Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
140/17.7PEGDM.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: PAULA GUERREIRO
Descritores: CRIME DE AMEAÇA
REQUISITOS
MAL IMINENTE
MAL FUTURO
Nº do Documento: RP20190215140/17.7PEGDM.P1
Data do Acordão: 02/15/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL (CONFERÊNCIA)
Decisão: NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO DO ASSISTENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º8/2019, FLS.117-122)
Área Temática: ,
Sumário: I – O crime de ameaça pressupõe um mal futuro, com aptidão para ser encarado com foros de seriedade, e já não um mal iminente.
II – Assim sendo, se um alguém, dirigindo-se e aproximando-se de outrem, profere a expressão “filho da puta, vou-te matar”, mas logo de imediato dá-lhe um soco na face, e se nada mais indicia que o mesmo pretendia causar no ofendido temor quanto à sua vida, por forma a prejudicá-lo na sua liberdade de acção e decisão, uma tal expressão, nesse contexto em que foi proferida, não tem autonomia, nem relevância para integrar o tipo objectivo do crime de ameaça.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Recurso Penal no processo nº 140/17.7PEGDM.P1
1. Relatório
Nos autos com o nº 140/17.7PEGDM, foi após debate instrutório proferida a seguinte decisão instrutória:
«Não há nulidades, exceções ou questões prévias que obstem ao conhecimento da causa.
I - Não se conformando com o despacho de arquivamento dos autos proferido pelo Mº Pº findo o inquérito pelo crime de ameaça, fls. 349, segunda parte, veio o arguido, como ofendido/assistente B… requerer a abertura da instrução pugnado pela pronúncia do arguido C… pelo citado crime, entendendo que se recolheram indícios suficientes da prática do mesmo. Vejamos.
Nos termos do art.º 287º, nº 2, do CPP, o assistente no seu requerimento de instrução (RAI) deve narrar os factos que fundamentam a aplicação de uma pena e indicar as disposições legais aplicáveis. Deve reproduzir a acusação que em seu entender o Mº Pº devia ter elaborado.
Deve por isso o RAI conter a descrição factual do ilícito que se pretende ver averiguado e imputado de forma percetível ao tribunal (JIC) e ao visado (arguido) – Ac. Rel. Porto de 19.11.2014, proc. 794/07.2TASTS, relator Dr.ª Maria Deolinda Dionísio.
“O RAI tem que assumir as vestes de uma acusação, que o processo não tem, sendo este requerimento que, uma vez admitido, vai conformar o desenvolvimento de todo o processo - Ac. Rel. Coimbra, proc. 2344/13.2TALRA, relatora Dr.ª Olga Maurício.
O que não acontece no presente caso, apenas contrapondo argumentos aos argumentos apresentados pelo Ministério Público aquando do arquivamento. Não se alcança que esteja narrada a factualidade que permita concluir pelo tipo legal de crime com que se pretende ver pronunciado o arguido. Não assume as vestes de uma acusação, nomeadamente quanto ao dolo face à ação/conduta do arguido.
O facto imputado, como consta da queixa a fls. 55, é: “O suspeito dirigiu-se à sua viatura, e disse “filho da puta vou-te matar” e de imediato abriu-lhe a porta, deu-lhe um soco … voltou a ir sobre si, que estava a tentar sair da viatura, onde o suspeito dá-lhe agora outro soco na zona entre o nariz e o olho esquerdo, e um pontapé na perna esquerda”.
Ora como bem refere o Mº Pº no seu despacho de arquivamento citando doutrina e vária jurisprudência, para haver crime de ameaça, a ameaça terá que ser feita através de um anúncio de infligir um mal futuro, não podendo confundir-se com uma tentativa de execução do respetivo ato violento como é o caso dos autos: “vou-te matar” e de imediato deu-lhe um soco … voltou a ir sobre si, onde dá-lhe agora outro soco na zona entre o nariz e o olho esquerdo, e um pontapé na perna esquerda”. A situação tem de ser compreendida como um todo, como uma unidade factual ou um acontecimento unitário. O que não é o caso, não apresentando a ação a autonomia exigida pelo tipo de ilícito, para assim se destacar como tipo de crime autónomo. Daí também derivar aquela falta de descrição factual do dolo.
Não merece pois qualquer censura o despacho de arquivamento impugnado proferido pelo Mº Pº.
Em suma: a conduta do arguido pelo facto imputado de se dirigir à viatura do assistente e dizer “filho da puta vou-te matar” e de imediato dar-lhe um soco … voltar a ir sobre si, que estava a tentar sair da viatura, dando-lhe agora outro soco na zona entre o nariz e o olho esquerdo, e um pontapé na perna esquerda, não pode ser posta em causa como crime de ameaça pois não preenche os factos constitutivos do crime, mas o crime de ofensa à integridade física de que se encontra acusado, pelo que não pronuncio o arguido C… pelo criem de ameaça e ordeno o arquivamento do processo nessa parte.
II - Não se conformando com a acusação contra si deduzida pelo crime de ofensa à integridade física simples, veio o arguido B…, requerer a abertura da instrução pugnando pela sua não pronúncia.
Encontra-se o arguido acusado, segundo a acusação pública, por, numa troca de palavras entre o arguido e o arguido C… se terem envolvido em agressões mútuas, desferindo o arguido B… vários murros no arguido C…, atingindo-o na face e no tórax. No seu r.a.i. defende-se o arguido dizendo que apenas foi agredido e não agressor, e de que o ofendido/arguido C… apenas se queixou de socos no peito e não na face onde apresenta lesões.
Vejamos.
Para que um agente possa ser penalmente responsabilizado tem de praticar um ato típico, ilícito, culposo e punível. Ou seja, tendo liberdade para se determinar de acordo com o direito não o faz e, sem causa justificativa, adota uma conduta que preenche objetiva e subjetivamente os elementos de um tipo legal de crime, verificando-se as respetivas condições de punibilidade.
Como decidiu o Ac. da Relação do Porto de 20.10.93, in CJ, t IV, pág. 261, o Juiz só deve pronunciar o arguido quando, pelos elementos de prova recolhidos, forma a sua convicção no sentido de que é mais provável que o arguido tenha cometido o crime do que o não tenha cometido.
A prova em que assetam os factos imputados reportam-se ao depoimento da testemunha D… que diz, fls. 42, in fine, “Quando o denunciado se apercebeu que também ali se encontrava o namorado da depoente chamou-lhe “boi” e começaram os dois a agredirem-se, não sabendo quem deu início”, bem como do relatório de avaliação do dano corporal de fls. 151 que descreve que “na hemiface direita apresenta duas escoriações lineares com crosta hemática … articulação temporo-mandibular esquerda com mobilização referida como dolorosa ….
Quanto á alegação de que a queixa apresentada não foi sobre os factos de que o arguido se encontra acusado, importa dizer que a acusação se mantém na dinâmica espácio temporal e na identidade de condutas imputadas ao arguido quanto ao respetivo núcleo, pelo que é inócua a conclusão extraída de que se verifica uma alteração.
No mais, importa referir que em questão está o crime de ofensa à integridade física, previsto e punido pelo art.º 143°, nº 1 do Código Penal, dispondo o citado preceito que "quem ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa".
Trata-se de um crime material e de dano. O tipo legal abrange um determinado resultado que é a lesão do corpo ou saúde de outrem, fazendo-se a imputação deste resultado à conduta ou à omissão do agente. Por outro lado, é um tipo legal de realização instantânea, bastando para o seu preenchimento a verificação do resultado descrito - a gravidade dos efeitos ou a sua duração poderão conduzir à qualificação da lesão como ofensa à integridade física grave ou ser valoradas no âmbito da determinação da medida da pena (cfr. Comentário Conimbricense do Código Penal, T1, pg. 204).
Por ofensa ao corpo entende-se todo o mau trato através do qual o agente é prejudicado no seu bem-estar físico, de uma forma não insignificante. E, como lesão à saúde deve considerar-se toda a intervenção que ponha em causa o normal funcionamento das funções corporais da vítima, prejudicando-a (cfr. Comentário Conimbricense ao Código Penal, T1, pg. 205 e ss).
A nível subjetivo o tipo legal exige que se afirme o dolo do agente, ou seja uma conduta intencional dirigida à lesão do corpo ou da saúde (cfr. art.º 13° do Código Penal). O dolo de ofensas à integridade física refere-se às ofensas no corpo ou na saúde do ofendido.
Ora, afigura-se-nos assim que os factos descritos na acusação denunciam um acontecimento que integram a prática de um crime de ofensa à integridade física simples.
Consequentemente, examinada a prova indiciária produzida nos autos, designadamente testemunhal indicada na acusação e pericial, ao facto de nos encontrarmos numa fase meramente indiciária, e tendo em conta a natureza e circunstâncias das infrações, os elementos de prova contidos nos autos, fundando-se o conceito de indícios suficientes na possibilidade razoável de condenação ou de aplicação de uma pena ou medida de segurança, devendo considerar-se, assim, existirem indícios suficientes para efeito de prolação do despacho de pronúncia (tal qual para a acusação) quando: a) os elementos de prova, relacionados e conjugados entre si, fizerem pressentir da culpabilidade do agente e produzirem a convicção pessoal de condenação posterior; e b) se conclua, com probabilidade razoável, que esses elementos se manterão em julgamento; ou c) quando se pressinta que da ampla discussão em plena audiência de julgamento, para além dos elementos disponíveis, outros advirão no sentido da condenação futura, nos termos do art.º 308º, nº 1 do CPP, decide-se pronunciar o arguido, B…, identificado a folhas 114, dos autos, pelos factos e crime constante na acusação de folhas 352 a 355, que se dá por reproduzido nos termos do nº 1 do art.º 307º do CPP, pela prática de um crime de ofensa à integridade física simples p. e p. pelo art.º 143º, nº 1 do C. P.
Prova a produzir em julgamento: a indicada na acusação, fls.354.
Medidas de coacção: O arguido aguardará os ulteriores termos processuais em liberdade mediante Termo de Identidade e Residência, já prestado.»
Inconformado com esta decisão veio o arguido, admitido a intervir como assistente por despacho constante de fls. 300 dos autos, B… interpor o presente recurso com os seguintes argumentos que se retiram das conclusões que elaborou:
Em sede de inquérito, o Ministério Público proferiu despacho final determinando o arquivamento do inquérito quanto ao crime de ameaça denunciado pelo assistente B…, por considerar não se mostrarem preenchidos os elementos constitutivos do tipo de crime em causa e que «no contexto em que os factos ocorreram, tendo existido logo de seguida agressões mútuas entre ambos, não se pode referir que tenha existido uma ameaça de um mal futuro. A expressão “filho da puta, vou-te matar” surge como verbalização de um mal iminente.
Inconformado com tal decisão, o assistente requereu a abertura de instrução, pugnando pela prolação de despacho de pronúncia do mesmo.
Porém, o Tribunal a quo decidiu não pronunciar o arguido C… pela prática de um crime de ameaça, p. p. pelo art. 153 do Código Penal.
O presente recurso tem como objeto a matéria de facto e de direito da decisão instrutória proferida nos presentes autos, insurgindo-se o recorrente contra a falta de pronúncia do arguido C… no que respeita ao crime supra mencionado.
Conforme decorre do teor do Auto de Denúncia junto, no dia 12 de Fevereiro de 2017, o recorrente além de ter sido injuriado e agredido pelo recorrido, foi ainda ameaçado por este, tendo o recorrido, em tom sério e ameaçador, proferido a expressão “filho da puta, vou-te matar”.
Tais ameaças deixaram o recorrente com medo e bastante receio de que as mesmas viessem a ser concretizadas, porquanto, as condutas indevidas e ilícitas assumidas pelo recorrido em 12 de Fevereiro de 2017 e, ora em análise, não se trataram de um episódio isolado não sendo a primeira vez que o recorrente teve problemas e/ou desentendimentos com o recorrido.

Na verdade, já anteriormente o recorrido havia ameaçado, injuriado e provocado o recorrente.
O recorrido é uma pessoa hostil, de difícil trato, violenta, descontrolada e extremamente implicativa.
O recorrente evita cruzar-se com o recorrido não só para evitar que possa ocorrer qualquer contenda entre ambos, mas acima de tudo porque tem o fundado receio que o recorrido possa atentar contra a sua vida e a sua integridade física.
Após o dia 12 de Fevereiro de 2017, data em que o recorrido proferiu tais ameaças, o recorrente não mais foi buscar os seus filhos menores a casa da sua ex-mulher, tendo-se visto privado do convívio com os seus filhos, bem como estes do convívio com o pai, mantendo, apenas contacto telefónico com as crianças.
Para contornar este período de ausência de convívio, e que foi longo, sugeriu o recorrente que a entrega dos menores passasse a ser feita à/pela tia paterna dos menores, E…, o que foi aceite pela progenitora.
Todavia, conforme facilmente se depreende, tal situação obrigava a incomodar um terceiro com uma tarefa que, além de lhe causar sérios transtornos, não lhe era exigível, nem sensato continuar a onerar, pelo que, irremediavelmente, impunha-se proceder à alteração do regime de visitas dos menores.
A ação de alteração da regulação das responsabilidades parentais correu termos no Juiz 1, do Juízo de Família e Menores de Gondomar, sob o nº 3222/17.1T8GDM, tendo os progenitores chegado a acordo quanto à alteração do regime de visitas nos seguintes termos:
«1 – As entregas e recolhas das crianças são feitas na loja de conveniência da estação de serviço da …, que se localiza no ….
2 – Para esse efeito, o pai comunica para o filho mais velho por SMS, com antecedência de 15mn.
3 – Qualquer situação imprevista que importe um atraso na recolha ou entrega é comunicado pelo pai à mãe, por SMS, com a máxima antecedência possível.»
A expressão ameaçadora utilizada pelo recorrido foi idónea a provocar no recorrente um estado de alma e de espírito redutor e constrangedor da sua liberdade de autodeterminação.
O próprio depoimento das testemunhas arroladas pelo recorrente, F… e G… bem como o depoimento do seu filho menor H…, permitem, sem qualquer margem para dúvidas, considerar indiciado que após as ameaças proferidas pelo recorrente contra a sua pessoa, o mesmo passou a viver num clima de medo e insegurança, receando que, a qualquer momento, o recorrido pudesse concretizar as ameaças proferidas e atentar contra a sua vida e integridade física.
Em suma, após a contenda aqui em apreço o recorrente ficou com medo e receio que o atual companheiro da sua ex-mulher pudesse atentar contra a sua vida e a sua integridade física, razão pela qual se viu obrigado a alterar a sua vida e a forma como a mesma, até então, se encontrava organizada, tudo com o intuito de evitar cruzar-se com o recorrido.
Não há dúvidas que existiu o anúncio de infligir um mal futuro, não se consubstanciando numa mera verbalização de um mal iminente como entendimento do Tribunal a quo.
Se, por exemplo, o agente não tem intenção de matar, aquela expressão, não integra um ato de execução de um crime de homicídio, mas integra claramente um crime de ameaças, verificados os demais pressupostos deste tipo de crime, nomeadamente a consciência do agente da suscetibilidade de provocação de medo ou intranquilidade (cfr. neste sentido, o Acórdão da Relação de Lisboa de 17/6/2004, Proc.º n.º 3525/04).
Pelo exposto, cumpriria concluir que a expressão utilizada pelo recorrido é, assim, uma ameaça real de lesão futura.
O recorrente, desde então, ficou a temer pela sua vida e integridade física.
Com efeito, desde essa data que o recorrente receia que o recorrido concretize tal ameaça, vivendo perturbado e com medo, receando pela sua própria vida, deixando, aliás, como supra se disse, de ir buscar e entregar os filhos a casa da progenitora, com medo de encontrar o recorrido.
Após a ameaça o Recorrente ficou condicionado nas suas decisões e movimentos.
A expressão imputada ao recorrido repercutiu-se, assim, na liberdade de decisão e ação futura da vítima.
Nestes termos, a expressão “vou-te matar” configura um mal futuro, e não constituindo um ato de execução do crime de ofensas à integridade física de que o recorrido foi acusado, conforme foi o entendimento do Tribunal recorrido, porquanto, apesar das agressões de que o recorrente foi vítima, a verdade é que na situação aqui em apreço estamos perante uma clara ausência de tentativa de homicídio, pelo que, a ameaça proferida pelo recorrido se consubstancia numa ameaça de um mal futuro.
As circunstâncias em que são descritas a ação e o querer do arguido são indicativas do aviso de uma ofensa contra a vida do ofendido que está prestes a acontecer, que irá concretizar-se, logo, futura, porquanto, tal ameaça não foi seguida de qualquer ação configuradora de execução imediata ou iminente do mal ameaçado, sendo certo que, o anúncio daquele mal, depois não concretizado, foi capaz de gerar medo, inquietação e de prejudicar a liberdade de determinação do recorrente.
No caso concreto a ocorrência do mal futuro depende da vontade do agente, ora recorrido, sendo que a expressão proferida pelo mesmo não se tratou de um simples aviso ou advertência, mas antes se consubstanciou numa concreta ameaça.
A afirmação em causa foi proferida pelo recorrido no dia e na hora em que o mesmo injuriou e agrediu fisicamente o ofendido B….
Por conseguinte, tal ameaça não se tratou de uma fanfarronice, de uma atitude de quem ladra, mas não morde.
Ao invés, as referidas palavras, traduzindo-se em anúncio de atentar contra a vida do recorrente, eram adequadas a intimidar o recorrente, prejudicando, aliás, a sua liberdade pessoal.
A expressão proferida pelo arguido C… e dirigida ao ofendido B…, atento o contexto em que a mesma foi efetuada, foi claramente ameaçadora e afigurou-se ser adequada, segundo um critério exclusivamente objetivo, a provocar medo e inquietação no recorrente, portanto, de acordo com a experiência comum tal expressão configurou uma ameaça suscetível de ser tomada a sério, como foi, pelo ameaçado, atento o contexto e a forma como decorreu.
Quanto ao elemento subjetivo do ilícito, o crime de ameaça exige o dolo em qualquer das suas modalidades, que aqui se caracteriza pela consciência de que o comportamento assumido é suscetível de causar medo ou inquietação ou de perturbar a liberdade do visado, independentemente deste ficar com medo ou inquietação ou prejudicado na sua liberdade de determinação.
Este dolo exige e basta-se com a consciência (representação e conformação) da adequação da ameaça a provocar medo ou intranquilidade no ameaçado.
A factualidade constante dos autos permite aferir a existência de dolo, tendo o recorrido perfeita consciência de que a sua conduta era suscetível de causar medo ou inquietação ou de condicionar a liberdade do recorrente, conforme, aliás, sucedeu.
A conduta reprovável do recorrido, ao ameaçar atentar contra a vida e a integridade física do ofendido, integra a tipicidade objetiva e subjetiva deste tipo de ilícito, tendo, além do mais, o recorrido agido de forma livre, deliberada e consciente, no claro intuito de, através da sua conduta e expressão proferida, causar temor e medo no recorrido, como efetivamente causou, apesar de bem saber que a sua atitude era adequada a causar no visado tais sentimentos de medo e de receio e que, além do mais, era punida e proibida por lei.
Pelo exposto, entende o recorrente que o Tribunal a quo deveria ter pronunciado o arguido C… pela prática de um crime de ameaça.
Os factos obtidos em sede de inquérito e instrução constituem suficientes indícios da prática, por parte do aqui recorrido de um crime de ameaça.
Conclui, em síntese, pedindo que na procedência do recurso, seja revogada a decisão instrutória de não pronúncia do arguido C….
Foi admitido o recurso interposto por B… na qualidade de assistente.
Em primeira instância respondeu ao recurso o MP, alegando, em síntese, que após o despacho de arquivamento quanto ao crime de ameaça, foi, pelo ora recorrente requerida a instrução.
No debate instrutório o MP expressou o entendimento de que o RAI elaborado pelo assistente não continha os elementos objetivos e subjetivos do crime de ameaça, pelo que deveria ser rejeitado, e caso assim não se entendesse, deveria o Juiz de Instrução aderir aos fundamentos de facto e de direito plasmados no despacho de arquivamento.
No caso em apreço, o mal anunciado é imediatamente concretizado sob a forma descrita, formando uma unidade factual, pelo que não ganha relevância autónoma.
Nestes termos conclui que o despacho recorrido não merece censura.
Nesta Relação o Sr. Procurador-geral-adjunto acompanhou as razões da resposta do MP e emitiu parecer de que seja negado provimento ao recurso.
Cumprido o disposto no art. 417 nº2 do CPP, não foi apresentada resposta ao parecer.
2. Fundamentação:
A- Circunstâncias com interesse para a decisão a proferir!
Para melhor compreensão do objeto dos presentes autos passamos a enumerar algumas circunstâncias que se nos afiguram relevantes:
No despacho final do inquérito exarado a fls. 347 dos autos o Ministério Público arquivou os autos quanto ao crime de ameaça denunciado pelo agora assistente B… e imputado por este, ao arguido C….
O fundamento do arquivamento é essencialmente:
«... no contexto em que os factos ocorreram, tendo existido logo de seguida agressões mútuas entre ambos, não se pode referir que tenha existido uma ameaça com a prática de um mal futuro. A expressão proferida “filho da puta, vou-te matar” surge como verbalização de um mal eminente.»
O MP acompanhou a acusação particular deduzida pelo agora recorrente contra o arguido C… pela prática de crime de injúria p.p. pelo art. 181 nº1 do CP.
Mais deduziu acusação contra os arguidos B… e C… pela prática, em autoria material, cada um deles, de um crime de ofensa à integridade física simples p.p. pelo art. 143 nº1 do CP.
Constam da acusação pública entre outros os seguintes factos:
«No dia 12 de fevereiro de 2017, pelas 19h30m, em frente à residência sita na Travessa …, nº.., em …, depois de o arguido B… ter ido ali entregar os filhos, deparou-se com o arguido C…, atual companheiro da sua ex-mulher.
Nessa altura, gerou-se uma troca de palavras entre ambos os arguidos, devido a divergências quanto à regulação das responsabilidades parentais, tendo os dois se envolvido em agressões mútuas.
Com efeito o arguido C… desferiu vários murros e pontapés no arguido B… atingindo-o em várias partes do corpo.
Por sua vez o arguido B… desferiu vários murros no arguido C… atingindo-o na face e no toráx.»
Ambos os arguidos sofreram as lesões descritas na acusação pública causadas pela conduta referida que se lhes imputa deliberada, livre e consciente.
Inconformado com o arquivamento quanto ao crime de ameaças por si denunciado veio B…, na qualidade de assistente, requerer a instrução.
Do art. 88º do RAI elaborado e junto aos autos resulta que conforme decorre do teor do Auto de Denúncia junto fls.., no dia 12 de Fevereiro de 2017, o arguido B… além de ter sido injuriado e agredido pelo arguido C…, foi ainda ameaçado por este, tendo o arguido C…, em tom sério e ameaçador, proferido a expressão “filho da puta, vou-te matar”.
Mais consta do art. 123º do Rai que:
«tendo, além do mais, o Arguido C… agido de forma livre deliberada e consciente, no claro intuito de através da sua conduta e expressão proferida, causar temor e medo no ofendido, como efetivamente causou, apesar de bem saber que a sua atitude era adequada a causar no visado tais sentimentos de medo e de receio e que, além do mais, era punida e proibida por lei.»
B – Fundamentação de direito
Sendo o âmbito do recurso definido pelas conclusões que o recorrente extraiu das respetivas motivações, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, verificamos que o objeto do presente recurso é aferir se no caso concreto o arguido C… deveria ter sido pronunciado pela prática de crime de ameaça, como o assistente B…, visa com o Rai.
O facto em questão que se extrai do próprio despacho recorrido e da queixa constante de fls. 55 traduz-se essencialmente na expressão “filho da puta, vou-te matar”...
O contexto em que a mesma foi proferida resulta melhor explanado na queixa deduzida e é o seguinte:
«O suspeito dirigiu-se à sua viatura e disse “filho da puta, vou-te matar” e de imediato abriu-lhe a porta, deu-lhe um soco, na face do lado direito,...»
Importa analisar se tal expressão expressa no contexto de agressões físicas iminentes, tem a virtualidade de poder ser considerada ameaça de mal futuro, para efeitos de preenchimento do tipo legal previsto no art. 153 do CP.
O que se passa é que na iminência da contenda o agressor refere que vai matar, mas, na verdade, concretiza em murros e pontapés, que de forma alguma são adequados para o efeito, daí que tenha sido corretamente acusado por crime de ofensa à integridade física.
Atento que a expressão, “vou-te matar”, é seguida por atos de agressão, e nada mais indicia que o agressor pretendia causar no ofendido temor quanto à sua vida, por forma a prejudicá-lo na sua liberdade de ação e decisão, consideramos que tal expressão, por si só, e no contexto em que foi proferida não tem autonomia, nem relevância, para integrar o tipo objetivo do crime de ameaça, tal como vem previsto no Código Penal.
A intenção que traduz o elemento subjetivo do tipo extrai-se da conduta adotada e de todos os elementos circundantes, não se indiciando, no caso concreto, a vontade de causar temor, medo ou inquietação, de um mal que viria a acontecer futuramente, como é típico do crime de ameaça.
Na verdade, vou-te matar, é um tempo verbal que pode ser conjugado no presente: - o sujeito afirma a ação que vai executar de seguida e levou a efeito.
Assim, e, quanto mais não fosse, porque na dúvida, face ao princípio do in dubio pro reo, deve adotar-se a interpretação que mais favoreça o arguido, em julgamento, as probabilidades de o arguido ser condenado por crime de ameaça são diminutas, motivo, pelo qual, nada temos a censurar à decisão de não pronúncia do arguido C… pelo crime de ameaça. – art. 308 nº1 do CPP interpretado a contrario sensu. Efetivamente, o legislador não pretende que se sujeite alguém a julgamento sem que haja uma probabilidade séria e forte de que venha a ser condenado.
3. Decisão:
Tudo visto e ponderado, com base nos argumentos que ficaram expostos, acordam os juízes, na 1ª secção criminal da Relação do Porto, em negar provimento ao recurso interposto por B…, na qualidade de assistente, e confirmar integralmente a decisão proferida em primeira instância relativamente à não pronúncia do o arguido C… pelo crime de ameaça.
Mais condenam o recorrente em 3 ucs de taxa de justiça.
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Porto, 15/02/2019
Paula Guerreiro
Pedro Vaz Pato