Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
5544/11.6TAVNG-N.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MARIA DEOLINDA DIONÍSIO
Descritores: PRISÃO PREVENTIVA
SUBSTITUIÇÃO DA MEDIDA DE COACÇÃO
JULGAMENTO
Nº do Documento: RP201604135544/11.6TAVNG-N.P1
Data do Acordão: 04/13/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: PROVIDO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º 674, FLS.251-258)
Área Temática: .
Sumário: I – O simples decurso do tempo por si e sem outra explicação não justifica a conclusão de que se mostram atenuados os perigos de alarme social e continuação da actividade criminosa.
II – O perigo para a aquisição e veracidade da prova subsiste durante o decurso do julgamento, pois os arguidos tem o direito a ser ouvidos e prestar declarações até ao encerramento da discussão, e as testemunhas mesmo as já inquiridas podem ser confrontadas com subsequentes pedidos de esclarecimento e acareações, pelo que o risco de interferência na veracidade da prova subsiste e é efectivo.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: RECURSO PENAL n.º 5544/11.6TAVNG-N.P1
Secção Criminal

Relatora: Maria Deolinda Dionísio
Adjunto: Jorge Langweg

Origem: Comarca do Porto
Vila Nova de Gaia - Instância Central - 3ª Secção Criminal-J1
Processo Comum Colectivo n.º 5544/11.6TAVNG

Arguido
B…
Recorrente
Ministério Público

Acordam os Juízes, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto:

I – RELATÓRIO
1. No âmbito do processo supra referenciado, então a correr termos pela Instância Central de Instrução Criminal da Comarca do Porto, 1ª Secção -Juiz 3, por decisão instrutória proferida a 17/10/2014, foi o arguido B…, com os demais sinais dos autos, pronunciado pela prática de 1 (um) crime de associação criminosa, previsto e punível pelo art. 89º n.ºs 1 e 3, do Regime Geral das Infracções Tributárias (doravante RGIT, aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 5/6, e 105 (cento e cinco) crimes de burla tributária, previstos e puníveis pelo art. 87º n.ºs 1 e 3, do mesmo diploma legal, com referência ao art. 202º, als. a) e b), do Cód. Penal, ex-vi art. 11, al. d), do RGIT.
2. E foi também mantido o seu estatuto pessoal, continuando sujeito à medida de prisão preventiva que lhe fora aplicada, aquando do respectivo interrogatório judicial, por despacho de 18/6/2013, com fundamento na existência dos perigos de continuação da actividade criminosa, de perturbação da aquisição e genuinidade da prova e de perturbação da ordem e tranquilidade públicas.
3. Remetidos os autos para julgamento, no decurso deste, mais propriamente na sessão de 14 de Abril de 2015, a aludida medida de coacção foi substituída pela de obrigação de permanência na habitação sujeita a vigilância electrónica, por se ter entendido que o “lapso de tempo conjugado com a inevitável circunstância da prisão preventiva obrigar a quem a ela é sujeito a um forte exame dos motivos e circunstâncias de facto que levaram a tal situação e a ainda com o teor dos relatórios sociais juntos aos autos que aquelas mesmas exigências cautelares se mostram atenuadas no sentido de permitirem a substituição da prisão preventiva pela medida de coacção de permanência na habitação”.
4. Tal medida veio a ser revista, por despachos datados de 2/7 e 1/10/2015, e foi mantida com o fundamento da inalteração dos pressupostos de facto e de direito que presidiram à sua aplicação.
5. Todavia, na sessão da audiência de julgamento da tarde do dia 28/10/2015, o Tribunal a quo, invocando o lapso de tempo decorrido desde a sujeição do arguido às medidas de coacção privativas de liberdade (2 anos e 4 meses) e a circunstância de já ter sido produzida a generalidade da prova da acusação, considerou significativamente atenuadas as exigências cautelares relativas à perturbação da ordem e tranquilidade públicas e continuação da actividade criminosa e inexistente o perigo de perturbação de aquisição e genuinidade da prova, substituindo a obrigação de permanência na habitação por apresentações periódicas e proibição de contactos com os demais arguidos do processo, com excepção daqueles que são seus familiares até ao 2º grau, e de aceder ao site ou contactar directamente a Segurança Social.
6. Na sessão da audiência da manhã do dia seguinte (29/10/2015), em aditamento ao despacho aludido, foi ainda aplicada ao arguido B… a proibição de se ausentar para o estrangeiro sem autorização do Tribunal.
7. Inconformado, o Ministério Público interpôs recurso finalizando a motivação com as seguintes conclusões: (transcrição)
“1º Ao determinar a substituição da medida de coacção de obrigação de permanência na habitação, sujeita a vigilância electrónica, aplicada ao arguido B… para acautelar os perigos de aquisição e conservação da genuinidade da prova a produzir em audiência de julgamento; de perturbação da ordem e tranquilidades públicas e de continuação da actividade criminosa, por medidas de coacção não detentivas de proibição de contactos com sujeitos processuais; de aceder ao site da Segurança Social ou a balcões daquele organismo; de proibição de se ausentar para o estrangeiro e de obrigação de apresentação periódica violou o M.mo Juiz do Tribunal “A Quo” os princípios processuais penais da adequação, proporcionalidade e necessidade que estão subjacentes à aplicação de medida de coacção enunciados no art. 193º do C.P.P..
2º Na interpretação que faz daquele normativo, considera o Ministério Público que a medida de coacção de obrigação de permanência na habitação é a única medida de coacção adequada à gravidade e quantidade dos crimes de que o arguido se encontra acusado; é a mesma necessária para acautelar os perigos de conservação e genuinidade da prova que continuam a subsistir; da ordem e tranquilidades públicas e da continuação da actividade criminosa sendo igualmente a mesma proporcional ao cumprimento das exigências cautelares que o caso impõe, as quais não poderão ser devidamente asseguradas pela aplicação ao arguido de medidas menos gravosas.
3º Ao substituir a aplicação ao arguido B… da medida de coacção detentiva a que o mesmo estava sujeito por medidas de coacção não detentivas violou o Mmo. Juiz do Tribunal “A Quo” o disposto no art. 204º b) e c) do C.P.P. considerando que as medidas de coacção aplicadas nos despachos recorridos não acautelam os perigos de aquisição e conservação da genuinidade da prova a produzir em audiência de julgamento; de perturbação da ordem e tranquilidades públicas e de continuação da actividade criminosa que continuam a subsistir e cujas exigências cautelares não se mostram atenuadas.
4º No entender do Ministério Público os perigos consignados no art. 204º b) e c) do C.P.P. só poderão ser acautelados pela manutenção do arguido sujeito à medida de coacção de obrigação de permanência na habitação sujeita a vigilância electrónica.
5º Continua a subsistir de forma acentuada o perigo concreto de conservação da genuinidade da prova basta atentar que até ao encerramento da audiência sempre os demais arguidos, co-autores do arguido B… no cometimento dos ilícitos de que se encontram acusados, podem ser por aquele constrangidos a não colaborar com a justiça e bem assim as demais testemunhas que ainda faltam inquirir nos autos, mormente, testemunhas por aquele indicadas e outras cuja inquirição já veio a ser sugerida ao abrigo do disposto no art. 340º do C.P.P..
6º Trata-se, no caso em apreço, de um perigo concreto considerando o teor dos factos documentados nas sessões de julgamento ocorridas nos dias 8/10/2015 e 9/10/2015 donde resulta que no âmbito das declarações prestadas em audiência a co-arguida C… denunciou a tentativa levada a cabo pelo arguido B…, por intermédio de seus familiares directos, de a impedir de depor nos autos declarando a sua versão dos factos indo abordá-la à sua residência para esse efeito na véspera da tomada de declarações àquela em audiência, denuncia que levou inclusive a que em audiência de julgamento de 9/10/2015 fossem colhidas declarações a um familiar directo daquela arguida (marido), que confirmou a sua versão, e bem assim ao arguido D… (pai do arguido B…) visando-se o esclarecimento de tais factos, tendo sido ordenada, na sequência da prestação desses depoimentos, a extracção de competente certidão para instauração de procedimento criminal autónomo.
7º Continua a subsistir perigo concreto de perturbação da ordem e tranquilidade públicas, o qual não se mostra atenuado, considerando que o tempo já decorrido não permitiu que no meio social onde o arguido vive (meio pequeno, rural com uma relação de grande proximidade aos demais arguidos) a sua actuação fosse esquecida, continuando a subsistir um sentimento de profunda revolta pelo seu modo de actuação e sobretudo pelos elevados prejuízos que aquele acabou por causar a alguns dos arguidos nos autos, que viram a sua situação económica agravada em resultado da actuação do arguido e impedidos de continuarem a receber prestações sociais que constituíam o único meio de subsistência, sentimento esse que foi reavivado com o início do julgamento nas declarações prestadas nos autos por alguns desses arguidos.
8º Continua a subsistir de forma acentuada o perigo de continuação da actividade criminosa, tanto assim que ainda hoje em audiência de julgamento e das declarações prestadas pelo arguido B… se depreende que o arguido não apreendeu o desvalor da sua actuação insistindo que em vez do prejuízo patrimonial que foi causado à Segurança Social com a sua actuação, aquele organismo obteve com a sua actuação um benefício ilegítimo, denotando por isso uma personalidade propensa ao cometimento de ilícitos de idêntica natureza.
9º As declarações prestadas em audiência pelo arguido permitem-nos concluir que o mesmo no período temporal em que se encontrou detido e contrariamente ao entendimento perfilhado, não revelou na sua personalidade qualquer intenção de se afastar do cometimento deste tipo de ilícitos, como também não o fez durante os vários anos em que se dedicou a essa actividade delituosa, nem quando foi alertado por outros co-arguidos para acções inspectivas que estavam a ser levadas a cabo pela Segurança Social, manifestando sempre um sentimento de total alheamento e de impunidade.
10º A atitude de liderança assumida pelo arguido convencendo terceiros a comparticipar consigo na actividade delituosa a que se dedicou ao longo de vários anos, da qual advinham os rendimentos que garantiam a sua subsistência e dos seus familiares próximos, recrutando entidades empregadoras com a promessa de obtenção para aquelas também de subsídios indevidos, fornecendo-lhes os documentos necessários ao desempenho dessa actividade e convencendo também terceiros beneficiários, pelos parcos rendimentos que auferiam e alguns sem quaisquer tipo de rendimentos, a comparticipar com aquele nessa actividade delituosa, faz-nos antever que o arguido não terá, caso permaneça em liberdade, qualquer dificuldade em continuar com essa mesma actividade recrutando para o efeito novos “testas de ferro” para servirem de entidades empregadoras e bem assim novos beneficiários, que facilmente se deixam enganar pela promessa fácil de obtenção de subsídios, o que torna real e concreto o perigo de continuação da actividade criminosa.
11º Não resultando dos autos demonstrado que desde o último reexame realizado á medida de coacção de obrigação de permanência na habitação, sujeita a vigilância electrónica, (1/10/2015) tenha ocorrido uma atenuação das exigências cautelares que determinaram a sua aplicação não poderia, em menos de um mês depois desse último reexame (28/10/2015 e 29/10/2015), o M.mo Juiz do Tribunal “A Quo” determinar, como o fez, a substituição oficiosa dessa medida de coacção, sendo que, ao fazê-lo, violou o disposto no art. 212º nº 3 do C.P.P.
12º A interpretação que o Ministério Público faz do mencionado normativo, é a de que a substituição de uma medida de coacção só pode ocorrer quando se verifique uma acentuada diminuição das exigências cautelares, ou seja, quando seja praticamente inexistente a verificação de exigências cautelares, sendo que só nesses casos se deve operar a substituição de uma medida de coacção mais gravosa por outra menos gravosa, o que não se verificou no caso em apreço.
13º O disposto no art. 212º n.º 3 do C.P.P. visa claramente casos em que são trazidos aos autos factos que podem levar à aplicação de uma medida de coacção menos grave, ou seja, pressupõe, logicamente, que após ter imposto ao arguido determinada medida, e na presença de elementos novos com valor atenuativo, seja a aludida medida substituída, o que não foi o caso, já que desde o último reexame não foram trazidos aos autos novos dados que conduzissem a uma atenuação das exigências cautelares, mormente por requerimento formulado nos autos pelo arguido, nem os fundamentos alegados nos despachos recorridos se encontram alicerçados em elementos objectivos constantes dos autos.
14º As medidas de coacção estão sujeitas à condição rebus sic stantibus, ou seja, o tribunal que aplicou a medida em caso algum pode substituí-la ou revogá-la sem que tenha havido alteração dos pressupostos de facto ou de direito.
15º As medidas não detentivas aplicadas de substituição da medida de coacção de obrigação de permanência na habitação, sujeita a vigilância electrónica, não são capazes de acautelar os perigos de perturbação da genuinidade da prova já que mesmo proibido de contactar com sujeitos processuais o arguido não se coibiu de o fazer por intermédio de familiares; a proibição de aceder ao site da Segurança Social e de se deslocar àquele organismo seria facilmente contornada acedendo àquela base de dados em locais que lhe permitissem ocultar a sua identidade (cibercafés ou por intermédio de computadores de outras pessoas suas conhecidas), sendo que a sua apresentação nas várias sessões de julgamento também não permitirá afastar o perigo de continuação da actividade criminosa pela mobilidade que teria de o cometer fora desse período temporal.
16º Violou assim o M.mo Juiz as normas legais enunciadas nos arts. 193º; 204º b) e c); 212º nº 3 do C.P.P. na interpretação que efectuou na aplicação daqueles normativos contrariando a vontade do legislador.
17º Importa ainda mencionar que, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 412º n.º 5 do CPP, que foram já interpostos anteriormente recursos pelo Ministério Público na sequência da extinção declarada nos autos do procedimento criminal em relação aos arguidos E…; F…; G…, H…, I…, J…, K…, L…; M…; N…; O…; P…; Q… recursos estes que foram retidos e em relação aos quais o Ministério Público continua a ter interesse na sua apreciação, sendo que em relação ao modo de subida desses recursos foi já interposta reclamação.”
8. Admitido o recurso, por despacho proferido na sessão da audiência de julgamento da tarde do dia 24/11/2015, respondeu o arguido B… sustentando, sem alinhar conclusões, a sua improcedência e manutenção do decidido, por entender, em síntese, que não há perigo para a prova, pois esta já foi produzida, que não se vislumbra a possibilidade de continuação da actividade criminosa e muito menos existe perigo de fuga, a tudo acrescendo o facto do prazo máximo da medida de coacção (2 anos e 6 meses) estar praticamente atingido.
9. Neste Tribunal da Relação, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer no sentido do provimento do recurso, cujos fundamentos subscreveu.
10. Cumpriu-se o disposto no art. 417º n.º 2, do Cód. Proc. Penal, nada mais tendo sido aduzido.
11. Realizado exame preliminar foram solicitados elementos em falta e, uma vez juntos, seguiram os autos para os vistos legais e subsequente conferência, que decorreu com observâncias das formalidades legais, nada obstando à decisão.
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II – FUNDAMENTAÇÃO
1 - Consoante decorre do disposto no art. 412º n.º 1, do Código de Processo Penal, e é jurisprudência pacífica [cfr., entre outros, Acórdão do STJ de 24/3/1999, CJ-STJ, Ano VII, Tomo I, pág. 247 e segs. – especialmente fls. 248, último parágrafo], são as conclusões, extraídas pelo recorrente da sua motivação, que definem e delimitam o objecto do recurso.
Assim, in casu, a única questão suscitada é a da verificação dos pressupostos para a substituição da medida de coacção que vigorava por outras menos gravosas.
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2 - A essência do despacho recorrido, no que ao caso interessa, é a seguinte: (transcrição sem destaques e com correcção de gralhas ortográficas)
Acta do dia 28/10/2015 (Tarde)
“O Arguido B…[1] encontra-se sujeito nos autos à medida de coacção de obrigação de permanência na habitação e fundamentou a aplicação de tal medida a existência de perigo da continuidade da actividade criminosa e de perigo de perturbação/aquisição genuína da prova a produzir em sede de audiência de julgamento, bem como da ordem e tranquilidade públicas.
Entende o Tribunal, que o lapso de tempo ocorrido desde que o arguido foi sujeito à prisão preventiva e posteriormente à obrigação de permanência na habitação, atenuou de forma significativa as exigências cautelares relativas à perturbação da ordem e tranquilidade públicas e continuação da actividade criminosa. Dadas as circunstâncias de ter sido já produzida a generalidade da prova de acusação neste processo, faz com que inexista já perigo de perturbação do inquérito e perturbação e genuidade da prova.
Por esse motivo o Tribunal decide revogar a aplicação ao arguido da medida de coacção de permanência na habitação e substituí-la por apresentações periódicas no posto policial da sua área de residência, a fixar após termo da presente audiência de julgamento, e se for necessário, por ora, a obrigação de apresentações no posto é substituída pelas apresentações pontuais nas audiências de julgamento que forem sendo designadas que, pelo seu número, são suficientes para acautelar esses perigos, mantendo-se as outras injunções a que estava sujeito, ou seja, a proibição de contactos com todos os arguidos do processo, excluindo-se em relação aqueles que são familiares do arguido, ascendentes e ou afins, ou colaterais até ao 2º grau, ou seja, irmãos e cunhados e proibição de o arguido aceder ao site da Segurança social ou contacto directo com o mesmo.”
Acta do dia 29/10/2015 (Manhã)
“Em aditamento ao despacho proferido relativo à aplicação da medida de coacção ao arguido B… (1), decide-se impor ao mesmo também a proibição de se ausentar para o estrangeiro, sem autorização do Tribunal – art. 200º, n.º 1, al. b) e n.º 3 do C.P.Penal.”
Notifique.
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3 - Apreciando e decidindo
3.1) Das medidas de coacção
As medidas de coacção, enquanto meios processuais de limitação/privação da liberdade, actividade e direitos pessoais, têm por função acautelar a eficácia do procedimento penal, quer no que respeita ao seu desenvolvimento, quer quanto à execução das decisões condenatórias.[2]
E, sendo a regra fundamental a da liberdade, constitucionalmente e legalmente tutelada – arts. 27º, da Const. Rep. Portuguesa e 191º n.º 1, do Cód. Proc. Penal[3] - a sua aplicação só é admissível nos estritos termos previamente estatuídos na lei.
Nesta conformidade, foram não só submetidas ao princípio da legalidade – apenas podem ser impostas as medidas de coacção previstas na lei –, mas também aos da necessidade, da adequação e da proporcionalidade [v. arts. 191.º e 193.º, do Cód. Proc. Penal].
Consequentemente, as medidas de coacção a aplicar em concreto devem ser necessárias e adequadas às exigências cautelares que o caso requerer e proporcionais à gravidade do crime e às sanções que previsivelmente venham a ser aplicadas – n.º 1, do citado art. 193º.
No entanto, tal não basta já que, com excepção do termo de identidade e residência, todas as demais medidas de coacção, apenas podem ser aplicadas se, em concreto, ocorrer alguma das seguintes hipóteses:
- Fuga ou perigo de fuga;
- Perigo de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução do processo e, nomeadamente, perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova; ou,
- Perigo, em razão da natureza e das circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido, de que este continue a actividade criminosa ou perturbe gravemente a ordem e a tranquilidade públicas – v. art. 204º, als. a), b) e c).
Assentes estes pressupostos genéricos cumpre descer ao caso concreto.
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3.2) Da substituição das medidas de coacção
In casu, o arguido B…, inicialmente sujeito a prisão preventiva viu essa medida de coacção ser substituída, oficiosamente e sem contestação, pela obrigação de permanência na habitação com vigilância electrónica e proibição de contactos.
Todavia, subsequentemente, esta medida ainda privativa da liberdade foi substituída, mais uma vez oficiosamente e sem audição prévia quer do arguido quer do Ministério Público, por outras medidas menos gravosas, já que apenas restritivas de movimentos e contactos mas não detentivas.
Sendo pacífico que as medidas de coacção estão sujeitas à condição rebus sic standibus, como claramente se extrai do disposto no art. 212º n.ºs 1 b) e 3, do Cód. Proc. Penal, a medida de obrigação de permanência na habitação, prevista no art. 201º, do mesmo diploma, só poderá ser revogada ou substituída se, respectivamente, tiverem deixado de subsistir as circunstâncias que justificaram a sua aplicação ou se tiver ocorrido uma atenuação das exigências cautelares.
Na presente hipótese, o tribunal a quo – que mantivera intacta a medida de coacção aquando do reexame legal previsto no art. 213º, n.º 1, al. a), do Cód. Proc. Penal, menos de 1 mês antes – fundamentou a substituição fazendo apelo a duas ordens de razões:
i) O lapso de tempo decorrido desde a submissão a medidas de coacção privativas da liberdade atenuou fortemente os perigos de perturbação da ordem e tranquilidade públicas e de continuação da actividade criminosa; e
ii) Estando praticamente produzida a prova da acusação cessou o perigo de perturbação da aquisição e genuinidade probatória.
Salvo o devido respeito, não vislumbramos que o simples decurso do tempo, por si e sem outra explicação (o julgador nada referenciou a propósito), justifique a conclusão de que se mostram atenuados os perigos de alarme social e continuação da actividade criminosa.
Na verdade, perante a natureza, gravidade e número de crimes imputados (106), entre os quais se destaca o de associação criminosa, a passagem do tempo e “libertação” daquele que é apontado como um dos líderes da organização, apenas remete para o descrédito da justiça e sensação de impunidade e insegurança por parte dos cidadãos.
E, o momento escolhido para afirmar tal atenuação é tanto mais estranho quando, entre a data em que se afirmaram inalterados os pressupostos de facto e de direito que sustentavam a medida de obrigação de permanência na habitação (1/10/2015) e a do despacho que operou à impugnada substituição (28/10/2015), chegaram ao conhecimento do tribunal a quo determinados factos, relacionados com uma presumível interferência do arguido B…, por intermédio de familiares seus, na prestação de declarações de uma co-arguida que veio mesmo a determinar a extracção de certidão para instauração de procedimento criminal autónomo, tudo como melhor se vê das actas de 8/10/2015 (tarde) e 9/10/2015 (manhã) e resulta do suporte gravado das declarações aí prestadas pela arguida C…, esclarecimentos do arguido D… e depoimento da testemunha S….
Em consequência, para além de não se antever como é que os pressupostos de facto e de direito que sustentavam a medida de coacção foram afectados, de forma tão especialmente relevante, em pouco menos de um mês, os dados objectivos disponíveis contrariam frontalmente a pretensa atenuação das exigências cautelares determinadas pelos perigos de continuação da actividade criminosa (que, obviamente, não tem que reconduzir-se apenas à prática de crimes de natureza idêntica) e de perturbação da ordem e tranquilidade públicas.
Finalmente, também a conclusão a propósito da inexistência de perigo para a aquisição e veracidade da prova, é fortemente contrariada não só pelo acontecimento referido mas também pelo facto do julgamento ainda decorrer, sendo certo que os arguidos têm o direito de ser ouvidos e prestar declarações até ao encerramento da discussão e, mesmo as testemunhas já inquiridas, podem vir a ser confrontadas com subsequentes pedidos de esclarecimento e até mesmo com acareações, pelo que o risco de interferência na veracidade da prova subsiste, é efectivo e perfeitamente real e concreto.
Aliás, o cotejo dos elementos objectivos disponíveis e o teor singelo da decisão recorrida inculcam que o tribunal a quo, perante a aproximação do termo do prazo de duração da medida de coacção privativa da liberdade e as delongas do julgamento, optou pela substituição desta para obviar à extinção pelo decurso do prazo máximo legalmente admitido pelas disposições conjugadas dos arts. 215º, n.º 3 e 218º, n.º 3, do Cód. Proc. Penal.
Todavia, salvo o devido respeito, tal procedimento não se compadece com os requisitos estatuídos no já citado art. 212º e a substituição operada não só não se mostra devidamente fundamentada em qualquer concreta circunstância demonstrativa da efectiva atenuação das exigências cautelares como também é contrariada pela gravidade objectiva dos factos imputados e da personalidade desviante e fortemente censurável neles plasmada – que se destaca e permanece intocada – bem como pelos acontecimentos relatados nas sessões de julgamento dos dias 8 e 9 de Outubro de 2015 já supra aludidos.
Com efeito, recorde-se que está em causa um elevadíssimo número de crimes dolosos aos quais corresponde pena abstracta de grande severidade e geradores de enorme danosidade social.
Deste modo, não se vislumbra que a medida de apresentações periódicas, ainda que acrescida das proibições que já vigoravam e outra que veio a ser imposta, logre tranquilizar a comunidade ou sequer afastar o perigo de repetição de condutas delituosas, ou ainda acautelar devidamente os subsistentes perigos de perturbação da genuinidade e veracidade da prova.
Consequentemente, no contexto conhecido - único que pode ser atendido -, é inegável que não se mostram verificados os requisitos necessários e suficientes para a substituição da medida de coacção mais gravosa, não podendo subsistir, por manifestamente infundada, a decisão recorrida.
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III – DISPOSITIVO
Termos em que, face ao exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação do Porto conceder provimento ao recurso apresentado e, revogando a decisão recorrida, determinar que o arguido B… continue a aguardar os ulteriores termos do processo mediante obrigação de permanência na habitação com sujeição a vigilância electrónica, sem prejuízo da extinção desta medida logo que atingido o prazo legal máximo da sua duração, incumbindo ao tribunal a quo realização das diligências necessárias à imediata implementação desta medida zelando, designadamente, pela instalação/accionamento dos equipamentos de vigilância necessários à mesma.
Sem tributação – arts. 513º n.º 1, a contrario, e 522º, do Cód. Proc. Penal.
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[Elaborado e revisto pela relatora – art. 94º n.º 2, do CPP]

Porto, 13 de Abril de 2016
Maria Deolinda Dionísio
Jorge Langweg
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[1] Corrige-se lapso de escrita manifesto, ao abrigo do disposto no art. 380º, n.ºs 1 b) e 3, do Cód. Proc. Penal, já que se exarou “B2…” quando, obviamente, se queria escrever “B1…”.
[2] Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. II, pág. 254.
[3] Consagrou-se no n.º 1 deste preceito: “A liberdade das pessoas só pode ser limitada, total ou parcialmente, em função de exigências processuais de natureza cautelar, pelas medidas de coacção e de garantia patrimonial previstas na lei”.