Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2431/09.1TMPRT-D.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOAQUIM CORREIA GOMES
Descritores: DESPACHO JUDICIAL
FUNDAMENTAÇÃO
INCIDENTE
Nº do Documento: RP202011192431/09.1TMPRT-D.P1
Data do Acordão: 11/19/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ANULADA A DECISÃO
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A lei não estabelece os requisitos específicos e integradores da exigência constitucional e legal de fundamentação de um despacho judicial, pelo que tais requisitos devem ser casuisticamente aferidos a partir do enquadramento jurídico-legal do objeto da questão controvertida.
II - No âmbito de um “incidente” para assegurar o pagamento das prestações de alimentos, através do Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores (FGADM), a correspondente decisão deve ser fundamentada de facto e de direito, de acordo com os correspondentes pressupostos legais.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Recurso n.º 2431/09.1TMPRT-D.P1
Relator: Joaquim Correia Gomes:
Adjuntos: António Paulo Vasconcelos; Filipe Caroço
I. RELATÓRIO
1. Neste processo n.º 2431/09.1TMPRT-D do Juízo de Família e Menores do Porto, J5, da Comarca do Porto, em que são:

Recorrente: Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social (IGFSS)
Recorridos: B…, C…, Ministério Público
foi proferido em 04/mar./2020 o seguinte despacho:
“Fls. 119: Por se mostrarem verificados os pressupostos de facto e de direito, determino o pagamento/intervenção do Fundo de Garantia de Alimentos, em substituição do devedor da pensão de alimentos, nos termos do artigo 9º, n.º 1, do Decreto-lei 164/99, de 13 de maio.”
2. O IGFSS insurgiu-se contra o referido despacho, tendo em 15/jun./2020 interposto recurso do mesmo, pugnando pela sua anulação, concluindo essencialmente do seguinte modo:
1) Não há uma única referência, ainda que genérica, sobre a verificação do pressuposto legal essencial e exigido subjacente à atribuição da prestação de alimentos, não se encontrando demonstrada a verificação da alínea a) do n.º 1 do artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 164/99, de 13/mai.
2) O tribunal limitou-se a constatar que se encontram verificados os pressupostos de facto e de direito, não especificando os mencionados fundamentos que justifiquem a decisão.
3) O despacho é nulo por falta de fundamentação legal e factual, violando o disposto nos artigos 154.º e 615.º, n.º 1, ambos do CPC
3. O Ministério Público contra-alegou em 24/jun./2020 pugnando pela improcedência do recurso e a manutenção do despacho recorrido.
4. O tribunal recorrido não se pronunciou quanto à invocada nulidade da sentença, como impõe o artigo 617.º, n.º 1 do NCPC, por interpretação extensiva. Admitido o recurso foi o mesmo remetido a esta Relação onde foi autuado em 12/out./2020, procedendo-se a exame preliminar e cumprindo-se os vistos legais.
5. Não existem questões prévias ou incidentais que cumpra conhecer e obstem ao conhecimento do mérito do recurso.
6. O objeto do recurso incide sobre a nulidade do despacho judicial.
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II. FUNDAMENTAÇÃO
O dever de fundamentar uma decisão judicial é uma decorrência, em primeiro lugar, do disposto no artigo 205.º, n.º 1 da Constituição, segundo o qual “As decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei”. Trata-se de uma garantia constitucional de conformação legal, porquanto confere ao legislador o seu modo de regulação. Mas também surge como uma vertente do direito fundamental a um processo equitativo, consagrado no artigo 20.º, n.º 4 da Constituição, assim como nos tratados de direitos humanos, seja a nível global (artigo 10.º da Declaração Universal dos Direitos Humanos – DUDH; artigo 14.º do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos – PIDCP), seja a nível regional europeu (artigo 6.º, § 1.º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos – CEDH). Por sua vez, é a própria Constituição a afirmar, a propósito da função jurisdicional, que “Os tribunais são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo” (artigo 202.º, n.º 1) e o povo exprime a sua vontade geral através da lei, que são os actos normativos (artigo 112.º). O Código Civil menciona que a lei é a fonte imediata do direito (artigo 1.º), devendo os tribunais julgar em obediência à lei (artigo 8.º), sendo de considerar que esta expressa valores (bens em si), princípios (mandatos de optimização) e regras (mandatos definitivos).
A Lei Orgânica do Sistema Judiciário (Lei n.º 62/2013, de 26/ago., DR I, n.º 163 – LOSJ) veio igualmente preceituar no seu artigo 24.º, n.º 1 que “As decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei.”. O Novo Código de Processo Civil (Lei n.º 41/2013, de 26/jun., DR I, n.º 121 - NCPC) veio enunciar uma noção legal de sentença, através do seu artigo 152.º, n.º 2, ao referenciar que “Diz-se «sentença» o ato pelo qual o juiz decide a causa principal ou algum incidente que apresente a estrutura de uma causa”. Mais adiante no artigo 154.º, renova aquele “dever de fundamentação da decisão”, enumerando no seu artigo n.º 1 que “As decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo são sempre fundamentadas”. Mais acrescenta no seu n.º 2 que “A justificação não pode consistir na simples adesão aos fundamentos alegados no requerimento ou na oposição, salvo quando, tratando-se de despacho interlocutório, a contraparte não tenha apresentado oposição ao pedido e o caso seja de manifesta simplicidade”.
No que concerne ao dever de fundamentação das decisões judiciais e porquanto se trata, como já referimos, de uma garantia constitucional de conformação legal, podemos distinguir se a mesma diz respeito a um despacho judicial ou então se decorre de uma sentença, porquanto tanto as exigências formais, como a tramitação de uma e de outra são distintas. Assim, no que concerne aos despachos judiciais em geral, nada se diz quanto aos requisitos formais da fundamentação. No que concerne às consequências, o artigo 195.º, n.º 1 do NCPC estabelece que “Fora dos casos previstos nos artigos anteriores, a prática de um ato que a lei não admita, bem como a omissão de um ato ou de uma formalidade que a lei prescreva, só produzem nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa” – sendo nosso o negrito. E como não se trata de uma nulidade de conhecimento oficioso, porquanto não está no catálogo previsto na I parte do n.º 1 do artigo 196.º do NCPC, o tribunal “só pode conhecer sobre reclamação dos interessados”, como decorre da II parte deste mesmo segmento normativo. O prazo para reclamar segue a regra geral de 10 dias, enunciada no artigo 149.º, n.º 1 do NCPC. Relativamente às sentenças, encontramos enumerados os requisitos formais da sua fundamentação no artigo 607.º, n.º 2 a 6 do NCPC. A consequência legal da falta de fundamentação de uma sentença é a sua nulidade, como decorre do artigo 615.º n.º 1, alínea b), do NCPC, ao reportar-se aos casos em que “Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão”. Por sua vez, de acordo com o artigo 615.º, n.º 4 do NCPC, “As nulidades mencionadas nas alíneas b) a e) do n.º 1 só podem ser arguidas perante o tribunal que proferiu a sentença se esta não admitir recurso ordinário, podendo o recurso, no caso contrário, ter como fundamento qualquer dessas nulidades”. Esta última disciplina pode ser aplicada aos despachos, por via do artigo 613.º, n.º 3 do Código Civil, ao consagrar que “O disposto nos números anteriores, bem como nos artigos subsequentes, aplica -se, com as necessárias adaptações aos despachos”.
Deste modo, a falta de fundamentação de um despacho judicial tanto pode corresponder à omissão de uma formalidade legalmente exigida e essa irregularidade influi decisivamente na decisão da causa, como à nulidade desse despacho pelas regras adaptadas da nulidade da sentença, porquanto o seu destinatário fica sem saber quais são as razões públicas que a sustentam. Mas a lei não estabelece os requisitos específicos e integradores da exigência constitucional e legal de fundamentação de um despacho judicial, pelo que tais requisitos devem ser casuisticamente aferidos a partir do enquadramento jurídico-legal do objeto da questão controvertida.
Caso se entenda que estamos perante uma nulidade por via da irregularidade do despacho judicial, teremos de descortinar se a invocação da nulidade por falta de fundamentação deve ser previamente suscitada perante o tribunal recorrido. A jurisprudência tem constantemente assinalado que estando o vício de irregularidade amparado, ainda que indireta ou implicitamente, por um despacho judicial, o meio idóneo para se reagir contra essa ilegalidade, havendo a possibilidade de recurso, é mediante a impugnação desse despacho – neste sentido e como exemplo dessa consistência vejam-se os Ac. TRE de 05/nov./1998 (Des. Granja Fonseca), Ac. TRL de 11/jul./2019 (Des. Micaela Sousa), ambos em www.dgsi.pt.
No entanto, não temos qualquer norma legal a estipular as exigências de fundamentação que um despacho judicial deverá observar. Mas podemos sustentar que a fundamentação de um despacho deve, de um modo geral, expressar as razões decisórias (ratio decidendi) que são objeto de resolução jurídica. Tentando precisar e seguindo o posicionamento já manifestado no Ac. TRP de 07/dez./2018, acessível em www.dgsi.pt, o dever de fundamentação das decisões judiciais exige a descrição das circunstâncias factuais respeitantes ao objeto do litígio (caso factual), assim como a sua fundamentação de direito (caso jurídico), mediante a indicação da lei (dimensão analítica) e a sua sustentação racional (dimensão argumentativa).
No âmbito de um “incidente” para assegurar o pagamento das prestações de alimentos, através do Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores (FGADM), a correspondente decisão deve ser fundamentada de facto e de direito, explicitando-se os pressupostos enunciados nos artigos 1.º e 2.º da Lei n.º 75/98, de 19/nov. (DR I-A, n.º 268) e 3.º do Decreto-lei 164/99, de 13/mai. (DR I-A, n.º 111), na redação estabelecida pela Lei n.º 64/2012, de 20/dez. (DR I, n.º 246). E como se pode constatar do texto da decisão recorrida a mesma não enuncia minimamente qualquer suporte fundamentador, seja de facto, seja de direito, respeitante à responsabilização do FGADM, sendo, por isso, nula. Assim, caso se siga uma via jurídica (irregularidade relevante) ou outra (equiparação do despacho a sentença) estamos perante uma nulidade do despacho recorrido.
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Na procedência do recurso e estando o Ministério Público isento, as suas custas serão atendidas a final – 527.º, n.º 1 e 2 NCPC.
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No cumprimento do disposto no artigo 663.º, n.º 7 do NCPC, apresenta-se o seguinte sumário:
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III. DECISÃO
Nos termos e fundamentos expostos, delibera-se anular a decisão recorrida, de modo que a mesma seja fundamentada nos termos anteriormente enunciados.

Custas do recurso a atender a final.

Notifique.

Porto, 19 de novembro de 2020
Joaquim Correia Gomes
António Paulo Vasconcelos
Filipe Caroço