; O que é perfeitamente normal e usual em circunstâncias semelhantes, já que eram documentos de conveniência, das partes, ou de uma parte, e não essenciais para instruir a escritura – resulta desses documentos, que têm a mesma data da escritura, e nada consta da factualidade que tenham sido assinados em momento posterior à escritura e noutro local.
12. É pura brincadeira do A., a alegação de que “…o 2º Réu, depois de realizada a escritura, alegou que daí a dias lhe pagaria (a ele Autor) o valor do crédito das prestações suplementares”; ainda, de que nenhuma desconfiança existia entre os sócios; e, de que “… não foi o autor que exigiu que os pagamentos tivessem sido efectuados, como foram, por meio de cheques visados…pelo contrário foi o 2º R. que fez questão de que os pagamentos fossem assim efectuados numa demonstração de que o autor seria pago”.
13. Como bem se assinala na Douta sentença, em “3.Convicção do Tribunal”, a exigência dos cheques visados, relativos a todos os pagamentos efectuados foi do Autor.
14. No tocante às prestações suplementares, a ausência da previsão da obrigação de pagamento do preço, prazo e forma, constitui, de per si, e em conexão com a sobredita exigência dos cheques visados, um facto concludente: o valor das prestações suplementares não era, nem é, devido (não é para pagar).
15. E, por essa razão, em tal documento, não ficou expressa a obrigação de pagamento de preço, prazo e forma.
16. Na esteira de Jurisprudência e Doutrina entende-se que são factos concludentes “todos aqueles nos quais se possa apoiar uma ilação para se constituir o significado do comportamento, sendo este o resultado da ilação”
17. Atento o Artº 217, nº1 do Código Civil, o facto de o A. ter exigido cheques visados para assegurar os pagamentos da 1ª Ré e 2º R., conexionado com o facto de no Documento de Cedência de Posição Contratual nas Prestações Suplementares não constar qualquer obrigação de pagamento do 2º R., prazo e forma, traduz inequivocamente a vontade do A. ceder tais prestações, sem qualquer contraprestação, nomeadamente pecuniária; trata-se de um facto concludente, ou significativo – e, a Douta Sentença andou por aqui, ao referir que “… de acordo com juízos de normalidade e regras de experiência, induzem a maior probabilidade de cedência sem contraprestação das prestações suplementares”.
18. Ao invés, nada resulta da factualidade, que o 2º R. tenha assumido obrigação de pagamento, através de declaração expressa, ou tácita (esta dedutível de factos que com toda a probabilidade o revelassem).
19. O negócio ajustado entre as partes, tal como resulta da prova documental determinante – a escritura de divisão e cessão, a acta nº29, a acta avulsa, assinados pelas partes – foi o que foi, e isso pelas razões conhecidas do A. e 2º R., que os subscreveram;
20. Assim como, também, inequivocamente, assinaram o documento de cedência de posição contratual nas prestações suplementares, como constituindo uma cedência sem contraprestação, na medida em que nesse não ficou prevista a respectiva obrigação de pagamento, e, consequentemente, a respectiva forma.
21. O facto de se aludir, nesse documento da alínea f) dos factos provados, que “com a presente cedência o 2º outorgante nada mais tem a reclamar da Empresa C…, Limitada seja a que título for”, não é de estranhar; é que, se isso não fosse estipulado, o A. bem poderia vir a reclamar tal valor da sociedade – o que certamente aconteceria, atento o seu procedimento posterior.
22. Acresce que, como declaratário, o 2º R. nunca teve para si, que a declaração, do A., de cedência da posição contratual nas prestações suplementares, consubstanciava uma cedência onerosa; e sempre considerou que essa era, também, a vontade real do A. - cedência gratuita, não cedência onerosa.
23. Por isso, reagiu nos termos do que se assinala na alínea h) dos factos provados, à completamente surpreendente Notificação Judicial Avulsa do A.
24. Concorda-se inteiramente com a Douta Sentença, quando nesta se diz: “Por isso que, novamente, apenas e só, no acordo assente em f), a declaração pelo Autor de transmissão/cessão das suas prestações suplementares, sem que, por interpretação, se infira a assunção da obrigação pelo 1º R. de proceder ao pagamento de qualquer quantia ou valor”;
25. E, quando refere: “…indemonstrado, por tudo o que antecede, que o negócio subjacente á transmissão assente em f) tenha correspondido a uma “venda” ou transmissão a título oneroso do crédito cedido pelo autor”.
26. Muito bem andou a Douta Sentença ao considerar: “O autor não fez, consequentemente, a prova que lhe cabia, enquanto facto constitutivo do direito ao recebimento do preço respectivo, de que o 2º R se tenha comprometido, mais a mais pela subscrição do documento assente em f), a satisfazer-lhe o valor das prestações suplementares cedidas….Com o que improcedente a pretensão deduzida a título principal”
27. Não tem qualquer sentido, e aplicabilidade, como resulta da Douta sentença, o alegado pelo A., de que, em conformidade com o princípio do equilíbrio das prestações, a interpretação que melhor se ajusta é a obrigação de pagamento do valor das prestações suplementares que o A. detinha na sociedade; Com efeito, há que ver o negócio realizado como um todo, que gerou o recebimento, pelo A. do total de 393.956,00€, o pagamento pela sociedade ao A. de 160.000,00€, a título da quota, e de 43.956,00€, de suprimentos; o pagamento pelo 1º Réu. do valor de 190.000,00€, a título da quota, havendo para si as prestações suplementares do A. no valor nominal de 79.807,66€
28. A que título é mais equilibrado, nesse negócio, visto como um todo, o A. receber mais 79.807,66€, e o 2º R. ter que lho pagar, em acréscimo, quando nunca aceitou, expressa ou tacitamente, tal ser devido, e nunca se comprometeu a pagá-lo?
29. Mais, se algum desequilíbrio existe, no negócio realizado, esse não existe com o Autor; mas sim, entre a sociedade 1ª R. e o 2º R.
30. No entanto, sem qualquer prejuízo do A., que, quando cedeu a sua participação social, deixou de ter qualquer interesse na sociedade, e cuja situação, boa ou má, em nada o afecta.
31. Mais, tal situação, de aquisição de quota, pela sociedade, pelo preço de 160.000,00€ foi expressamente aprovada pelo A. (acta nº29); Certo é que, o A., no negócio realizado, recebeu efectivamente a totalidade do valor que, expressa e tacitamente acordou receber.
32. Parece óbvio, atenta toda a sobredita factualidade relevante, que, se o A. tivesse o direito de receber o valor das prestações suplementares, isso teria sido convencionado de forma clara, bem definida, no documento próprio – e o Ilustre Mandatário do A., que o acompanhou no negócio, não deixaria de o assegurar.
33. O A. quando invoca o “equilíbrio” das prestações, pretende, afinal, uma situação desequilibrada das prestações, em seu favor!
34. Face a tudo o exposto, a verdade é que a Decisão, ora em Recurso, não merece qualquer censura quando julgou não provado que: O A. e 2º R. marido acordaram, antes da escritura a que se alude em A) dos factos assentes, e como parte integrante do conjunto do negócio, que o primeiro cederia a sua posição contratual nas prestações suplementares constituídas por ele Autor na 1º R., ao 2º R. marido mediante o pagamento pelo 2º R. ao autor do valor de 79.807,66€, a acrescer ao valor acordado para a cessão de quotas e ao valor do reembolso dos suprimentos.
35. Na visão dos Apelados, sem outras considerações, isso resulta pela razão de se tratar de um facto concludente, conexionado com a demais prova produzida e convicção do Tribunal (esta no que concerne à atestada exigência do A. de cheques visados para os pagamentos): mas, resulta, também, das razões, clara e sabiamente expostas na Douta Sentença.
Nestes termos,
Deve ser negado provimento à Apelação
Mantendo-se “in totum” a Douta Sentença Recorrida

II. Do mérito do recurso
1. Definição do objecto do recurso
O objecto dos recursos delimitado pelos recorrentes nas conclusões das suas alegações (artigos 635º, nº 3 e 639º, nºs 1 e 3, ambos do Código de Processo Civil), salvo questões do conhecimento oficioso (artigo 608º, nº 2, in fine), consubstancia-se nas seguintes questões:
i) reponderação da decisão da matéria de facto, no que concerne ao segmento impugnado;
ii) reponderação da decisão na sua vertente jurídica, caso obtenha provimento a pretensão recursória anterior.

2. Reponderação da decisão da matéria de facto
Alega o recorrente:
«6) (…) entende que da interpretação a extrair do documento particular com base no qual reclamou dos Réus singulares o pagamento da quantia peticionada, por si e conjugado com a regras da experiência, convocando as regras de interpretação a fazer, deveria ser outra bem diferente.
7) Entende, igualmente, que o tribunal “a quo”, em virtude da neutralidade de interpretação a que chegou quanto ao teor de tal documento incorreu em erro de julgamento, quer de direito, quer quanto à matéria de facto, no tocante a este quando deu como não provado: “Autor e 2º R. marido acordaram, antes da escritura a que se alude em A) e, como parte integrante do conjunto do negócio, que o primeiro cederia a sua posição contratual nas prestações suplementares constituídas por ele na 1ª Ré, ao 2º R. marido mediante o pagamento pelo 2º Réu ao 1º do valor de 79.807,96€, a acrescer ao valor acordado para a cessão quotas e ao valor do reembolso dos suprimentos.”
8) A questão a decidir neste recurso consiste em saber se, em face do documento particular datado de 09/04/2010 o Réu D…, sócio da C…, Lda assumiu perante o antigo sócio e aqui Autor, a obrigação de pagamento da quantia de que aquele era credor da sociedade a título de prestações suplementares, no valor de 79.807,96€ e, caso assim seja, se não é então possível concluir que antes da escritura da cedência de quota as partes haviam negociado também a cedência o crédito de prestações suplementares que o Autor tinha na sociedade mediante o pagamento a efectuar por aquele sócio, de montante igual ao desse crédito?
9) Julgamos que dos elementos probatórios dos autos é possível a obtenção da resposta positiva às duas questões.».
Em suma, o autor/recorrente impugna a decisão de “não provado” correspondente ao quesito 1.º da base instrutória: «A. e 2.º R marido acordaram, antes da escritura a que se alude em A), e como parte integrante do conjunto do negócio, que o primeiro cederia a sua posição contratual nas prestações suplementares constituídas por ele, A., na 1.ª R, ao 2.ºR. marido pelo valor de €79.807,66?»[1].
Tal impugnação assenta apenas na prova documental, como expressamente refere o recorrente nas suas alegações:
«Excluída que foi – e bem - por irrelevante, a prova testemunhal produzida em audiência, conforme se deixou referido supra, o tribunal ateve-se à prova documental junta devidamente identificada na douta sentença.
O recorrente dissente, porém, quanto ao desfecho da acção, porque entende que da interpretação a extrair do documento particular com base no qual reclamou dos Réus singulares o pagamento da quantia peticionada, por si e conjugado com a regras da experiência, convocando as regras de interpretação supletiva a fazer, deveria ser outra bem diferente. (…)
A questão a decidir neste recurso consiste em saber se, em face do documento particular datado de 09/04/2010 o Réu D…, sócio da C…, Lda assumiu perante o antigo sócio e aqui Autor, a obrigação de pagamento da quantia de que aquele era credor da sociedade a título de prestações suplementares, no valor de 79.807,96€ e, caso assim seja, se não é então possível concluir que antes da escritura da cedência de quota as partes haviam negociado também a cedência o crédito de prestações suplementares que o Autor tinha na sociedade mediante o pagamento a efectuar por aquele sócio, de montante igual ao desse crédito?.
Julgamos que dos elementos probatórios dos autos é possível a obtenção da resposta positiva às duas questões.».
A M.ª Juíza fundamentou nestes termos a decisão da matéria de facto:
«A convicção do tribunal no que interessa aos factos provados e não provados que antecedem e melhor se diria a falta de convicção do tribunal fundou-se:
No teor das actas juntas aos autos e respeitantes às assembleias da 1ª Ré, no que importa à matéria sob J), posto que o atestam.
No teor da declaração de quitação mesma constante da escritura de cessão aludida na matéria assente, não desmentida em juízo por ninguém.
No que mais importava, quanto ao sentido da declaração constante sob F):
Na equivocidade do teor literal mesmo do contrato junto aos autos e transcrito em F) da matéria assente, posto que insolúvel, a partir dos seus próprios termos, muito relevantemente quando se considere a contraditoriedade/antonímia entre a expressão “ceder”, que no uso comum se reporta a uma entrega voluntária gratuita ou sem contraprestação, e a indicação de um valor, que, por outro lado não vem referido como preço ou contraprestação, na ausência outrossim a qualquer referência a prazo, modo de pagamento e/ou declaração de quitação ou recebimento. Assim, a interpretação literal do texto da declaração não permite ter por demonstrada, sem dúvidas, uma ou outra das versões em confronto nestes autos.
Por outro lado, a prova testemunhal produzida em audiência não serviu para corroborar também uma ou outra daquelas versões, quedando-se, assim, duvidoso, quer o acordo no sentido do pagamento pelo 2º Réu do valor das prestações suplementares, a acrescer ao preço da transmissão de quotas, quer a outorga do documento assente em F) apenas para finalidades contabilísticas…
Desde logo, imprestáveis os depoimentos “de ouvir dizer” e às partes mesmas quanto aos termos do negócio.
(…) a falta ou ausência de um procedimento deliberativo da restituição ou pagamento daquelas prestações, a exemplo do que sucedeu com os suprimentos, não induz, do ponto de vista das regras da experiência, um ou outro sentido do acordo realizado e assente em F)…
Já a ausência de referência no documento assente em F) ao prazo ou modalidades de pagamento de um preço ou valor ou à declaração de recebimento do mesmo, na falta ainda de entrega de cheque ou outro meio de pagamento na ocasião, como atestado (“agravado” este significado indiciário pela atestada exigência pelo Autor, quanto à quantia relativa ao preço da transmissão da quota e à restituição de suprimentos, de cheques visados), de acordo com juízos de normalidade e regras de experiência, induzem a maior probabilidade da cedência sem contraprestação das prestações suplementares… Sem que a “história” trazida a juízo pela mulher mesma do Autor se revista de absoluta inverosimilhança e infirmando aquele significado sempre indiciário.
Tudo para dizer, em síntese, que a prova produzida se apresentou inconcludente ou insuficiente, já que os factos também só indiciários trazidos à audiência (como exposto, quanto aos factos directamente objecto de prova, apenas e só o que às testemunhas foi contado por uma ou outra das partes, Autor e 2º Réu marido, em termos, pois, imprestáveis) não têm um significado probabilístico relevante, em termos de permitirem um juízo de corroboração periférica ou mesmo de inferência pela conformidade à verdade de uma ou outra das versões em confronto… Tudo isto, tendo em conta as máximas indiciárias (tanto as de conteúdo de conteúdo determinístico-natural como as de conteúdo estatístico), fez irrelevar, repita-se, o tipo de testemunhos alvitrados, mesmo quando se considerem os reduzidos pontos cristalizados do lastro de coincidência das várias versões e o pequeníssimo grau indiciário de probabilidade (sobre estes conteúdos, vd. Karl Larenz, Metodologia da Ciência do Direito, FCG, 2ª edição, 367 e ss.) que se impõe, o que tudo não permitiu ao tribunal, na compreensão global dos factos, adquirir a convicção da verificação dos factos tais quais alegados em aposição por uma e outra partes nestes autos.
Donde a mais odiosa das decisões probatórias. (…) não cremos ser possível levar a dar como assente outra factualidade e apurar outra verdade.».
A dilucidação da questão terá, necessariamente, que assentar: i) na análise do documento em causa – documento particular junto aos autos, que as partes denominaram como “CONTRATO DE CEDÊNCIA DE POSIÇÃO CONTRATUAL NAS PRESTAÇÕES SUPLEMENTARES”, datado de 9 de Abril de 2010; ii) na articulação do referido documento com os restantes que se encontram juntos aos autos, particularmente com a escritura pública outorgada pelas partes na mesma data, designada de “DIVISÃO, CESSÃO e UNIFICAÇÃO DE QUOTAS e RENÚNCIA DE GERÊNCIA”.
Vejamos o teor dos documentos em apreço:
1) Consta do contrato que as partes (autor e segundo réu) subscreveram (o segundo réu na qualidade de primeiro outorgante e o autor na qualidade de segundo outorgante) e que designaram por “CONTRATO DE CEDÊNCIA DE POSIÇÃO CONTRATUAL NAS PRESTAÇÕES SUPLEMENTARES”, datado de 9 de Abril de 2010:
«1.º O Primeiro e Segundo outorgante têm na sociedade C… (…) o montante global de 159.615,32€ (…) dividido em duas partes iguais cada uma de 79.807,66€ (…) correspondente a prestações suplementares que os sócios possuem na dita sociedade.
2.º Pelo presente documento o segundo outorgante cede ao primeiro outorgante o valor de 79.807,66€ (…) que este detém a titulo de prestações suplementares na sociedade “C… (…)” por valor igual ao seu valor nominal.
3.º Com a presente cedência o 2.º outorgante nada mais tem a reclamar da empresa “C… (…)” seja a que título for.
Ambos os outorgantes aceitam o presente contrato, sendo o mesmo realizado de livre e de boa fé e de acordo com as vontades dos cedentes»
2) No mesmo dia, os mesmos intervenientes outorgaram a escritura pública, designada de “DIVISÃO, CESSÃO e UNIFICAÇÃO DE QUOTAS e RENÚNCIA DE GERÊNCIA”, na qual declararam
«Que são os únicos sócios da sociedade comercial por quotas com a firma C…, LDA (…) com o capital social de cem mil euros.
Que no referido capital o primeiro outorgante é titular de duas quotas, uma no valor nominal de dois mil quatrocentos e noventa euros e noventa e nove cêntimos (bem próprio), e outra no valor nominal de quarenta e sete mil quinhentos e seis euros (bem comum), e o segundo outorgante de uma quota no valor nominal de cinquenta mil euros.
Pelo SEGUNDO OUTORGANTE, foi dito que divide a sua quota de valor nominal de cinquenta mil euros, em duas, uma no valor nominal de vinte e quatro mil e quinhentos euros e outra com valor nominal de vinte e cinco mil e quinhentos euros.
Que cede ao primeiro outorgante a quota no valor nominal de vinte e quatro mil e quinhentos euros pelo valor de cento e noventa mil euros, e cede à sociedade supra referida a outra quota com valor nominal de vinte e cinco mil e quinhentos euros, pelo valor de cento e sessenta mil euros. (…)
PELO PRIMEIRO OUTORGANTE, FOI DITO:
Que aceita a presente cessão nos termos exarados, para si, e para a mencionada sociedade.
(…)
PELOS SEGUNDO OUTORGANTES AINDA FOI DITO:
Que já receberam o referido valor da cessão das quotas, e ao primeiro outorgante e sua representada dão quitação.»
A questão suscitada reconduz-se à interpretação do negócio jurídico, no sentido de averiguar qual a vontade real manifestada pelas partes.
Conforme pacifica e reiteradamente tem entendido o Supremo Tribunal de Justiça, “[a] interpretação das declarações ou cláusulas negociais constitui matéria de facto”, quando com ela se visa a reconstituição da vontade real das partes[2].
É tempo de regressar à questão formulada no quesito 1.º da base instrutória: «A. e 2.º R marido acordaram, antes da escritura a que se alude em A), e como parte integrante do conjunto do negócio, que o primeiro cederia a sua posição contratual nas prestações suplementares constituídas por ele, A., na 1.ª R, ao 2.ºR. marido pelo valor de €79.807,66?».
Começamos por constatar uma evidência: no escrito particular – que as partes designaram por “CONTRATO DE CEDÊNCIA DE POSIÇÃO CONTRATUAL NAS PRESTAÇÕES SUPLEMENTARES” – os contraentes declaram nas cláusulas 2.ª e 3.ª: que o segundo outorgante [autor] cede ao primeiro outorgante [2.º réu] o valor de 79.807,66€ (…) que este detém a título de prestações suplementares, e que com esta cedência o 2.º outorgante nada mais tem a reclamar da empresa “C… (…) seja a que título for. Não existe no documento em apreço, como bem se refere na sentença, qualquer referência a prazo, modo de pagamento e/ou declaração de quitação ou recebimento.
Invocando as regras da experiência comum, diremos que soa com estranheza o facto de alguém declarar num documento, em simultâneo: que transfere para o seu sócio um determinado valor; e que a partir desse momento nada mais tem a reclamar da sociedade (detentora do referido valor) cujas participação sociais cedeu no mesmo dia.
Estas declarações, aparentemente contraditórias, poderão fazer algum sentido no confronto com um outro documento: a escritura pública.
Vejamos porquê.
Consta da escritura, que o autor/recorrente “cede ao primeiro outorgante (réu) a quota no valor nominal de vinte e quatro mil e quinhentos euros pelo valor de cento e noventa mil euros, e cede à sociedade supra referida a outra quota com valor nominal de vinte e cinco mil e quinhentos euros, pelo valor de cento e sessenta mil euros”.
Mais consta que o autor (e a esposa) “já receberam o referido valor da cessão das quotas, e (…) dão quitação”.
Ficou provado [alínea B)], que na mesma data, o autor foi reembolsado do valor dos suprimentos que lhe havia efectuado até aquela data, no montante de €43.956,00.
Em suma, no momento da celebração da escritura (outorgada no mesmo dia em que as partes subscreveram o documento particular), o autor/recorrente recebeu a quantia de € 393.956,00 [€ 190.000,00 + € 160.000,00 + € 43.956,00].
A articulação dos dois documentos permite-nos perceber o alcance da “declaração de quitação”[3] consignada no escrito particular que anteriormente se analisou: as partes estipularam num documento (escritura pública) a cessão de quotas e o pagamento do seu valor, e a renúncia à gerência, matérias que têm, necessariamente, que revestir tal solenidade formal; e no mesmo dia[4] estipularam num documento particular a cedência pelo autor, da prestação suplementar a favor do segundo réu, declarando o autor que nada mais tem a reclamar da sociedade “seja a que título for”; tal declaração parece-nos englobar todos os valores que anteriormente pudessem ser devidos ao autor/recorrente, que naquele dia abandonava a sociedade, renunciava à gerência, recebia e dava quitação dos valores em dívida.
Convém não esquecer que as prestações suplementares “constituem capital próprio das sociedades”[5], estando vinculadas à protecção do capital social e não podendo ser restituídas se declarada a insolvência da sociedade, constituindo capital vinculado e responsável pelas dívidas sociais, as duas características essenciais do capital social próprio[6]. Ao dar quitação num documento, relativamente ao valor das quotas cedidas e ao declarar no mesmo dia, num outro documento que com a “cedência” da prestação suplementar a favor do sócio restante «nada mais tem a reclamar da empresa “C… (…)” seja a que título for», é viável, à luz da experiência comum, a interpretação da conduta do autor/recorrente como manifestação da intenção de englobar nessa quitação e renúncia genéricas, todos os seus créditos.
Contrariamente ao que consta do texto do acordo, não ocorreu uma ‘cedência’ da prestação suplementar, que, como se referiu, integra o capital social da sociedade. Quanto muito, poderá equacionar-se uma cedência ao sócio restante (2.º réu), do crédito que o autor detinha sobre a sociedade.
Invocando novamente as regras da experiência comum[7], afigura-se-nos que o que seria lógico, à luz de um padrão de habitualidade e de racionalidade dos comportamentos, seria a estipulação no documento em que se consigna a “cedência” das prestações suplementares, do valor destas e da forma como seriam restituídas, o que se revela pouco compatível com a cláusula “com esta cedência o 2.º outorgante nada mais tem a reclamar da empresa “C… (…) seja a que título for”.
Alega o autor no artigo 23.º da petição inicial, com o objectivo de explicar a existência de dois documentos assinados na mesma data: “Com efeito, as sobreditas ‘prestações suplementares’, nos moldes expostos, foram documental e expressamente excluídas de transmissão conjunta ou englobada com as próprias cessões da dividida quota do segundo R. marido, fosse porque tal cessão de posição contratual relativa às “prestações suplementares” acrescia aos valores das cessões de quotas e reembolso de suprimentos, fosse porque tal projectada cessão de posição contratual operaria apenas em relação ao 2º R. marido e não a ambos os RR. cessionários.”.
Com o devido respeito, não colhe esta argumentação, na medida em que faria todo o sentido a inserção na escritura pública de mais uma cláusula (cedência do crédito referente a uma prestação suplementar) que dizia respeito a todos os outorgantes – particularmente à sociedade, (única) detentora desse valor, nos termos anteriormente enunciados.
Nunca saberemos qual a razão que levou as partes a celebrarem dois contratos no mesmo dia, mas na interpretação desses contratos não podemos prescindir da sua articulação lógica, e uma das hipóteses que ganha credibilidade nesse confronto, reside na possibilidade de, depois das declarações de cedência de quotas e de renúncia à gerência, e do recebimento pelo autor da quantia de € 393.956,00, as partes terem formalizado a cedência do crédito referente à prestação suplementar, englobando-o na quantia global referida.
É, como se referiu, apenas uma possibilidade, porque a dúvida não se desvanece e o raciocínio que se expôs também não permite a conclusão inversa (facto 2, não provado).
Não se revela possível dar como provada a tese defendida pelo segundo réu, expressa no facto provado H), que não constitui mais do que uma hipótese credível:
«H) O A. recebeu do 2º R. marido, a carta datada de 08/11/2010, nos termos da qual o mesmo afirma, entre o mais que aqui se dá por reproduzido:
«(…) Passado mais algum tempo e várias negociações chegamos a um acordo pelo valor de 400.000,00€, com todos os direitos e obrigações, ao que aceitaste.
(…) acabaste por acordar em deduzir €6.000,00 e eu paguei de imediato.
Assim actualmente não tens qualquer crédito ou dívida perante mim ou face à C…, seja a que título for.
Assim, feito o acordo, cedeste a tua participação social na empresa, pelo valor de 394.000,00€, a qual incluía naturalmente todos os direito inerentes, suprimentos, prestações suplementares e ainda todos os valores em dívida pelo exercício da gerência.
Lembro-te que existem como bem sabes, documentos subscritos pelas partes que respeitam à cessão propriamente dita, suprimentos e às prestações suplementares. (…)».
Também a tese defendida pelo autor, pese embora a estranheza perante a redacção do escrito particular, nomeadamente no que se refere à omissão a qualquer forma e prazo de pagamento, constitui uma hipótese possível, no entanto, longe de ser demonstrada.
Refere o recorrente nas suas conclusões de recurso:
«15) Se as partes quisessem transmitir pelo preço da quota os créditos de suprimentos de prestações suplementares não só teriam consignado isso na escritura, como não teria havido qualquer pagamento adicional para além dos 350.000,00€, nem celebrado o contrato de cedência de posição contratual relativo às prestações suplementares tal como fizeram através do documento particular na data da escritura.
16) Tão pouco faria sentido que, tendo a sociedade também adquirido uma participação social, e até de valor nominal superior àquele por que foi adquirida a do 2º R. marido, não fosse contemplada na cedência do crédito de prestações suplementares se – ao contrário do que sucedeu – por tal cedência nada houvesse a pagar ao Autor.
Com efeito, na versão dos Réus fica sem se perceber a que título o Autor teria cedido sem qualquer contrapartida ou obrigação de pagamento ao então seu sócio o crédito de prestações suplementares, se havia cedido em percentagem até maior da sua quota social à própria sociedade?
17) Não tendo o tribunal conhecido/apurado a vontade real dos declarantes, outra não pode ser a interpretação a fazer do mesmo senão em função das regras ditadas pelo artº 236º/1 e 237º do C Civil para dela extraír uma interpretação plausível, de acordo com os ditames do artº 236º, que consagra o princípio da impressão do normal destinatário, e do artº 237º do C Civil, visto que não foi possível conhecer a real vontade das partes, tal como o deixou expresso o tribunal recorrido na douta sentença.
18) E assim sendo, haverá que recorrer à interpretação de acordo com o princípio da impressão do normal destinatário, consagrado nos artº 236º/1 do C Civil e da contida para a situações duvidosas, prevista no artigo seguinte.».
Citámos anteriormente jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, na qual se conclui que «[a] interpretação das cláusulas contratuais envolve matéria de facto quando importa a reconstituição da vontade real das partes, constituindo matéria de direito quando, no desconhecimento de tal vontade, se deve proceder de harmonia com o artº 236º, nº 1 do Código Civil.».
A jurisprudência tem considerado que «na interpretação dos contratos, prevalecerá, em regra, “a vontade real do declarante”, sempre que for conhecida do declaratário; faltando esse conhecimento, a declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante (...)»[8].
Resulta da argumentação anteriormente expendida, que do confronto dos documentos (único suporte probatório invocado para fundamentar a divergência do recorrente) não se revela viável a detecção da reconstituição da vontade real das partes.
Afigura-se-nos, no entanto, que a resposta à questão suscitada implica a aplicação imediata, nesta sede, das regras de interpretação do negócio jurídico, isto porque o Tribunal não pode considerar provado ou não provado o facto questionado[9] e depois, em sede de integração jurídica, aplicar essas normas interpretativas, na medida em que tal aplicação estaria absolutamente prejudicada.
Pela razão invocada, passamos a apreciar a questão à luz das normas interpretativas do negócio em causa.
Vocacionados para dirimir a questão, os artigos 236.º a 238.º do Código Civil prevêem as regras que o intérprete deverá seguir, consagrando uma doutrina objectivista da interpretação, temperada por uma salutar restrição de inspiração subjectivista[10].
O n.º 1 do artigo 236.º consagra a denominada teoria da impressão do destinatário, nestes termos: «A declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele».
O n.º 2 do citado normativo estabelece o princípio de que «[s]empre que o declaratário conheça a vontade real do declarante, é de acordo com ela que vale a declaração emitida».
O artigo 237.º prevê as situações de dúvida interpretativa, estabelecendo o seguinte critério para a sua superação: «Em caso de dúvida sobre o sentido da declaração, prevalece, nos negócios gratuitos, o menos gravoso para o disponente e, nos onerosos, o que conduzir ao maior equilíbrio das prestações».
Finalmente, o n.º 1 do artigo 238.º estabelece o primado do elemento interpretativo literal: «Nos negócios formais não pode a declaração valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respectivo documento, ainda que imperfeitamente expresso»; prevendo o n.º 2 as condições excepcionais e específicas do seu afastamento: «Esse sentido pode, todavia, valer, se corresponder à vontade real das partes e as razões determinantes da forma do negócio se não opuserem a essa validade».
Como ensinam Pires de Lima e Antunes Varela[11] em anotação ao artigo 236.º do Código Civil, enuncia-se no n.º 1 deste normativo, a seguinte regra: «o sentido decisivo da declaração negocial é aquele que seria apreendido por um declaratário normal, ou seja, medianamente instruído e diligente, colocado na posição do declaratário real, em face do comportamento do declarante».
Referem os autores citados que se exceptuam apenas os casos de não poder ser imputado ao declarante, razoavelmente, aquele sentido (n.º 1), ou o de o declaratário conhecer a vontade real do declarante (n.º 2), concluindo que o objectivo da solução aceite na lei é o de proteger o declaratário, conferindo à declaração o sentido que seria razoável presumir em face do comportamento do declarante, e não o sentido que este lhe quis efectivamente atribuir.
No que concerne ao conceito normativo de “declaratário normal”, referem os autores citados que tal “normalidade” se exprime, não só na “capacidade para entender o texto ou conteúdo da declaração, mas também na diligência para recolher todos os elementos que, coadjuvando a declaração, auxiliem a descoberta da vontade real do declarante.”.
A ambiguidade objectiva, ou até a inexactidão da expressão externa, como refere Mota Pinto[12], não impedem a relevância da vontade real se o destinatário a conheceu, sendo certo que, havendo coincidência de sentidos (o que o declarante quis e o que o declaratário compreendeu), será esse o sentido decisivo.
Regressando à questão que nos ocupa.
Do enunciado que antecede, elegemos duas regras interpretativas particularmente vocacionadas pela a dilucidação da questão: i) o primado do elemento interpretativo literal: «Nos negócios formais não pode a declaração valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respectivo documento, ainda que imperfeitamente expresso»; ii) o critério de superação da dúvida interpretativa previsto no artigo 237.º[13]: «Em caso de dúvida sobre o sentido da declaração, prevalece, nos negócios gratuitos, o menos gravoso para o disponente e, nos onerosos, o que conduzir ao maior equilíbrio das prestações».
Do confronto dos critérios referidos, concluímos que de alguma forma se anulam, considerando os seguintes factores: i) face às já invocadas regras da experiência comum, se algum valor era devido, relativamente à “cedência” do crédito da prestação suplementar, deveria ter ficado consignado no documento, qual o valor e qual a forma e prazo de pagamento; ii) as partes, para além de nada consignarem sobre tal matéria, limitaram-se a estipular: “com esta cedência o 2.º outorgante nada mais tem a reclamar da empresa “C… (…) seja a que título for”; iii) corresponde à verdade que em caso de dúvida deverá prevalecer o critério de equilíbrio de interesses; iv) no entanto, a dúvida reside essencialmente nesta questão insuperável: prevaleceu ou não esse equilíbrio?; as partes quiseram ou não que a quantia paga ao autor (€ 393.956,00) englobassem tudo o que lhe era devido?; se não o quiseram, a que propósito estipularam a ‘cedência’ sem referir modo e prazo de pagamento e quitação (trata-se de quitação global, apenas relativamente à sociedade, em cujo capital social se integrara a quantia em causa), no que respeita ao sócio restante (2.º réu)?
Após o extenso percurso argumentativo que antecede, restam apenas questões e dúvidas.
Refere a M.ª Juíza:
Na equivocidade do teor literal mesmo do contrato junto aos autos e transcrito em F) da matéria assente, posto que insolúvel, a partir dos seus próprios termos, muito relevantemente quando se considere a contraditoriedade/antonímia entre a expressão “ceder”, que no uso comum se reporta a uma entrega voluntária gratuita ou sem contraprestação, e a indicação de um valor, que, por outro lado não vem referido como preço ou contraprestação, na ausência outrossim a qualquer referência a prazo, modo de pagamento e/ou declaração de quitação ou recebimento. Assim, a interpretação literal do texto da declaração não permite ter por demonstrada, sem dúvidas, uma ou outra das versões em confronto nestes autos.
Face a tudo o que se disse, não podemos deixar de subscrever a posição do Tribunal de 1.ª instância, na medida em que o confronto dos documentos (único meio probatório invocado pelo recorrente como suporte da sua divergência) não nos permite responder positiva (nem negativamente) à questão formulada, que se recapitula: «1. A. e 2.º R marido acordaram, antes da escritura a que se alude em A), e como parte integrante do conjunto do negócio, que o primeiro cederia a sua posição contratual nas prestações suplementares constituídas por ele, A., na 1.ª R, ao 2.ºR. marido mediante o pagamento pelo 2º Réu ao 1º do valor de €79.807,66, a acrescer ao valor acordado para a cessão de quotas e ao valor do reembolso dos suprimentos?».
Decorre do exposto a improcedência do recurso da decisão da matéria de facto.

3. Fundamentos de facto
Face à decisão que antecede, a factualidade relevante provada é a que se encontra enunciada na sentença:
A) No dia 09/04/2010, no Cartório Notarial de Celorico de Basto o 2.º R na qualidade de primeiro outorgante e o A. e sua mulher na qualidade de segundos outorgantes celebraram a escritura pública designada de DIVISÃO, CESSÃO e UNIFICAÇÃO DE QUOTAS e RENÚNCIA DE GERÊNCIA, declarando, entre o mais que aqui se dá por reproduzido, que: - o primeiro e o segundo outorgante marido que «são os únicos sócios da sociedade comercial por quotas com a firma C…, LDA (…) com o capital social de cem mil euros.
Que no referido capital o primeiro outorgante é titular de duas quotas, uma no valor nominal de dois mil quatrocentos e noventa euros e noventa e nove cêntimos (bem próprio), e outra no valor nominal de quarenta e sete mil quinhentos e seis euros (bem comum), e o segundo outorgante de uma quota no valor nominal de cinquenta mil euros.
Pelo SEGUNDO OUTORGANTE, foi dito que divide a sua quota de valor nominal de cinquenta mil euros, em duas, uma no valor nominal de vinte e quatro mil e quinhentos euros e outra com valor nominal de vinte e cinco mil e quinhentos euros.
Que cede ao primeiro outorgante a quota no valor nominal de vinte e quatro mil e quinhentos euros pelo valor de cento e noventa mil euros, e cede à sociedade supra referida a outra quota com valor nominal de vinte e cinco mil e quinhentos euros, pelo valor de cento e sessenta mil euros. (…)
PELO PRIMEIRO OUTORGANTE, FOI DITO:
Que aceita a presente cessão nos termos exarados, para si, e para a mencionada sociedade.
(…)
PELOS SEGUNDO OUTORGANTES AINDA FOI DITO:
Que já receberam o referido valor da cessão das quotas, e ao primeiro outorgante e sua representada dão quitação.»
B) Na mesma data, o A. foi reembolsado pela 1ª R., do valor dos suprimentos que lhe havia efectuado até aquela data, no montante de €43.956,00.
C) Ao tempo das aludidas cessões de quotas, o A. tinha efectuado a favor da 1ª Ré, um montante, no valor de €79.807,66, a título de “PRESTAÇÕES SUPLEMENTARES”.
D) Tal montante era o correspondente a metade das prestações suplementares globais com que os então únicos sócios – A e 2º R. marido -, tinham contribuído para a sociedade, conforme resulta da inscrição contabilística nos últimos balanços anuais da 1ª R..
E) O contrato de sociedade não consigna a exigência e constituição de “prestações suplementares”.
F) Na mesma data da escritura referida em A), o 2º R. marido na qualidade de primeiro outorgante e o A., na qualidade de segundo outorgante, assinaram um documento designado de CONTRATO DE CEDÊNCIA DE POSIÇÃO CONTRATUAL NAS PRESTAÇÕES SUPLEMENTARES, com o seguinte teor:
«1.º O Primeiro e Segundo outorgante têm na sociedade C… (…) o montante global de 159.615,32€ (…) dividido em duas partes iguais cada uma de 79.807,66€ (…) correspondente a prestações suplementares que os sócios possuem na dita sociedade.
2.º Pelo presente documento o segundo outorgante cede ao primeiro outorgante o valor de 79.807,66€ (…) que este detém a titulo de prestações suplementares na sociedade “C… (…)” por valor igual ao seu valor nominal.
3.º Com a presente cedência o 2.º outorgante nada mais tem a reclamar da empresa “C… (…)” seja a que título for.
Ambos os outorgantes aceitam o presente contrato, sendo o mesmo realizado de livre e de boa fé e de acordo com as vontades dos cedentes»
G) O A procedeu à notificação judicial avulsa do 2.ºR para que o mesmo no prazo de oito dias lhe dissesse se pretendia manter o negócio mencionado em F) ou não – conforme teor de fls. 17 a 22 destes autos, que aqui se dá por reproduzido.
H) O A. recebeu do 2º R. marido, a carta datada de 08/11/2010, nos termos da qual o mesmo afirma, entre o mais que aqui se dá por reproduzido: «(…) Passado mais algum tempo e várias negociações chegamos a um acordo pelo valor de 400.000,00€, com todos os direitos e obrigações, ao que aceitaste.
(…) acabas-te por acordar em deduzir €6.000,00 e eu paguei de imediato.
Assim actualmente não tens qualquer crédito ou dívida perante mim ou face à C…, seja a que título for.
Assim, feito o acordo, cedeste a tua participação social na empresa, pelo valor de 394.000,00€, a qual incluía naturalmente todos os direito inerentes, suprimentos, prestações suplementares e ainda todos os valores em dívida pelo exercício da gerência.
Lembro-te que existem como bem sabes, documentos subscritos pelas partes que respeitam à cessão propriamente dita, suprimentos e às prestações suplementares. (…)»
I) Consta da ATA n.º12, datada de 31/12/1994, que os sócios da 1.ª R C… (…) reuniram em assembleia geral extraordinária e ali declararam reconhecer a necessidade de reforço dos capitais próprios da sociedade ali se mencionando que «a constituição de prestações suplementares, no valor de doze milhões de escudos fosse subscrita por todos os sócios, na proporção directa da sua participação do capital social». – e demais teor que aqui se dá por reproduzido.
J) Das actas da Sociedade 1ª Ré C…, mormente daquelas juntas aos autos, não consta, para além do que resulta da alínea que antecede, qualquer outra deliberação no sentido da exigência/realização de prestações suplementares, nem também qualquer deliberação quanto ao modo, prazo e condições da respectiva devolução.
K) O Autor já recebeu o valor acordado para a cessão de quotas da sociedade 1ª Ré.
2. Factos não provados
Com interesse para a decisão da causa não se provou que:
1. A. e 2.º R marido acordaram, antes da escritura a que se alude em A), e como parte integrante do conjunto do negócio, que o primeiro cederia a sua posição contratual nas prestações suplementares constituídas por ele, A., na 1.ª R, ao 2.ºR. marido mediante o pagamento pelo 2º Réu ao 1º do valor de €79.807,66, a acrescer ao valor acordado para a cessão de quotas e ao valor do reembolso dos suprimentos.
2. As partes acordaram fixar o valor total do negócio de cedência em €400.000,00, aqui se incluindo já o valor referenciado como «prestações suplementares» que caberiam ao A. na quantia de €79.807,66.
3. O documento designado de contrato de cedência a que se alude em F) só foi efectuado para efeitos contabilísticos.

4. Fundamentos de direito
O recorrente alicerçou a sua pretensão recursória na impugnação da decisão da matéria de facto [conclusões 1.ª a 33.ª e 35.ª], limitando-se a referir na conclusão 34.ª: “Resultando do contrato que sobre os Réus singulares impende a obrigação de pagamento ao Autor do montante de 79.807,96€”, devem estes pagar tal valor acrescido dos juros de mora.
Como julgamos ter demonstrado no ponto 2., tal conclusão não resulta do contrato (escrito particular) nem do confronto deste com a escritura pública, e por essa razão considerámos improcedente a impugnação da decisão da matéria de facto.
Não tendo o recorrente aduzido qualquer argumento adicional de natureza jurídica para infirmar a decisão recorrida em face dos factos que lhe serviram de base, não poderá deixar de naufragar a sua pretensão recursória.

III. Dispositivo
Com fundamento no exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar totalmente improcedente o recurso, ao qual negam provimento, e, em consequência, em manter na íntegra a decisão recorrida.
Custas do recurso pelo recorrente.
*
O presente acórdão compõe-se de trinta e seis páginas e foi elaborado em processador de texto pelo relator, primeiro signatário.

Porto, 4 de Maio de 2015
Carlos Querido
Soares de Oliveira
Alberto Ruço (Vencido pelas razões que anexo)
_____________
[1] A base instrutória é composta apenas por um quesito, no que concerne ao mérito da acção, acrescendo mais cinco quesitos, todos eles subordinados ao conhecimento da questão da litigância de má fé suscitada pelo 2.º réu:
Transcreve-se o teor da referida peça processual, no segmento factual referente à má-fé, também ele dado como não provado:
«Para efeitos de eventual litigância de má fé do A.
2. As partes acordaram fixar o valor total do negócio de cedência em €400,00?
3. Aqui se incluindo já o valor referenciado como «prestações suplementares» que caberiam ao A. na quantia de €79.807,66?
4. Montante que o A. já recebeu?
5. O documento designado de contrato de cedência a que se alude em F) só foi efetuado para efeitos contabilísticos?».
No que respeita ao quesito 2.º, é manifesto o lapso. Onde consta €400,00, deveria constar €400.000,00 [Vide carta datada de 08/11/2010, junta aos autos e facto H)]. No que concerne ao quesito 4, o Tribunal considerou apenas provado o que consta do facto: K): «O Autor já recebeu o valor acordado para a cessão de quotas da sociedade 1ª Ré».
[2] Vejam-se, nesse sentido os seguintes acórdãos do STJ: de 1.03.2007, processo n.º 06A4777: «A interpretação das cláusulas contratuais envolve matéria de facto quando importa a reconstituição da vontade real das partes, constituindo matéria de direito quando, no desconhecimento de tal vontade, se deve proceder de harmonia com o artº 236º, nº 1 do Código Civil.»; de 7.10.2003, proferido no Proc. 03A2760: I - A interpretação das declarações ou cláusulas negociais constitui matéria de facto, da exclusiva competência das instâncias. II - Ao Supremo só cabe exercer censura sobre o resultado interpretativo sempre que, tratando - se da situação prevista no n.º 1 do art.º 236º do Cód. Civil, tal resultado não coincida com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, pudesse deduzir do comportamento do declarante, ou, tratando-se da situação contemplada no art.º 238º, n.º 1, do Cód. Civil, não tenha um mínimo de correspondência no texto do documento, ainda que imperfeitamente expresso.; e de 6.02.1997, processo n.º 96B223 – todos acessíveis no site da DGSI.
[3] Afigura-se-nos que não pode ser outro o sentido a dar à declaração do autor/recorrente, de que “nada mais tem a reclamar da empresa “C… (…) seja a que título for”. Trata-se de uma quitação global referente à sociedade.
[4] Faz todo o sentido que tenha sido no mesmo momento. O recorrente refere que o escrito particular foi assinado depois da escritura (conclusão 27.ª), mas nada se apurou sobre a sequência cronológica contratual.
[5] Código das Sociedades Comerciais em Comentário, Coordenação de Jorge M. Coutinho de Abreu, Volume III, Almedina, 2011, pág. 274.
[6] Sob a epígrafe “Restituição das prestações suplementares”, estipula o artigo 213.º do Código das Sociedades Comerciais:
1. As prestações suplementares só podem ser restituídas aos sócios desde que a situação líquida não fique inferior à soma do capital e da reserva legal e o respectivo sócio já tenha liberado a sua quota.
2. A restituição das prestações suplementares depende de deliberação dos sócios.
3. As prestações suplementares não podem ser restituídas depois de declarada a falência da sociedade.
4. A restituição das prestações suplementares deve respeitar a igualdade entre os sócios que as tenham efectuado, sem prejuízo do disposto no nº 1 deste artigo.
5. Para o cálculo do montante da obrigação vigente de efectuar prestações suplementares não serão computadas as prestações restituídas.
[7] Reportamo-nos à presunção judicial, que permite inferências seguras, susceptíveis de suportar a convicção do julgador, inspiradas “nas máximas da experiência, nos juízos correntes de probabilidade, nos princípios da lógica ou nos próprios dados da intuição humana”. (Pires de Lima e Antunes Varela, “Código Civil anotado”, volume I, 4ª edição, página 312).
[8] Acórdãos do STJ de 14.01.1997 (CJ-STJ, V, 1, 47) e de 20.10.2009 – Proc. 1307/06.9TBPRD.S1, acessível no site da DGSI.
[9] Saber se “[o] A. e o 2.º R marido acordaram, antes da escritura a que se alude em A), e como parte integrante do conjunto do negócio, que o primeiro cederia a sua posição contratual nas prestações suplementares constituídas por ele, A., na 1.ª R, ao 2.ºR. marido mediante o pagamento pelo 2º Réu ao 1º do valor de €79.807,66, a acrescer ao valor acordado para a cessão de quotas e ao valor do reembolso dos suprimentos”.
[10] Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Volume I, Coimbra Editora, 4.ª edição, 1987, pág. 223.
[11] Código Civil Anotado, Volume I, Coimbra Editora, 4.ª edição, 1987, pág. 223.
[12] Teoria Geral do Direito Civil, 3.ª edição, Coimbra Editora, 1996, pág. 449.
[13] Invocado pelo recorrente na conclusão 30.ª.
___________
Voto Vencido

Daria provimento ao recurso por duas ordens de razões:
Por um lado, porque o quesito 1.º devia ter resultado parcialmente provado, no sentido de que a «quantia de €79.807,66, acrescia ao valor acordado para a cessão de quotas e ao valor do reembolso dos suprimentos».
Por outro, porque não tendo resultando provado, quer em 1.ª instância, quer em sede de recurso, que «quantia de €79.807,66, acrescia ao valor acordado para a cessão de quotas e ao valor do reembolso dos suprimentos» ou que a «quantia de €79.807,66, não acrescia ao valor acordado para a cessão de quotas e ao valor do reembolso dos suprimentos», então ficamos só com o teor do contrato referido na al. F) dos factos provados.
Ora, resulta deste contrato e da restante matéria de facto uma dívida contraída pelo réu marido para com o autor marido.
Vejamos.
A
Quanto à impugnação da matéria de facto

Procederia a impugnação relativamente à resposta dada ao quesito 1.º de modo a julgar-se provado que «quantia de €79.807,66, acrescia ao valor acordado para a cessão de quotas e ao valor do reembolso dos suprimentos» (a restante parte do quesito seria declarada não provada, sendo, aliás, irrelevante).
Pelas seguintes razões:
1
Cumpre ter em consideração que as testes dos autores e réus são antagónicas e só uma delas pôde ter existido.
A convicção do tribunal deve formar-se no sentido da hipótese que recolhe a corroboração de um número mais elevado de elementos probatórios.
2.
Como referem os Autores, se «…as partes quisessem transmitir pelo preço da quota os créditos de suprimentos de prestações suplementares não só teriam consignado isso na escritura, como não teria havido qualquer pagamento adicional para além dos 350.000,00€, nem celebrado o contrato de cedência de posição contratual relativo às prestações suplementares tal como fizeram através do documento particular na data da escritura».
Com efeito, a tese dos Réus, no sentido da quantia de €79.807,66 ter sido incluída no valor global do negócio ou no negócio total não tem consistência factual, isto é, não se torna detectável em termos factuais.
Vejamos: o que é o negócio global ou o valor global do negócio?
Não se sabe e não vem referido em qualquer documento de forma directa ou indirecta.
É o valor da quota do autor fraccionada e transmitida ao réu marido por 190.000,00 euros e à sociedade por 160.000,00 euros, num total de 350.000,00 euros?
Não é, pois, além destas quantias o Autor ainda recebeu mais 43.956,00 euros de suprimentos.
Então o valor global é só o somatório dos 350.000,00 euros, mais os 43.956,00 euros, no total de 393.956,00 euros?
Mas por que razão se incluem no valor global do negócio os suprimentos e não se incluem também as prestações suplementares?
3.
É uma regra da experiência que as partes quando celebram um negócio dizem, em regra, tudo o que tinham a dizer e, mais, quando as partes celebram um contrato (isento de dolo) desejam nesse momento, em regra, cumpri-lo, pois de outra forma não teriam tido o cuidado de o celebrar, pelo que a solução de eventuais divergências ou questões suscitadas posteriormente, durante a sua execução, não deve desconsiderar a base factual «quando o contrato foi celebrado as partes pretendiam cumpri-lo».
Vejamos.
As partes não disseram na escritura de transmissão da quota do autor no sentido da quantia de €79.807,66 estar incluída no valor da cessão da quota.
E nada disseram no mesmo sentido no documento que denominaram «Acto avulso» (fls. 327 do processo electrónico), que elaboraram em 9 de Abril de 2010, onde a assembleia geral da sociedade deliberou restituir os 43.956,00 euros de suprimentos devidos ao Autor, então nada nos autoriza a considerar que a quantia de €79.807,66 foi incluída nestes dois negócios.
Para se concluir nesse sentido, teria de constar eventualmente da escritura que «o autor nada mais tinha a receber», mas não consta.
4.
Acresce que a sociedade juntou aos autos um contrato-promessa (fls. 917 do processo electrónico), sem data, mas cuja data é necessariamente anterior a 9 de Abril de 2010, data do mencionado «Acto avulso» relativo à aprovação da restituição dos suprimentos.
É anterior porque se prevê nele uma 3.ª prestação a realizar em 31 de Março de 2010.
Ora, nesse contrato-promessa prevê-se toda a operação relativa à realização da transmissão da quota do autor e verifica-se que coincide em termos gerais com aquilo que veio a ser feito na escritura posterior.
Porém, prevê-se no contrato-promessa que o valor da quota, fraccionada em duas seria de €230.000,00 euros e 170.000,00 euros, no total de 400.000,00 euros.
Por conseguinte, depois de ter sido fixada esta quantia de 400.000,00 euros como valor da quota do autor, o autor e o réu ainda fizeram o acordo quanto ao reembolso dos suprimentos, pelo que o «valor total do negócio» nessa altura já ia em 443.956,00 euros (valor prometido para a negociação da quota do autor mais os suprimentos).
Conclusão: como nada foi referido na escritura no sentido do autor nada mais ter a receber e tendo sido celebrado no mesmo dia o documento relativo às prestações suplementares, tem de se considerar que estas não foram englobadas no preço da cessão da quota.
Pelo menos nada aponta em sentido oposto.
5.
Apesar dos cheques visados favorecerem quem os recebe e de serem exigidos em regra por quem os recebe, não se afigura poder concluir-se isso dos autos.
Mesmo que tivessem sido exigidos pelo autor, também se podia conjecturar que aquando da elaboração do contrato relativo às prestações suplementares não foram entregues porque o réu não os trazia consigo, como diz o autor, o que poderia explicar a falta de previsão da data ou prazo para o pagamento da dívida resultante do contrato, pois essa data resultaria dos cheques.
6.
Do facto de no contrato relativo às prestações suplementares não se ter previsto data ou prazo para o pagamento do valor das prestações suplementares ou declaração de quitação, não se retira qualquer argumento no sentido de julgar a matéria do quesito 1.º como «não provada».
7.
Tendo a sociedade adquirido uma participação social superior à do réu marido então era lógico que as prestações suplementares tivessem sido cedidas a esta e não ao réu marido.
8.
Não se encontra justificação para a cedência gratuita das prestações suplementares ao réu marido.
E, como se referiu, se estas tivessem feito parte do negócio, teria ficado a constar da escritura isso mesmo e não ficou.
9.
Por fim, não existem factos probatórios de onde resulte que o valor das prestações suplementares foi incluído no valor da cessão da quota e no valor dos suprimentos.
B
Aspecto jurídico da causa.
1
Como se referiu, coloca-se nos autos e no recurso a questão de saber se os Réus pessoas singulares devem aos Autores a quantia de 79.807,96 euros, quantia relativa a prestações suplementares realizadas pelo Autor marido a favor da empresa C…., da qual Autor e Réu maridos foram sócios.
2.
A entrega desta quantia de 79.807,96 euros à sociedade, por parte do autor marido, relativa a prestações suplementares, ocorreu.
3.
Consta da al. F) dos factos provados o seguinte:
«F) Na mesma data da escritura referida em A), o 2º R. marido na qualidade de primeiro outorgante e o A., na qualidade de segundo outorgante, assinaram um documento designado de CONTRATO DE CEDÊNCIA DE POSIÇÃO CONTRATUAL NAS PRESTAÇÕES SUPLEMENTARES, com o seguinte teor: «1.º O Primeiro e Segundo outorgante têm na sociedade C… (…) o montante global de 159.615,32€ (…) dividido em duas partes iguais cada uma de 79.807,66€ (…) correspondente a prestações suplementares que os sócios possuem na dita sociedade.
2.º Pelo presente documento o segundo outorgante cede ao primeiro outorgante o valor de 79.807,66€ (…) que este detém a titulo de prestações suplementares na sociedade “C… (…)” por valor igual ao seu valor nominal.
3.º Com a presente cedência o 2.º outorgante nada mais tem a reclamar da empresa “C… (…)” seja a que título for.
Ambos os outorgantes aceitam o presente contrato, sendo o mesmo realizado de livre e de boa fé e de acordo com as vontades dos cedentes»
4
Nenhuma das partes alega que este contrato tem a natureza de uma doação.
O que os réus dizem é que a quantia de 79.807,66€ referida no contrato foi englobada no negócio da cessão da quota do Autor ao Réu.
A este respeito os réus justificam a existência deste contrato como tratando-se de uma formalidade necessária para efeitos contabilísticos
Os réus não explicaram, porém, que efeitos foram produzidos, ou melhor, qual a necessidade que o documento visou satisfazer em termos contabilísticos e por que razão teve de ser elaborado para esse fim.
Pode, pois, retirar-se uma primeira conclusão do exposto, que é esta:
Os autores tinham de facto um crédito de 79.807,66 euros a título de prestações suplementares e o contrato exarado no aludido documento não revestiu a natureza de doação, pelo que a sua natureza é onerosa.
5.
Pode colocar-se, por conseguinte, neste momento, uma questão de ónus de prova que se reflecte na redacção que foi dada ao quesito 1.º.
Eram os autores que tinham de provar que o valor de €79.807,66 euros acrescia ao valor acordado para a cessão de quotas e ao valor do reembolso dos suprimentos?
Ou eram os réus que tinham de provar que o valor de €79.807,66 euros já estava incluído no preço acordado para a cessão de quotas e no valor do reembolso dos suprimentos?
Afigura-se que o ónus da prova estava/está do lado dos réus, pela seguinte razão:
Do contrato exarado no documento intitulado «CONTRATO DE CEDÊNCIA DE POSIÇÃO CONTRATUAL NAS PRESTAÇÕES SUPLEMENTARES» (que não é uma doação), já consta que o autor marido cedeu ao réu marido a sua posição contratual nas prestações suplementares constituídas por ele na sociedade e cedeu-lhas «…por valor igual ao seu valor nominal».
[No que respeita à questão da causa do negócio e do «preço», o texto da escritura e o do contrato são semelhantes, pois ambos referem o verbo «ceder» e não aludem a «preço», mas apenas a «valor»:
Escritura - «Que cede ao primeiro outorgante a quota no valor nominal de vinte e quatro mil e quinhentos euros pelo valor de cento e noventa mil euros, e cede à sociedade supra referida a outra quota com valor nominal de vinte e cinco mil e quinhentos euros, pelo valor de cento e sessenta mil euros. (…)»
Documento particular - «2.º Pelo presente documento o segundo outorgante cede ao primeiro outorgante o valor de 79.807,66€ (…) que este detém a titulo de prestações suplementares na sociedade “C… (…)” por valor igual ao seu valor nominal»]
Por conseguinte, se consta do contrato que o autor tem um crédito sobre o réu, quem tem de provar o facto extintivo do crédito?
São os réus.
Dir-se-á que a questão que se coloca nos autos consiste precisamente em saber se resulta do contrato um crédito.
Afigura-se que esta eventual objecção não procede.
Não há dúvida que o contrato na sua literalidade confere ao autor marido um crédito sobre o réu marido.
O que os réus dizem é que o valor de €79.807,66 euros já estava incluído no preço acordado para a cessão de quotas e no valor do reembolso dos suprimentos?
Pois bem, então o quesito devia ter sido formulado nestes termos: o valor de €79.807,66 euros já estava incluído no preço acordado para a cessão de quotas e no valor do reembolso dos suprimentos?
6.
Verifica-se, porém, que o quesito 2.º dá resposta à questão anterior.
Perguntou-se neste quesito se «2. As partes acordaram fixar o valor total do negócio de cedência em €400,00, aqui se incluindo já o valor referenciado como «prestações suplementares» que caberiam ao A. na quantia de €79.807,66».
A resposta foi negativa.
Pode, por conseguinte, extrair-se outra conclusão:
Em 1.ª instância, tal como na decisão que faz vencimento, não se conseguiu definir ao nível da matéria de facto se o valor de €79.807,66 euros foi incluído ou não no negócio global ou não foi.
7.
Não se tendo provado se o valor de €79.807,66 euros foi incluído ou não no negócio global e recaindo sobre os réus o ónus de provar que havia sido incluído no negócio global, a falta de prova implica que se considere serem os réus devedores de tal quantia a favor dos autores.
8.
Pode colocar-se a dúvida sobre se os autores no recurso atacam a sentença nesta perspectiva.
A resposta deve ser afirmativa.
Com efeito, muito embora não o digam claramente, referem na conclusão 35.º que «O tribunal recorrido incorreu ainda em erro de julgamento em matéria de Direito, porquanto não atendeu às regras de interpretação dos contratos, previstas nos artºs 236º/1 e 237º, ambos do CCivil e o não aplicar os normativos antecedentemente invocados, de que resultaria a procedência da acção e a consequente condenação dos Réus singulares no pedido que contra eles vem formulado».
Ou seja, face à matéria de facto que resultou provada, a interpretação literal do documento intitulado «CONTRATO DE CEDÊNCIA DE POSIÇÃO CONTRATUAL NAS PRESTAÇÕES SUPLEMENTARES», de acordo com as regras dos artigos 236º/1 e 237º, ambos do Código Civil conduzem, como se disse, à conclusão de que existe uma dívida assumida então pelo réu marido a favor do autor.
Se face à matéria de facto provada se concluiu pela dívida a acção procede.

Alberto Ruço