Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0845701
Nº Convencional: JTRP00041917
Relator: JORGE JACOB
Descritores: ARMA PROIBIDA
ARMA BRANCA
Nº do Documento: RP200812030845701
Data do Acordão: 12/03/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Indicações Eventuais: LIVRO 343 - FLS 310.
Área Temática: .
Sumário: Não é arma proibida uma «faca de borboleta» com lâmina de 9 cm.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Tribunal da Relação do Porto
4ª secção (2ª secção criminal)
Proc. nº 5701/08-4



Acordam em conferência no Tribunal da Relação do Porto:


I – RELATÓRIO:

Nos autos de processo abreviado n º ../07.1PAVLG, do .º Juízo do Tribunal Judicial de Valongo, foi submetido a julgamento B………., acusado pela autoria material de um crime de detenção de arma proibida, p. p. pelo art. 86º, nº 1, al. d), por referência ao art. 2º, nº 1, al. aq), ambos da Lei nº 5/2006, de 23 de Fevereiro.
Efectuado o julgamento, veio o arguido a ser absolvido com fundamento no facto de não estarem preenchidos os elementos do tipo legal de crime por a lâmina do objecto que tinha em seu poder ter apenas 9 cm, inferior, portanto, aos 10 cm que, segundo a sentença, determinam a qualificação como arma branca no âmbito da norma considerada.
Inconformado, recorre o Ministério Público, retirando da motivação do recurso as seguintes conclusões:
1. A faca “borboleta” é punida pelas suas especiais características e pela insídia que estas revelam, independentemente da dimensão da respectiva superfície cortante ou perfurante.
2. O legislador quis punir como crime a detenção de facas borboleta como a que está em causa nos autos, com uma lâmina de 9 cm, pelo carácter de instrumento que encerra em si uma perigosidade intrínseca.
3. Da matéria dada como provada resultam preenchidos os elementos objectivos e subjectivos do tipo de crime de detenção de arma proibida nos moldes imputados ao arguido na acusação de fls. 14 a 16.
4. A Mmª Juíza a quo ao absolver o arguido violou o disposto nos arts. 2º, nº 1, alíneas l) e aq) e 86º, nº 1, alínea d), da Lei nº 5/2006, de 23.02.
Termina, pedindo a revogação da sentença recorrida e a condenação do arguido pelo crime de detenção de arma proibida.

O arguido respondeu, pronunciando-se pela improcedência do recurso.
Nesta instância, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer sufragando a posição assumida pelo M.P. em 1ª instância pronunciando-se pela procedência do recurso.
Foram colhidos os vistos legais e realizou-se a conferência.
Constitui jurisprudência corrente dos tribunais superiores que o âmbito do recurso se afere e se delimita pelas conclusões formuladas na respectiva motivação, sem prejuízo da matéria de conhecimento oficioso.
No caso vertente e vistas as conclusões do recurso, a única questão a decidir consiste em saber se intercorre uma relação de subsidiariedade ou dependência entre as normas previstas nas alíneas l) e aq) do nº 1 do art. 2º da Lei nº 5/2006, em termos tais que a expressão «arma branca» utilizada na segunda das referidas alíneas deva ser interpretada por recurso à definição constante da primeira ou se, pelo contrário, a definição legal de «faca de borboleta» é autónoma, prescindindo da noção de «arma branca» prevista no mesmo diploma.
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II - FUNDAMENTAÇÃO:

Na sentença recorrida tiveram-se como provados os seguintes factos:
1) – No dia 12 de Fevereiro de 2007, pelas 00 horas e 30 minutos, o arguido B………. encontrava-se na Rua ………. .
2) – O arguido detinha consigo, no interior do bolso das calças, uma faca, tipo ‘borboleta’, com uma lâmina de 9 cm de comprimento.
3) – Tal faca foi apreendida ao arguido por agentes da Polícia de Segurança Pública que, ao lhe passarem revista por ocasião da sua detenção motivada por outros factos, lha encontraram.
4) – O arguido ao deter e possuir a referida faca fê-lo o arguido de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que lhe não era permitido possuir e detê-la.
5) – O arguido é solteiro e não tem filhos.
6) – Encontra-se desempregado desde há cerca de 3 meses, não auferindo quaisquer rendimentos.
7) – Vive com os pais, que o sustentam.
8) – Tem como habilitações literárias o 5º ano.
9) – Dos autos não consta que o arguido tenha antecedentes criminais.

A convicção do tribunal recorrido quanto à matéria de facto foi fundamentada nos seguintes termos:
A convicção do Tribunal quanto aos factos dados como provados sob 1) a 4), assentou nas declarações do arguido que confirmou que nas circunstâncias de tempo e lugar aí descritas trazia consigo a faca aí descrita.
No que tange às características da faca constantes em 2), atentou-se no exame de fls. 12.
No que respeita às condições sócio-económicas do arguido, atentou o Tribunal nas suas declarações.
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A questão a decidir tem subjacente a análise conjugada das disposições legais vertidas no art. 2º, nº 2, als. l) e aq), da Lei nº 5/2006, de 23 de Fevereiro, que aprovou o regime jurídico das armas e suas munições.
Nos autos confrontam-se duas interpretações, uma perfilhada pelo tribunal a quo, que entendeu que o diploma ora em apreço contém uma exigência legal no sentido de a ilicitude das chamadas armas brancas depender sempre da verificação dos requisitos vertidos na al. l) do nº 2 do art. 2º, só depois se partindo para a sua caracterização física ou funcional; e uma outra, sustentada pelo recorrente, segundo a qual a ilicitude da faca de “borboleta” resulta das suas especiais características e da insídia que estas revelam, sendo a sua detenção punível independentemente da verificação dos requisitos previstos na citada al. l), nomeadamente, no que concerne ao comprimento da lâmina.
Vejamos então:
Segundo o disposto no citado art.º 2, n.º 1, alínea l), “«Arma branca» é todo o objecto ou instrumento portátil dotado de uma lâmina ou outra superfície cortante ou perfurante de comprimento igual ou superior a 10 cm ou com parte corto-contundente, bem como destinado a lançar lâminas, flechas ou virotões, independentemente das suas dimensões”.
Por seu turno, a al. aq) define como “«Faca de borboleta» a arma branca composta por uma lâmina articulada num cabo ou empunhadura dividido longitudinalmente em duas partes também articuladas entre si, de tal forma que a abertura da lâmina pode ser obtida instantaneamente por um movimento rápido de uma só mão;”.
A interpretação perfilhada pelo tribunal a quo partiu do princípio de que entre as referidas alíneas intercede uma relação de dependência ou de subsidiariedade, em termos tais que a concretização do que seja a «faca de borboleta» legalmente prevista careça da verificação do requisito “…lâmina… de comprimento igual ou superior a 10 cm…”.
Aparentemente não era esse o intuito inicial do legislador, compreendendo-se as dúvidas suscitadas pelo diploma em análise, não tanto por força do argumento histórico-actualista, mas sobretudo por decorrência da ratio legis, orientada no sentido da proibição das armas dotadas de maior perigosidade e cuja utilização surge normalmente associada a uma utilização criminosa. Aliás, esse propósito foi claramente assumido na exposição de motivos da Proposta de Lei nº 28/X, que deu origem à actual lei das armas e suas munições. Aí se refere a dado passo:
“Definem-se como armas e outros acessórios da classe A, um elenco de armas, acessórios e munições cuja proibição se mostra generalizada nos países do espaço europeu, aí se integrando ainda armas cuja detenção, face à sua proliferação no tecido social e à frequência da sua utilização ilícita e criminosa, deve ser desmotivada.
Assim, proíbem-se as armas brancas com lâmina cuja actuação depende de mecanismos, as armas de alarme que permitem uma eficaz e rápida transformação em armas de fogo e as armas modificadas ou transformadas.
(…).
Não vemos, no entanto, como partir do princípio de que a técnica legislativa adoptada no que concerne às definições legais (art. 2º da Lei nº 5/2006) não tomou em consideração todas as implicações decorrentes dos normativos adoptados.
Na verdade, o legislador definiu o que são «armas brancas» na al. l) do nº 2, assim como definiu, por exemplo, na al. o) o que são «armas de fogo» ou na al. n) o que são «armas eléctricas». Depois, usou essas mesmas definições para identificar armas do mesmo tipo mas com denominação própria. Assim, cremos não ser de pôr em dúvida que ao reportar-se, na al. ah), ao «bastão eléctrico» como a arma eléctrica com a forma de um bastão, o legislador teve presente que na al. n) havia definido «arma eléctrica» como sendo todo o sistema portátil alimentado por fonte energética e destinado unicamente a produzir descarga eléctrica momentaneamente neutralizante da capacidade motora humana. Do mesmo modo, ao definir, na al. ax), o «revólver» como sendo a arma de fogo curta, equipada com tambor contendo várias câmaras, teve presente que na al. p) havia definido como «arma de fogo curta» a arma de fogo cujo cano não exceda 30 cm ou cujo comprimento total não exceda 60 cm. E assim sendo, por maioria de razão, ao definir na al. aq) a «faca de borboleta» como sendo a arma branca composta por uma lâmina articulada num cabo ou empunhadura dividido longitudinalmente em duas partes também articuladas entre si, de tal forma que a abertura da lâmina pode ser obtida instantaneamente por um movimento rápido de uma só mão, não pode ter omitido que na al. l) havia definido como «arma branca» todo o objecto ou instrumento portátil dotado de uma lâmina ou outra superfície cortante ou perfurante de comprimento igual ou superior a 10 cm ou com parte corto-contundente, bem como destinado a lançar lâminas, flechas ou virotões, independentemente das suas dimensões.
Como é sabido, na fixação do sentido e alcance da lei o intérprete deve presumir que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados, devendo a interpretação ter em conta a unidade do sistema jurídico (Código Civil, art. 9º, nºs 1 e 3). Ora, são precisamente os argumentos da unidade do sistema jurídico e da adequada expressão legislativa, confirmados, aliás, pelo argumento decorrente da interpretação sistemática, que impõem a conclusão de que acima demos nota. O legislador não iria utilizar num mesmo diploma um conceito de arma branca distinto ou mais restritivo do que o que nesse mesmo diploma consagrou e definiu, pelo que só à revelia do texto legal se poderia admitir a interpretação postulada pelo recorrente.
Tanto basta para se concluir pela improcedência do recurso.
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III – DISPOSITIVO:

Nos termos apontados, nega-se provimento ao recurso.
Sem tributação.
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Porto, 03/12/2008
Jorge Manuel Miranda Natividade Jacob
Artur Manuel da Silva Oliveira