Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
5722/04.4TDLSB.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: PEDRO VAZ PATO
Descritores: CRIME FISCAL
PUNIBILIDADE
Nº do Documento: RP201405215722/04.4TDLSB.P1
Data do Acordão: 05/21/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: O limite de punibilidade previsto no artigo 103º, nº 2, do R.G.I.T. é aplicável à fraude fiscal qualificada prevista no artigo 104º do mesmo diploma.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Pr. 5722/04.4TDLSB.P1

Acordam os juízes, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto

I – O Ministério Público veio interpor recurso do douto acórdão do Tribunal Judicial de Castelo de Paiva que declarou não puníveis as condutas por que vinham pronunciados os arguidos B… (este no que se refere a oito dos crimes de fraude fiscal qualificada por que vinha pronunciado), C…, “D…, Ldª”, E…, “F…, Ldª”, G…, H…, “I…, Ldª”, J…, K…, L…; M…, N…, “O…, Ldª”, P…, “Q…, Ldª”, S…, T… e “U…, Ldª”

Das conclusões da motivação do recurso consta o seguinte:
«(…)
4. O douto Tribunal recorrido, nesta sua decisão, renovou, aqui e agora essa sua posição – maioritária a nível doutrinal e jurisprudencial (ainda que não unânime) -, em conformidade com a recente decisão do Tribunal da Relação do Porto de 16 de Março de 2011, no âmbito do processo comum colectivo nº 65/02.01DAVR, deste mesmo Tribunal de Castelo de Paiva, convolando quanto àqueles citados arguidos, os crimes de fraude fiscal, para meras contra-ordenações da previsão do art. 118º do RGIT, ainda que em relação aos arguidos em numero maioritário, que pagaram as coimas, viesse a julgar extinto o procedimento desta natureza e por tal efeito;
5. A razão da nossa discordância prende-se com o facto de se tratar de um tipo legal de crime agravado em relação aquele outro simples, porque ocorreu com uma conduta especialmente censurável, com recurso a facturação falsa, pelo que o disposto no art. 104º do RGIT não se submete uma qualificação meramente de valor, como o entretanto previsto na lei de aprovação do OE, para o transacto ano de 2009;
6. Interpretação esta que se nos afigura ter sido a intenção do legislador tanto mais que do ponto de vista literal e sistemático, não o referiu, bastando ter acrescentado uma alínea ou um novo número ao art. 103º do RGIT;
7. Tanto mais que e ainda que se possa considerar a vantagem patrimonial um elemento típico deste crime de fraude fiscal, a fixação de um determinado limite para a sua penalização terá de ser sempre entendida como uma condição objectiva de punibilidade;
8. Aliás os crimes de fraude fiscal simples e qualificada, das previsões dos artigos 103º e 104º do RGIT comportam duas diferentes realidades, como se vem constatando em várias jurisprudências dos tribunais superiores;
9. Por outro lado se poderá também constatar e como argumento de autoridade, tal como recentemente se decidiu superiormente, no acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, ainda que quanto ao crime de abuso de confiança fiscal à Segurança Social, que a redacção da citada lei (OE), não contemplou as condutas anteriormente integradoras desse crime de natureza fiscal;
10. Referindo-se também o último acórdão de fixação de jurisprudência com o nº 8/2010, de 23 de Setembro, que uniformizou e quanto a este ultimo tipo de ilicitude, ainda que baseando-se noutros valores de natureza penal, entendeu-se não relevar o critério do valor patrimonial;
11. Saliente-se, igualmente a posição do Sr. Desembargador Dr. José Vaz Carreto no seu voto de vencido lançado naquela citada decisão referente ao acórdão mais recente do recurso referente ao processo de Castelo de Paiva, cuja fundamentação fazemos nossa, onde se referencia, também o acórdão de fixação de jurisprudência como o nº 3/03. de 10-7-2003, sobre a relação de concurso aparente entre os crimes de fraude fiscal e de falsificação de documento, que considerou a sua punibilidade não dependente do valor do prejuízo patrimonial;
12. Aduzindo-se, também e pela nossa parte, como um argumento de natureza pragmática, que esta situação poderá facilmente conduzir a uma autentica fraude à lei, por parte dos contribuintes fraudulentos, que passa a apresentar várias declarações que não ultrapassem o aludido montante de 15 mil euros;
13. Como fez este douto Tribunal recorrido, que violou, assim, o disposto nos arts. 104º nº 1 als. a) e e), do RGIT e 103º e 118º, deste mesmo diploma;
14. Decisão esta que deverá ser revogada, substituindo-se por uma outra que impute os aludidos ilícitos penais aos visados arguidos, que deles vieram a ser absolvidos, enquanto representantes da firmas arguidas, bem com destas e também do arguido B…, na qualidade de emitente, condenando-os nos termos e numa pena em tudo idêntica àquelas que foram escolhidas para ao arguidos B… e V…;»

Os arguidos G…, H…, “I…, Ldª”, L… e K… apresentaram respostas a tal motivação, pugnando pelo não provimento do recurso.

O Ministério Público junto desta instância emitiu douto parecer, pugnando também pelo não provimento do recurso.

Colhidos os vistos legais, foram os autos à conferência, cumprindo agora decidir.

II – A questão que importa decidir é, de acordo com as conclusões da motivação do recurso, a de saber se devem considerar-se não puníveis as condutas dos arguidos acima referidos, ao abrigo do disposto no artigo 103º, nº 2, do R.G.I.T., ou não, por este preceito não ser aplicável a condutas enquadráveis no crime de fraude fiscal qualificada, p. e p. pelo artigo 104º do mesmo diploma, mas apenas as enquadráveis no crime de fraude fiscal simples, p. e p. pelo referido artigo 103º.

III – Da fundamentação do douto acórdão recorrido consta o seguinte:
«(…)
II) Da qualificação jurídica dos factos.
Do crime de fraude fiscal
Aos arguidos é imputada a prática, ao arguido B…, e enquanto utilizador, em autoria material e na forma consumada de um crime de fraude fiscal qualificada, p. e p., pelos arts. 104º nº1 als. a), e e) e nº2 da Lei nº15/2001, de 5 de Junho; e enquanto emitente, a prática em co-autoria e em concurso real pela prática de nove crimes de fraude fiscal qualificada, p. e p., pelos arts.104º nº1 als. a), e) e nº2, da Lei nº15/2001, de 5 de Junho; aos restantes arguidos a prática em co-autoria de um crime de fraude fiscal qualificada, p. e p., pelos arts.104º nº1 als. a), e) e nº2, da Lei nº15/2001, de 5 de Junho.
Dispõem o art. 103º do RGIT, que “1 - Constituem fraude fiscal, punível com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias, as condutas ilegítimas tipificadas no presente artigo que visem a não liquidação, entrega ou pagamento da prestação tributária ou a obtenção indevida de benefícios fiscais, reembolsos ou outras vantagens patrimoniais susceptíveis de causarem diminuição das receitas tributárias. A fraude fiscal pode ter lugar por: (...) c) Celebração de negócio simulado, quer quanto ao valor, quer quanto à natureza, quer por interposição, omissão ou substituição de pessoas.
Por seu turno, prescreve o artigo 104.º, quanto à fraude qualificada que - Os factos previstos no artigo anterior são puníveis com prisão de um a cinco anos para as pessoas singulares e multa de 240 a 1200 dias para as pessoas colectivas quando (...) 2 - A mesma pena é aplicável quando a fraude tiver lugar mediante a utilização de facturas ou documentos equivalentes por operações inexistentes ou por valores diferentes ou ainda com a intervenção de pessoas ou entidades diversas das da operação subjacente.
(…)
Apurou-se ainda que o arguido B… com a apresentação da declaração periódica de IVA dos 1º, 2º, 3 e 4º trimestres de 2002 obteve uma vantagem patrimonial indevida no que concerne a este imposto, no valor de € 2.720,00€ para o 1º trimestre, 15.390,00€ para o 2º trimestre, 4.628,34€ para o 3º trimestre e 65.080,44€ para o 4º trimestre, donde só no 1º e 4º trimestre aquela vantagem patrimonial ilegítima obtida foi superior a 15.000,00€.
Nos restantes casos como se vê do elenco das vantagens patrimoniais descritas no facto 328) para o IVA e nos factos 333) a 339) para o IRC, a vantagem patrimonial ilegítima obtida com a descrita conduta não alcança aquele montante, excepção feita à arguida W…, Lda. que enquadrada no regime de IVA de periodicidade mensal no mês de Outubro de 2003 apresenta vantagem patrimonial ilegítima de 15.172,45€.
Ora da interpretação sistemática do que se dispõem no artigo 103.º do R.G.I.T, o qual contém a previsão simples da fraude fiscal, como se referiu, haverá que atentar ao n.º 2 do mesmo preceito que estabelece que os factos previstos nos números anteriores não são puníveis se a vantagem patrimonial ilegítima for inferior a € 15.000 (redacção dada pela Lei n.º 60-A/2005 de 30 de Dezembro, sendo anteriormente a esta de €7.500); considerando-se nos termos do n.º 3 que, para efeitos do disposto nos números anteriores, os valores a considerar são os que, nos termos da legislação aplicável, devam constar de cada declaração a apresentar à administração tributária.»
Do exposto nos citados normativos legais, lidos sistematicamente, conclui-se que presentemente não é criminalmente punível como fraude fiscal a factualidade conducente à obtenção de vantagem ilegítima inferior a €15.000 referida a cada uma das declarações a apresentar, sendo a vantagem patrimonial indevida de que fala o enunciado n.º2, o montante do imposto que o sujeito passivo deixou de pagar por causa da fraude, ou nas palavras de Susana Aires de Sousa, in Os crimes fiscais, Análise Dogmática e Reflexão sobre a legitimidade do Discurso Criminalizador, pag. 88 «a vantagem patrimonial há-de reconduzir-se à prestação tributária em falta». A vantagem patrimonial é, assim, elemento típico para a verificação do crime.
Aos arguidos é, todavia, imputada a prática da forma qualificada da fraude fiscal cuja previsão se encontra elencada no art. 104º, n.º 1, als. a) e e) que dispõem que 1 – os factos previstos no artigo anterior são puníveis com prisão de um a cinco anos para as pessoas singulares e multa de 240 a 1200 dias para as pessoas colectivas quando se verificar a acumulação de mais de uma das seguintes circunstâncias: al. a) O agente se tiver conluiado com terceiros que estejam sujeitos a obrigações acessórias para efeitos de fiscalização tributária; al. e) O agente usar os livros ou quaisquer outros elementos referidos no número anterior sabendo-os falsificados ou viciados por terceiro.
Aqui chegados a questão que se coloca é a de saber se o já enunciado n.º2 do art. 103º do RGIT que estabelece a não punibilidade das condutas fraudulentas quando a vantagem patrimonial ilegítima for inferior a €15.000 vale nos casos em que a fraude é qualificada (entendimento que parece ser o perfilhado pelos arguidos).
A este propósito a doutrina tem-se pronunciado no sentido da validade, no âmbito do art. 104º, daquele limite (assim Cfr. Susana Aires de Sousa, in Ob. Cit., pag. 118 e Isabel Marques da Silva in Regime das Infracções Tributárias, Cadernos IDEFF, n.º5, Almedina, pag. 156), entendendo que a exigência de valor mínimo de vantagem patrimonial ilegítima decorre da própria definição do crime como «fraude qualificada», isto é, como mera qualificação do crime fiscal base de fraude. A fraude qualificada só assume dignidade penal quando a vantagem patrimonial ilegítima conseguida pelo agente em detrimento do património do Estado for igual ou superior àquele montante.
Já em sentido contrário pronunciou-se o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 18/05/2009, proferido no processo n.º 352/02.8IDBRG. Ali, como argumento avança-se que a realidade prevista na punição da fraude qualificada por ser mais gravosa do que a que vem enunciada no tipo fundamental da fraude simples é dela dissociável e concluindo, deste modo, por excluída a exigência da obtenção com a fraude um valor mínimo de beneficio patrimonial ilegítimo.
Pensada a questão e sopesados os argumentos avançados pela doutrina e pela Jurisprudência conhecida (mormente o citado Acórdão), considera o Tribunal que foi efectivamente intenção do legislador manter na punição da fraude qualificada a exigência do valor mínimo de vantagem patrimonial ilegítima, conclusão que decorre da própria qualificação do crime fiscal base de fraude e que, assim, exige a verificação de todos os elementos essenciais deste e ainda circunstâncias especiais que têm por efeito a agravação da penalidade aplicável. Deste modo, para que exista crime de fraude qualificada devem mostrar-se preenchidos, primeiramente, todos os elementos do crime de “fraude simples” tipificado no art. 103º do RGIT, incluindo a obtenção de vantagem patrimonial ilegítima de valor pelo menos igual a €15.000.
Neste sentido encontramos na jurisprudência mais recente do Tribunal da Relação do Porto os Acórdão de 23/03/2011, proferido no processo n.º 70/05.5IDAVR e de 16/03/2011, proferido no processo n.º 65/05.9IDAVR, sendo este último confirmando decisão por este Tribunal proferida no identificado processo e no qual além do mais se pode ler que (…) “Assim e quer se entenda que a não punibilidade dos factos de defraudação do fisco susceptíveis de causar uma “vantagem patrimonial ilegítima inferior a € 15.000” [103.º, n.º 2], corresponde a uma condição objectiva de punibilidade ou integra antes o elemento descritivo do crime de fraude fiscal, o certo é que esse perigo de prejuízo ou de diminuição das vantagens tributárias no valor de € 15.000 é sempre “o mínimo dos mínimos” que justifica, segundo o legislador, a criminalização das condutas de fraude fiscal. E isso tanto para o crime de fraude fiscal do tipo base, como do tipo qualificado, como de resto sucede com qualquer distinto grau de tipo legal de crime – não existe homicídio qualificado sem homicídio, não existe burla qualificada sem burla, não existe furto qualificado sem furto e, para nos colocarmo-nos nos crimes de perigo, não existe tráfico de estupefacientes agravado, sem tráfico de estupefaciente e aí por diante. Mas mais relevante que esta leitura sistémica da tipologia criminal é a leitura jusfundamental, partindo-se das exigências constitucionais que condicionam qualquer interpretação legislativa, as quais deixámos anteriormente sublinhadas. Por isso, atento os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e da intervenção mínima do direito penal, que lhe confere uma natureza fragmentária, reforçado por ponderações constitucionais de proporcionalidade, sem esquecer o princípio democrático de reserva de lei, temos igualmente de sujeitar o crime de fraude fiscal qualificado e aqui até com uma maior imposição, porquanto a sua reacção penal é mais grave, à exigência do “mínimo dos mínimos” que fundamenta a punibilidade do crime de fraude fiscal simples. Em suma, podemos assentar que o crime de fraude fiscal apenas será qualificado se para além da ocorrência de, pelo menos, duas das suas circunstâncias agravativas, as mesmas forem aptas a causar um prejuízo ou a diminuição de vantagens tributárias no valor de, pelo menos, € 15.000. Nesta conformidade, não existe qualquer censura a fazer ao despacho recorrido quando o mesmo decidiu que as condutas assinaladas não integravam um crime de fraude fiscal qualificado p. e p. pelo art. 104.º, n.º 1, alíneas a) e e) e n.º 2.” (…)
Ora, analisada a factualidade descrita na acusação, concretamente no que contende com a que integra a vantagem patrimonial indevida, vemos que aí se imputa aos arguidos (utilizadores) em sede de IVA as vantagens patrimoniais indevidas por declaração inferiores a 15.000,00€ (com excepção feita ao arguido B… em virtude da utilização das facturas emitidas pela empresa X… no que respeita aos 2º e 4º trimestre de 2002, e da arguida W…, Lda. com relação à declaração periódica de IVA de Outubro 2003 como supra se anotou).
Também no que contende com o IRC imputam-se vantagens patrimoniais indevidas não superiores a 15.000,00€
Refere, expressamente, o n.º 3 do art. 103º do RGIT que «os valores a considerar são os que, nos termos da legislação aplicável, devam constar de cada declaração a apresentar à administração tributária.
No caso, o valor da vantagem patrimonial obtida que vem descrita na acusação para cada uma das declarações de IRC e IVA (note-se que quanto a este último imposto ali consta que os arguidos beneficiários da fraude encontravam-se enquadrados no regime normal de periodicidade trimestral, à excepção da arguida W…, Lda. que se enquadrava no regime normal de periodicidade mensal) individualmente considerada em cada declaração apresentada é sempre inferior a 15.000 € para as arguidas D…, Lda., F…, Lda., I…, Lda., O…, Lda., U…, Lda., Q…, Lda. e para o arguido T…, só sendo superior quando à declaração respeitante ao mês de Outubro de 2003, da arguida W… e para as declarações de IVA dos 2º e 4º trimestres reportadas ao arguido B…, como se anotou.
Deste modo, a conduta imputada na pronuncia, com excepção destes dois últimos arguidos, não é, actualmente, punível face ao que se expendeu, beneficiando, os arguidos, pelo menos quanto às declarações de IVA de 2002 e 1º trimestre de 2003, (nos casos em que são superiores a 7.500€) da aplicação da Lei Nova mais favorável (art. 2º, n.º2 e 4 do Cód. Penal) com a entrada em vigor da alteração introduzida ao n.º3 do art. 105 do RGIT pela mencionada Lei n.º 60-A/2005 de 30 de Dezembro e que alargou o âmbito da não punição da fraude fiscal àquelas cujo valor da vantagem patrimonial é superior a 15.000 €, quedando-se anteriormente na quantia de 7.500€.
Consequentemente a ausência de preenchimento dos factos descritos na pronuncia e que se reportam à prática pelos arguidos B… como emitente, e como beneficiários os arguidos C… e enquanto legal representante da arguida “D…, Lda.”, E… e enquanto legal da empresa F…, G… e H… enquanto legais representantes da arguida I…, Lda., J…, K…, L…, M…, N… e enquanto legais representantes da arguida O…, Lda., P… e enquanto legal representante da arguida Q…, Lda., T… e S… d enquanto legal representante da arguida U…, Lda. dos crimes de fraude qualificada que lhes vêm imputados, implica que se tenham como não criminalizadas as condutas de que vêm acusados e impõem também que, nesta parte, se declara extinto o procedimento criminal contra todos eles.
No entanto, e ainda a este propósito tem vindo a ser decidido pelo Tribunal da Relação do Porto (cfr. os já mencionados Acórdãos) que estas mesmas condutas integram uma contra-ordenação de falsificação, viciação e alteração de documento fiscalmente relevante da previsão do art. 118.º do RGIT.
Este preceito comina no seu n.º 1 que “Quem dolosamente falsificar, viciar, ocultar, destruir ou danificar elementos fiscalmente relevantes, quando não deva ser punido pelo crime de fraude fiscal”, punindo-se esta conduta “com coima variável entre € 500 e o triplo do imposto que deixou de ser liquidado, até € 25.000”, defendendo, por exemplo Tolda Pinto e Jorge Manuel Reis Bravo, in Regime Geral das Infracções Tributárias, pag. 451 (…) “que a falsificação, viciação ou alteração de documentos fiscalmente relevantes só constitui fraude fiscal se visar a não liquidação, entrega ou pagamento de prestações tributárias ou a obtenção de benefícios indevidos fiscais, reembolsos ou outras vantagens patrimoniais susceptíveis de causarem diminuição de receitas tributárias. Não se verificando adequação causal entre tal recusa e qualquer obtenção indevida de vantagens patrimoniais (ou, verificando-se, essa vantagem patrimonial ilegítima for inferior a €7.500 – actualmente 15.000,00€), estaremos perante a contra-ordenação prevista neste artigo” (…)
Já vimos, na consideração do elenco dos factos provados, que no caso existe adequação causal entre a viciação/alteração de documentos fiscalmente relevantes – facturas - e a obtenção de vantagem patrimonial indevida seja por via de reembolso, seja por via diminuição de receita a pagar, quedando-se todavia aquela vantagem patrimonial no que se reporta aos enunciados arguidos utilizadores “D…, Lda.”, F…, Lda., I…, Lda., O…, Lda., Q…, Lda., T… e U…, Lda., abaixo do limite da punibilidade como crime, ocorrendo, então, no caso e quanto àqueles factos convolação do crime de fraude qualificada que lhes era imputada para contra-ordenação, como permite o disposto no art. 77.º, n.º 1 do Regime Geral das Contra-Ordenações e Coima, aprovado pelo Dec.-Lei n.º 433/82, de 27/Out.. Alterado pelo Dec.-Lei n.º 356/89, de 17/Out.; 244/95, de 14/Set.; 323/2001, de 17/Dez.; Lei n.º 109/2001, de 24/Dez “ex vi” art. 3.º al. b) do RGIT – aonde se preceitua que “O tribunal poderá apreciar como contra-ordenação uma infracção que foi acusada como crime”.
Porém, e antes de concluir, existem duas outras questões com esta conexiadas que se impõem apreciar.
A primeira delas, contendendo com o que se teve por provados nos factos 354, 355 e 356 quanto ao pagamento voluntário da coima prevista no art. 118º do RGIT como atestado foi pelo Serviço de Finanças de Castelo de Paiva (cfr. facto 355) no que se reporta à arguida O…, Lda., que liquidou voluntariamente as coimas devidas nos termos dos arts. 118º e 119º do RGIT, referentes ao IVA dos períodos de 200209T (3º trimestre); 200212T (4º trimestre); 200312T (4º trimestre) e do IRC do ano de 2002 pois que, quanto a ela, deixa resolvida a decisão quanto à sua responsabilidade tributária contra-ordenacional (cfr. art. 50 do DL 433/82) na medida em que tendo a arguida pago voluntariamente a coima que lhe foi liquidada prevista para a contra-ordenação que lhe era imputada, significa que se conformou com os factos relativos a tal contra-ordenação, extinguindo-se assim e quanto a esta arguida, não só o procedimento criminal como se expendeu, mas também o procedimento contra-ordenacional por via da conduta que se apurou ter praticado e que integra a previsão do art. 118º do RGIT.
Relativamente ao arguido T… e I…, Lda. o serviços de finanças competentes emitiram as declarações assentes nos factos 354 e 356 ou seja que a situação tributária do arguido T… está regularizada tendo todos os processos de contra-ordenação instaurados contra este, mormente com base no disposto nos arts. 118º e 119º do RGIT, sido extintos pelo pagamento, não existindo pendentes quaisquer outros; e quanto à arguida I…, S.A. que efectuou, espontaneamente em 22/05/2006 o pagamento das coimas reduzidas pela apresentação das declarações periódicas de substituição com pagamento de imposto dos períodos 200309T e 200212T, mais certificando o serviço de finanças que não tem elementos que permitam efectuar o pagamento da coima prevista no art. 118º do RGIT em resultado da utilização da factura n.º 110 e n.º 130.
Do que vem atestado nestas certidões concluímos que quer aos arguidos I…, Lda., quer ao arguido T… foram aplicadas coimas ao abrigo do disposto no art. 119º do RGIT, ou seja, apresentação das declarações periódicas de substituição para correcção das anteriores declarações apresentadas, o que impede face ao disposto no art. 20º do DL 433/82 a aplicação a estes dois arguidos de outra coima.
Com efeito, o art. 29º, n.º 5 da Constituição da República Portuguesa, proíbe o julgamento mais que uma vez pela prática do mesmo crime. Por maioria de razão, ninguém pode ser julgado mais que uma vez pela prática da mesma contra-ordenação. Segundo os Professores Gomes Canotilho e Vital Moreira (in Constituição da República Portuguesa, anotada, 4ª edição revista, vol. I, pg. 497), “O n.° 5 dá dignidade constitucional ao clássico princípio non bis in idem. Também ele comporta duas dimensões: (a) como direito subjectivo fundamental, garante ao cidadão o direito de não ser julgado mais do que uma vez pelo mesmo facto, conferindo-lhe, ao mesmo tempo, a possibilidade de se defender contra actos estaduais violadores deste direito (direito de defesa negativo); (b) como princípio constitucional objectivo (dimensão objectiva do direito fundamental), obriga fundamentalmente o legislador à conformação do direito processual e à definição do caso julgado material, de modo a impedir a existência de vários julgamentos pelo mesmo facto.
Como se lê no Ac. do Tribunal da Relação do Porto de 5/11/2008, proferido no processo n.º JTRP00041853, disponível para consulta in www.dgsi.pt: “Para a tarefa de «densificação semântica» do princípio é particularmente importante a clarificação do sentido da expressão «prática do mesmo crime», que tem de obter-se recorrendo aos conceitos jurídico-processuais e jurídico-materiais desenvolvidos pela doutrina do direito e processo penais”. A dificuldade na aplicação do princípio está, como se vê, em concretizar os conceitos de mesmo crime ou de mesma contra-ordenação. Para a resolver, importa convocar os ensinamentos dos Mestres. O Prof. Germano Marques da Silva (Curso de Processo Penal, Editorial Verbo, 2000, pg. 36 e segs), depois de abordar a problemática do denominado caso julgado e, para o que interessa aos autos, do caso julgado material, distingue os efeitos - positivo e negativo - do mesmo. O efeito positivo consiste na relevância da decisão em qualquer outro processo. O efeito negativo “consiste em impedir qualquer novo julgamento da mesma questão. É o princípio conhecido pelo brocardo non bis in idem, consagrado como garantia fundamental pelo art.º 29º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa” O julgamento da mesma questão implica o julgamento do “mesmo facto”. É a propósito da identidade do facto que se suscitam profundas divergências na doutrina, de modo que e na consideração de que o processo penal com estrutura acusatória limita o objecto do processo ao facto descrito na acusação se deve entender que tal delimitação se há-de fazer necessariamente em função do bem jurídico protegido, pois que «só o facto, enquanto alegadamente delitivo (facto qualificado), interessa ao processo e tem virtualidade para que o processo se instaure e prossiga.
Deste modo, nos casos de concurso ideal, se o arguido foi já julgado por um dos crimes em concurso isso não impede que seja novamente julgado pelos outros; os crimes são diversos. Mas, pelo contrário, nos casos de mero concurso aparente de crimes - entre o julgado e o que se pretende julgar - aquando os dois ou mais crimes em concurso não podem ser cumulados, julgado um, impedido está o julgamento pelo outro.
Em conclusão: o crime deve considerar-se como o mesmo quando exista uma parte comum entre o facto histórico julgado e o facto histórico a julgar e que ambos os factos tenham como objecto o mesmo bem jurídico ou formem, como acção que se integra na outra, um todo do ponto de vista jurídico. Do exposto resulta que nos parece que a proibição de non bis in idem imposta pelo art. 29.°, n.° 5, da Constituição é mais ampla do que a que resultaria dos efeitos do caso julgado e é essa, em nossa opinião, a principal divergência entre o efeito impeditivo do caso julgado civil e do caso julgado penal. A Constituição alarga os efeitos do caso julgado para além dos que resultariam simplesmente da aplicação subsidiária ao processo penal dos efeitos do caso julgado civil.
Por fim, de comum, para fundamentar naturalisticamente a identidade deve atender-se aos factos praticados, ou seja à acção. Podem variar as circunstâncias, os elementos acidentais da actividade que constitui objecto do processo, mas não a própria acção. E por isso haverá caso julgado material quando se acusa em novo processo penal, embora acrescida de novas circunstâncias, embora seja diferente o evento material que se lhe segue, embora seja diversa a forma de voluntariedade (dolo ou culpa. Os factos que constituem acumulação material de crimes são factos diferentes naturalisticamente e por isso quanto aos factos correspondentes ao concurso material não se põe o problema da extensão do caso julgado sobre um em relação aos outros. Inversamente o concurso ideal e aparente não correspondem a uma pluralidade de factos, mas a uma pluralidade efectiva ou aparente de qualificações jurídicas, necessariamente abrangidas pelo caso julgado”.
No caso dos autos vemos que as inexactidões que deram origem à aplicação aos arguidos das coimas prevista no art. 119º do RGIT consistiam em falsificação, viciação e alteração de documentos fiscalmente relevantes – facturas, punição abrangida pelo art. 118º do RGIT, donde não são distintos os factos que integram as duas contra-ordenações (factos típicos) e isto pese embora tratarem-se de condutas punidas por dois preceitos distintos (cfr. neste sentido Tolda Pinto e Reis Bravo, in Ob. Cit., pag. 457). Ou seja, tratam-se de duas contra-ordenações que estão numa relação de concurso ideal e aparente, o que, só por si, impede a punição por ambas sob pena de violação do princípio non bis in idem, donde não podem estes arguidos ser sancionados por cada uma delas.
Assim sendo, e também quanto a eles se impõem proferir decisão absolutória por via da extinção do procedimento criminal e contraordenacional.
Deste modo, e quanto a eles limitar-se-á o Tribunal a julgar extinto o procedimento criminal pelo que quanto a eles haverá
As demais arguidas, como utilizadoras D…, Lda., F…, Lda., Q…, Lda., U…, Lda., integrando a conduta apurada, como se viu, a contra-ordenação p. e p. pelo art. 118º do RGIT são responsáveis pelo pagamento da coima aplicada atento o disposto no art. 8º do RGIT, só o sendo os seus gerentes, subsidiariamente, nos termos das als. a) e b) do citado preceito.
Por seu turno, as condutas imputadas ao arguido B… correlacionadas com aquelas que integravam a imputada prática na pronuncia, como emitente, e em co-autoria, de nove crimes de fraude fiscal qualificada, integram a prática da mesma contra-ordenação, p. e p., pelo art. 118º do RGIT.
Finalmente, importa ainda considerar, assim o impondo, a apreciação do efeito da factualidade que se teve por provada no facto 291) que: “por sentença de 7/07/2003, transitada em julgada a arguida “U…, Lda.” foi declarada judicialmente falida por via do elevado passivo e da inviabilidade económica da mesma, encontrando-se já registada a sua liquidação na competente Conservatória do Registo Comercial.”
Com efeito, nos termos do artigo 127.º do Código Penal, a responsabilidade criminal extingue-se por morte, amnistia, perdão genérico e indulto, com os efeitos determinados relativamente a cada categoria nos n.ºs 1 a 4 do artigo 128.º, que são, assim, por força do artigo 32.º do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, as normas aplicáveis à extinção da responsabilidade por contra-ordenações.
A primeira causa de extinção da responsabilidade é a morte do agente, que extingue tanto o procedimento como a pena (coima) ou a medida de segurança (ou sanção acessória); a morte, como causa de extinção da coima e das sanções acessórias, está expressamente referida no artigo 90.º do regime jurídico de mera ordenação social. Estabelece-se, assim, nos artigos 127.º e 128.º, n.º 1, do Código Penal (e também no artigo 90.º do regime jurídico de mera ordenação social) a concretização do princípio da individualidade e da intransmissibilidade das penas, inscrito como princípio fundamental no artigo 30.º, n.º 4, da Constituição.
A morte, que faz cessar a personalidade da pessoa singular, faz também, natural e necessariamente, extinguir a responsabilidade criminal e por contra-ordenações, porque esta é inerente à pessoa e à sua capacidade de acção, de vontade e de culpa e não pode transmitir-se para além da vida, como se transmitem para os sucessores responsabilidades de outra natureza que integrem o complexo dos direitos e deveres jurídicos de uma pessoa.
A responsabilidade criminal e por contra-ordenações acompanha, assim, a pessoa e não lhe sobrevive, porque é indissociável de cada pessoa na sua capacidade e personalidade como indivíduo. Na inseparabilidade de uma pessoa e da sua responsabilidade por um crime ou contra-ordenação, esta onera-a e acompanha-a, mas não permanece para além da pessoa. A assimilação, a extensão ou a equiparação da noção de "morte", exclusiva, na natureza e na configuração directamente normativo-jurídica, das pessoas singulares, às formas de extinção das pessoas colectivas, para os efeitos de determinar a aplicabilidade (ou as dimensões relevantes de aplicabilidade) dos artigos 127.º e 128.º, n.º 1, do Código Penal e 90.º do RGDMOS, só poderá, pois, ter lugar se e enquanto puder compreender-se e ser pensada nos critérios e instrumentos metodológicos do pensamento analógico.
Há, por isso, que apelar à "similitude de relações" e à comparação, invocando a correspondência ou semelhança, e à assimilação de qualidades diferentes numa mesma racionalidade, que possa justificar, no plano normativo, a razão de associação na diferenciação – critérios metodológicos do same level reasoning próprios do pensamento analógico, que, como se salientou, constitui a fundamentação dogmática essencial da responsabilidade criminal das pessoas colectivas e da responsabilidade por contra-ordenações no que seja comparada ou regulada pelos princípios e disposições próprios do direito penal.
A extinção de uma pessoa colectiva, diversamente, por ser uma criação instrumental do direito, pode não determinar, por si mesma, que nada de si permaneça, continuando alguma substância afecta ao desempenho, ainda, sob uma outra perspectiva jurídico-funcional, das finalidades da pessoa colectiva que foram a sua razão de ser. A pessoa colectiva ou a pessoa jurídica aparece no mundo da normatividade como "unidade organizatória" que é centro autónomo de imputação funcionalmente construído.
"A realidade material de interesses que (a) 'unidade organizatória' consubstancia, ao revestir a forma jurídica de pessoa colectiva, densifica-se ainda mais e surge-nos com sentido e vocação para uma função apelativa, conquanto instrumental. E instrumental porque insusceptível (...) de uma recondução a uma dimensão onto-antropológica, que acompanha, (...), um qualquer agir comunicacional de uma pessoa concreta. A possibilidade de se imputarem factos, juridicamente relevantes, à pessoa colectiva reduz a complexidade (...) e aumenta (...) o grau de eficiência e fluidez sistemática de todo o ordenamento jurídico." (assim Cf. José de Faria Costa, "A responsabilidade jurídico-penal da empresa e dos seus órgãos, in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 2.º (1999), pp. 537-559). Por isso, o que releva essencialmente é a existência de um centro de imputação funcionalmente construído, que pode não desaparecer como realidade material de interesses ao lado da respectiva função instrumental e é, por isso, independente desta no caso de continuidade organizatória e de prossecução das respectivas finalidades.
Na ponderação metodológica e intervenção dos critérios da analogia, a similitude de relações e a comparação numa mesma racionalidade entre a morte da pessoa singular e as formas de extinção das pessoas colectivas só podem ser encontradas se e quando a existência, como construção jurídica instrumental, de uma pessoa colectiva cessar, não em perspectiva funcionalista estritamente jurídica mas cessação e desaparecimento de todos os elementos integrantes da pessoa colectiva, não apenas o suporte jurídico mas também o corpus e o respectivo substrato.
Ora, por força do disposto no art. 141°, nº 1, e), art. 146°, nº 2 e art. 160°, nº 2, do CSC, as sociedades comerciais dissolvem-se pela declaração de falência e, ao invés das pessoas singulares cuja personalidade cessa com a morte – art.º 68.º, n.º 1, do Código Civil – mantêm a personalidade jurídica na fase da sua liquidação, considerando-se apenas extintas pelo encerramento dessa liquidação, que no caso já ocorreu.
Extinta a personalidade jurídica da arguida U… extinta está, também, a responsabilidade contra-ordenacional apurada nos autos, assim como a dos seus representantes legais (gerentes) na medida do desconhecimento dos factos que permitissem integrar a respectiva responsabilidade subsidiária prevista no art. 8º do RGIT supra mencionado.
No que se reporta aos factos imputados aos arguidos B… e V… do exposto e da análise dos factos provados, conclui-se que na medida em que a vantagem patrimonial obtida no período é superior a 15.000,00€ (2º e 4º trimestres de 2003 para o arguido B… e mês de Outubro de 2003 para o arguido V…, situando-se todas as restantes em montante inferior àquele) e que, por outro lado, os arguidos actuaram conluiados e em comunhão de esforços, o primeiro com o representante legal da empresa X…, Lda. Y… e o segundo com o arguido B… verifica-se uma situação de co-autoria, pelo que se considera terem todos participado na conduta de falsificação das facturas, não ocorrendo quanto a nenhum deles a conduta de unicamente usar as facturas que sabem ser falsificadas (cf. art. 26º do C.P.).
Estão do mesmo modo, quanto aos referidos arguidos e atentos os factos constantes dos pontos 24, 25, 27, 28, 29, 30, 31 e 53 a 55 e 141 a 148 também preenchidos os elementos subjectivos do tipo - o dolo, e na forma de dolo directo, de acordo com a definição legal do art. 14º, nº 1, do C.P.
(…)

IV – Cumpre decidir.
Está em questão saber se devem considerar-se não puníveis as condutas dos arguidos acima referidos, ao abrigo do disposto no artigo 103º, nº 2, do R.G.I.T., ou não, por este preceito não ser aplicável a condutas enquadráveis no crime de fraude fiscal qualificada, p. e p. pelo artigo 104º do mesmo diploma, mas apenas as enquadráveis no crime de fraude fiscal simples, p. e p. pelo referido artigo 103º.
O sentido maioritário da doutrina e da jurisprudência, como reconhece o próprio recorrente, vai no sentido da resposta afirmativa a esta questão, o sentido também seguido no douto acórdão recorrido.
Sobre esta questão pronunciaram-se, entre outros, dois acórdãos desta Relação, um de 23 de março de 2011, proc. nº 70/05.5DAVR.P1, relatado por Élia São Pedro, e outro de 16 de março de 2011, proc. nº 65/05.9DAVR.P1, relatado por Joaquim Gomes (ambos disponíveis em www.dgsi.pt).
A argumentação aí expendida merece inteiro acolhimento e não é abalada pela argumentação ora expendida pelo recorrente.
No primeiro desses acórdãos apresentam-se os seguintes argumentos:
«Em primeiro lugar, existem alguns aspectos literais a impor tal leitura, como seja a referência, no art. 104º, aos “factos previstos no artigo anterior”. Um dos factos previstos no artigo anterior é precisamente o previsto no n.º 2, segundo o qual não há punibilidade quando o montante da vantagem patrimonial ilegítima for “inferior a 15.000 €”. Se tivesse havido intenção de punir a fraude qualificada, independentemente do valor da vantagem ilegítima, a remissão deveria ter excluído o n.º 2.
«Outro aspecto literal decorre da expressão usada no n.º 2 do art. 104º: “fraude”. Na verdade, o n.º 2 do art. 104º começa por dizer que “a mesma pena é aplicável quando a fraude tiver lugar mediante (…)”. Ao falar em fraude, está certamente a referir-se a uma fraude punível, ou seja, que tenha causado uma diminuição de receitas de valor superior a 15.000 €, já que abaixo desse valor o comportamento é punível e qualificado apenas como contra-ordenação e não como “fraude” fiscal (art. 118º do RGIT).
Para além desta referência aos factos previstos no art. 103º, sem excluir o n.º 2 e utilizando a expressão “fraude”, há elementos sistemáticos relevantes. A técnica legislativa de agravar a moldura penal dos crimes, através de circunstâncias qualificativas, traduz sempre uma remissão para o crime simples (género), destacando um especial modo de realização (espécie). O crime qualificado é assim, por definição, aquele que contém todos os elementos do crime simples, com a particularidade de ser cometido em determinadas circunstâncias.
Finalmente, a circunstância qualificativa a que se refere o n.º 2 do art. 104º decorre do facto de o crime de fraude simples ser cometido através da “utilização de facturas ou documentos equivalentes por operações inexistentes”. Esta incriminação especial resultou da utilização em larga escala de “facturas falsas” (ISABEL MARQUES DA SILVA, ob. cit. pág. 164, “… processos que invadiram os tribunais portugueses…”) e, portanto, de se ter querido combater uma forma especialmente em voga de cometer o crime de fraude fiscal. Não se vê qualquer razão especial para que o crime de fraude fiscal cometido através de facturas falsas ou documentos equivalentes deva ser punido, mesmo que a vantagem patrimonial ilegítima seja inferior a € 15.000. Toda a criminalidade fiscal visa combater a fuga ao pagamento de obrigações tributárias e, por isso, o bem jurídico comum é a obtenção das receitas fiscais devidas, elevado à categoria de bem jurídico penalmente relevante, por se tratar de um bem comum da maior importância para o ordenamento da sociedade. O direito tributário tem mecanismos próprios para executar as dívidas fiscais e não tem sentido, nos dias de hoje, criminalizar o incumprimento das obrigações pecuniárias. Por isso, o legislador recorre ao direito penal para punir as obrigações acessórias, através das quais se podem ocultar ou alterar as futuras obrigações pecuniárias. É certo que pune a violação de obrigações acessórias, mas a razão de ser da punição dessas obrigações é sempre evitar a frustração do recebimento das receitas tributárias. Daí que o valor do prejuízo fiscal tenha, no direito penal tributário, tão grande relevância, sendo em função desse valor que, afinal, se demarca o crime da contra-ordenação (cfr. art. 118º do RGIT). A existência de um determinado valor do prejuízo fiscal (vantagem patrimonial ilegítima), a demarcar o crime da contra-ordenação, significa que o legislador entende que os prejuízos mais pequenos não devem ser criminalizados, qualquer que seja a obrigação acessória que tenha sido frustrada e qualquer que seja o meio utilizado para tal. Atenta a finalidade da punição (visando sempre o cumprimento de obrigações pecuniárias), não faria sentido que o prejuízo fiscal fosse irrelevante para criminalizar a conduta, mas já fosse bastante para recortar o tipo de crime qualificado pelo meio utilizado. Se fosse essa a intenção do legislador, teria criminalizado com total autonomia a conduta em causa, o que não fez neste caso. Ou seja, as razões que levaram o legislador a estabelecer, no n.º 2 do art. 103º, um limiar da punibilidade como crime, tanto se verificam quando o crime seja cometido através da utilização de facturas falsas, como quando seja cometido através da celebração de um negócio jurídico simulado, pois está sempre em causa evitar comportamentos que visem obter vantagens patrimoniais fiscalmente ilícitas.»
E, na mesma linha, afirma-se no segundo dos acórdãos referidos:
«Assim e quer se entenda que a não punibilidade dos factos de defraudação do fisco susceptíveis de causar uma “vantagem patrimonial ilegítima … inferior a € 15.000” [103.º, n.º 2], corresponde a uma condição objectiva de punibilidade ou integra antes o elemento descritivo do crime de fraude fiscal, o certo é que esse perigo de prejuízo ou de diminuição das vantagens tributárias no valor de € 15.000 é sempre “o mínimo dos mínimos” que justifica, segundo o legislador, a criminalização das condutas de fraude fiscal.
E isso tanto para o crime de fraude fiscal do tipo base, como do tipo qualificado, como de resto sucede com qualquer distinto grau de tipo legal de crime – não existe homicídio qualificado sem homicídio, não existe burla qualificada sem burla, não existe furto qualificado sem furto e, para nos colocarmo-nos nos crimes de perigo, não existe tráfico de estupefacientes agravado, sem tráfico de estupefaciente e aí por diante.»
Esta posição é seguida, na doutrina, por Isabel Marques da Silva, RGIT, Cadernos IDEF, 5, 2ª Edição, pág. 164; Germano Marques da Silva, «Notas sobre o Regime Geral das Infracções Tributárias», Direito e Justiça, Vol. XV, Tomo II, 2001, pág. 64; Nuno Pombo, Fraude Fiscal, Almedina, 2007, pág. 215; Simas Santos e Jorge de Sousa, Regime Geral das Infracções Tributárias, 2ª Edição, 2008, pág. 737, anotação 3 ao art. 104º; e Susana Aires de Sousa, Os Crimes Fiscais, Coimbra Editora, 2009, pág.118; e «O Limiar Mínimo de Punição da Fraude Fiscal (Qualificada); entre Duas Leituras Jurisprudenciais Divergentes», in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, no 21, nº 4, outubro-dezembro 2011, págs. 611 a 634 (anotação crítica ao referido acórdão desta Relação de 23 de março de 2011 e ao acórdão divergente da Relação de Guimarães de 18 de maio de 2009, proc. nº 352/02.8IDBRG.G1, relatado por Fernando Monterrosso).
A argumentação ora aduzida pelo recorrente não colhe.
Não basta alegar que as condutas enquadráveis no crime de fraude fiscal qualificada são especialmente censuráveis para que em relação a elas se exclua o limite de punibilidade decorrente do referido nº 2 do artigo 103º, Tudo depende de saber se a ratio dessa limitação engloba também essas condutas quando estão em causa valores mais reduzidos.
Não serve invocar que ao legislador bastaria acrescentar um número aos artigos em apreço para deixar claro que essa limitação é aplicável à fraude fiscal qualificada. Pode dizer-se que o legislador não o fez por não ser necessário, por tal decorrer já do teor do nº 2 do artigo 103º.
Não é, para este efeito, decisivo que este preceito consagre um elemento típico do crime de fraude fiscal ou uma condição objetiva de punibilidade.
A questão decidida no acórdão de fixação de jurisprudência nº 8/2010 é, claramente, distinta da que está agora em apreço. O que aí estava em causa era a vigência, ou não vigência, de um regime diferenciado para os crimes de abuso de confiança fiscal e abuso de confiança contra a Segurança Social, no que diz respeito ao limite de punibilidade quanto ao primeiro desses crimes resultante da redação do artigo 105º, nº 1, do R.G.I.T. decorrente da Lei nº 64-A/2008, de 31 de dezembro. Estava em causa a justificação, ou não justificação, dessa diferenciação em atenção à diferente natureza desses crimes. Não se vislumbra em que é que tal questão interfira com a que está agora em apreço.
Quanto ao argumento invocado pelo Sr. Desembargador José Vaz Carreto no seu voto de vencido formulado no referido acórdão desta Relação de 16 de março de 2011, que o ora recorrente faz seu, de acordo com o qual não faria sentido que uma conduta de falsificação no âmbito fiscal ficasse sujeita a um regime mais favorável (traduzido em não punibilidade) do que uma conduta de falsificação fora desse âmbito (sendo que se verifica entre as normas em questão uma relação de especialidade, como resulta do acórdão de fixação de jurisprudência nº 3/2003), há que dizer o seguinte.
A não punibilidade de uma conduta decorrente do artigo 103º, nº 2, do R.G.I.T. não afasta a punibilidade de aspetos da mesma nos termos gerais do Código Penal (como crimes de falsificação ou burla), pois nesses casos já não se verificará a prevalência de uma lei especial sobre uma geral. E a alegada diferença de tratamento também se verificaria nos casos de fraude fiscal simples (que também podem configurar crimes especiais em relação a crimes de falsificação ou burla)
Por último, também não serve alegar que a não punibilidade das condutas em apreço permitiria uma fraude à lei, com a apresentação sistemática de várias declarações falsas de valores inferiores a quinze mil euros, pois tal risco também se verifica em relação ao crime de fraude fiscal simples. Nesses casos, importará, sim, apurar se estamos perante uma única resolução criminosa, e, portanto, perante um único crime relativo à soma de todos os valores em causa.
Impõe-se, por isso, negar provimento ao recurso.

Não há lugar a custas (artigo 522º, nº 1, do Código Penal).

V – Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação do Porto em negar provimento ao recurso, mantendo-se o douto acórdão recorrido.

Notifique

Porto, 21/5/2014
(processado em computador e revisto pelo signatário)
Pedro Vaz Pato
Eduarda Lobo