Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
59/22.0GCAVR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOSÉ PIEDADE
Descritores: PROCESSO SUMÁRIO
SENTENÇA ORAL
GRAVAÇÃO DEFICIENTE
FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO
INEXISTÊNCIA DA SENTENÇA
Nº do Documento: RP2022101259/22.0GCAVR.P1
Data do Acordão: 10/12/2022
Votação: DECISÃO SINGULAR
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL (DECISÃO SUMÁRIA)
Decisão: DECLARADA EXTINTA A INSTÂNCIA DE RECURSO.
Indicações Eventuais: 4.ª SECÇÃO (CRIMINAL)
Área Temática: .
Sumário: I – Ao instituir-se, em processo sumário, a sentença oral, não se cuidou de conciliar essa instituída oralidade com outras normas do Código de Processo Penal, nomeadamente as respeitantes à fase de recurso, essencialmente escrita.
II – Sendo oral a fundamentação de facto e de direito da sentença, a mesma não deixa de ter de dar satisfação aos requisitos de fundamentação da sentença escrita, com a indicação dos factos provados e não provados, indicação e exame crítico das provas, exposição dos motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão, e os fundamentos que presidiram à escolha e medida da sanção aplicada, ainda que de forma sumária, concisa, sucinta.
III – Não tendo ficado gravada a sentença, não se conhecendo a sua fundamentação de facto e de direito, isso determina a sua inexistência jurídica.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. N.º 59/22.0GCAVR.P1

Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro, Aveiro - JL Criminal - Juiz 1,
espécie: Processo Sumário



Decisão Sumária, nos termos do art. 417º, nº 6, al. a), do C. P. Penal.


No Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro, Aveiro - JL Criminal - Juiz 1, processo sumário supra referido, procedeu-se à Audiência de Julgamento do AA, figurando na Acta da Audiência, o seguinte dispositivo:
“I) Condenar o arguido AA, pela prática, em autoria material e na forma consumada, de 1 (um) crime de desobediência, nos artigos 348.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal e 152.º, n.º 1, alínea a), e n.º 3, do Código da Estrada, na pena de 80 (oitenta) dias de multa, à taxa diária de €6,50 (seis euros e cinquenta cêntimos) – sendo de descontar no seu cumprimento um (1) dia, nos termos do art.º 80.º do Código Penal, pelo que o arguido terá de proceder ao pagamento da quantia de €513,50 (quinhentos e treze euros e cinquenta cêntimos);
II) Condenar o arguido na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor, pelo período de 7 (sete) meses, nos termos do disposto no artigo 69.º, n.º 1, alínea c) do Código Penal, com a advertência de que deverá entregar o(s) título(s) que possua que o habilitem a conduzir veículos a motor, na secretaria deste Tribunal ou em qualquer posto policial, nos termos previstos nos artigos 69.º, n.º3 do Código Penal e 500.º, n.º2 do Código de Processo Penal, no prazo de 10 dias a contar do trânsito em julgado da sentença, a fim de cumprir a pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados em que foi condenado, sob pena de poder incorrer na prática de um crime de desobediência;-
III) Condenar o arguido nas custas do processo, nos termos previstos no n.º 1 do artigo 513.º do Código de Processo Penal, fixando a taxa de justiça em 1,5 UC, nos termos previstos no n.º 9 do artigo 8.º do Regulamento das Custas Processuais, reduzida a metade, em virtude da confissão do arguido, nos termos previstos na alínea c) do n.º 2 do artigo 344.º do Código de Processo Penal.”
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Em representação do arguido AA foi interposto recurso para este Tribunal, extraindo-se do respectivo argumentário e conclusões que se pretende questionar a medida da pena principal, a medida da pena acessória e – até - a própria condenação em pena acessória com o argumento de que teve por base “factos que não constavam na acusação prejudica de forma inaceitável as garantias de defesa do arguido”, chegando-se mesmo a aludir a “violação do princípio do acusatório, e da vinculação temática” (sic).
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Constatada a inexistência de transcrição da Sentença, após procedimento a esse respeito, verificou-se o seguinte (conforme informação que antecede):
- Foi solicitada à 1ª instância a transcrição da Sentença, constando da Acta da Audiência, apenas o respectivo Dispositivo;
- Pela 1ª instância foi informado não ser possível «a transcrição da sentença proferida oralmente em Acta porquanto, por razões que não se conseguem alcançar, apenas 8 segundos ficaram documentados e não é possível a (de acordo com o Sr. Informático) recuperar a gravação»;
- Na secretaria deste Tribunal, através da ferramenta informática “media studio”, procedeu-se à audição da gravação do Julgamento, confirmando-se que a parte referente à fundamentação da Sentença não se mostra gravada no “Citius”;
- Foi também referido não ser possível “recuperar gravações realizadas na 1ª instância”, e concluído não se vislumbrar “qualquer eventual possibilidade de recuperar a sentença, na sua forma integral, a qual foi proferida oralmente nos autos, sendo que da mesma apenas temos o dispositivo”.
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Por outro lado, da Acta da Audiência consta o seguinte:
“Terminadas as alegações, foi dada a oportunidade ao arguido de dizer algo que ainda não tivesse dito e que entendesse ser útil para a sua defesa, o que ficou gravado no sistema H@bilus Media Studio, após o que a Mmª Juiz de Direito procedeu à locução com indicação sumária dos factos provados e não provados, com indicação e exame crítico sucinto das provas e exposição concisa dos motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão, elementos esses recolhidos pelo sistema de gravação digital em uso neste tribunal, ditando para a Acta a seguinte”:
Segue-se o Dispositivo da sentença (supra transcrito).
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Deste modo, da Sentença oral proferida este Tribunal dispõe, apenas, do respectivo dispositivo.
Do restante, nada ficou gravado.
E se acaso chegou a ser efectuada essa gravação (é o que está relatado em Acta que como documento autêntico, faz fé em juízo, não alegada a sua falsidade), não é possível recuperar essa “gravação”.
Não se dispondo dessa gravação, não se conhece, na sua íntegra, a fundamentação de facto e de Direito da Sentença (v.g. quanto à medida da pena principal e acessória), o que interfere, necessariamente, com a apreciação deste recurso (independentemente da validade, ou falta dela, da respectiva argumentação; pelo M.ºP.º foi defendida a sua manifesta improcedência).
A situação retratada nos presentes autos (que sendo rara, não será única), impõe, antes de mais, que se tenha em atenção o seguinte:
- a documentação da fundamentação da Sentença oral, efectuada através de gravação no sistema para esse efeito disponível no Tribunal, incumbe ao funcionário Judicial interveniente no acto, sob a supervisão do Juiz;
- é uma tarefa extremamente responsabilizante, pelas graves consequências que pode ter a sua deficiente execução, exigindo-se um enorme cuidado no seu desempenho, em ordem a assegurar-se de que a gravação está realmente a efectuar-se e é audível.
No caso, não compete aqui apurar as suas causas ou responsabilidades (non est hic locus), mas determinar quais as suas consequências.
A esse respeito, tem de se começar por observar que a situação a que aqui se chegou, constitui um evidente exemplo daquilo que tem vindo frequentemente a acontecer, no decurso das constantes alterações ao Código de Processo Penal (vai-se na quadragésima sétima versão).
Fazendo-se alterações, sem cuidar de se ver se ficam coerentes e compatíveis com as normas processuais já existentes, muitas delas, como a aqui em causa, em nome da celeridade e eficácia na aplicação da Justiça, acaba por se reforçar a sua morosidade e ineficiência.
Concretizando, com a Lei 26/2010 de 30/08, foi criado o art. 389º-A do CPP (Sentença em processo sumário) - cuja versão em vigor é a agora a da Lei n.º 20/2013, de 21/02 -, procedendo-se a uma autêntica “inversão do paradigma”, a respeito da elaboração da Sentença, instituindo-se a sua produção sob a forma oral, em vez da escrita (“proferida verbalmente, mas ditada para a acta”, na fórmula do, então em vigor, nº 6 do art. 389º).
A Sentença é, desde aí, “logo proferida oralmente”, ficando consignado em Acta apenas o seu dispositivo.
Porém, não se cuidou de conciliar esta instituída oralidade com outras normas do Código de Processo Penal, quer no procedimento que antecede essa Sentença oral, quer no procedimento que lhe sucede, nomeadamente o respeitante à fase de recurso, que reveste uma forma quase totalmente escrita (com uma componente de oralidade apenas no caso de realização de Audiência).
Paralelamente, sendo oral a fundamentação de facto e de Direito da Sentença, a mesma não deixa de ter de dar satisfação aos requisitos de fundamentação da Sentença escrita (374º CPP) com a indicação dos factos provados e não provados, com indicação e exame crítico das provas, exposição dos motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão, e os fundamentos que presidiram à escolha e medida da sanção aplicada, como o indicam expressamente a al. a) e b) do nº 1 do art. 389º-A.
A única especificação é a inclusão, na redacção da norma, da adjectivação: “sumária” (para a indicação dos factos provados e não provados, “sucintos” para o exame crítico das provas, “concisa” para os motivos de facto (é repetitivo) e de Direito (qualificação jurídica), e novamente “sucintos” quanto à espécie e medida da pena.
Dada a sinonímia, nem se entende porque são empregues tantos adjectivos diferentes, para qualificar uma mesma exigência, e cujo preenchimento nunca será uniforme, ou isento de contestação ou controvérsia.
Quando há recurso (e diz-nos a prática judiciária que isso é frequente nos casos de condução em estado de embriaguez, ou de desobediência por recusa em se submeter ao exame, principalmente devido à pena acessória de proibição de conduzir), essa instituída oralidade conflitua, necessariamente, com a estrutura da fase de recurso, essencialmente escrita, tal como já referido.
A Sentença tem de ser reproduzida por escrito, não só para o Tribunal de recurso dela conhecer, mas também para a transcrever na decisão do recurso, pelo menos quanto aos factos provados.
Ou seja, na prática, a Sentença deixa de ser oral e passa a ser escrita.
Por outro lado, os fundamentos do recurso são exactamente os mesmos do processo comum (singular ou colectivo), não importando que a Sentença tivesse sido oral, e “sumária”, “sucinta”, “concisa”, a exigência da respectiva fundamentação.
O recurso aqui em causa é disso flagrante exemplo, nenhuma referência sendo feita às características do processo sumário, e ignorando-se até a confissão integral e sem reservas do recorrente.
Ou seja, na fase de recurso, nenhuma adaptação foi estabelecida, figurando exactamente as mesmas regras quer para a motivação dos recursos, quer quanto ao respectivo procedimento, quer quanto à apreciação desses recursos.
Deste modo, as necessidades de celeridade e economia processual que terão ditado a instituição da oralidade nestes casos podem ver-se completamente postergadas.
No caso, as consequências são ainda mais drásticas, não tendo ficado gravada a Sentença, através de “registo áudio ou audiovisual” (como o impõe o art.364º, n.1º, do CPP, para o qual remete o n.º 3 do art. 389º-A), depara-se-nos esta situação:
- Temos recurso, mas não temos Sentença.

Aqui chegados, a celeridade transforma-se em demora indesejável; a segurança procurada pela gravação, transforma-se em incerteza e insegurança; a pretendida eficácia na aplicação da Justiça, transforma-se em ineficácia e desprestígio.
Como se isto não fosse suficiente, quanto ao regime e efeitos do não cumprimento da exigência de gravação da Sentença, regista-se outro exemplo evidente da falta de adaptação das normas pré-existentes à regra de oralidade criada.
Concretizando, nos termos do supra transcrito nº 3 do art. 389º-A, conjugado com os arts. 363º e 364º do CPP, o efeito desse incumprimento é a nulidade da Sentença.
No entanto, em nada aquelas disposições legais dispõem quanto ao regime e efeitos dessa nulidade.
A mesma não se encontra incluída na enumeração taxativa das nulidades insanáveis, contida no art. 119º do CPP.
O Legislador poderia (e provavelmente deveria) tê-lo feito, ao proceder ás alterações em análise.
A consequência é que, não se encontrando incluída no art. 119º, nem resultando de outra disposição legal essa cominação, estamos perante uma nulidade dependente de arguição, sujeita ao regime do art. 120º do CPP: “qualquer nulidade diversa das referidas no artigo anterior deve ser arguida pelos interessados e fica sujeita à disciplina prevista neste artigo e no artigo seguinte”.
Ora, interessado na anulação seria o recorrente, que a não invoca nem faz qualquer referência a esse respeito.
Circunscrevendo-nos ao regime das nulidades, daqui resultaria que este Tribunal não poderia dela conhecer.
Como é evidente, perante isto a única solução jurídica alternativa e viável é considerar-se que este Tribunal se encontra impedido de conhecer do recurso, por inexistência de gravação da fundamentação de facto e de Direito da Sentença recorrida.
Esta realidade sobrepõe-se a qualquer espécie de invalidade e respectivo regime, comportando um vício mais grave, o da inexistência jurídica.
Este conceito de inexistência jurídica, sem consagração no nosso Direito Processual, é, no entanto, geralmente aceite pela doutrina e já tem recebido, nalguns casos, confirmação Jurisprudencial.
No CPP anotado, Maia Gonçalves, 16ª ed., 2007, p.302, refere verificar-se o vício da inexistência “quando ao acto faltam elementos que são essenciais à sua própria substância, de modo que em caso algum pode produzir efeitos jurídicos.”, (assinalando a existência genérica de acordo, na doutrina, quanto à existência deste vício, mas detectando algumas “hesitações quanto à sua definição”).
Também no CPP anotado, Costa Pimenta, Rei dos Livros, 2ª Ed., p.376, se pode ler que “a inexistência do acto processual consiste na sua inidoneidade em enquadrar-se no esquema da relação processual penal e em produzir, portanto, quaisquer efeitos, sequer de natureza processual, e, em particular, o máximo e final efeito jurídico que é o caso julgado. Daqui resultam duas consequências práticas importantes: (1) a inexistência é insusceptível de ser, em algum tempo, sanada; (2) não precisa ser declarada. (…), mas convém que o seja, por uma razão de clareza – podendo sê-lo oficiosamente”.
É o caso.
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Pelo exposto, não existindo a fundamentação de facto e de Direito da Sentença, verificando-se circunstância - abrangida pelo art. 417º, n. 6º, al.a) do CPP – que obsta, impede, o conhecimento do recurso, declara-se extinta a presente Instância de recurso.
Remetam-se os autos à 1ª Instância, para reparação do vício.
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Porto, 12/10/2022

José Piedade