Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
6652/18.8T8VNG-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: PAULA LEAL DE CARVALHO
Descritores: ACIDENTE DE TRABALHO
AGRAVAMENTO DA RESPONSABILIDADE
REPRESENTANTE
LEGITIMIDADE PROCESSUAL
Nº do Documento: RP202002176652/18.8T8VNG-A.P1
Data do Acordão: 02/17/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE, REVOGADA A DECISÃO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO (SOCIAL)
Área Temática: ARTº 18º LAT
Legislação Nacional: .
Sumário: I - O artigo 18º da atual LAT, aprovada pela Lei 98/2009, de 04.09, não altera o entendimento que vinha sendo sufragado quanto ao conceito alargado de representante constante do art. 18º da anterior LAT, aprovada pela Lei 100/97, de 13.09, o qual abrangerá tanto o legal representante da sociedade empregadora (no caso, o sócio gerente), como outras pessoas físicas que, de algum modo, actuem em representação daquela entidade.
II - O atual art. 18º veio, todavia, estender a responsabilidade pela reparação infortunística não apenas à entidade empregadora, mas também aos próprios representantes, nestes se incluindo o legal representante do empregador que seja pessoa colectiva e as pessoas incluídas no conceito alargado de representante, bem como à entidade contratada pelo empregador e à empresa utilizadora de mão de obra, quando o acidente tiver sido por eles provocado ou quando resulte da falta de observação, pelos mesmos, das regras sobre segurança e saúde no trabalho, prevendo-se no preceito a responsabilidade individual ou solidária de ambos.
III - Demandando o A., na petição inicial, quer a sociedade empregadora, quer o seu legal representante (sócio-gerente), pela reparação dos danos emergentes do acidente de trabalho de que foi vítima decorrente de alegada violação de condições de segurança por parte daquele, legal representante, o mesmo detém legitimidade processual passiva.
IV - Invocando o A., para justificar a demanda da sociedade empregadora, a concreta factualidade integradora da alegada violação das normas de segurança e, para justificar a demanda do legal representante da mesma, que este não “diligenciou pela implementação em obra dos elementos coletivos e individuais de prevenção de acidentes de trabalho”, que “[o] Réu não cumpriu com qualquer dessas obrigações” e que “(…), em consequência da violação das regras de prevenção quanto à segurança no trabalho, veio a ocorrer o fatídico acidente de que resultou a morte do seu trabalhador e que de outro este não teria sofrido”, tem este legitimidade processual passiva, carecendo de fundamento a sua absolvição da instância com fundamento na ilegitimidade do mesmo.
V - A (eventual) alegação conclusiva e/ou insuficiente de matéria de facto para justificar a responsabilidade do sócio-gerente da sociedade empregadora pela reparação dos danos emergentes do acidente de trabalho não se prende com a falta de legitimidade processual, mas sim com o mérito da ação, devendo a 1ª instância, em tal caso e se entender no sentido dessa conclusividade e/ou insuficiência, formular convite ao aperfeiçoamento nos termos do art. 27º, nº 2, al. b), do CPT na redacção introduzida pela Lei 107/2009, de teor semelhante à previsão da anterior al. b) desse preceito.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Procº nº 6652/18.8T8VNG-A.P1
Relator: Paula Leal de Carvalho (Reg. nº 1147)
Adjuntos: Des. Rui Penha
Des. Jerónimo Freitas

Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação do Porto:

I. Relatório

Na acção declarativa de condenação, com processo especial emergente de acidente de trabalho, participado alegado acidente de trabalho ocorrido aos 23.05.2018 de que terá sido vítima B… e de que lhe resultou a morte aos 29.07.2018, as AA., C… e D…, nas qualidades de, respectivamente, viúva e filha daquele, apresentaram, aos 11.06.2019, petição inicial demandando E…, Unipessoal, Ldª e F…, tendo formulado os seguintes pedidos:
“A) Deve ser judicialmente declarado que entre o malogrado B… e a sociedade Ré existiu um contrato de trabalho por tempo indeterminado, com a remuneração mensal ilíquida de 950,00€, paga catorze vezes ao ano e que se extinguiu com a morte do sinistrado B…;
B) Ser judicialmente declarado e os RR condenados a reconhecer que o acidente de que foi vítima o trabalhador B… foi acidente de trabalho;
C) Ser judicialmente declarado e os RR condenados a reconhecer que o acidente infortunístico ocorreu com grave violação das regras de segurança por parte da entidade empregadora;
D) Serem os RR solidariamente condenados a pagar:
a) À Autora C… (viúva) a quantia de 85.447,63€, assim descriminada:
i. 50.000,00€ de danos não patrimoniais pela perda do direito à vida do seu falecido marido;
ii. 25.000,00€ de danos não patrimoniais sofridos pela própria em consequência da morte do marido;
iii. 1.709,17€ devida pelo período da incapacidade temporária e absoluta do malogrado B…;
iv. 2.830,74€ a título de subsídio de morte do marido;
v. 3.990,00€ a título de pensão anual e vitalícia, atualizável a partir da idade da reforma;
vi. 1.887,72€ a título de despesas com o funeral e trasladação;
vii. 30,00€ com as despesas que suportou com deslocações feitas por causa do sinistro em questão, incluindo a realizada à diligência de conciliação.
b) À Autora D… (filha) a quantia de 80.490,74 €, como se descrimina:
i. 50.000,00€ de danos não patrimoniais pela perda do direito à vida do seu falecido pai;
ii. 25.000,00€ de danos não patrimoniais sofridos pela própria em consequência da morte do pai;
iii. 2.830,74€ a título de subsídio por morte do pai;
iv. 2.660,00€ a título de pensão anual e temporária;
E) Serem os RR ainda solidariamente condenados a pagar às Autoras os juros vincendos sobre cada uma das quantias e até efetivo pagamento a calcular à taxa de juros civil atualmente de 4% ao ano.”
Para tanto, alegaram, para além do mais, que:
- Aquando do acidente em causa, no dia 23 de Maio de 2018 pelas 10,30h, o sinistrado trabalhava para a 1ª Ré, ao serviço de quem havia sido admitido mediante contrato de trabalho, exercendo as funções de servente de construção civil e auferindo a retribuição mensal de €950,00;
- A 1ª Ré dedica-se à atividade de construção civil e obras públicas, havendo ela e a sociedade comercial G…, Lda sido celebrado contrato de subempreitada, figurando esta como empreiteiro geral da obra referente ao restauro do edifício em causa e aquela como subempreiteira, respeitando os trabalhos subcontratados da responsabilidade da Ré a trabalhos de execução de demolições e pedreiro;
- À data do sinistro decorriam trabalhos de limpeza de escombros do telhado do edifício, tendo o sinistrado, no dia do sinistro, 23.05.2018, deslocando-se para o local onde decorriam os trabalhos acompanhado de um outro trabalhador desta, com funções de chefe de equipa.
- Aquando do acidente o sinistrado encontrava-se a realizar trabalhos de limpeza de escombros no telhado, usando para o efeito uma mangueira e uma vassoura, sendo que, no momento em que se encontrava na cornija a efetuar tais trabalhos, apoiado numa pedra, esta cedeu ou partiu, tendo-se estatelado no chão, caindo de mais de 4 ou 5 metros de altura.
- A Ré empregadora não tinha a sua responsabilidade infortunística transferida para qualquer entidade Seguradora;
- No que se refere à responsabilidade da Ré empregadora, invoca ainda a sua responsabilidade, nos termos do disposto no art. 18º da Lei 98/2009, por haver o acidente decorrido da violação de normas de segurança por parte da Ré empregadora, referindo para tanto o seguinte: “34º. Na obra não existia quaisquer elementos coletivos ou singulares de prevenção de acidentes. 35º Não havia andaimes. 36º Não havia guarda corpos. 37º Não havia arneses nem capacetes, que não haviam sido colocados à disposição dos trabalhadores. 38º À Ré enquanto entidade empregadora competia assegurar todos os meios de segurança pessoais e coletivos de prevenção de acidentes de trabalho, assim como fazer cumprir aos sues subordinados as regras de segurança em vigor. [Cfr. artº 281º do C do Trabalho] 39º Com efeito, a Ré: a. Não planificou nem dispunha de documento dessa planificação destinada à prevenção de sinistros laborais considerando a evolução técnica, a organização do trabalho e condições de trabalho; b. Não tinha identificado os riscos previsíveis em todas as atividades da empresa na conceção ou construção de instalações, de locais e processos de trabalho, nem na selecção de equipamentos destinados a evitar a sinistralidade no trabalho; c. Não tomou em consideração a necessidade de adaptar o tipo de trabalho ao trabalhador em causa; d. Não priorizou as medidas de segurança coletiva em relação às individuais; e. Não elaborou ou divulgou, dando-as a conhecer ao trabalhador sinistrado, instruções compreensíveis e adequadas à atividade desenvolvida pelo trabalhador. 40º A Ré não cumpriu com tais obrigações que para si decorrem do disposto no artº 281º do C do Trabalho e nas diversas alíneas do artº 15º do Dec. Lei nº 102/2009, de 10/09, com referência ao disposto no artº 5º, nº 1 do mesmo diploma. 41º O acidente só ocorreu por falta de elementos coletivos de segurança da obra, mormente por falta de guarda corpos. 42º Tal deveu-se a culpa, que se presume, da Ré empregadora. 43º Como consequência direta e necessária dessa falta de elementos de segurança, o trabalhador caiu de mais de 4 metros de altura, estatelando-se no chão da via pública, vindo a falecer dias depois na sequência das diversas e graves sequelas que sofreu em virtude do grave acidente de que foi vítima. (…) 45º E decorreu por atuação culposa da Ré empregadora por inobservância grosseira das mais elementares regras de segurança no trabalho para a execução das tarefas do trabalhador sinistrado, como resulta claro do disposto no artº 18º deste último diploma. 46º Como consequência de tal atuação culposa da empregadora, esta responde pelos prejuízos patrimoniais e não patrimoniais sofridos, quer pelo sinistrado, como pelos familiares nos termos gerais – cfr. artº 18º, nº 1 do indicado diploma, assim como artº 283º do C. do Trabalho.”.
- No que toca à responsabilidade do 2º Réu, sob a epígrafe “DA RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA DO RÉU”, referiu o seguinte: “76º Pelos danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos pelas AA é solidariamente responsável o Réu, enquanto sócio e gerente da Ré. Com efeito, 77º Ao Réu incumbia, como gerente, o governo da sociedade empregando a diligência de um gestor criterioso e ordenado e zelar pelos interesses da sociedade, dos sócios e de terceiros numa perspetiva de longo prazo, precavendo todos os interesses incluindo o dos trabalhadores, clientes e credores, cabendo-lhe observar deveres de cuidado, empregando para o efeito elevados padrões de diligência profissional e deveres de lealdade, no interesse da sociedade. 78º De entre esses deveres, incumbia ao Réu, nos termos da legislação aplicável, celebrar e manter em vigor com a totalidade dos salários transferidos, contrato de acidentes de trabalho onde incluísse todos os trabalhadores ao seu serviço e por virtude do qual para a seguradora ficasse transferida o risco de indemnizar pelos danos sofridos pelos trabalhadores por acidentes de trabalho. 79º Como incumbia ao Réu, por imperativo legal, diligenciar pela implementação em obra dos elementos coletivos e individuais de prevenção de acidentes de trabalho 80º O Réu não cumpriu com qualquer dessas obrigações. 81º Em consequência da violação da primeira obrigação, expôs a sociedade à nocividade de obrigação de pagamento às AA. pela totalidade dos montantes indemnizatórios a que têm direito, em consequência da morte do seu familiar, 82º Senão porventura à insuficiência de património para que a sociedade possa responder por tais indemnizações. Por sua vez, em consequência da violação das regras de prevenção quanto à segurança no trabalho, veio a ocorrer o fatídico acidente de que resultou a morte do seu trabalhador e que de outro este não teria sofrido. 83º Determina o disposto no artº 79º, nº 1 do CSC que “os gerentes ou administradores respondem também, nos termos gerais, para com os sócios e terceiros pelos danos que diretamente lhes causarem no exercício das suas funções.” 84º Responsabilidade, essa, solidária, do gerente, conforme o disposto no artº 73º, nº 1 do CSC. 85º O Réu agiu com grave violação dos seus deveres como gerente. 86º Respondendo, por conseguinte, solidariamente, com a sociedade Ré, pelos prejuízos sofridos pelas AA. e indemnização a pagar a estas. 87º Responsabilidade, essa, que para o Réu advém ainda do disposto no artº 335º, nº 2 do Código do Trabalho.”.

Aos 26.06.2019 foi, pela 1ª instância, proferida a seguinte decisão, ora recorrida: “Pelo exposto, julgo F… parte ilegítima para ser demandado na presente acção.
Custas, nesta parte, a cargo das AA, sem prejuízo da eventual concessão de apoio judiciário.”.

Inconformadas, as AA. vieram recorrer de tal decisão, tendo formulado as seguintes conclusões:
“1º. Ao invés do que consta na decisão recorrida, a petição reserva um capítulo [denominado “DA RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA DO RÉU”, conforme artº 76º a 87º] à responsabilização do Réu na produção do acidente e dos danos invocados, legitimadora da sua chamada à obrigação de por estes igualmente responder, e de modo solidário.
2º. As Autoras atribuem a responsabilidade do Réu à falta de diligência quanto ao dever que sobre este recaía, por obrigação legal, de diligenciar pela implementação em obra dos elementos coletivos e individuais de prevenção de acidentes de trabalho, e ao não cumprimento dessa obrigação. – cfr. artºs 79º e 80º.
3º. A violação de deveres próprios de gerente repercute-se na esfera individual e patrimonial do gerente quando – como vem alegado - por efeito de uma tal inobservância de obrigações que sobre este recaiam e que o mesmo não cumpre, venham a ser produzidos danos a terceiros.
4º. Pelo que se torna ele próprio (gerente) incurso em responsabilidade civil autónoma (cfr. artº 483º do C Civil), à luz do artº 79º do CSC, e na consequente obrigação de indemnizar – obrigação que é solidária, tal como resulta do artº 73º do mesmo corpo de normas.
5º. O apelo à responsabilidade solidária do Réu é feito a coberto do disposto no artº 79º do C. Sociedades Comerciais, com referência aos deveres gerais de uma gestão ordenada visando a salvaguarda dos diversos interesses, que vão para além dos sociais (societários), nos termos plasmados no artº 64º do mesmo diploma, relevando para a discussão do tema deste recurso na demonstração da motivação da discordância das recorrentes em relação à decisão recorrida, o vertido nos artºs 78º a 82º do petitório.
6º. As Autoras alegaram factos concretos e determinados à conta dos quais basearam a responsabilidade civil autónoma que imputam ao Réu enquanto gerente da sociedade empregadora, causais dos danos cujo ressarcimento a título indemnizatório reclamam e que a decisão recorrida estranhamente não atendeu.
7º. Ao decidir de modo diverso, julgando parte ilegítima do Réu que, ao invés, tem interesse em contradizer em relação à responsabilidade que lhe é assacada no incumprimento das regras de segurança da sociedade empregadora que gere e em relação a quem tem obrigação de fazer cumprir, mostram-se violados os artºs que vêm de ser citados e ainda o artº 30º do CPC, motivo pelo qual, senão por outras melhores razões, deverá a decisão recorrida ser revogada, ordenando-se a sua substituição pela manutenção do Réu na lide.
Termos em que:
Deve ser dado provimento ao presente recurso, proferindo douto acórdão que revogando a decisão recorrida reconheça a legitimidade passiva do Réu ordenando que a lide prossiga os seus termos também contra este, (…)”.

O recurso foi admitido pela 1ª instância que ordenou também a citação do Réu F… nos termos e para os efeitos do disposto no art. 641º, nº 7, do CPC, o qual não contra-alegou [mas tendo apresentado contestação, conforme se alcança da consulta do histórico informático do processo principal].

O Exmº Sr. Procurador Geral Adjunto emitiu douto parecer no sentido do provimento do recurso, ao qual respondeu o Recorrido F…, referindo em síntese que: a sua intervenção assenta numa suposta violação das regras de segurança no trabalho que as recorrentes não foram capazes de dizer qual tenha sido e em que medida ela tenha contribuído para a ocorrência do sinistro que nos ocupa; não teve qualquer intervenção na fase conciliatória, que findou com a tentativa de conciliação realizada em 22.05.2019, na qual não haviam reclamado o pagamento de danos não patrimoniais por alegada violação das regras de segurança no trabalho, aí não tendo suscitado a questão do acidente ter decorrido de tal violação, pelo que não podem agora vir reclamar danos dela decorrentes; da p.i. apenas consta uma série de afirmações genéricas e conclusivas, de todo não fundamentadas em factos que evidenciem claramente o nexo causal entre o ato ou a suposta omissão e o acidente, sendo a matéria constante dos arts. 76º e segs meramente conclusiva, pelo que bem decidiu a Mmª Juiz a quo ao absolver o recorrido com fundamento na sua ilegitimidade; de todo o modo, ainda que assim não tivesse sido, a absolvição do recorrido sempre imporá por diferente razão, pois que do que as recorrentes dizem, “nos arts. 22º e 23º da petição, resulta que a responsabilidade pela implementação de quaisquer elementos de segurança em estaleiros temporários ou móveis, mesmo que fossem necessários, e no caso não eram, cabia à G…, enquanto empreiteiro geral da obra, nos termos do DL. 273/2003, de 29 de Outubro.”.

Por despacho da ora relatora, foi determinada a baixa dos autos à 1ª instância para fixação do valor da acção, na sequência do que foi fixado o valor de €647.788,21.

Deu-se cumprimento ao disposto no art. 657º, nº 2, 1ª parte, do CPC.
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II. Matéria de Facto Assente

Tem-se como assente o que consta do relatório precedente.
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III. Do Direito

1. Salvas as matérias de conhecimento oficioso, o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas pelo recorrente, não sendo lícito ao tribunal ad quem conhecer de matérias nelas não incluídas (arts. 635, nº 4, e 639º, nº 1, do CPC aprovado pela Lei 41/2013, de 26.06, aplicável ex vi do art. 1º, nº 2, al. a), do CPT aprovado pelo DL 295/2009, de 13.10, alterado, designadamente, pela Lei 107/2019).
Assim, a questão em apreço tem por objeto apreciar da legitimidade do 2º Réu, F….

2. Na decisão recorrida referiu-se o seguinte:
“C… e D… vieram intentar acção especial de acidente de trabalho contra E…, Unipessoal, Lda, entidade patronal do sinistrado B…, marido e pai das 1º e 2º requerentes, respectivamente.
Demandam ainda F…, gerente da 1ª Ré invocando a responsabilidade solidária deste Réu nos termos do artigo 73º, nº 1 e 79º, nº 1 do CSC, invocando a violação das regras de prevenção quanto à segurança no trabalho que determinou a morte do seu trabalhador.
Nos termos do artigo 335º, nº 2 do CT refere que o gerente, administrador ou director responde solidariamente com a entidade empregadora desde que se verifiquem os pressupostos dos artigos 78º e 79º do Código das Sociedades Comerciais e pelo modo neles estabelecido.
Também o artigo 18º da Lei 98/2009, de 04.09 refere que quando o acidente tiver sido provocado pelo empregador, seu representante ou entidade por aquela contratada e por empresa utilizadora de mão-de-obra, ou resultar da falta de observação, por aqueles, das regras sobre segurança e saúde no trabalho, a responsabilidade individual ou solidária pela indemnização abrange a totalidade dos prejuízos, patrimoniais e não patrimoniais sofridos pelo trabalhador e seus familiares, nos termos gerais.
A ação de acidente de trabalho destina-se a determinar a incapacidade temporária ou permanente para o trabalho sofrida pelo sinistrado ou a fixar a pensão devida em caso de morte for força do respetivo acidente.
A obrigação da entidade patronal apenas subsiste no caso da responsabilidade pela respetiva reparação não tiver sido transferida para uma seguradora ou não a tiver sido na sua totalidade de acordo com o artigo 79º da Lei 98/2009, de 04.09.
Excecionalmente, pode haver uma responsabilidade agravada pela sua actuação culposa nos termos do já citado artigo 18º.
Para responsabilizar o representante, neste caso o gerente da entidade patronal, impunha-se que o acidente tivesse sido por si provocado diretamente ou que tivesse resultado de uma sua actuação concreta que implicasse a falta de observância das regras de segurança e saúde.
Ambos os fundamentos exigem, para além do comportamento culposo ou da violação normativa, respectivamente, a necessária prova do nexo causal entre o acto ou omissão que os corporizam e o acidente que veio a ocorrer.
O agravamento justifica-se porque o acidente resulta duma actuação culposa ou violação de regras de segurança do próprio empregador ou de alguém que, pela relação jurídica que tem com o mesmo, podem ser imputadas a este.
Por outro lado, de acordo com as regras de distribuição do ónus da prova estabelecidas no art. 342.º do Código Civil, é à parte que pretende tirar proveito do agravamento da responsabilidade, neste caso do represente do empregador, que compete provar os factos que a ela conduzem, designadamente o comportamento culposo por pessoa relevante e o nexo de causalidade entre o mesmo e o acidente, enquanto factos constitutivos do seu direito.
Para justificar a sua responsabilidade, as AA. limitam-se a de uma forma genérica a elencar as obrigações do Réu enquanto gerente da sociedade, invocando apenas também genericamente o seu incumprimento. Não invoca nenhum facto nem nenhum comportamento concreto imputável ao mesmo que tenha determinado diretamente e causado o acidente.
Aliás, a imputação feita e justificativa da demanda do mesmo não diverge da entidade patronal. Ambas se subsumem à violação das regras de segurança, sendo certo que quanto a esta última são alegados factos concretos e o respetivo nexo de causalidade entre a omissão e o dano (cfr. factos 34º a 37º, 41º e 43º da p.i) e não apenas meras considerações genéricas sobre as obrigações que impedem sobre o respetivo representante.
Tratando-se de uma obrigação imposta à entidade patronal do trabalhador, nada subsiste nos autos que justifique qualquer imputação em concreto e individualizável do seu representante legal.
Assim, de acordo com o artigo 30º do CPC, não existe qualquer interesse direto deste Réu em contradizer porquanto não há qualquer atuação direta ou autónoma da sua parte suscetível de o responsabilizar por si só e de modo solidário juntamente com a entidade patronal. Segundo o pedido e a causa de pedir apresentadas pelas AA, a sua demanda resulta apenas do facto de ser representante legal da 1ª Ré, circunstancialismo que, por si, só é insuficiente para justificar uma condenação nos termos do artigo 18º da Lei 98/2009, de 04.07 ou 335º do CT.
Apenas estão alegados factos de que poderá resultar a demanda do empregador, desde logo enquanto responsável pelo acidente e em virtude da sua responsabilidade não ter sido transferida para nenhuma seguradora. Para além disso, são invocados factos que poderão justificar a sua responsabilidade agravada nos termos do artigo 18º do já citado diploma.
Assim apenas a Ré E…, Unipessoal, Lda, deve ser demandada ou chamada à acção, por ser titular da relação controvertida, tal como configurada pelas autoras, e, assim, ter interesse directo em contradizer.
Pelo exposto, julgo F… parte ilegítima para ser demandado na presente acção.
Custas, nesta parte, a cargo das AA, sem prejuízo da eventual concessão de apoio judiciário.”

Do assim decidido discordam as AA./ Recorrentes alegando, em síntese, que:
“6º. As Autoras alegaram factos concretos e determinados à conta dos quais basearam a responsabilidade civil autónoma que imputam ao Réu enquanto gerente da sociedade empregadora, causais dos danos cujo ressarcimento a título indemnizatório reclamam e que a decisão recorrida estranhamente não atendeu.” [conclusão 6º], factos esses que se consubstanciam, como referem no corpo das alegações, nos arts. 34º a 46ª da p.i. onde “se explica, por meio da concretização de factos que aí se alegam, os elementos integrativos da responsabilidade civil, como a ilicitude, a culpa e causalidade do acidente tal qual se descreve em 27º a 33º, relativamente à atuação da Ré empregadora” e nos arts. 79º a 82º da p.i.; e, nas conclusões 3ª a 5ª que: “3º. A violação de deveres próprios de gerente repercute-se na esfera individual e patrimonial do gerente quando – como vem alegado - por efeito de uma tal inobservância de obrigações que sobre este recaiam e que o mesmo não cumpre, venham a ser produzidos danos a terceiros. 4º. Pelo que se torna ele próprio (gerente) incurso em responsabilidade civil autónoma (cfr. artº 483º do C Civil), à luz do artº 79º do CSC, e na consequente obrigação de indemnizar – obrigação que é solidária, tal como resulta do artº 73º do mesmo corpo de normas. 5º. O apelo à responsabilidade solidária do Réu é feito a coberto do disposto no artº 79º do C. Sociedades Comerciais, com referência aos deveres gerais de uma gestão ordenada visando a salvaguarda dos diversos interesses, que vão para além dos sociais (societários), nos termos plasmados no artº 64º do mesmo diploma, relevando para a discussão do tema deste recurso na demonstração da motivação da discordância das recorrentes em relação à decisão recorrida, o vertido nos artºs 78º a 82º do petitório.”; concluem que, assim, o Réu F… tem interesse em contradizer, sendo parte legítima.

3. Dispõe o art. 30º do CPC/2013, tal como já dispunha o seu antecessor, art. 26º do CPC/1961, aplicável ex vi do art. 1.°, n.° 2, al. a) do CPT, que: “1.O autor é parte legítima quando tem interesse em demandar; o réu é parte legítima quando tem interesse em contradizer. 2. O interesse em demandar exprime-se pela utilidade derivada da procedência da acção; o interesse em contradizer, pelo prejuízo que dessa procedência advenha. 3. Na falta de indicação da lei em contrário, são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação material controvertida, tal como é configurada pelo autor".
Foi, pois, consagrada a velha tese de Barbosa de Magalhães, cujo acolhimento na jurisprudência já era maioritário. Assim, a legitimidade afere-se pela versão dos factos carreada para o processo pelo autor.
Todavia, nos processos emergentes de acidente de trabalho, além da versão do autor, há também que atender para este efeito ao relato factual apresentado pelos réus ou até por terceiros, como decorre do disposto nos arts. 127º, nº 1, e 129º, nºs 1, al. b), do CPT, quando possa estar em causa alguma outra entidade eventualmente responsável pela reparação do acidente, que assim deverá também intervir na ação.
De referir que a legitimidade processual, como pressuposto processual, não se confunde com a legitimidade substantiva, esta questão de mérito, não se devendo porém arredar, em sede de legitimidade processual, a ponderação das "várias soluções plausíveis da questão de direito".
Importa também ter em conta o art. 18º da Lei 98/2009[1], de 04.09, sob a epígrafe “Actuação culposa do empregador”, que dispõe: “1 - Quando o acidente tiver sido provocado pelo empregador, seu representante ou entidade por aquele contratada e por empresa utilizadora de mão-de-obra, ou resultar de falta de observação, por aqueles, das regras sobre segurança e saúde no trabalho, a responsabilidade individual ou solidária pela indemnização abrange a totalidade dos prejuízos, patrimoniais e não patrimoniais, sofridos pelo trabalhador e seus familiares, nos termos gerais. 2 - O disposto no número anterior não prejudica a responsabilidade criminal em que os responsáveis aí previstos tenham incorrido. 3 - Se, nas condições previstas neste artigo, o acidente tiver sido provocado pelo representante do empregador, este terá direito de regresso contra aquele. (…).”.
O citado art. 18º veio suceder ao art. 18º da revogada Lei 100/97, de 13.09, que dispunha que “1. Quando o acidente tiver sido provocado pela entidade empregadora ou seu representante, ou resultar de falta de observação das regras sobre segurança, higiene e saúde no trabalho, as prestações fixar-se-ão segundo as regras seguintes: (…)”.
A propósito do conceito de representante a que se reporta o art. 18º da então Lei 100/97, dizia Carlos Alegre, Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais, Regime Jurídico Anotado, 2ª edição, Almedina, a págs. 102/103, que: “(…).Assim, as entidades empregadoras a que se refere o artigo 18º são, apenas, as entidades patronais que não sejam pessoas colectivas. Estas, pessoas colectivas, são referenciadas, no artigo em causa, pela expressão seu representante. Toda a pessoa física, constituinte dos órgãos de direcção da pessoa colectiva – entidade patronal, enquanto age em nome desta, é seu representante, o que pode constituir um conceito de representação mais alargado que o previsto no artigo 163º do Código Civil.
Todavia, afigura-se-nos, que o conceito de representante da entidade patronal- seja ela, agora, pessoa individual ou colectiva – pode ser alargado a outras pessoas físicas que, de algum modo, actuem em representação daquela entidade seja porque detém um mandato específico para tanto, seja porque age sob as ordens directas da entidade patronal, como é o caso de qualquer pessoa colocada na escala hierárquico-laboral de uma empresa”. E também assim vinha entendendo a jurisprudência, sendo que, todavia, face ao regime dessa legislação, ainda que a violação da norma de segurança causal do acidente fosse imputável a um representante (fosse ele o legal representante da sociedade-entidade empregadora ou um representante no conceito mais alargado do termo), a responsabilidade, perante o sinistrado ou, em caso de morte, perante os beneficiários legais, pela reparação dos danos emergentes do acidente de trabalho sempre recairia sobre a sociedade entidade empregadora.
O atual artigo 18º não altera o entendimento que vinha sendo sufragado quanto ao conceito representante, o qual abrangerá tanto o legal representante da sociedade empregadora, como outras pessoas físicas que, de algum modo, actuem em representação daquela entidade nos termos referidos por Carlos Alegre, no excerto transcrito.
Este preceito veio, todavia, estender a responsabilidade pela reparação infortunística não apenas à entidade empregadora, mas também aos próprios representantes, nestes se incluindo o legal representante do empregador que seja pessoa colectiva e as pessoas incluídas no conceito alargado de representante [bem como à entidade contratada pelo empregador e à empresa utilizadora de mão de obra] quando o acidente tiver sido por eles provocado ou quando resulte da falta de observação, pelos mesmos, das regras sobre segurança e saúde no trabalho, prevendo-se no preceito a responsabilidade individual ou solidária de ambos. Diga-se que o legal representante de sociedade empregadora é, por excelência, o representante da mesma, sendo, pois, abrangido pela previsão da norma. Aliás, mal se compreenderia que a responsabilidade solidária prevista no atual art. 18º seja extensível ao representante no conceito alargado acima referido em caso de acidente de trabalho resultante da falta de observação, por ele, de regras de segurança, mas que o não fosse se esse representante for o próprio legal representante da sociedade empregadora.
E, revertendo ao caso em apreço, neste assim o entendeu também a decisão recorrida, dela decorrendo que o Réu, sócio gerente poderia, legalmente, ser responsável pela reparação. O que, não obstante, aí também se entendeu, sendo isso que determinou a decisão da sua ilegitimidade, foi que as AA. teriam alegado essa eventual responsabilidade de forma conclusiva [como decorre, designadamente, dos seguintes excertos da decisão recorrida: “Para justificar a sua responsabilidade, as AA. limitam-se a de uma forma genérica a elencar as obrigações do Réu enquanto gerente da sociedade, invocando apenas também genericamente o seu incumprimento. Não invoca nenhum facto nem nenhum comportamento concreto imputável ao mesmo que tenha determinado diretamente e causado o acidente.
Aliás, a imputação feita e justificativa da demanda do mesmo não diverge da da entidade patronal. Ambas se subsumem à violação das regras de segurança, sendo certo que quanto a esta última são alegados factos concretos e o respetivo nexo de causalidade entre a omissão e o dano (cfr. factos 34º a 37º, 41º e 43º da p.i) e não apenas meras considerações genéricas sobre as obrigações que impedem sobre o respetivo representante.
Tratando-se de uma obrigação imposta à entidade patronal do trabalhador, nada subsiste nos autos que justifique qualquer imputação em concreto e individualizável do seu representante legal. (…)”].
Ora, e por um lado, tal não se prende com a legitimidade, enquanto pressuposto processual da acção, mas sim com o próprio mérito da acção que, a ter-se como boa a argumentação da decisão recorrida, levaria à improcedência da acção quanto ao mencionado Réu, mas não à sua ilegitimidade.
Acresce, por outro lado, que o alegado pelas AA. na petição inicial a propósito da responsabilidade do mencionado Réu [arts. 79 a 82 da p.i.], não pode ou não deve ser descontextualizado ou desinserido do demais alegado anteriormente, mormente da factualidade, que havia sido pelas mesmas invocada, a propósito da Ré empregadora no que toca à violação das normas de segurança a que se reportam os arts. 34 a 37, 39, 41 e 43 da p.i. [designadamente e em síntese, falta de elementos colectivos e singulares de protecção, inexistência de andaimes e guara-corpos, arneses e capacetes, falta de planificação destinada à prevenção e de identificação de riscos previsíveis e de instruções adequadas]. E, dos arts. 79º [“79º Como incumbia ao Réu, por imperativo legal, diligenciar pela implementação em obra dos elementos coletivos e individuais de prevenção de acidentes de trabalho”], 80º [“80º. O Réu não cumpriu com qualquer dessas obrigações”] e 82º [“(…) Por sua vez, em consequência da violação das regras de prevenção quanto à segurança no trabalho, veio a ocorrer o fatídico acidente de que resultou a morte do seu trabalhador e que de outro este não teria sofrido”] decorre a imputação, pelas as AA. ao Réu, dessa violação, bem como o nexo de causalidade entre tal violação e o acidente, ao Réu.
Acresce que se, porventura, a Mmª Juiz entende que a responsabilidade pela reparação por parte do Réu se encontraria ou encontra alegada de modo conclusivo sempre deveria/deverá formular convite ao aperfeiçoamento, como o determina o art. 27º do CPT, seja na redacção anterior à introduzida pela Lei 107/2019, de 09.09, seja na resultante deste diploma [que entrou em vigor aos 09.10.2019 - cfr. arts. 5º, nº 1 e 9º da mesma].
O Réu F…, face aos termos em que as AA. configuraram, em termos fáticos, a acção, detêm, pois, legitimidade processual, tendo interesse em contradizer face ao prejuízo que lhe adviria da procedência da acção.
Assim sendo, deverá o recurso proceder, com a consequente revogação da decisão recorrida e sua substituição por outra declarando o Réu parte legítima.

E, face ao referido, prejudicado fica, porque desnecessário, apreciar da argumentação da Recorrente relativa à responsabilização do Réu com base nos arts. 78º e 79º do CSC, ex vi do art. 335º do CT/2009 [seja em consequência da violação de regras de segurança, seja em consequência da inexistência de contrato de seguro].

4. Resta uma nota final no que toca à resposta do Réu/ Recorrido ao parecer do Ministério Público.
Desde logo, há que dizer que a possibilidade de resposta ao parecer visa assegurar o contraditório [cfr. art. 87º, nº 3, do CPT] e, assim, conferir à parte a possibilidade de responder no âmbito do que é o teor do parecer. A resposta ao parecer não é nem o local, nem o momento próprios para a parte contra-alegar, nem para contestar. No caso, a resposta ao parecer do Réu/Recorrido mais se parece, o que não poderemos deixar de dizer, com uma contestação, nela suscitando o Réu diversas questões e/ou argumentação que, em muito, extravasa o âmbito da questão que é objeto do recurso e do parecer.
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IV. Decisão

Em face do exposto, acorda-se em julgar procedente o recurso, em consequência do que se revoga a decisão recorrida que é substituída pelo presente acórdão em que se julga ser o Réu, F…, parte legítima.

Custas pelo Réu F…, não sendo todavia devida taxa de justiça por, ao não ter contra-alegado, não ter dado impulso processual ao recurso [art. 6º, nº 1, do RCP].
Dê-se, desde já, conhecimento do presente acórdão à 1ª instância [com nota de que ainda não transitou em julgado].

Porto, 17.02.2020
Paula Leal de Carvalho
Rui Penha
Jerónimo Freitas
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[1] Esta a aplicável dada a data do acidente em apreço nos autos.