Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
3354/07.4TBVNG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: FERNANDO SAMÕES
Descritores: MEDIDA DE CONFIANÇA A INSTITUIÇÃO COM VISTA A FUTURA ADOPÇÃO
ADEQUAÇÃO E PROPORCIONALIDADE DA MEDIDA
FAMÍLIA BIOLÓGICA
Nº do Documento: RP201405273354/07.4TBVNG.P1
Data do Acordão: 05/27/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA EM PARTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A reapreciação da prova pela Relação visa garantir um segundo grau de jurisdição relativamente à matéria de facto impugnada, a qual deve ser alterada quando não se mostrar apreciada em conformidade com os princípios e as regras do direito probatório.
II - A medida de confiança a instituição com vista a futura adopção não é necessária, adequada, nem proporcional à protecção dos interesses de menores, com mais de oito e quatro anos de idade, que mantêm laços afectivos com os seus progenitores e estes com elas, próprios da filiação, ainda que outrora tivessem adoptado comportamentos omissivos susceptíveis de prejudicar o seu desenvolvimento físico e intelectual.
III - Os princípios orientadores, designadamente da intervenção mínima, da proporcionalidade e actualidade e da responsabilidade parental aconselham a dar primazia à família biológica e a criar as condições necessárias ao regresso a ela das menores.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 3354/07.4TBVNG.P1
Relator: Fernando Samões
1.º Adjunto: Dr. Vieira e Cunha
2.º Adjunto: Dr.ª Maria Eiró
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Acordam no Tribunal da Relação do Porto – 2.ª Secção:

I. Relatório

O Digno Magistrado do Ministério Público instaurou, em 30/3/2007, no Tribunal de Família e Menores de Vila Nova de Gaia, o presente processo judicial de promoção e protecção a favor da menor B…, nascida no dia 5 de Novembro de 2005, alegando incapacidade/falta de condições dos seus progenitores e perigo da menor, solicitando a intervenção judicial, em virtude do reiterado incumprimento, por aqueles, dos compromissos assumidos.
Efectuadas as diligências instrutórias tidas por necessárias, em 13/7/2007, por acordo, foi aplicada a medida de promoção e protecção daquela menor junto dos pais, mediante a imposição de determinadas injunções, pelo prazo de um ano (cfr. fls. 182 e 183), medida essa que foi prorrogada em 21 de Agosto de 2008 (cfr. fls. 277 e 278), em 8 de Outubro de 2008 (cfr. fls. 296 e 297) e em 17/6/2009 por mais três meses (cfr. fls. 345 e 346).
Entretanto, foi junto aos autos relatório da Segurança Social onde se afirma que o agregado familiar passou a ser composto por mais uma menor – a C…, nascida a 3 de Novembro de 2009 (cfr. fls. 354).
Após notificação nos termos do art.º 85.º da LPCJP, foi designada data para a conferência de progenitores que, depois de alguns adiamentos, acabou por se realizar em 5 de Maio de 2010, onde foi aplicada a ambas as menores, a título provisório e pelo período de seis meses, a medida de apoio junto da progenitora, com accionamento do apoio económico previsto no art.º 13.º do DL n.º 12/2008, de 17/1 (cfr. fls. 399).

E, em 1 de Junho de 2011, foi aplicada, a título provisório e pelo período de seis meses, a ambas as menores a medida de acolhimento institucional a executar na D… (cfr. despacho de fls. 473 a 476), onde deram entrada no dia seguinte (cfl. 494).
Por despacho de 23/2/2012, foi declarada encerrada a instrução e, mostrando-se improvável uma solução negociada, determinou-se o prosseguimento do processo para alegações e realização do debate judicial.
Foram apresentadas alegações pela Digna Magistrada do Ministério Público, que defendeu a aplicação da medida de confiança a instituição com vista a futura adopção.
Foi designado dia para o debate judicial, mas não foi realizado porque, por despacho de fls. 633, lavrado em 8/5/2012, se entendeu que não havia lugar a ele, dado já ter sido aplicada uma medida e por se tratar de uma eventual substituição, aproveitando-se, no entanto, a data designada para inquirição das testemunhas arroladas.
Foram feitas perícias de avaliação psicológica das menores, cujos relatórios estão juntos de fls. 689 a 695 e 700 a 711.
Finalmente, em 4 de Outubro de 2013, por juiz singular, foi proferida douta sentença que decidiu:
“1. substituir a medida de promoção e protecção aplicada pela medida de confiança judicial das menores B… e C… a instituição com vista a futura adopção nos termos dos arts. 35º, n.º 1, al. g), 38-A, 62, n.ºs 1 e 3, al. b) e 62-A, da Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo e 1978, nº1, al. d) do CCivil a executar na D…, salvaguardando-se, desde já, no cumprimento da medida, a imposição de as menores B… e C… não poderem ser separadas em futuro projecto de vida para que venham a ser encaminhadas;
e consequentemente:
2. nomear curadora provisória de ambas as menores a Directora dessa instituição, nos termos do art. 167 da OTM (preceito legal aplicável por remissão do art. 62-A da LPCJP), a qual exercerá funções até ser decretada a adopção, exercendo ela as responsabilidades parentais, uma vez que os progenitores ficam, com a presente decisão inibidos do seu exercício - art. 1978-A do CCivil;
3. comunicar ao serviço de adopções do CDSSS/Porto a presente decisão;
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Acciona-se de imediato o mecanismo previsto no referido art.º 62-A n.º 2 da LPCJP.
Não há lugar a visitas por parte da demais família natural.
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Sem custas, por as mesmas não serem devidas.
Registe e notifique, sendo os progenitores, com a advertência do disposto no art. 103, n.° 1, da LPCJP.”

Inconformados com esta decisão, os pais das menores interpuseram recurso de apelação, em separado.
Porém, o recurso do pai foi rejeitado liminarmente, já nesta Relação, por extemporaneidade (cfr. despacho do ora relator de fls. 942 a 943 v.º, proferido no passado dia 22 de Abril).
A mãe motivou o seu recurso, apresentando as alegações com as seguintes conclusões:
“1- O presente recurso tem por objecto a douta sentença de fls. 750 a 780, excepto na parte em que foi decidida "imposição de as menores B… e C… não poderem ser separadas em futuro projecto de vida para que venham a ser encaminhadas".
2- O presente recurso versa sobre a decisão da matéria de facto, pelo que pugna pela reapreciação da prova, e sobre a decisão da matéria de direito.
3- Levando em conta a prova produzida, quer a documental, como a testemunhal, o Tribunal a quo julgou incorrectamente matéria fáctica constante nos pontos 6.°, 9.°, 22.°, 23.°, 24.°, 25.° e 27.°.
4- Atendendo nomeadamente ao testemunho da Assistente Social, E…, prestado na audiência de 09/05/12, bem como ao testemunho de F…, prestado na audiência de 14/5/12, o Tribunal a quo devia ter considerado como provado que:
- Nunca foram infligidos maus-tratos físicos ou psicológicos às menores;
- A Recorrente sempre assegurou condições fundamentais às menores, como boas condições de higiene e alimentação.
5- Atendendo ainda ao testemunho da Assistente Social, E…, prestado na audiência de 09/05/12, bem como ao testemunho de F…, prestado na audiência de 14/5/12, o Tribunal a quo devia ter considerado como provado que:
- Os pais amam as filhas;
- Os pais são carinhosos com as menores;
- Existe vinculação afectiva recíproca entre as menores e os progenitores.
6- Esse amor, essa vinculação afectiva, é atestada igualmente no relatório de psicologia forense, onde a fls. 709 dos autos é concluído: “É de admitir a existência de vincu1ação entre a B… e os progenitores e entre a B… e a irmã. A menor reconhece os pais como tal e estes parecem constituir-se figuras de referência para a mesma...”.
7- A progenitora reconhece que tem problemas e limitações, porém na matéria julgada provada nos pontos 23.°, 24.º e 25.°, o Tribunal a quo ao decidir desta forma, desvalorizou os esforços efectuados pela Recorrente, e penaliza-a pelas falhas do companheiro.
8- Atendendo nomeadamente ao testemunho da Assistente Social, E…, prestado na audiência de 09/05/12, bem como ao testemunho da Técnica de Apoio Social G…, prestado na audiência de 9/5/12, o Tribunal a quo devia ter considerado como provado que:
- A Recorrente sempre demonstrou vontade de trabalhar e teve vários empregos ao longo do presente processo;
- A Recorrente esforçou-se por cumprir as condições impostas;
- A Recorrente sempre demonstrou vontade de honrar os seus compromissos.
9- Sobre este carácter da Recorrente o Tribunal a quo também dá conta no ponto 30 da matéria de facto que aqui se transcreve: “Actualmente, a progenitora trabalha na H…, auferindo mensalmente €485 e o progenitor encontra-se a aguardar colocação na mesma empresa."
10- Atendendo ao relatório de psicologia forense junto aos autos a fls. 688 ss, nomeadamente a fls. 701, onde se refere que a Dr.ª I..., educadora da B… na D…, afirma que “os pais têm visitado a menor com regularidade”, bem como ao testemunho da Técnica de Serviço Social, J…, prestado na audiência de 14/05/12, o Tribunal quo devia ter considerado como provado que:
- A Recorrente visita as menores institucionalizadas com regularidade;
- As menores gostam de ser visitadas pelos pais;
- As menores têm a expectativa de voltar para a casa dos pais.
11- Atendendo nomeadamente ao testemunho da Avó paterna, K…, prestado na audiência de 14/05/12, bem como ao testemunho da Assistente Social L…, prestado na audiência de 14/5/12, o Tribunal a quo devia ter considerado como provado que:
- Existem alternativas no seio da família alargada das menores que salvaguardam os seus direitos e interesses legítimos.
- Existem laços afectivos fortes entre a família alargada e as menores, materializados num profundo interesse pelo bem-estar destas.
- A separação da família iria significar um grande sofrimento para as menores e uma perda para estas.
12- Perante a prova produzida as menores não estavam em perigo, ou pelo menos, numa situação justificativa para ser decretado um corte definitivo com os pais.
13- Ao decidir assim o Mmo. Tribunal a quo violou o disposto nos artigos 36.° n.º 6 da Constituição da República Portuguesa, 1978 n.º 1 do Código Civil, e 3° e 4.° a) da LPCJP.
14- Ainda que a progenitora tenha tomado decisões menos positivas antes e ao longo de todo este processo, não se encontra demonstrado que tenha colocado as menores sob um perigo grave.
15- Ainda em nome do superior interesse das menores, deviam ter sido ponderadas na sentença recorrida as consequências e a viabilidade da adopção neste caso concreto.
16- Quanto às consequências devia ter sido amplamente ponderado o sofrimento que vai causar, considerando que:
- As menores já têm 8 e 4 anos;
- Esta vinculação aos pais, este amor, é permanente, pelo que não vai ser esquecido pelas menores;
- A adopção representa um corte que vai deixar marcas profundas nas menores.
17 - Quanto à viabilidade da adopção devia ter sido amplamente ponderado que é incontornável que as probabilidades das menores não serem adoptadas são elevadas, considerando:
- A idade da mais velha;
- Terem tão presente a memória da família e que não vai ser esquecida;
- Os problemas de aprendizagem existentes;
- Não serem brancas;
- Serem duas.
18- Em conclusão, a decisão de que se recorre acarreta o risco extraordinariamente elevado das menores ficarem internadas numa instituição até aos 18 anos, sem ligação à mãe, pai, avós, tios e primos.
19- Perante tudo o que foi exposto, pode ser concluído com segurança que a decisão recorrida não corresponde ao superior interesse das menores.
20- Considerando a ausência de perigo e o superior interesse das menores cumpre revogar a sentença, ordenando-se a cessação da medida de internamento na forma de confiança a instituição com vista a futura adopção e ordenando a imediata entrega das duas menores à mãe.
21- No caso de se considerar que ainda não existem condições para a imediata entrega das menores à mãe, a medida recorrida deve ser substituída por outra que não implique um corte definitivo com a família biológica.
Nestes termos e nos melhores de Direito que V. Exas. suprirão, deve o presente recurso de apelação ser considerado procedente e, em consequência, ser a sentença recorrida revogada nos termos e pelos motivos expostos, como é de Lei e de JUSTIÇA!”

A Ex.ma Magistrada do Ministério Publico contra-alegou pugnando pela manutenção da decisão recorrida, mas sem deixar de manifestar discordância relativamente à ausência de debate judicial, para aqui irrelevante, já que não foi interposto recurso do despacho, transitado em julgado, que o deu sem efeito.

Admitidos os recursos interpostos com subida imediata, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo, remetido o processo para este Tribunal da Relação e aqui recebido, em 19/3/2014, foi rejeitado, pelo relator, o recurso do progenitor, como já se referiu, e mantido o efeito atribuído ao recurso da progenitora.

Tudo visto, cumpre apreciar e decidir o mérito do recurso interposto e admitido.
Sabido que o seu objecto e âmbito estão delimitados pelas conclusões da recorrente e não podendo este Tribunal de 2.ª instância conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser em situações excepcionais que aqui não relevam, as questões que importa dirimir consistem em saber:
- se deve ser alterada a matéria de facto;
- e se ocorrem, ou não, os requisitos da medida decretada de confiança a instituição para futura adopção e, na hipótese negativa, qual é a medida adequada.

II. Fundamentação

1. De facto

Na sentença recorrida, foram dados como provados os seguintes factos:
1. As menores, B… e C…, nascidas, respectivamente a 5 de Novembro de 2005 e a 3 de Novembro de 2009, são filhas de M… e de N….
2. Em Março de 2007, a Comissão de Protecção de Crianças e Jovens de Vila Nova de Gaia, mediante participação da Junta de Freguesia …, instaurou processo de promoção e protecção, registado sob o nº …/05, uma vez que o agregado familiar onde a menor B… se inseria apresentava graves fragilidades decorrentes, quer da doença psiquiátrica de que padecia o pai, quer das graves carências económicas que os afectavam, estando ambos os progenitores desempregados e sem quaisquer outros meios de subsistência para proverem à satisfação das necessidades básicas da menor.
3. Para além das graves carências a nível económico, parcialmente colmatadas pela atribuição de RSI para o agregado, o qual foi realojado numa habitação cedida pela O…, o progenitor foi inscrito em consultas de psiquiatria, na perspectiva da remoção dos factores de risco que, então, eram evidentes e que prejudicavam seriamente o normal desenvolvimento da menor B….
4. A 12 de Abril de 2007, foi aplicada à menor, a título provisório e por 3 meses, a medida de apoio junto dos progenitores, os quais se comprometeram ao cumprimento das seguintes imposições: - aquisição de uma cama para a menor; submissão do progenitor a exames de despistagem do consumo de drogas no CAT; inscrição da menor em infantário; gestão racional e adequada do RSI que lhes era atribuído.
5. Não obstante tais apoios sociais, os progenitores, vivenciavam uma relação conflituosa, marcada pelo consumo de haxixe do progenitor, no interior da habitação e na presença da filha menor, que agravava as perturbações psíquicas do mesmo, que deixou de frequentar as consultas de psiquiatria agendadas, causando grave instabilidade emocional à progenitora.
6. Os progenitores, apesar de, na altura, não trabalharem, não revelavam vontade de cumprir as condições impostas pela Comissão, não alimentando devidamente a filha, à qual não prestavam os devidos cuidados de higiene, não providenciando pela limpeza e organização da habitação, não gerindo também de forma racional os recursos de RSI, que gastavam em restaurantes e na aquisição de um automóvel, ao invés de os aplicarem na compra de um frigorífico e de uma máquina de lavar, para os quais receberam ajuda complementar.
7. Não obstante o compromisso assumido, os progenitores não alteraram as suas condutas, já que não inscreveram a menor no infantário, apesar de lhes ter sido comunicada a existência de vaga, o pai não comparecia às consultas de psiquiatria agendadas e não efectuou os exames de despiste do consumo de estupefacientes.
8. O valor atribuído ao casal a título de RSI era dividido entre os dois, sendo que o pai não utilizava a sua parte para as necessidades do agregado, nem auxiliava a progenitora na execução das tarefas domésticas, sendo que menor B… era frequentemente deixada sozinha em casa, ou na companhia de vizinhos, enquanto os pais iam para o café fumar.
9. A menor B… não frequentava qualquer estrutura educativa, o que só veio a acontecer a 1 de Julho de 2007, e passava os dias com a progenitora, a qual adoptava comportamentos e omitia cuidados respeitantes à satisfação das necessidades básicas da mesma, nomeadamente as relacionadas com o carinho e afeição que lhe eram devidos, com a segurança e com a alimentação.
10. A 13 de Julho de 2007, na sequência de acordo de promoção e protecção, foi aplicada à menor B…, a medida de apoio junto dos pais, pelo período de um ano, mediante a imposição das obrigações supra citadas.
11. No âmbito desse acordo, a progenitora aceitou o acompanhamento da execução da medida pela Segurança Social, e ambos os progenitores aceitaram submeterem-se à realização de exame psiquiátrico, tendo em vista a avaliação pelo PIAC, das suas competências parentais.
12. Mas, ao contrário do que seria de esperar, os progenitores não procuraram estabilizar a sua situação sócio-familiar e criar condições que permitissem um adequado acompanhamento da evolução da situação da menor, continuando o pai a consumir haxixe na presença da menor, a qual deixou de ser levada ao infantário, desvalorizando, ambos, a importância da integração da mesma em estrutura educativa adequada, que culminou com o abandono da menor, porque os pais não renovaram a inscrição.
13. Realizada a referida avaliação psiquiátrica, resultou da mesma que apesar da ligação afectiva entre pais e filha e desta estar bem integrada na estrutura de ensino, a progenitora não tem capacidade para se impor perante as fragilidades comportamentais do progenitor - esquizofrenia, consumo de estupefacientes no espaço habitacional, sendo incapaz de se separar do mesmo ou de impor regras à menor, inviabilizando a criação de uma dinâmica familiar dinâmica e adequada a promover o são desenvolvimento da menor B….
14. Já nascida a menor C…, a 3 de Novembro de 2009, e por se manterem as disfuncionalidades relatadas, que se foram agravando pelo desemprego de ambos os progenitores, que se encontravam já em risco de perder o RSI por incumprimento do acordo de reinserção, é operada a revisão da medida, a 5 de Maio de 2010, sendo substituída pela medida de apoio junto da progenitora, a título provisório, mantendo-se nessa altura a grande fragilidade económica do agregado, pautada pela inabilidade de ambos para gestão dos recursos de que dispõem, iniciando a segurança social estudo da família alargada, como alternativa à guarda da menor.
15. A 1 de Junho de 2011, e após junção aos autos de novo relatório dando conta de que se mantinha a situação de perigo para ambas as menores, no qual é emitido parecer no sentido de que as menores beneficiarão com a aplicação de uma medida de acolhimento institucional, tendo já garantido o ingresso de ambas na "D…", é proferida decisão nesse sentido, decretando a aplicação, a título provisório e pelo período de seis meses, da medida de acolhimento institucional a ambas as menores a executar na instituição indicada, ao abrigo do disposto nos artigos 35.º e 37.º, n.º 1, alínea f) da LPCJP.
16. No dia 6 de Junho de 2011, ambas as crianças foram acolhidas na "D…", na …, por intervenção da Segurança Social, tendo a integração decorrido com dificuldade, permanecendo ambas chorosas fazendo, com frequência, referências às figuras parentais.
17. Com o passar do tempo, e à medida que se foram integrando tais reacções foram desaparecendo, as quais actualmente se encontram adaptadas à instituição, mantendo uma boa relação com outras crianças e adultos cuidadores.
18. A menor B…, apresenta um atraso de desenvolvimento, evidenciando graves défices de estimulação, é muito imatura e não evidencia capacidade de concentração e motivação para aprender. Do ponto de vista clínico, é acompanhada em consultas saúde infantil, pela pediatra da instituição, e de oftalmologia, por estigmatismo, que corrigiu passando a usar óculos desde Outubro. Tem também acompanhamento em consulta de cirurgia pediátrica, no CHVNG, por hérnia umbilical.
19. Tal como a irmã, também a C…, actualmente, com 3 anos, apresenta um atraso geral de desenvolvimento, especialmente ao nível da linguagem, fruto da falta de estimulação a que esteve sujeita enquanto permaneceu junto dos pais. É pouco comunicativa e recorre a gestos como forma de chamar a atenção. Não evidencia problemas de saúde sendo, apenas, acompanhada a nível pediátrico, beneficiando, ambas, de acompanhamento especializado no meio institucional, melhorando, de forma significativa, os níveis do seu desempenho global.
20. Após o acolhimento institucional das crianças, os progenitores continuaram a revelar afectividade pelas filhas, não obstante o desinvestimento na sua reaproximação em relação às mesmas, que nem sempre visitam, alegando não terem dinheiro para pagar os transportes necessários para se deslocarem à instituição, já que venderam a respectiva viatura automóvel.
21. As menores recebem, ocasionalmente, as visitas da avó paterna, K…, das tias paternas e de uns tios maternos, os quais desejam manter o contacto com as mesmas, mas nenhum deles revelou disponibilidade para as acolher.
22. Não existem e não se prevê que venham a existir alternativas no seio da família alargada das menores que salvaguardem os seus direitos e interesses legítimos. A avó Paterna, tendo em conta a sua idade, bem como o facto de residir com as filhas, não demonstrou disponibilidade para assumir as menores;
23. Desde a instauração dos presentes autos, em 2007, e até Junho de 2011, data em que as menores foram institucionalizadas, os progenitores, apesar dos inúmeros apoios que foram tendo, não inverteram as suas condições de vida, acentuando-se a desresponsabilização do progenitor, que privilegia os seus objectivos pessoais, ligados ao consumo de droga, não se inibindo de usar bens materiais que tinha ao seu dispor para promover tais consumos, ao invés de tentar criar condições para receber novamente as suas filhas.
24. A progenitora nada tem feito para inverter tal situação de facto, já não concretizou a separação do seu companheiro, em defesa do bem-estar das menores.
25. Desde a data do acolhimento das menores, os pais mantém o mesmo contexto de vida, sem conseguirem criar um percurso alternativo que permita a resolução dos problemas materiais, profissionais e habitacionais das suas vidas, de acordo com os factos relatados no último relatório social elaborado pela segurança social.
26. Na sequência das diligências encetadas para avaliação da actual situação dos progenitores, foram agendadas entrevistas com os mesmos, que manifestaram o seu desagrado pelo facto das menores terem sido integradas em contexto institucional, tendo-se apurado que ambos se encontram desempregados a receber € 300,00 de RSI, sendo auxiliados nas compras para a casa pela avó paterna; não identificaram membros da família alargada que estivessem dispostos a acolher as menores; na deslocação a casa de ambos, as técnicas foram impedidas de aceder ao seu interior porque segundo o progenitor não tinham móveis e a casa estava desarrumada; nessa data, o agregado devia rendas no valor de € 350,33, pagando uma renda mensal de € 5,75, montante, esse, cujo pagamento foi assumido pela avó paterna das menores.
27. As visitas às menores institucionalizadas têm sido poucas e dilatadas no tempo, não obstante as opções de horários que a instituição de acolhimento lhes concede; embora no decurso dessas visitas se detecte alguma afeição parental das menores em relação aos pais, passando a despedida dos pais a ser vivida com maior tranquilidade.
28. Nas visitas que realizou às menores, a D. K… veio sempre acompanhada por uma das suas filhas, tias das menores, sendo que é usual a avó contactar a instituição telefonicamente, quase sempre com a intenção de justificar as ausências dos pais às visitas, tentando igualmente obter informações relativas ao bem-estar das netas. Por vezes, nas visitas realizadas pelos pais, as meninas falam com a avó ao telemóvel. A avó e a tia P… (tia que mais visitas tem realizado) são adequadas e afectuosas na forma como se relacionam com as menores, sendo a tia P… quem mais protagonismo assume durante as visitas. As menores B… e a C… reagem com contentamento às visitas da avó e das tias, principalmente a B…, não sendo no entanto comum fazerem referências a estas familiares no seu dia a dia.
29. Em 23.04.2012 foi efectuada visita domiciliária pela Segurança Social ao progenitor, sem ser programada por aquela, e pelas 17.45 este informou que"estava a descansar na cama". Nesse contacto a técnica de segurança social apurou que: “Estão sem electricidade, tendo o progenitor referido que tem de pagar 188€ … Tem pago o acordo das prestações que efectuou à O… das dívidas contraídas com a renda (até ao mês de Junho), pelo que foram solicitados os recibos, tendo este informado que não os tinha. Faltou à consulta de psiquiatria no dia 13 Fevereiro 2012 no Hospital Santos Silva, e foi remarcada consulta para o dia 1.10.2012. Em relação aos consumos de haxixe, afirma que consome muito pouco ... fumo um ou dois por dia .... Hoje não consumi nem ontem, nem esta semana";
30. Actualmente, a progenitora trabalha na H…, auferindo mensalmente 485 € e o progenitor encontra-se a aguardar colocação na mesma empresa.
31. Segundo informação prestada pelo Centro Hospitalar de Vila Nova de Gaia/Espinho o progenitor “apresenta quadro clínico compatível com o diagnóstico de perturbação de personalidade e prováveis surtos psicóticos na adolescência, apresentando baixo insight; apresenta também afloramentos depressivos ansiosos”;
32. Conforme resulta do relatório de avaliação psicológica referente a C… - fls. 686 e ss., datado de 6.3.2013: “… Durante o processo avaliativo, a menor apresentou-se com aspeto físico cuidado, em termos de higiene e de adequação do vestuário às condições climatéricas que se faziam sentir. Apesar de não se ter procedido à realização de entrevistas clínicas com a C… … o contacto da C… no contexto da observação da sua interação com a irmã permite referir que a C… mantém o atraso ao nível da linguagem, tendo apenas verbalizado algumas palavras, sendo a sua maioria impercetíveis. Não obstante, importa sublinhar que a C… interagiu de forma adequada com a perita, sendo que o seu desenvolvimento ao nível das competências de interação e socialização e ao nível motor é normativo. À semelhança do que se verificou em relação à B… (cf. relatório de psicologia forense), também é possível sugerir que a C… é criança muito carente do ponto de vista afetivo, que se relaciona facilmente com os adultos - procurando muito a proximidade e o contacto físico, sendo flagrante a sua necessidade de agradar e receber atenção individualizada.
No que concerne à vinculação entre a C… e a B…, o processo avaliativo permite sugerir que esta existe, bem como que a C… reconhece a irmã como tal, adotando comportamentos afetuosos para com a mesma e tradutores da existência de relação afetiva. Ainda assim, a relação entre ambas encontra-se condicionada pelo próprio contexto de institucionalização e, sobretudo, pelas regras e dinâmicas de funcionamento desta casa de acolhimento (que de certo modo condiciona o estabelecimento de um relacionamento mais próximo entre irmãos, devida às diferentes faixas etárias e à forma como a própria instituição está estruturada). De sublinhar, contudo, que a manutenção de um clima propício ao desenvolvimento e estreitar de laços afectivos entre irmãos que se reconhecem como tal (de vinculação segura, estável e gratificante) só pode trazer benefícios para todos os menores.
Quanto à relação da menor com os progenitores, dadas as suas características desenvolvimentais, não conseguimos recolher dados clínicos em contexto avaliativo para nos pronunciarmos relativamente a esta questão (considerando-se, no entanto, centrais os relatos da educadora a respeito da pobreza das interacções nas visitas, assim como a facilidade com que a menor se "desprende" no final de cada visita dos progenitores). Considera-se igualmente fundamental considerar as conclusões retiradas da avaliação psicológica forense da B… (cf. respetivo relatório pericial) …”.
33. Conforme resulta do relatório de avaliação psicológica referente a B…- fls. 696 e ss., datado de 6.3.2013 : “…Durante o processo avaliativo, a menor apresentou-se, quase sempre, bastante alegre e colaborante, tendo estabelecido uma relação adequada com a perita. A sua idade aparente é coincidente com a idade real. Apresentou um aspeto físico cuidado, em termos de higiene e de adequação do vestuário às condições climatéricas que se faziam sentir. Apresentou-se orientada no tempo, no espaço e auto e alopsiquicamente.
Não se verificaram alterações da senso-perceção, nem do curso e conteúdo do pensamento. Não foram também encontradas evidências de atividade delirante e/ou alucinatória. No decorrer do referido processo, foi também percetível que a B… se apresenta como uma criança muito carente do ponto de vista afetivo, procurando a atenção e o reforço constantes dos seus comportamentos por parte do adulto.
Da análise direta da menor é também possível sugerir que este apresenta um nível desenvolvimental ligeiramente inferior ao esperado para a sua idade e contexto sociocultural que, segundo os dados obtidos, parece estar relacionado com a falta de estimulação precoce. No que respeita ao desenvolvimento cognitivo, e na sequência do exposto anteriormente, é possível indicar que a menor frequenta o ensino pré-primário, não tendo ainda adquirido competências ao nível da escrita, da leitura e cálculo. De sublinhar, igualmente o facto de a B… não compreender ainda as fases do tempo, nomeadamente o "ontem" e o "amanhã". Quanto ao desenvolvimento linguístico da B…, importa destacar a existência de um leque de vocabulário reduzido, assim como dificuldades na articulação de algumas palavras. No que concerne ao desenvolvimento motor da examinada, os dados obtidos apontam no sentido de este ser normativo, traduzindo-se na aquisição das competências que seriam esperadas. Quanto ao desenvolvimento socio-moral, o processo de avaliação psicológica forense também permite sugerir que este é normativo, sendo de destacar a sociabilidade da menor e as suas competências de interação.
Os dados clínicos obtidos ao longo da nossa avaliação sugerem também que a menor se encontra bem integrada na D…, apresentando um conjunto de importantes ganhos desde a sua integração, nomeadamente no que concerne à alimentação e ao grau de estimulação e acompanhamento providenciados a nível escolar. Há também que mencionar os ganhos conseguidos em termos de responsabilização e promoção de maior autonomia na menor (compatível com a sua fase de desenvolvimento), desconstruindo a infantilização a que a menor parecia ser alvo por parte dos progenitores (e que ainda parece verificar-se nas visitas por parte dos mesmos). Não obstante todos estes ganhos, é de sublinhar a não identificação da menor com a condição actual, sendo flagrante o seu desejo de ter uma família.
Relativamente às visitas dos progenitores, os dados obtidos indicam que, não obstante a frequência regular (principalmente da progenitora) com que estas ocorrem, a sua qualidade é pobre (tal como espelham os relatos da menor), tendendo a interação a centrar-se na alimentação levada pelos mesmos. Outros dos aspetos a sublinhar prende-se com a alegada incapacidade dos pais para impor regras e limites e, sobretudo, com a inconsistência entre as práticas educativas de ambos, que acabam por motivar desentendimentos durante o período de visita (observados diretamente pelas crianças - o que só as confunde e desorganiza). De sublinhar que é fundamental que sejam facultados à menor modelos familiares estáveis, previsíveis, harmoniosos e disponíveis, assim como modelos educativos congruentes e adequados à sua fase desenvolvimental – de modo a que a B… possa moldar o seu mundo relacional interior e consiga encontrar fontes de segurança emocional que promovam o seu equilíbrio psicoafectivo.
(…)
No que concerne à exploração do projeto de vida da menor, a B… manifestou vontade de viver em casa do pai e da mãe, não tendo sido capaz de se posicionar quanto à possibilidade da medida de Adopção ("amigos especiais") - facto que nos parece estar associado com as constantes expectativas que são criadas pelos progenitores do seu regresso a casa (ainda que os mesmos pareçam continuar a não investir neste sentido). Sublinhe-se também a tristeza e desilusão vividas pela menor de cada vez que os progenitores faltam à visita, assim como quando a mãe tenta contornar os motivos subjacentes à ausência do pai.
(…) Face ao exposto, e respondendo aos quesitos que nos foram endereçados, é de admitir a existência de vinculação entre a B… e os progenitores e entre a B… e a irmã. A menor reconhece os pais como tal e estes parecem constituir-se como figuras de referência para a mesma, ainda que demonstre consciência da existência de aspectos menos positivos na vivência pré-institucionalização, assim como da inconsistência do comportamento adotado pelos progenitores na atualidade (e.g., falta às visitas, tentativas de justificar ausências que vêm a revelar-se não ser coincidentes com a realidade).
De sublinhar que a idealização de uma vivência familiar positiva constitui um tema central para a menor, além de que é bem patente a sua carência afetiva e emocional e o desejo de agradar e de obter atenção individualizada por parte do adulto. Aliás, ao longo de todo o processo avaliativo, a B… revelou ser uma criança afável, comunicativa e que estabelece facilmente uma relação de proximidade com o adulto - procurando, no entanto, afeto e aprovação de forma indiscriminada. Quando esta atenção lhe é dada, a menor agarra-se rapidamente a essa fonte de reforço, disputando inclusive com a irmã essa mesma atenção. Tal sugere a urgência de esta menor, fruto também da idade e da importância do estabelecimento precoce de relações de vinculação seguras e gratificantes, em encontrar rapidamente modelos relacionais, com os quais se identifique e reveja, e que lhe transmitam a segurança e a estabilidade necessárias para um crescimento salutar integral.
Neste ponto, e não negando a existência de afetividade positiva entre a menor e os progenitores, é importante não esquecer que a triangulação das informações recolhidas ao longo da avaliação realizada, a experiência clínica e a análise do conteúdo das peças processuais que nos foram facultadas levam-nos a sublinhar: (a) o grande período de tempo decorrido entre o início do processo em apreço e a situação atual; (b) a inexistência de uma evolução positiva da situação deste agregado familiar (no que se refere ao investimento destes progenitores de criar as condições necessárias para a reintegração das menores) continuando a questionar-se as competências pessoais e parentais dos progenitores, assim como o seu potencial de mudança; (c) o fato de estes progenitores já terem beneficiado de um variado conjunto de ajudas técnicas altamente especializadas, que não surtiu o desejado efeito (pelo contrário, os autos relatam mesmo que, a dada altura, se assistiu a retrocesso no processo); (d) o facto de estes pais continuarem a não acatar as orientações dos técnicos, revelando pouca análise crítica e baixo sentido de colaboração; (e) a idade da menor; (f) a não identificação da mesma com a institucionalização, revelando um desejo e necessidade muito marcados de ter uma família - ainda que veicule o regresso à família (idealizando esta situação), curiosamente, no desenho da família, não se retrata nem retrata a irmã - não se percecionando como elementos integrantes da mesma; (g) a necessidade de a mesma encontrar rapidamente fontes de segurança emocional e figuras de vinculação estáveis e gratificantes (que sejam responsivas, afetuosas, congruentes), assim como a estabilidade necessária ao seu salutar desenvolvimento (aspectos que, uma institucionalização, por mais ajustado que o trabalho aí desenvolvido seja, coloca sempre entraves), e (h) a inexistência de alternativas na família alargada.
No que concerne à vinculação entre a B… e a C…, o processo avaliativo permite sugerir que esta existe, bem como que a B… reconhece a irmã como tal, adotando comportamentos afetuosos para com a mesma e tradutores da existência de relação afetiva. De sublinhar, contudo, que a manutenção de um clima propício ao desenvolvimento e estreitar de laços afectivos entre irmãos que se reconhecem como tal (de vinculação segura, estável e gratificante) só pode trazer benefícios para todos os menores…”.

2. De direito

Passando à aplicação do direito, tendo em vista a resolução das questões supra mencionadas, importa começar, como é óbvio e lógico, pela reapreciação da matéria de facto impugnada, pois dela depende o seu enquadramento jurídico.

2.1. Da alteração da matéria de facto

Tendo o processo sido instaurado antes de 1/1/2008, mais precisamente na longínqua data de 30/3/2007, e a decisão recorrida sido proferida depois de 1/9/2013 são-lhe aplicáveis as disposições do Código de Processo Civil na redacção dada pelo DL n.º 303/2007, de 24/8 (cfr. art.º 7.º, n.º 1 da Lei n.º 41/2013, de 26/6, e art.º 126.º da Lei n.º 147/99, de 1/9).
O art.º 712.º, n.º 1, do CPC, na redacção introduzida pelo citado DL n.º 303/2007, permite à Relação alterar a decisão sobre a matéria de facto dentro dos limites nele referidos, desde que, quanto à prova gravada, tenha sido impugnada nos termos do art.º 685.º-B do mesmo Código.
A recorrente observou, satisfatoriamente, os ónus impostos por este normativo, observância essa que nem sequer foi posta em causa no recurso.
Por isso, nada obsta à reapreciação da matéria de facto impugnada.
A recorrente pretende a alteração da matéria de facto dada como provada nos números 6, 9, 22, 23, 24, 25 e 27 da fundamentação de facto, acima transcritos, defendendo que, na vez deles, devem ser dados como provados os factos que propõe nas conclusões n.ºs 4, 5, 8, 10 e 11.
Para tanto, invocou os depoimentos das testemunhas E…, F…, G…, J…, L… e K..., bem como os relatórios de psicologia forense juntos aos autos.
Vejamos o que disseram as testemunhas indicadas sobre a matéria ora impugnada, referindo aqui, resumidamente, o depoimento de cada uma delas. Assim:
E…, assistente social que acompanhou a situação da menor B… desde Junho de 2007 até Outubro de 2008, afirmou que não havia falta de higiene, nem falta de capacidade da sua mãe para cuidar dela. Averiguou, apenas, que a B… era deixada aos cuidados de uma vizinha, enquanto a N… trabalhava, pois fazia voluntariado na Q… para obter bens. Apurou, ainda, que tinham carências na habitação ao nível do mobiliário, faltando uma cama para a criança e um frigorífico. Tais carências deviam-se à atitude do pai, M…, que gastava todo o dinheiro que auferiam e era atribuído pela Segurança Social, inicialmente processado em seu nome. A N… reconhecia e condenava essa conduta do M…, mas ela não conseguia impor-se, mesmo depois de os apoios passarem a ser processados em seu nome. Não tinham capacidade para gerir o dinheiro e comprar bens essenciais para o agregado familiar, gastando-o em bens doutra natureza, chegando a comprar um veículo automóvel. A B… frequentava, naquela altura, um infantário, onde chegava, por vezes, atrasada, porque o pai se descuidava. O M… consumia haxixe na presença da menor. Era apoiado por sua mãe que, por falta de condições, não se mostrava disponível para receber a menor. No entanto, havia uma tia que manifestou disponibilidade para o efeito, quando deixou de acompanhar o processo.
G…, técnica de apoio social da O… que acompanhou a situação desde 2006 até à institucionalização das menores, constatou que os pais não tinham condições de habitabilidade, tendo diligenciado por melhorá-las, mobilando, designadamente, o quarto da B…. Numa das visitas, verificou que essa mobília tinha desaparecido sendo informada que o M… a tinha dado, o que levou a Junta de Freguesia a disponibilizar uma cama para a B…. Constatou, ainda, que o M… consumia haxixe na habitação, que se descuidava com o transporte da B… ao infantário e que não cumpria os compromissos assumidos, vivendo numa situação de endividamento contínuo, apesar dos apoios que não souberam aproveitar. A N… criticava todo esse comportamento do M…, mas não era capaz de se impor e alterar a situação. A N… mostrou-se sempre pró-activa para as questões do emprego, tendo trabalhado em vários locais. Até 2008, convenceu-se de que a N… tinha condições para criar e educar a filha, mas neste momento não sabe se os pais terão essas condições.
F…, técnica da Segurança Social que acompanhou a situação desde Novembro de 2008 até à institucionalização das menores, referiu dificuldades económicas dos seus progenitores e dificuldades em gerir o orçamento familiar. Isto apesar do M… receber apoios da Segurança Social e de a N… trabalhar até ao nascimento da C…. Apurou que o M… consumia estupefacientes com a B… ao colo, o que lhe foi dito por ambos os progenitores. No período em que os acompanhou, tinham condições de habitabilidade, sofrendo algumas privações devido à má gestão do dinheiro que era colocado à sua disposição. Apercebeu-se que os pais amavam as filhas e eram carinhosos para com elas. Só que não lhes incutiam regras necessárias à sua boa educação. Na família alargada ninguém mostrou disponibilidade para acolher as crianças, porque não tinham as condições necessárias.
J…, assistente social na D…, referiu que, quando as menores deram entrada nessa instituição, em 2 de Junho de 2011, apresentavam um atraso geral no desenvolvimento, o que tem vindo a ser ultrapassado com a intervenção adequada. A B… era muito infantil, evidenciando falta de regras e a C… quase nem falava, pois só fazia gestos. A adaptação foi difícil, choravam muito e perguntavam pelos pais com frequência. Quando estes as visitavam, deixavam-lhes fazer tudo, revelando-se demasiado permissivos. As visitas são permitidas pela instituição duas vezes por semana, uma hora de cada vez. Os pais visitam as filhas com regularidade, de acordo com os horários permitidos. Por vezes, havia atrasos justificados com faltas de dinheiro para o transporte. Em Novembro de 2011, a mãe não compareceu porque havia fracturado um pé. Quando os pais não compareciam as filhas perguntavam pelos pais. A despedida era difícil, de início, embora tenha vindo a notar-se mais desprendimento dos pais. Pontualmente, as menores também eram visitadas pela avó e pelas tias paternas e pelo tio materno. As menores têm expectativa de voltar para a casa dos pais.
L…, técnica superior de Serviço Social que acompanhou a situação desde 2011, revelou conhecimento dos factos anteriores através do que lhe foi transmitido pelas colegas. Acrescentou que se mantêm as dificuldades e incapacidade dos pais para terem consigo as crianças e que a família alargada não manifestou disponibilidade para cuidar delas. Apenas a avó paterna manifestou essa disponibilidade, desde que lhe fossem proporcionadas as necessárias condições que não tem. No entanto, afirmou que gostam das crianças. Disse, ainda, que a N… iniciou uma actividade laboral e que o M… está inscrito na empresa onde ela trabalha. A avó paterna está preocupada com a situação das netas e vem ajudando o filho M….
K…, avó paterna das menores, relatou as condições de vida do casal e das suas netas, afirmando que nunca lhes faltaram alimentos nem quaisquer cuidados, nomeadamente de higiene, pois a mãe é muito limpa, uma excelente cozinheira e dona de casa. Houve sempre harmonia entre eles, amando-se reciprocamente. Conviviam todos com a restante família, estando juntos nos dias de aniversário.

Analisando, agora, os mencionados relatórios, vemos que neles foi escrito, para além do que se mostra transcrito nos n.ºs 32 e 33 da fundamentação de facto, nomeadamente, o seguinte:
No relatório de psicologia forense relativo à C…, junto de fls. 688 a 695, que a sua idade e nível de desenvolvimento não permitiram a realização de entrevistas clínicas e que a sua educadora, Dr.ª S…, “referiu que o regime de visitas assenta em duas visitas semanais, supervisionadas e com a duração de uma hora cada. A este respeito importa referir que a mãe dos menores tem sido mais assídua que o pai às visitas.”
No relatório de psicologia forense referente à B…, junto de fls. 698 a 711, para além da extensa transcrição a que já se aludiu, consta que:
A Dr.ª I…, educadora da B…, depois de questionada sobre os progenitores, afirmou: “nas primeiras visitas a separação não era muito fácil, a B… chorava muito (sic). Acrescentou que «os pais têm visitado as menores com regularidade», destacando, contudo, que a mãe das menores as visita de forma mais regular (pelo menos uma vez por semana) e que o pai não tem ido às referidas visitas de forma tão frequente. Quando assim acontece, durante o período da vista, a mãe liga ao pai das menores, deixando que ambas falem com o mesmo…. Mencionou também: «a avó paterna e as tias paternas e um tio materno também vêm pontualmente (…) agora a B… fica contente quando vê os pais…»… Verbalizou, ainda: «quando não vêm às visitas, os pais telefonam a procurar a saber como estão» (sic). Questionada a respeito, relatou: «a B… pergunta pelos pais quando a falta é prolongada, mas não fica muito incomodada» (sic)…. Acrescentou que os pais «dizem sempre à B… que vai para casa e ela não coloca sequer a possibilidade dos Amigos Especiais [termo usado na instituição para designar os pais adotantes]» (sic).
Já em contexto de avaliação psicológica e depois de questionada, consta que a B… “informou que gostava de ir para casa da mãe e do pai, não se conseguiu posicionar face à possibilidade de ir para casa de «amigos especiais». No desenho da família, desenhou a mãe, o pai e o tio… Posteriormente, já na segunda sessão de avaliação, desenhou uma casa. Quando questionada a respeito mencionou que seria a casa que gostaria de ter para viver com a mãe, o pai e a C…”.
Mais à frente, em sede de avaliação, foi escrito: “Relativamente ao Teste do Desenho da Família, importa, em primeiro lugar, indicar que a B… o efectuou segundo o princípio da realidade, isto é, reproduzindo a sua verdadeira família. O primeiro elemento que a examinada desenhou foi a sua mãe, sendo que tal remete para a valorização desta figura e para existência de uma relação particularmente significativa entre a B… e a mãe. De sublinhar igualmente o facto de o elemento que no desenho representa a mãe da B… ter dimensões maiores que os restantes, o que, mais uma vez, remete para a valorização desta figura….Importa salientar que a menor realizou outros desenhos (de natureza livre), tendo-se verificado que retrata sempre a família nos mesmos – sendo esta uma temática muito importante para a menor.
No que concerne à exploração do projecto de vida da menor, a B… manifestou vontade de viver em casa do pai e da mãe, não tendo sido capaz de se posicionar quanto à possibilidade da medida de Adoção («amigos especiais»)… Sublinhe-se também a tristeza e desilusão vividas pela menor de cada vez que os progenitores faltam à visita, assim como quando a mãe tenta contornar os motivos subjacentes à ausência do pai”.
Dos autos resulta, ainda quanto a esta matéria, que:
Em 19/12/2011, foi requerida autorização para as menores passarem os dias 24, 25 e 31 de Dezembro desse ano e 1 de Janeiro de 2012 com os seus progenitores, o que foi indeferido (cfr. fls. 503 e 511).
Em 19/1/2012, os progenitores manifestaram o desejo de ter consigo as menores e prometeram criar condições para o efeito (cfr. fls. 520 e 521).
E juntaram aos autos uma petição com vista à sua entrega, com várias assinaturas, a qual foi mandada desentranhar (cfr. despacho de fls. 545), bem como diligenciaram por ela, juntamente com a avó paterna, junto de outros organismos e entidades (cfr. fls. 567 a 576).
A avó paterna e as tias P… e T…, entre 2/6/2011 - data em que as menores deram entrada na D… (cfr. fls. 494) - e 23/4/2012, fizeram as seguintes visitas às mesmas: 17 de Junho (avó e tia P…), 30 de Agosto (avó e tia P…), 6 de Setembro (avó e tia T…), 14 de Março (avó e prima) e 16 de Abril (avó e tia P…) – cfr. fls. 617.
Em 5 de Setembro e 30 de Novembro de 2012, a tia U… requereu autorização para que as menores passassem o Natal consigo, o que foi indeferido por despacho de 19/12/2012 (cfr. fls. 676).
Em 24 de Outubro de 2013, a N… informou que estava a residir com o seu pai e o seu irmão, em …, onde tinham condições para ter consigo as suas filhas (cfr. fls. 797).
Em 12 de Dezembro de 2013, ambos os progenitores requereram autorização para retomarem as visitas que lhes foram recusadas, o que foi indeferido por despacho do dia 18 seguinte (cfr. fls. 803, 804 e 807-808).
Em 19 de Dezembro de 2013, a avó paterna juntou novo requerimento a pedir que fosse levantada a “interdição” para poderem reunir todos em família no Natal, pondo em causa o trabalho realizado escrevendo que “os relatórios apresentados pelas assistentes sociais estão fora do contexto e não correspondem à verdade…” (cfr. fls. 809). Tal requerimento foi indeferido por despacho de 23/12/2013 (cfr. fls. 815).
Em 5 de Fevereiro de 2014, os progenitores requereram, novamente, autorização para visitarem as suas filhas (cfr. fls. 892 e 893), pretensão essa que não chegou a ser apreciada pelo Sr. Juiz do tribunal recorrido.
Apesar destes factos serem posteriores à prolação da sentença recorrida ficaram aqui referenciados para demonstrar o interesse que a família biológica continua a revelar pelas menores.
Da reapreciação efectuada por este Tribunal, considerada a prova em causa no seu conjunto, não podemos acompanhar o entendimento tido na 1.ª instância relativamente à matéria impugnada neste recurso, atenta a desconformidade entre a prova acabada de analisar e a respectiva decisão, sendo que naquela se limitou a transcrever o que consta das alegações do Ministério Público, nos correspondentes números, o que, aliás, fez em todos até ao número 27.
Tal matéria não assenta numa análise crítica de toda a prova produzida, nomeadamente na que se vem analisando, como devia, já que a prova deve ser sempre apreciada segundo critérios de valoração racional e lógica do julgador, pressupondo o recurso a conhecimentos de ordem geral das pessoas normalmente inseridas no seu meio social, a observância das regras da experiência e dos critérios da lógica, já que tudo isto contribui, afinal, para a formação de raciocínios e juízos que conduzem a determinadas convicções reflectidas na decisão de cada facto.
E é esta análise crítica e integrada dos depoimentos com os outros meios de prova que os juízes devem fazer, pois a sua actividade, como julgadores, não pode ser a de meros espectadores, receptores de depoimentos.
Neste caso, essa análise crítica e integrada dos depoimentos não foi feita, já que foram prestados depois das alegações e os factos dados como provados na sentença são mera transcrição dos que ali tinham sido alegados, ainda que na motivação da decisão de facto se faça alusão a tais depoimentos e relatórios. E estes meios de prova não permitem criar a convicção nos mesmos termos indicados pela 1.ª instância.
Por isso, não pode dar-se como provada a matéria tal como consta dos n.ºs 6, 9, 22 a 25 e 27 da fundamentação de facto, acima transcrita.
Em face da prova produzida, em conformidade com o que se deixou dito, a matéria de facto impugnada deve ser alterada nos seguintes termos:
6. O progenitor, apesar de, na altura, não trabalhar, não revelava vontade de cumprir as condições impostas pela Comissão, não gerindo de forma racional os recursos de RSI, que gastava em restaurantes e na aquisição de um automóvel, ao invés de os aplicar na compra de um frigorífico e de uma máquina de lavar, para os quais recebera ajuda complementar.
9. A menor B… não frequentava qualquer estrutura educativa, o que só veio a acontecer a 1 de Julho de 2007, e passava os dias com a progenitora, que sempre lhe assegurou boas condições de higiene e alimentação.
22. A avó paterna manifestou disponibilidade para assumir as menores, desde que fossem criadas condições para o efeito.
23. Desde 30/3/2007 até 2 Junho de 2011, data em que as menores foram institucionalizadas, os progenitores, apesar dos vários apoios que foram tendo, não inverteram as suas condições de vida, acentuando-se a desresponsabilização do progenitor, que privilegia os seus objectivos pessoais, ligados ao consumo de droga, não se inibindo de usar bens materiais que tinha ao seu dispor para promover tais consumos, ao invés de tentar criar condições para receber novamente as suas filhas.
24. A progenitora manifestou sempre vontade de trabalhar, conseguiu emprego e, actualmente, encontra-se a residir com o seu pai e o seu irmão, em ….
25. Desde a data do acolhimento das menores, o pai mantém o mesmo contexto de vida, sem conseguir criar um percurso alternativo que permita a resolução dos problemas materiais e profissionais da sua vida.
27. As visitas às menores institucionalizadas foram feitas com regularidade pelos pais, dentro dos horários fixados pela instituição, até ao momento em que foram impedidos de as visitar; apenas não o fazendo, algumas vezes, por dificuldades económicas e durante o mês de Novembro de 2011 por a mãe ter fracturado um pé.
E aditam-se os seguintes factos:
34. Quando não compareciam os pais, as menores perguntavam por eles.
35. As menores gostam de ser visitadas pelos pais.
36. Os pais gostam de visitar as filhas.
37. Os pais são carinhosos com as filhas.
38. Existe vinculação afectiva recíproca entre as menores e os progenitores.
39. A progenitora esforçou-se por cumprir as condições impostas pela Segurança Social, demonstrando vontade em honrar os seus compromissos.
40. As menores têm expectativas de voltar para casa dos pais.
E rectifica-se o erro referente à data da institucionalização das crianças, constante do n.º 16, que é 2 e não 6 de Junho de 2011.

2.2. Da medida de promoção e protecção

Como já tivemos oportunidade de escrever no nosso acórdão de 25 de Setembro de 2012, proferido no processo n.º 316/12.3TBBGC.P1[1], “a lei de protecção de crianças e jovens em perigo (doravante LPCJP), aprovada pelo art.º 1.º da Lei n.º 147/99, de 1/9, a ela anexo e que dela faz parte integrante, posteriormente actualizada pela Lei n.º 31/2003, de 22/8, “tem por objecto a promoção dos direitos e a protecção das crianças e dos jovens em perigo, por forma a garantir o seu bem-estar e desenvolvimento integral” (cfr. art.º 1.º).
Quando este desenvolvimento é posto em causa, por acção ou omissão dos familiares, a intervenção do Estado deve atender ao superior interesse da criança, sem prejuízo, porém, da consideração que for devida a outros interesses legítimos, no âmbito da pluralidade dos interesses presentes no caso concreto, e cuja intervenção deve ser efectuada logo que a situação de perigo seja conhecida.
Tal intervenção justifica-se, nos termos do n.º 1 do art.º 3.º da citada lei, “… quando os pais, o representante legal ou quem tenha a guarda de facto ponham em perigo a sua segurança, saúde, formação, educação ou desenvolvimento, ou quando esse perigo resulte de acção ou omissão de terceiros ou da própria criança ou do jovem a que aqueles não se oponham de modo adequado a removê-lo.”
Por sua vez, o n.º 2 do mesmo artigo elenca várias circunstâncias ou situações reveladoras da situação de perigo, designadamente quando a criança:
“a) Está abandonada ou vive entregue a si própria.
b) Sofre maus tratos físicos ou psíquicos ou é vitima de abusos sexuais;
c) Não recebe os cuidados ou a afeição adequados à sua idade e situação pessoal;
(…)
e) Está sujeita, de forma directa ou indirecta, a comportamentos que afectem gravemente a sua segurança ou o seu equilíbrio emocional. (…)”.
A intervenção do Estado, neste domínio, pauta-se por um conjunto de princípios orientadores, enunciados no art.º 4.º da mesma lei, os quais funcionam como critérios a atender na promoção do processo e na determinação da medida a aplicar e que são:
- o interesse superior da criança e do jovem;
- a privacidade;
- a intervenção precoce;
- a intervenção mínima;
- a proporcionalidade e actualidade;
- a responsabilidade parental;
- a prevalência da família;
- a obrigatoriedade da informação;
- a audição obrigatória e participação;
- a subsidiariedade.
Assim, e realçando aqui os que mais relevam, desde logo, a intervenção deve atender prioritariamente aos interesses e direitos da criança e do jovem, sem prejuízo da consideração que for devida a outros interesses legítimos no âmbito da pluralidade dos interesses presentes no caso concreto. É o que impõe o princípio do interesse superior da criança e do jovem [cfr. alínea a) do referido art.º 4.º].
Para além de ser efectuada logo que a situação de perigo seja conhecida, como manifestação do princípio da intervenção precoce [cfr. alínea c)], a intervenção deve ser mínima, isto é, “deve ser exercida exclusivamente pelas entidades e instituições cuja acção seja indispensável à efectiva promoção dos direitos e à protecção da criança e do jovem em perigo [cfr. alínea d)].
Deve, ainda, “ser a necessária e a adequada à situação de perigo em que a criança ou o jovem se encontram no momento em que a decisão é tomada e só pode interferir na sua vida e na da sua família na medida do que for estritamente necessário a essa finalidade”, por forma a observar os princípios da proporcionalidade e da actualidade [cfr. al. e)].
Como resulta do princípio da responsabilidade parental, “a intervenção deve ser efectuada de modo que os pais assumam os seus deveres para com a criança e o jovem” [cfr. al. f)].
E, segundo o princípio da prevalência da família, “na promoção de direitos e na protecção da criança e do jovem deve ser dada prevalência às medidas que os integrem na sua família ou que promovam a sua adopção” [cfr. al. g)].
Nos termos do art.º 34.º da LPCJP, as medidas de promoção e protecção das crianças e dos jovens em perigo visam:
“a) Afastar o perigo em que estes se encontram;
b) Proporcionar-lhes as condições que permitam proteger e promover a sua segurança, saúde, formação, educação, bem-estar e desenvolvimento integral;
c) Garantir a recuperação física e psicológica das crianças e jovens vítimas de qualquer forma de exploração ou abuso.”
As medidas de promoção e protecção aplicáveis estão previstas no n.º 1 do art.º 35.º da mesma lei e vão desde o apoio junto dos pais, junto de outro familiar, passando, entre outras, pelo acolhimento em instituição, até à confiança a pessoa seleccionada para a adopção ou a instituição com vista a futura adopção [cfr. alíneas a) a g)].
A medida de confiança a pessoa seleccionada para a adopção ou a instituição com vista a futura adopção, prevista na alínea g) do normativo acabado de citar, segundo o art.º 38.º-A daquela lei, é aplicável “quando se verifique alguma das situações previstas no artigo 1978.º do Código Civil” e consiste:
“a) Na colocação da criança ou do jovem sob a guarda de candidato seleccionado para a adopção pelo competente organismo de segurança social;
b) Ou na colocação da criança ou do jovem sob a guarda de instituição com vista a futura adopção”.
Por seu turno, o citado art.º 1978.º prescreve:
“1. Com vista a futura adopção, o tribunal pode confiar o menor a casal, a pessoa singular ou a instituição quando não existam ou se encontrem seriamente comprometidos os vínculos afectivos próprios da filiação, pela verificação objectiva de qualquer das seguintes situações:
a) Se o menor for filho de pais incógnitos ou falecidos;
b) Se tiver havido consentimento prévio para a adopção;
c) Se os pais tiverem abandonado o menor;
d) Se os pais, por acção ou omissão, mesmo que por manifesta incapacidade devida a razões de doença mental, puserem em perigo grave a segurança, a saúde, a formação, a educação ou o desenvolvimento do menor;
e) Se os pais do menor acolhido por um particular ou por uma instituição tiverem revelado manifesto desinteresse pelo filho, em termos de comprometer seriamente a qualidade e a continuidade daqueles vínculos, durante, pelo menos, os três meses que precederam o pedido de confiança.
2. Na verificação das situações previstas no número anterior o tribunal deve atender prioritariamente aos direitos e interesses do menor.
3. Considera-se que o menor se encontra em perigo quando se verificar alguma das situações assim qualificadas pela legislação relativa à protecção e à promoção dos direitos dos menores. (…)”.
Na sentença recorrida, considerou-se que, aquando da intervenção do tribunal, as menores se encontravam numa situação de perigo porque apresentavam um atraso geral de desenvolvimento, devido à instabilidade emocional e à falta de comunicação de que foram alvo enquanto estiveram a cargo dos pais; e que essa situação continua a verificar-se, perante a incapacidade dos progenitores exercerem as suas responsabilidades parentais, não obstante a intervenção da Comissão, da Segurança Social e do Tribunal.
Em bom rigor, no recurso, não vem questionada essa situação de perigo, na medida em que a recorrente apenas sustenta a sua inexistência com base em maus tratos físicos ou psicológicos, os quais não constam da decisão recorrida, nem foram imputados, alguma vez, aos progenitores.
A situação de perigo apontada existiu e persiste, na medida em que não se mostra totalmente debelada, pois o pai continua com o mesmo estilo de vida e desconhecem-se as condições actuais da mãe.
Aliás, tal situação é pressuposta pela própria recorrente ao defender, ainda que subsidiariamente, a aplicação de outra medida de promoção e protecção, sendo que já havia consentido na aplicação de uma outra, a praticar junto dos progenitores com injunções, diferentes da aplicada, mas que também justificam a intervenção do Estado.
Por isso, damos como assente a aludida situação de perigo e passamos à determinação da medida, a qual deve ser a necessária e adequada à situação concreta.
Nessa determinação, importa ter presente o primordial princípio orientador do superior interesse da criança, que enforma o nosso ordenamento jurídico, como claramente resulta dos citados art.ºs 4.º, al. a) e 1978.º, n.º 2, e decorre do art.º 3.º, n.º 1 da Convenção sobre os Direitos da Criança ao determinar que “todas as decisões relativas a crianças, adoptadas por instituições públicas ou privadas de protecção social, por tribunais, autoridades administrativas ou órgãos legislativos, terão primacialmente em conta o interesse superior da criança”.
No entanto, não basta ter em conta o superior interesse da criança, muitas vezes invocado, mas mal aplicado. É necessário articulá-lo com os demais requisitos previstos na lei a propósito de cada uma das medidas.
A medida de confiança com vista a futura adopção tem como pressuposto genérico a inexistência ou o sério comprometimento dos “vínculos afectivos próprios da filiação”, como claramente flui do corpo do n.º 1 do citado art.º 1978.º, e só pode ser decidida nas situações descritas nas diversas alíneas desse mesmo n.º 1. É na análise de tais requisitos, cuja aferição deve ser feita objectivamente, que o tribunal deve ter sempre em conta, prioritariamente, o superior interesse da criança.
No presente caso, o tribunal recorrido entendeu estar verificada, objectivamente, a situação prevista na alínea d) do n.º 1 do referido art.º 1978.º e aplicou a medida de promoção e protecção de confiança a instituição com vista a futura adopção, única que considerou adequada e necessária para remover o perigo em que as menores se encontravam.
Porém, a nosso ver, mal.
Desde logo, porque não está verificado o pressuposto genérico da sua aplicação.
Com efeito, os factos provados não permitem concluir que não existem ou se encontram seriamente comprometidos os vínculos afectivos próprios da filiação.
Ao invés, consta dos factos provados que existe vinculação afectiva recíproca entre os progenitores e as menores, que aqueles são carinhosos para com estas, que as visitaram com regularidade até à prolação da decisão recorrida, data em que foram impedidos de o fazer, que as menores gostam de ser visitadas pelos pais e que perguntavam por eles quando não compareciam.
Ainda que revestisse alguma gravidade a conduta omissiva outrora adoptada pelos pais que se repercutiu na educação e desenvolvimento das menores, não assume uma gravidade tal que justifique a medida decretada.
Além disso, a mãe esforçou-se por cumprir as condições impostas pela Segurança Social, demonstrando vontade em honrar os seus compromissos outrora assumidos e tendo, agora, organizado de modo diferente a sua vida, deixando de viver com o progenitor das crianças e indo residir em casa do seu pai.
Os factos provados não revelam, de forma alguma, a falta de interesse dos pais pelas filhas, nem antes nem agora. Ainda que, aquando da intervenção inicial, revelassem alguma irresponsabilização quanto ao desenvolvimento físico e mental das filhas, a verdade é que nunca se afastaram por completo do seu quotidiano.
Por outro lado, não podemos olvidar que as menores têm, actualmente, as idades de 8 anos e seis meses – a B… – e 4 anos e seis meses – a C… –, estiveram sempre juntas e têm expectativas de voltar para a casa dos pais, não aceitando a ideia da adopção.
É obviamente inconveniente a sua separação, como aliás foi reconhecido na sentença recorrida que impôs a obrigação de não serem “separadas em futuro projecto de vida para que venham a ser encaminhadas”.
Esse encaminhamento só faria sentido para a adopção plena.
No acórdão desta Relação de 31/10/2013, proferido no processo n.º 879/09.0TBLMG.P1[2], “com base em estudos estatísticos consolidados, propiciados pelos extensos inquéritos que se fazem em todos os processos de adopção e ainda para aferir sobre disponibilidades para eventuais adopções, informa-se …, em relação ao ano de 2012, que, de entre o universo de potenciais adoptantes – trata-se de uma minoria quase infinitesimal da população –, só 12,4% aceitariam adoptar uma criança com idade compreendida entre os 7 e os 10 anos e que essa disponibilidade baixa para apenas 1,26% quando a idade da criança se situa entre os 11 e os 15 anos. Acresce que a disponibilidade para adoptar dentro desses parâmetros etários se reduz drasticamente no caso de se tratarem de dois irmãos em adopção conjunta…. As estatísticas de 2012 também indicam que o fenómeno da adopção passa por um período de retracção, em virtude da redução geral das condições económicas dos portugueses e inerente redução do número de potenciais adoptantes.”
A medida aqui em causa rompe os laços de convívio com a família natural, com supressão total do direito de visitas, e duraria até ser decretada a adopção (art.º 62.º-A, n.ºs 1 e 2 da LPCJP), como também foi decidido.

Neste circunstancialismo, existem fortes probabilidades de as menores não virem a ser adoptadas ou de ser necessário muito tempo para que isso ocorra, permanecendo numa indefinição, com prejuízo para as mesmas, o que as afectaria irremediavelmente.
A prevalência da família constitui um dos princípios orientadores da intervenção para a promoção dos direitos e protecção da criança e do jovem em perigo como consta do citado art.º 4.º, al. g).
A Constituição da República vê na família um elemento fundamental da sociedade, com direito a protecção social e do Estado e à efectivação de todas as condições que permitam a realização pessoal dos seus membros, designadamente através da cooperação com os pais na educação dos filhos [art.º 67.º, n.º 1 e n.º 2, al. c)], assegurando também às crianças o direito à protecção da sociedade e do Estado, com vista ao seu desenvolvimento integral, especialmente contra todas as formas de abandono, de discriminação e de opressão e contra o exercício abusivo da autoridade na família e nas demais instituições (art.º 69.º, n.º 1).
É certo que a adopção também permite estabelecer laços de filiação, já que esta não se restringe a laços biológicos, constituindo deste modo um meio de alcançar a protecção da família, como elemento fundamental da sociedade, dever que é imposto ao Estado pelo citado art.º 67.º, n.º 1 (cfr. acórdãos do STJ de 10/4/2008, processo n.º 07B3832; de 20/1/2010, processo n.º 701/06.0TBETR.P1.S1 e de 4/5/2010, processo n.º 6611/06.3TBCSC.L1.S1, todos em www.dgsi.pt).
Mas, para que isso possa acontecer, é necessária a verificação dos respectivos pressupostos legais.
E, antes dos requisitos da adopção, que não estão aqui em causa, como é óbvio, é necessária a verificação dos pressupostos da medida de confiança com vista a futura adopção que passa, necessariamente, pela verificação de alguma situação prevista no mencionado art.º 1978.º a indiciar o corte dos vínculos afectivos da filiação.
Enquanto isso não suceder, é à família biológica que se deve atender e proteger.
Assim, a consciência da importância da primazia da família biológica, impõe, antes, dar apoio às famílias que, não obstante apresentarem disfuncionalidades, não comprometem o estabelecimento de uma relação afectiva gratificante para a criança e manifestam a possibilidade de encontrarem o respectivo equilíbrio em tempo útil (Cf. acórdãos da Relação de Lisboa de 2/6/2009, Colectânea de Jurisprudência, ano XXXIV, tomo III, pág. 100, e desta Relação de 3/2/2011, processo n.º 901/08.8TMPRT.P1, disponível em www.dgsi.pt).
Tudo ponderado, tendo em conta os princípios orientadores acima aludidos, designadamente da intervenção mínima, da proporcionalidade e actualidade e da responsabilidade parental, afigura-se-nos que o acolhimento em instituição das crianças em regime de proximidade com os pais, a aprofundar no futuro, com uma oportuna ponderação da possibilidade da família biológica voltar a receber as crianças, então com apoio no domicílio e na comunidade escolar, será a protecção mais adequada, ajustada e proporcional às exigências ditadas pelo presente caso na defesa do superior interesse das menores B… e C….
Para este efeito e a manter-se a separação dos pais, impõe-se averiguar as novas condições de vida da mãe, qual é o seu projecto de vida e se ele assegura e garante o exercício das suas responsabilidades parentais.
Porque se desconhecem, neste momento, não é possível confiar-lhe, desde já, as crianças, como pretende no recurso.
Para já, impõe-se a realização das referidas diligências, continuando as menores confiadas à instituição onde se encontram.
Não deve considerar-se excluída a possibilidade dos progenitores melhorarem as suas competências, em conjunto ou isoladamente, com recurso ao apoio no domicílio, se necessário.
Nestes termos e sem prejuízo de futuras reavaliações da situação, a decisão recorrida não pode subsistir, devendo manter-se a medida de acolhimento em instituição anteriormente decretada, com implementação da prevalência da família biológica e progressiva autonomização da intervenção dos progenitores.

Sumariando nos termos do n.º 7 do art.º 713.º do CPC:
1. A reapreciação da prova pela Relação visa garantir um segundo grau de jurisdição relativamente à matéria de facto impugnada, a qual deve ser alterada quando não se mostrar apreciada em conformidade com os princípios e as regras do direito probatório.
2. A medida de confiança a instituição com vista a futura adopção não é necessária, adequada, nem proporcional à protecção dos interesses de menores, com mais de oito e quatro anos de idade, que mantêm laços afectivos com os seus progenitores e estes com elas, próprios da filiação, ainda que outrora tivessem adoptado comportamentos omissivos susceptíveis de prejudicar o seu desenvolvimento físico e intelectual.
2. Os princípios orientadores, designadamente da intervenção mínima, da proporcionalidade e actualidade e da responsabilidade parental aconselham a dar primazia à família biológica e a criar as condições necessárias ao regresso a ela das menores.

III. Decisão
Pelo exposto julga-se a apelação parcialmente procedente e altera-se a sentença recorrida, substituindo a medida de confiança das menores B… e C… a instituição com vista a futura adopção pela medida de acolhimento na instituição onde se encontram, anteriormente decretada, devendo ser realizadas as diligências necessárias com vista a uma oportuna ponderação da possibilidade de voltarem a viver com os pais ou só com a mãe, com apoio domiciliário, se necessário.
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Sem custas [art.º 4.º, n.º 1, al. i) do RCP].
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Porto, 27 de Maio de 2014
Fernando Samões
Vieira e Cunha
Maria Eiró
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[1] Disponível em www.dgis.pt, que aqui reproduzimos na parte que interessa para o presente caso.
[2] Disponível em www.dgsi.pt.