Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
719/17.7T8OAZ.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MIGUEL BALDAIA DE MORAIS
Descritores: SERVIDÃO DE PASSAGEM
EXTINÇÃO
DESNECESSIDADE
OBRAS
ÓNUS DE ALEGAÇÃO E PROVA
Nº do Documento: RP20180530719/17.T8OAZ.P1
Data do Acordão: 05/30/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º675, FLS.345-351)
Área Temática: .
Sumário: I - A utilidade da servidão constitui o núcleo essencial deste direito real de gozo: este não existe (rectius, não se justifica) quando da limitação imposta ao prédio serviente não resulte qualquer benefício para o prédio dominante.
II - Quando se trate de extinguir uma servidão (que tenha sido constituída por usucapião ou legalmente) por desnecessidade, nos termos do nº 2 do artigo 1569º do Código Civil, deve atender-se, tão-somente, à desnecessidade objetiva, referente ao prédio dominante, em si mesmo considerado, o que significa que a extinção com esse fundamento tem de resultar de alterações objetivas, típicas e exclusivas, verificadas nesse prédio.
III - A apreciação da utilidade ou desnecessidade da servidão deve ser objeto de um juízo de atualidade, no sentido de que há de ser apreciada pelo tribunal, atendendo à situação que se verifica na data em que a ação é proposta.
IV - Recai sobre o requerente da extinção da servidão o ónus da prova da viabilidade de eventuais obras destinadas a dotar o prédio dominante de acesso direto à via pública, que o incómodo e dispêndio advenientes não são excessivos e alegar que o custo dessas obras ficará a seu cargo, manifestando no processo essa disponibilidade.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 719/17.7T8OAZ.P1
Origem: Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro, Oliveira de Azeméis - Juízo Local Cível, Juiz 1
Relator: Miguel Baldaia Morais
1º Adjunto Des. Jorge Miguel Seabra
2ª Adjunta Desª. Maria de Fátima Andrade
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Sumário
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Acordam no Tribunal da Relação do Porto:
I - RELATÓRIO
B… intentou a presente ação declarativa, sob a forma de processo comum, contra C… e D… pedindo se declare extinta, por desnecessidade, a servidão de passagem constituída, por usucapião, a favor do imóvel dos réus e que onera o prédio de que é proprietária.
Para substanciar tal pretensão alega, em síntese, que os réus têm a possibilidade de usar o seu prédio com saída direta para a via pública, desde que efetuem uma abertura na parte poente do mesmo e que lhes proporcionaria utilidades iguais e igualmente cómodas às proporcionadas pela servidão de passagem que incide sobre o seu imóvel.
Cada um dos réus apresentou a sua contestação, negando, em suma, que o acesso à via pública exista, sendo a servidão de passagem a única forma de que dispõem para conseguir aceder da via pública ao seu prédio, mantendo, assim, a sua necessidade.
Por despacho de fls. 56, a autora foi convidada a esclarecer os fundamentos da sua pretensão, concretamente se o prédio dos réus se encontra ou não encravado ou se possui já acesso direto à via pública, assim como em que medida a abertura de comunicação com a via pública permitirá proporcionar aos réus as mesmas comodidades da servidão.
Em resposta, veio a autora referir que o prédio dos réus não possui ligação/acesso direto à via pública, pretendendo a autora que a sua proposta de acesso seja concretizada, através da realização de obras. Por outro lado, com a abertura da comunicação à via pública proposta, refere que a comodidade dos réus será melhor e a sua privacidade maior.
No seguimento dessa resposta veio a ré declarar não possuir condições económicas que lhe permitam fazer as pretendidas obras, tanto mais que isso importaria, designadamente, a demolição de uma casa de habitação, reconstrução de muros e colocação de portões.
Dispensada (com a anuência das partes) a realização da audiência prévia, veio a ser proferido saneador/sentença no qual se decidiu julgar improcedente a presente ação e em consequência absolver os réus do pedido.
Não se conformando com o assim decidido, veio a autora interpor o presente recurso, que foi admitido como apelação, a subir nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
Com o requerimento de interposição do recurso apresentou alegações, formulando, a final, as seguintes
CONCLUSÕES:
1ª - Vem o presente recurso interposto da douta sentença proferida nos autos que julgou a ação improcedente, absolvendo os Réus do pedido contra si formulado pela Autora, no que respeita à extinção da servidão de passagem, por desnecessidade, através do caminho existente sobre o prédio da Autora, o qual se inicia no prédio dos Réus e termina na estrada existente a sul.
2ª - Entende a Recorrente que, ao assim decidir, o M.mº Juiz a quo fez uma incorreta apreciação da matéria de facto, por quanto:
3ª - Atentou à simplicidade da causa e à circunstância de as partes já terem tido a oportunidade de discutir nos articulados a sua posição no litígio, uma vez que a realização de qualquer diligência redundaria na prática de atos inúteis para todos os intervenientes, implicando a sua deslocação a Tribunal, com os custos que tal acarretaria, dispensando assim, a realização da audiência prévia, não tendo procedido à inspeção do local, conforme peticionado pela Autora.
4ª - A Autora é dona e legítima possuidora de um prédio urbano, sito na Rua …, n.º …, lugar …, da União de Freguesias …, Concelho e Comarca de Oliveira de Azeméis, desde 30 de Dezembro de 2005, inscrito na respetiva matriz urbana sob o artº 796, e descrito na competente Conservatória do Registo Predial sob a descrição n.º 44649, estando registada a aquisição plena a favor da A. pela Ap. 16 de 2006/03/06.
Tal prédio, composto por casa de habitação com dois andares e quintal de terra de horta, veio à posse da Autora por escritura de compra e venda outorgada no Cartório Notarial de Oliveira de Azeméis, em 30/12/2005.
5ª - Os Réus são donos e legítimos possuidores do prédio inscrito na matriz urbana sob o artº 801º e descrito na Conservatória do Registo Predial de Oliveira de Azeméis com o n.º 1919, mediante a Ap. 7 de 1985/02/13, composto de casa de habitação, com pátio e quintal de terra de horta com ramada, sito no lugar …, freguesia …, composição essa que não corresponde à realidade.
6ª – O prédio da Autora confronta diretamente com o prédio dos Réus, a poente.
7ª – Os Réus acedem a pé ao seu prédio através do portão situado na confrontação sul do prédio da Autora, que dá acesso ao pátio cimentado deste prédio, numa extensão de cerca de 15 metros de comprimento e uma largura irregular, mas média de 2,70 metros, até desembocar no prédio dos Réus.
8ª – Caminho esse que atravessa o prédio da Autora no sentido norte/sul.
9ª – O prédio dos Réus não possui ligação/acesso direto com a via pública.
10ª – Os Réus têm a possibilidade de virem a efetuar uma abertura para acederem diretamente à via pública, vindo do seu prédio, na parte poente, na Rua …, em cujo local se verifica uma construção que se encontra devoluta e sem telhado.
11ª – Concretizando a abertura, mediante a realização de obras no local devoluto mencionado no item antecedente, os Réus passarão a ter um acesso direto ao seu prédio sem necessitarem de passar pelo prédio da Autora.
12ª – O que trará repercussões a nível da privacidade e reserva da vida privada da Autora (que poderá dispor livremente do seu pátio) e igualmente dos Réus.
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A ré apresentou contra-alegações, pugnando pela improcedência do recurso.
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Após os vistos legais, cumpre decidir.
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II- DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso – cfr. arts. 635º, nº 4, 637º, nº 2, 1ª parte e 639º, nºs 1 e 2, todos do Cód. Processo Civil.
Porque assim, atendendo às conclusões das alegações apresentadas pela apelante, a questão solvenda traduz-se em determinar se, no caso sub judicio, se mostram (ou não) verificados os pressupostos necessários para ser declarada extinta, por desnecessidade, a servidão de passagem, constituída por usucapião, de que beneficia o prédio dos réus e onera o prédio da autora.
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III- FUNDAMENTOS DE FACTO
O tribunal de 1ª instância considerou provada a seguinte matéria de facto:
1. Mediante a AP. 16 de 2006/03/06, encontra-se descrito a favor da autora o prédio urbano, composto de casa de dois andares e quintal de terra de horta, sito no lugar …, freguesia de …, inscrito na respectiva matriz sob o artigo 796.º (anterior 104.º) e descrito na Conservatória do Registo Predial de Oliveira de Azeméis com o n.º 1662.
2. Através de escritura pública denominada de “compra e venda”, lavrada no dia 30/12/2005, no Cartório Notarial de E…, F…, devidamente autorizado pela esposa G…, H… e marido I…, J…, K… e marido L… declararam vender a B…, que declarou comprar, entre outros, o prédio referido em 1).
3. Mediante a AP. 7 de 1985/02/13, encontra-se descrito a favor dos réus o prédio urbano, composto de casa de habitação, com pátio e quintal de terra de horta com ramada, sito no lugar …, freguesia …, inscrito na respectiva matriz sob o artigo 801.º (anterior 105.º) e descrito na Conservatória do Registo Predial de Oliveira de Azeméis com o n.º 1919.
4. O prédio referido em 1) confronta directamente com o prédio mencionado em 3) a poente.
5. Os réus acedem a pé ao seu prédio através do portão situado na confrontação sul do prédio da autora, que dá acesso ao pátio cimentado deste prédio, numa extensão de cerca de 15 metros de comprimento e uma largura irregular, mas média de 2,70 metros, até desembocar no prédio dos réus.
6. Caminho esse que atravessa o prédio da autora no sentido norte/sul.
7. O prédio dos réus não possui ligação/acesso directo à via pública.
8. Os réus adquiriram por usucapião o direito de passagem a pé através desse caminho.
9. Na parte poente, na Rua …, os réus têm a possibilidade de virem a efectuar uma abertura para, dessa forma, acederem directamente à via pública vindo do seu prédio.
10. Com essa abertura concretizada mediante a realização de obras, os réus passarão a ter um acesso directo ao seu prédio sem precisarem de passar pelo prédio da autora.
11. O que terá repercussões ao nível da privacidade e reserva da vida privada da autora e dos réus.
12. A autora passaria a poder dispor livremente do seu pátio.
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IV – FUNDAMENTOS DE DIREITO
Como se deu nota, a única questão que é trazida à apreciação deste tribunal de recurso é a de saber se, no caso vertente, estarão reunidos os pressupostos necessários para ser declarada extinta, por desnecessidade, a servidão de passagem que onera o prédio da ora apelante.
Como deflui do posicionamento assumido pelas partes nas peças processuais que apresentaram no âmbito dos presentes autos (e que, na essência, obteve tradução no substrato factual considerado provado, que não foi alvo de válida impugnação em sede recursiva), não se regista qualquer dissenso quanto à existência de um direito de servidão de passagem, constituída por usucapião, que beneficia o prédio dos réus e incide sobre o prédio da autora.
Tratando-se de um direito sobre coisa alheia (ius in re aliena), correspondendo a uma limitação do direito de propriedade do prédio serviente, naturalmente se compreende que esse direito real (menor) de gozo se extinga logo que se verifique qualquer uma das causas tipicamente contempladas no art. 1569º do Cód. Civil.
In casu interessa-nos particularmente a desnecessidade da servidão, sendo que a razão para essa causa específica de extinção resulta do facto de a manutenção desse direito desvalorizar o prédio serviente, sem beneficiar o prédio dominante.
De facto, a compressão do direito de propriedade (cujo conteúdo tendencialmente ilimitado se mostra consagrado, como princípio geral, no art. 1305º do Cód. Civil) só poderá, por via de regra, julgar-se legítima até onde o ónus ou encargo imposto sobre a coisa se revele necessário para assegurar ao terceiro uma fruição normal do seu próprio direito; o que não acontecerá se tal sacrifício se revelar exorbitante ou anómalo, tendo em conta as circunstâncias objetivas de um dado momento, sendo certo que essa compressão, sem que daí resultem vantagens efetivas para terceiros, violará, nessas circunstâncias, aquilo a que a doutrina vem denominando de função social dos direitos reais[1].
Por via disso, não será pois de estranhar um comando normativo como o que se mostra plasmado no nº 2 do citado art. 1569º, nos termos do qual “[a]s servidões constituídas por usucapião serão judicialmente declaradas extintas, a requerimento do proprietário do prédio serviente, desde que se mostrem desnecessárias ao prédio dominante”.
Como emerge do transcrito inciso, o encargo que a servidão constituída por usucapião[2] representa para o prédio serviente deve desaparecer logo que se torne desnecessário, isto é, quando o prédio dominante possa alcançar, sem a servidão, as mesmas utilidades que por meio dela conseguia.
Compreende-se que assim seja já que, em consonância com o respetivo regime legal (cfr., v.g., arts. 1544º e 1545º, nº 2, ambos do Cód. Civil), a utilidade da servidão constitui o núcleo essencial deste direito real de gozo: este não existe (rectius, não se justifica) quando da limitação imposta ao prédio serviente não resulte qualquer benefício para o prédio dominante, sendo certo que a relação subjacente a esse direito é de natureza real (já que assente numa relação entre prédios) e não meramente obrigacional entre os dois proprietários.
Desse modo, para examinar da justeza e consistência da pretensão[3] de extinção de uma servidão por desnecessidade, torna-se imperioso optar por uma abordagem objetiva (isto é, a desnecessidade que se possa verificar para o próprio prédio dominante) e não por uma abordagem subjetiva, que nos conduziria a verificar se a servidão será desnecessária ao proprietário do prédio dominante.
Isso mesmo tem sido recorrentemente sublinhado quer pela doutrina quer pela jurisprudência pátrias que, praticamente una você [4] [5], consideram que a desnecessidade tem de ser objetiva, típica e exclusiva da servidão. A desnecessidade corresponderá, por conseguinte, a uma falta de justificação objetiva para a manutenção de um encargo para o prédio serviente, atenta a inutilidade ou escassa utilidade que a existência da servidão representa para o prédio dominante, sendo que este juízo de proporcionalidade deve ser encontrado na ponderação das circunstâncias concretas de cada caso.
Ainda a propósito da densificação do aludido conceito indeterminado, vêm-se, contudo, registando posicionamentos divergentes[6] no concernente à questão de saber se essa desnecessidade tem (ou não) de assentar necessariamente em factos ocorridos posteriormente à constituição da servidão.
Apesar da argumentação que tem sido aventada pela tese negatória, afigura-se-nos que a desnecessidade, para legitimar a extinção da servidão, tem de resultar de uma alteração das circunstâncias verificadas em relação ao prédio dominante já após a constituição desse direito real menor. Dito de outro modo, a desnecessidade tem que ser superveniente em resultado da cessação das razões que justificaram a afetação de utilidades do prédio serviente ao prédio dominante, dado que, como bem sublinha MENEZES LEITÃO[7], “se for originária, a constituição da servidão não atribuiria qualquer utilidade ao prédio dominante, pelo que a sua constituição violaria a tipicidade dos direitos reais (art. 1306º), com a consequência da sua nulidade (art. 294º). A desnecessidade, para produzir a extinção da servidão, tem que resultar de uma alteração das circunstâncias verificada em relação ao prédio dominante após a constituição da servidão”, alteração essa que, para ser juridicamente operante, pressupõe que o imóvel ficou (subsequentemente) servido de acesso de tal modo que tudo volte a passar-se como se aquela servidão nunca tivesse sido necessária.
Por outro lado, a determinação da utilidade ou desnecessidade da servidão deve igualmente ser objeto de um juízo de atualidade, no sentido que há de ser apreciada pelo tribunal atendendo à situação que se verifica na data em que a ação é proposta.
Trata-se de uma imposição que resulta expressamente do texto legal, ao exigir que a servidão se mostre desnecessária na altura em que a mesma é invocada, e não que sejam realizadas alterações que determinem essa situação de desnecessidade, sob pena de se entender que tais alterações são uma consequência da declaração de extinção, aspeto este que tem sido particularmente enfatizado na casuística[8], ao vincar que após a constituição da servidão de passagem por usucapião não interessa saber se, mediante a realização de determinadas obras, o proprietário do prédio encravado podia assegurar o acesso imposto pela normal utilização do prédio.
Como assim, para a procedência de uma pretensão como a que foi aduzida nestes autos pela ora apelante, tornar-se-á mister a demonstração de um facto concreto, objetivo, superveniente e atual do qual resulte que a servidão que onera o seu prédio (serviente) deixou de ter justificação por o prédio dos réus se ter tornado autónomo em termos de acessibilidade, sendo certo que, à luz do critério estabelecido no art. 342º do Cód. Civil (que enuncia o pensamento fundamental da teoria das normas), impenderia sobre aquela o ónus de alegar e provar factualidade concreta, da qual resultasse que a ajuizada servidão de passagem perdeu, em relação ao prédio dominante, a utilidade que esteve na base da sua constituição.
Na presença da materialidade provada (e que, como se referiu, não foi objeto de impugnação), o decisor de 1ª instância considerou que a mesma não revela, suficientemente, a invocada desnecessidade.
A apelante insurge-se contra esse sentido decisório, argumentando, fundamentalmente (malgrado aceite que o prédio dominante não possui ligação/acesso direto com a via pública), que “os réus têm a possibilidade de virem a efetuar uma abertura para acederem diretamente à via pública, vindo do seu prédio, na parte poente, na Rua …, em cujo local se verifica uma construção que se encontra devoluta e sem telhado”, acrescentando que “concretizando a abertura, mediante a realização de obras no local devoluto (…), os réus passarão a ter um acesso direto ao seu prédio sem necessitarem de passar pelo prédio da autora”.
Que dizer?
Como se deu nota, a apreciação da utilidade ou desnecessidade da servidão deve ser objeto de um juízo de atualidade, pressupondo a ponderação da superveniência de factos que, por si e objetivamente, tenham determinado uma mudança juridicamente relevante no prédio dominante, por forma a concluir-se que a servidão deixou de revestir-se para ele de qualquer utilidade.
Ora, perante a materialidade apurada, resulta claro que o prédio dos réus continua a estar absolutamente encravado (como, aliás, a própria apelante reconhece), sendo que, nessas circunstâncias, carecem de utilizar a ajuizada servidão de passagem para poderem aceder do seu imóvel à via pública (e vice-versa), não existindo a poente qualquer outro caminho que possibilite esse acesso.
É certo que a apelante contrapõe que os apelados poderão realizar obras na parte poente do seu imóvel de molde a permitir o acesso direto do mesmo à via pública.
Como se viu, o enunciado linguístico do nº 2 do art. 1569º do Cód. Civil não prevê expressis verbis[9] a possibilidade de a desnecessidade resultar do facto de o proprietário do prédio dominante poder aceder ao mesmo por qualquer outro meio igualmente cómodo.
Malgrado a ausência de expressa previsão normativa, admite-se, contudo, que na economia do preceito, à existência de desnecessidade não obstará a circunstância de a acessibilidade cómoda e regular ao prédio dominante, sem onerar desnecessariamente o prédio serviente, poder implicar a realização de obras destinadas a dotar aquele prédio de acesso direto à via pública, já que, como se sublinha no acórdão do STJ de 27 de maio de 1994[10] o que a lei no fundo pretende é uma ponderação atualizada da necessidade de manter o encargo sobre o prédio, “deixando ao prudente alvedrio do julgador avaliar se no momento considerado – e segundo uma prognose de proporcionalidade subjacente aos interesses em jogo – haverá ou não outra alternativa que, sem ou com um mínimo de prejuízo para o prédio encravado, possa ser eliminado o encargo incidente sobre o prédio serviente”.
Essa possibilidade exigirá, pois, um juízo de proporcionalidade entre o grau de desagravamento do prédio serviente resultante da extinção da servidão e a dimensão dos seus custos, incómodos e inconvenientes dessa alternativa. Contudo, conforme tem sido assinalado pela jurisprudência[11], competirá ao requerente da extinção da servidão fazer prova da viabilidade dessas eventuais obras, que o incómodo e dispêndio advenientes não serão excessivos, que esse (novo) caminho proporcionará igual ou semelhantes condições de utilidade e comodidade do (existente) acesso ao prédio dominante e bem assim alegar que o custo dessas obras ficará a seu cargo, posto que, por identidade de razão com o preceituado no art. 1568º do Cód. Civil, sobre ele (enquanto proprietário do prédio serviente) recai o dever de custear a realização das obras de construção do meio alternativo à servidão existente, cuja concretização fundamentará a desnecessidade desta[12].
Facto é que a autora não deu satisfação a esse ónus, não tendo, em momento algum, manifestado sequer a disponibilidade de suportar o custo das obras necessárias para o aludido efeito.
Como assim, a servidão continua a ter utilidade, não se registando, nas atuais circunstâncias (como é legalmente suposto), qualquer alteração objetiva no prédio dominante que permita concluir por uma situação de desnecessidade da servidão no sentido supra definido, inexistindo consequentemente fundamento que legitime o deferimento da concreta pretensão de tutela jurisdicional que a apelante formulou no presente processo.
Improcedem, pois, as conclusões 1ª a 12ª.
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V - DECISÃO
Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação improcedente, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas a cargo da apelante (art. 527º, nºs 1 e 2 do Cód. Processo Civil), sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia.

Porto, 30.05.2018
Miguel Baldaia de Morais
Jorge Seabra
Fátima Andrade
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[1] Para maior desenvolvimento sobre a aludida função dos direitos reais, vide, por todos, MENEZES LEITÃO, in Direitos Reais, 5ª ed., págs. 167 e seguintes, onde enfatiza que a derrogação do princípio geral da propriedade plena só deve ser permitida quando os interesses sociais assim o exijam.
[2] Registe-se que, por mor do disposto no nº 3 do art. 1569º, o mesmo regime é aplicável “às servidões legais, qualquer que tenha sido o título da sua constituição (…)”.
[3] Pretensão essa que, de acordo com o desenho legal, corresponde ao exercício de um direito potestativo extintivo que terá de ser judicialmente acionado.
[4] Cfr., inter alia, MENEZES LEITÃO, ob. citada, pág. 375 e OLIVEIRA ASCENSÃO, Direito Civil – Reais, 5ª ed., pág. 511 e seguinte.
[5] Cfr., por todos, acórdãos do STJ de 11.12.2012 (processo nº 3303/07.0TBBCL.G1.S1) e de 1.03.2007 (processo nº 07A091) e acórdão da Relação de Coimbra de 13.05.2014 (processo nº 4045/11.6TJCBR.C1), acessíveis em www.dgsi.pt.
[6] No sentido afirmativo se pronunciam, na doutrina, v.g. ALBERTO VIEIRA, Direitos Reais, 2008, pág. 852, OLIVEIRA ASCENSÃO, ob. citada, pág. 511, MENEZES LEITÃO, ob. citada, pág. 375 e CAVALHO FERNANDES, Direitos Reais, 2ª ed., pág. 438; na jurisprudência, entre outros, acórdão do STJ de 16.03.2011 (processo nº 263/1999.PA.S1), acessível em www.dgsi.pt e acórdãos da Relação de Coimbra de 13.06.95 (CJ, ano XX, tomo 3º, pág. 41) e de 16.04.2002 (CJ, ano XXVII, tomo 2º, pág. 23). Já em sentido negativo militam, na doutrina, CARLOS MOTA PINTO, Direitos Reais, 1975, pág. 343 e seguinte, e na jurisprudência, entre outros, os acórdãos desta Relação de 21.11.2005 (processo nº 0455736) e de 29.09.2011 (processo nº 1116/08.0TBPNF.P1), acessíveis em www.dgsi.pt.
[7] Ob. citada, pág. 375; em análogo sentido, OLIVEIRA ASCENSÃO, ob. citada, pág. 511 e seguinte, ALBERTO VIEIRA, ob. citada, pág. 852 e CARVALHO FERNANDES, ob. citada, pág. 457 e 470.
[8] Cfr., por todos, acórdãos do STJ de 2.06.2005 (processo nº 05B4254) e de 1.03.2007 (processo nº 07A091) e acórdãos da Relação de Coimbra de 5.02.2013 (processo nº 23/08.1TBPNL.C1) e de 13.11.2012 (processo nº 472/10.5TBTND.C1), acessíveis em www.dgsi.pt.
[9] Ao invés do que sucedia no Código de Seabra, em cujo § único do seu art. 2279º se previa, como hipótese típica de verificação de desnecessidade da servidão (para além da hipótese de “terem cessado as correspondentes necessidades deste prédio” [isto é, do prédio dominante] e de “ser impossível já satisfazê-las por via daquelas servidões”) a possibilidade de “o proprietário do prédio dominante pode[r] fazê-lo por qualquer outro meio igualmente cómodo”.
[10] Publicado no BMJ nº 487, págs. 313 e seguintes.
[11] Cfr., por todos, acórdãos da Relação de Coimbra de 28.09.2004 (CJ, ano XXIX, tomo 4º, pág. 18) e de 6.12.2004 (CJ, ano XXX, tomo 5º, pág. 24), sendo que, como se sublinha neste último aresto, para avaliar da existência da desnecessidade há que “atender à possibilidade da utilidade que [a servidão de passagem] proporciona poder ser obtida por outro meio e da proporção do desagravamento do prédio serviente face aos custos, incómodos e inconvenientes para o prédio dominante”, acrescentando-se, mais adiante, que “os elementos necessários para esta avaliação têm de ser alegados pelo requerente da extinção que também se deve disponibilizar para custear as obras que forem necessárias e fazer os depósitos dos custos antes da prolação da sentença”.
[12] Cfr., neste sentido, TAVARELA LOBO, in Mudança e alteração da servidão, 1984, págs. 157 e seguinte, acórdãos da Relação de Coimbra citados na nota anterior e bem assim acórdão da Relação de Guimarães de 13.04.2005 (processo nº 1297/04-1), acessível em www.dgsi.pt.