Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
589/22.3T8VFR-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: FILIPE CAROÇO
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
JUÍZOS CÍVEIS
JUÍZOS DE TRABALHO
SOCIEDADE COMERCIAL
TRABALHADOR
CONCORRÊNCIA DESLEAL
Nº do Documento: RP20230420589/22.3T8VFR-A.P1
Data do Acordão: 04/20/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 3. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - É da competência material dos juízos cíveis, e não dos juízos do trabalho, a ação instaurada por uma sociedade comercial contra duas outras sociedades comerciais e um seu ex-trabalhador dela com vista a obter a condenação solidária dos três RR. em indemnização com base em responsabilidade civil por atos ilícitos de concorrência desleal, nos termos gerais.
II - A causa de pedir e o pedido da ação assim interposta não se enquadram na competência específica dos juízos do trabalho prevista nas al.s b) e n) do nº 1 do art.º 126º da LOSJ.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 589/22.3T8VFR-A.P1 (apelação)
Comarca de Aveiro – Juízo Central Cível de Santa Maria da Feira – J2

Relator: Filipe Caroço
Adjuntos: Desemb. Judite Pires
Desemb. Aristides Rodrigues de Almeida


Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I.
A..., S.A., com o NIPC ... e com sede na Rua ... – Zona Industrial ..., apartado ...09 São João da Madeira, instaurou, no Juízo Central Cível de Santa Maria da Feira, ação declarativa de condenação contra:
1. B..., com NIF DK ..., com sede em ... …, ... – ..., Dinamarca;
2. AA, casado, portador do NIF ... e residente na Rua ..., ..., ... ..., Santa Maria da Feira,
e
3. B... PORTUGAL, LDA., com NIF ... e sede na Rua ..., ... ... ..., alegando essencialmente que, tendo surgido desentendimentos graves entre os seus vários sócios e administradores, a primeira R., que já era então a sua única cliente, aproveitou a situação para, com a colaboração de um dos sócios da A., impor condições negociais abusivas, mesmo contra o que haviam contratado entre si, e para apresentar reclamações, com a ameaça de que deixaria de contratar com a demandante caso as suas exigências não fossem por ela satisfeitas.
A 1ª R. passou também a aliciar o 2º R., AA, trabalhador da A., com a categoria de modelador, para fazer cessar a sua relação laboral e passar a trabalhar para uma nova sociedade, a terceira R., que a 1ª R. então constituiria com intenção de passar a ocupar a posição que aquela tinha no mercado. Sabia bem a 1ª R. sociedade, e disso quis tomar vantagem, que o AA era um elemento chave na atividade da A. desde há muitos anos, com conhecimentos especiais, designadamente de todos os setores da empresa e com uma forte relação com a B... Dinamarca.
Ainda antes e se despedir da A., na execução do plano, o AA coadjuvou a 1ª R. no aliciamento de trabalhadores vitais daquela sociedade para se despedirem e passarem a trabalhar para a nova sociedade, o que logrou conseguir; trabalhadores que eram imprescindíveis à atividade da A. e necessários àquela nova empresa.
Por causa da ação dos três RR., o número trabalhadores da A. ficou significativamente reduzido, tal como o volume dos seus negócios, a sua faturação e os seus lucros, sofrendo, assim, um drástico impacto financeiro, fragilizando-a ao ponto de encetar um procedimento de despedimento coletivo, sem descurar que anteriormente tentou tudo, inclusive a adoção do mecanismo de layoff simplificado, no sentido de viabilizar a empresa, vendo-se irremediavelmente impedida de manter a sua atividade, sobretudo considerando que tudo isto coincidiu com o aliciamento de trabalhadores essenciais pelos 1ª e 2º RR. e com o início da Pandemia COVID-19, com as consequências de todos conhecidas.
Aliciaram os RR. os fornecedores e pessoas subcontratados pela A. para trabalhar com a 3ª R.
Considera a A. que aquelas ações configuram concorrência desleal e são geradoras e responsabilidade civil por atos ilícitos. Quanto ao 2º R., expendeu a A., especialmente, que violou os deveres a que se encontrava adstrito em duas vertentes: a primeira, enquanto ainda trabalhador da A.; a segunda, e numa fase posterior, aliado à R. sociedade, agindo em concorrência desleal, aproveitando-se do conhecimento que detinha na demandante. No primeiro momento, concorrência desleal levada a cabo como trabalhador da A., e, no segundo momento, também em concorrência desleal, mas aplicando-se-lhe o critério geral da concorrência desleal levada a cabo por terceiros.
Invoca a existência de um conjunto de danos materiais emergentes e lucros cessantes por si sofridos como resultado adequado das condutas dos RR. e ainda danos não patrimoniais, pelos quais considera serem aqueles também responsáveis solidários, em sede de responsabilidade extracontratual (art.ºs 483º e seg.s e 562º e seg.s do Código Civil), pedindo a sua condenação nos seguintes termos:
«Seja a presente julgada procedente, por provada e, em consequência, serem os réus condenados, solidariamente, a:
1- A indemnizarem a A., na quantia de 1.241.382,14€, a título de danos emergentes, atento aqui descrito nos artigos 150º a 157º;
2 – A indemnizarem a A. na quantia de 2.853.138,64€, a título de lucros cessantes, atento o aqui descrito nos artigos 150º a 157º;
3 – A indemnizarem a A., na quantia de 100.000,00€, a título de danos morais, atento o aqui descrito nos artigos 158º a 163º;
4 – A, assim, o verem julgar e em custas.»

Citados, os RR. contestaram a ação, a 1ª e a 3ª RR. por um lado, e o 2º R, autonomamente, por outro lado, sendo que este invocou a exceção da incompetência material do Juízo Cível onde a ação foi instaurada para conhecer e decidir a ação, defendendo que a competência deve ser atribuída aos Juízos do Trabalho, por a causa de pedir assentar, em primeira linha, no contrato de trabalho e, em segundo lugar, na violação dos deveres impostos pelo mesmo contrato de trabalho, e num suposto incumprimento ou cumprimento defeituoso das obrigações resultantes desse mesmo vínculo contratual. Passou depois a impugnar parcialmente os factos alegados na petição inicial e a alegar a sua própria versão material.
A A. exerceu o contraditório relativamente à matéria da exceção da incompetência em razão da matéria, pugnando pela sua improcedência.
Teve lugar a audiência prévia, na qual, além do mais, a Ex.ma Juiz julgou improcedente aquela exceção, declarando competente o Juízo Central Cível de Santa Maria da Feira para decidir a ação.
Inconformado com esta decisão, dela apelou o 2º R., AA, tendo alegado com as seguintes CONCLUSÕES:
«A. Por despacho Saneador a “Meritíssima Juiz” a Quo que julgou improcedente a exceção da competência em razão da matéria com os seguintes fundamentos no que interessa:
“Se não há dúvida que a autora configura a causa de pedir da acção, em relação ao 2ª R. como uma típica acção estruturada decorrente da relação laboral que manteve com aquele, não menos certo é que, o pedido já não o é, conforme decorre das reflexões antecedentes.
Termos em que, pelo exposto, e ao abrigo das referidas disposições legais, declaro este Tribunal Judicial (Juízo Central Cível de Santa Maria da Feira) materialmente competente para decidir a presente causa em relação ao 2.º R., improcedendo a excepção de incompetência material invocada pelo 2º R.”
B. Com o devido respeito entendemos que o Tribunal a Quo entendeu erradamente, na medida que atendeu exclusivamente ao pedido formulado pelo Autor.
C. A competência do tribunal em razão da matéria afere-se, segundo o que defendemos, atendendo à disposição que o Autor apresenta na sua PI mormente na relação jurídica controvertida, a natureza dos sujeitos processuais, a causa de pedir e o pedido.
D. O Autor configura a relação com o aqui réu como sendo laboral (cf. os artigos 24.º, 34.º, 40.º, 46.º, 72.º, 73.º, 74.º, 77.º e 143.º da Douta PI).
E. Mais o autor entende que o aqui réu violou o artigo 126.º e 128.º do Código de Trabalho.
F. Ou seja, muito embora o autor configure a fonte da responsabilidade civil como sendo extracontratual relativamente aos demais réus.
G. Relativamente ao aqui réu o Autor configurou a fonte da responsabilidade civil como sendo contratual.
H. O que de alguma forma é, como todo o respeito, incongruente.
I. Pelo que ao se aceitar que o presente Tribunal é materialmente competente temos sérias dúvidas que poderá o presente tribunal condenar os demais réus na responsabilidade extracontratual e o aqui réu na responsabilidade contratual!
J. Ou, como poderá o Autor prevalecer, numa ótica de responsabilidade extracontratual, da putativa violação por parte do réu dos artigos 126.º e 128.º do Código de Trabalho, artigos exclusivos da responsabilidade Contratual Laboral.
K. Não nos parece ser possível julgar a questão tal como a autora a configurou, no que ao aqui réu diz respeito, sem ter em conta a legislação laboral, designadamente o disposto no artigo 126.º e 128.º do Código de Trabalho.
L. Assim, deve o Despacho Saneador nesta parte ser revogado, sendo substituindo por outro que declare o Tribunal Judicial (Juízo Central Cível de Santa Maria da Feira) materialmente incompetente em relação ao aqui réu.
M. Assim, entende o recorrente que a “Meritíssima Juiz a Quo” não julgou corretamente e não fez a melhor interpretação do Direito ao julgar improcedente a exceção de competência material do Tribunal Judicial (Juízo Central Cível de Santa Maria da Feira).
N. Com este entendimento, não foi dada a melhor interpretação aos artigos 126º, nº 1, al. b) da Lei 62/13 de 26/08 e artigo 278º, nº 1, al. a), 576º, nºs 1 e 2 e 577, al. a), do Código de Processo Civil.» (sic)
*
A A. respondeu em contra-alegações que sintetizou conclusivamente assim:
«I. Alega o recorrente que “salvo o devido respeito e melhor entendimento, a “Meritíssima Juiz” a Quo, entendeu que “Se não há dúvida que a autora configura a causa de pedir da ação, em relação ao 2ª R. como uma típica acção estruturada decorrente da relação laboral que manteve com aquele, não menos certo é que, o pedido já não o é, conforme decorre das reflexões antecedentes.” (…)”;
II. E, ainda:“3. Defendemos um entendimento divergente.
4. Pois, com o devido respeito, entendemos que a competência do tribunal em razão da matéria afere-se atendendo à disposição que o Autor apresenta na sua PI mormente na relação jurídica controvertida, a natureza dos sujeitos processuais, a causa de pedir e o pedido.
(…) 9. Ainda que se aceite, pois temos dúvidas, que o pedido configura uma causa de pedir sustentada na responsabilidade extracontratual, não poderá ser só o pedido formulado pelo Autor a configurar a competência material deste Tribunal.
(…) 11. Não nos parece ser possível julgar a questão da autora, no que ao aqui réu diz respeito, sem ter em conta a legislação laboral, designadamente o disposto no artigo 126.º e 128.º do Código de Trabalho.”
III. O recorrente, faz uma interpretação errónea acerca do pressuposto fulcral da ação que serviu de base às presentes. Se, de facto, numa fase inicial, existiu- inequivocamente - uma relação laboral entre a A./recorrida e o 2º réu/recorrente, a causa de pedir assenta, não nesta relação, mas na concorrência desleal e nos prejuízos por ela causados àquela.
IV. Ora, em parte das ações de concorrência desleal existem relações (presentes ou passadas) laborais, transversais, envolvidas e, nem por isso, se julgam competentes os Tribunais de Trabalho- e bem, salvo melhor opinião.
V - O cerne da questão- aquele que levou a A. a interpor a ação, nestes autos, em análise - não foi a relação laboral e sim a concorrência desleal levada a cabo pelos réus (incluindo o, aqui, recorrente), “mancomunados”.
VI. Da leitura da petição, tendo como base os artigos transcritos, resulta inelutavelmente que o pedido tem como causa a concorrência desleal.
VII. A causa de pedir é a concorrência desleal. O recorrente confunde- incompreensivelmente- a causa de pedir, o motivo que justifica a interposição da ação, com o enquadramento da mesma, e os factos relevantes para esse efeito, e que poderão- como sucede, no nosso entender- agravar a responsabilidade dos RR. (nomeadamente do recorrido)
VIII. A determinação da competência de um tribunal para julgar determinada causa afere-se a partir da matéria em apreço e da forma como o A./ recorrente apresenta a causa de pedir e o pedido.
IX.“(…)A competência do tribunal – ensina Redenti (vol. I, pág. 265), afere-se pelo “quid disputatum” (quid decidendum, em antítese com aquilo que será mais tarde o quid decisum); é o que tradicionalmente se costuma exprimir dizendo que a competência se determina pelo pedido do autor. E o que está certo para os elementos da acção está certo ainda para a pessoa dos litigantes”. (in Manuel de Andrade, in Noções Elementares de Processo Civil, Vol.1º.)
X. De acordo com os ensinamentos do Prof. Alberto dos Reis, a causa de pedir “é o facto jurídico concreto de que emerge o direito que o autor se propõe fazer declarar”. (in Comentário ao Código de Processo Civil, Vol. 2º).
XI. No mesmo sentido, Mariana França Monteiro refere que “Para efeitos de competência, a causa de pedir deve ser identificada com os factos jurídicos alegados pelo autor que, analisados na lógica jurídica da petição inicial, permitam a aplicação de uma norma de competência.” (in A Causa de Pedir na Acção Declarativa)
XII. “No caso em vertente, é patente que o núcleo essencial da causa de pedir invocada pela requerente radica em práticas ilícitas imputadas aos requeridos que configuram concorrência desleal e que não integram factos respeitantes a algum dos direitos privados consagrados no CPI.” (in Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, Processo nº 900/13.8TBLRA.C1, de 16.04.2013)
XIII. “É pacífico que a competência em razão da matéria se afere em função dos termos em que o autor propõe a acção. O que quer dizer que se atende ao direito por ele arrogado e que pretende ver judicialmente protegido, devendo, por isso, a questão da competência ser decidida de modo conforme ao pedido formulado na petição inicial e à respectiva causa de pedir- neste sentido, entre muitos, vd. o ac. do STJ de 14-12-2016, proc. 1267/15.5T8FNC-A.L1.S1.
A causa de pedir é constituída pelo núcleo essencial de factos que informam o instituto potencialmente aplicável- 581º, 4, CPC. A causa de pedir não se confunde com o enquadramento jurídico que a parte faz sobre a questão.”
XIV. Da Doutrina e Jurisprudência transcritas, facilmente se depreende que a causa em análise não pode ser julgada pelo tribunal de Trabalho, porquanto a causa de pedir e o pedido estão fora do seu âmbito de atuação/ competência.
XV. Além do 2º réu/ recorrente, estão em causa duas rés que são sociedades comerciais, além da A./ recorrida, que também o é. Assim, não faz qualquer sentido “separá-las” da ação, dado haver uma atuação concertada entre todos os RR.
XVI. O que está, aqui, em causa é o pedido de indemnização em virtude da prática de atos que configuram concorrência desleal.
XVII. Ainda que se recorresse à extensão da competência, em razão, neste caso, da dependência (em virtude da relação entre os RR.), tal só faria sentido fazê-lo julgando o Juízo Cível competente (Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, Processo nº 14799/17.1T8LSB.L1-2, de 26/09/2019):
“A competência constitui, como é consabido, um pressuposto processual relativo ao Tribunal, a apreciar em função dos termos em que a ação foi posta e a determinar pela forma como o autor estrutura o pedido e a respetiva causa de pedir.
(…)
Artigo 126.º
Competência cível
1 - Compete aos juízos do trabalho conhecer, em matéria cível:
(…)
b) Das questões emergentes de relações de trabalho subordinado e de relações estabelecidas com vista à celebração de contratos de trabalho;
n) Das questões entre sujeitos de uma relação jurídica de trabalho ou entre um desses sujeitos e terceiros, quando emergentes de relações conexas com a relação de trabalho, por acessoriedade, complementaridade ou dependência, e o pedido se cumule com outro para o qual o juízo seja diretamente competente;
(…).
XVIII. “Com efeito, analisando a Petição Inicial, verificamos que o objeto do litígio, na presente ação, não se reconduz a questões emergentes de relações de trabalho subordinado, nem de relações estabelecidas com vista à celebração de contratos de trabalho.
(…) A circunstância de os “furtos” ou a “apropriação ilícita” de bens (mercadorias e dinheiro) pelo Réu terem sido propiciados ou facilitados pelas funções que desempenhava por conta da Autora não os descarateriza enquanto factos ilícitos e culposos, pressupostos da responsabilidade civil extracontratual, nem determina a sua qualificação como matéria emergente de relações de trabalho subordinado.
Tão pouco se pode considerar que a situação em apreço se reconduza à previsão da citada alínea n). Esta norma é claramente uma norma de extensão da competência do Juízo do Trabalho, para pedidos cumulativos, emergentes de relações conexas com a relação de trabalho.” (citado acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa)(…).» (sic)
*
Não foram oferecidas contra-alegações.
*
Foram colhidos os vistos legais.
*
II.
O objeto do recurso está delimitado pelas conclusões da apelação, acima transcritas, sendo que se apreciam apenas as questões invocadas e relacionadas com o conteúdo do ato recorrido e não sobre matéria nova, exceção feita para o que for do conhecimento oficioso (cf. art.ºs 608º, nº 2, 635º e 639º do Código de Processo Civil).
Com efeito, está para apreciar e decidir se o tribunal recorrido --- o Juízo Central Cível de Santa Maria da Feira (do Tribunal da Comarca de Aveiro) é o competente, em razão da matéria, para conhecer e decidir a ação.
*
III.
Relevam aqui os factos do relatório que antecede.
*
IV.
O Juízo Central Cível de Santa Maria da Feira (Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro) declarou-se absolutamente competente, em razão da matéria. Recorreu o 2º R. invocando a sua incompetência material: uma exceção dilatória insuprível e de conhecimento oficioso, de onde poderá resultar a sua absolvição da instância (art.ºs 96º, al. a), 97º, nº 1, in fine, e 99º, nº 1, do Código de Processo Civil[1]). Defendeu o apelante que a competência para a causa deve ser atribuída aos Tribunais do Trabalho.
Vejamos.
A competência é um pressuposto processual relativo ao tribunal (medida de jurisdição atribuída a cada tribunal).
Cabe às leis de orgânica judiciária definir a divisão jurisdicional do território português e estabelecer as linhas gerais da organização e da competência dos tribunais do Estado, em conformidade com os art.ºs 209º e seg.s da Constituição da República. As leis de processo surgem, neste tema, como complemento da Lei da Organização do Sistema Judiciário[2].
Segundo o art.º 60º, nº 1, «a competência dos tribunais judiciais, no âmbito da jurisdição civil, é regulada conjuntamente pelo estabelecido nas leis de organização judiciária e pelas disposições deste Código» e o nº 2 acrescenta que «na ordem interna, a jurisdição reparte-se pelos diferentes tribunais segundo a matéria, o valor da causa, a hierarquia judiciária e o território» (cf. ainda art.º 37º, nº 1, da LOSJ).
Nos termos do art.º 64º, em sintonia com o art.º 40º, nº 1, da LOSJ, «são da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional» (competência residual).
Os Tribunais judiciais de 1ª instância são, em regra, os Tribunais de comarca (art.º 79º da LOSJ), sendo estes integrados por juízos de competência especializada, de competência genérica e de proximidade. O Juízo Central cível, assim como o Juízo do Trabalho são tribunais de competência especializada (art.º 81º, nºs 1 e 3, al.s a) e h), da LOSJ). Um e outro juízos integram a mesma ordem jurisdicional, dos Tribunais judiciais.
De acordo com o art.º 117º, nº 1, al. a), da LOSJ, compete aos Juízos Centrais cíveis, além do mais ali previsto, “a preparação e julgamento das ações declarativas cíveis de processo comum de valor superior a (euro) 50.000,00”. E, conforme o art.º 130º, nº 1, da mesma lei orgânica, são da competência dos Juízos de competência genérica (assim como dos Juízos locais cível), as ações as causas que não sejam atribuídas a outros juízos ou tribunal de competência territorial alargada.
A apelante sustentou a atribuição da competência para a ação ao Juízo do trabalho no disposto no art.º 126º, nº 1[3], al. b), da LOSJ, segundo o qual, “compete aos juízos do trabalho conhecer, em matéria cível (…), das questões emergentes de relações de trabalho subordinado e de relações estabelecidas com vista à celebração de contratos de trabalho».
Ensina Manuel de Andrade[4], citando Redenti, que a competência do tribunal se afere pelo quid disputatum (quid decidendiun, em antítese com aquilo que será mais tarde o quid decisum); é o que tradicionalmente se costuma exprimir dizendo que a competência se determina pelo pedido do autor.
Também na jurisprudência vem sendo abundantemente entendido que, para a determinação do tribunal competente em razão da matéria, para o julgamento de uma ação --- à semelhança da verificação dos demais pressupostos processuais --- deve atender-se ao pedido nela formulado e à causa de pedir que lhe está subjacente, seja quanto aos seus elementos objetivos, seja quanto aos elementos subjetivos. Assim, os elementos identificadores da causa (pedido fundado na causa de pedir), tal como o autor a configura[5].
A competência do tribunal não depende, pois, da legitimidade das partes nem da procedência da ação. É ponto a resolver de acordo com a identidade das partes e com os termos da pretensão do autor (compreendidos aí os respetivos fundamentos), não importando averiguar quais deviam ser as partes e os termos dessa pretensão.[6] A competência em razão da matéria determina-se pelo thema decidendum, ou seja, pelo pedido conjugado com os factos jurídicos que fundamentam a pretensão deduzida.
No tocante aos Juízos do trabalho, a sua competência em matéria cível restringe-se ao conhecimento das questões taxativamente elencadas nas várias alíneas do nº 1 do artigo 126º, nº 1, da Lei nº 62/2013 de 26 de agosto, designadamente as emergentes de relações de trabalho subordinado e de relações estabelecidas com vista à celebração de contratos de trabalho (a al. b), invocada pelo apelante).
Para aferir se determinada questão se insere no âmbito deste segmento da competência dos Juízos do trabalho importa analisar antes de mais se do pedido formulado e da factualidade concreta alegada pelo autor podemos concluir que estamos perante uma questão emergente de trabalho subordinado, independentemente da designação dada ao contrato ou da sua qualificação como contrato de trabalho por parte do autor na ação.
Conforme a síntese efetuada no relatório, nos termos da petição inicial, o 2º R. era, num primeiro momento, um trabalhador da A., e já então aceitou o aliciamento e passou a colaborar com a 1ª R. na aliciação de outros trabalhadores da A. para passarem a trabalhar na 3ª R., levando com eles conhecimentos privativos e reservados da A., para assim, a prejudicarem em benefício da concorrência da 3ª R. O 2º R. continuou a desenvolver essa sua conduta mesmo depois de ter rescindido com a A. o seu contrato de trabalho.
Na relação laboral, de entre os deveres do trabalhador consta a obrigação de “guardar lealdade ao empregador, nomeadamente não negociando por conta própria ou alheia em concorrência com ele, nem divulgando informações referentes à sua organização, métodos de produção ou negócios” (al. f) do nº 1 do art.º 128º do Código do Trabalho).
Este dever integra o dever geral de boa fé na execução do contrato, a que se refere o art.º 762º, nºs 1 e 2, do Código Civil e, especialmente, o art.º 126º, nºs 1 e 2, do Código do Trabalho.
A violação deste dever, como dos demais deveres legais, pode conduzir à aplicação sanções ao trabalhador, sendo mais grave o despedimento com justa causa, por iniciativa do empregador, neste caso, quando o seu comportamento culposo determine, por si só e pela sua gravidade, a impossibilidade prática da subsistência da relação laboral, o que sucederá sempre que a rutura dessa relação seja irremediável, quebre de forma irreparável a relação de confiança entre as partes tornando inexigível a sua manutenção, na medida em que nenhuma outra sanção seja suscetível de sanar a crise contratual aberta com aquele comportamento (art.º 351º, nº 1 e nº 2, al. e), do Código do Trabalho).
Aquelas sanções são tipicamente laborais, por violação de deveres que emergem da relação laboral, estão destinadas a repercutir-se diretamente na mesma, produzindo sobre ela efeitos próprios.
Não assim o fundamento da ação presente, em que a causa de pedir é substanciada por um conjunto de factos destinados à configuração de uma situação de concorrência desleal (art.º 311º do Código da Propriedade Industrial) com base na qual a A. visa a responsabilização solidária dos três RR. por atos ilícitos e, assim, a sua condenação em indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais, ao abrigo dos art.ºs 483º e seg.s e 562º e seg.s do Código Civil.
A alegada violação de deveres laborais pelo 2ª R. não visa, nos termos da petição inicial, a obtenção de efeitos direcionados para a relação laboral; antes constitui um dos fundamentos pelos quais a A. direciona a ação para um efeito tipicamente civil que é a responsabilidade civil extracontratual, por atos ilícitos. Existe, efetivamente, uma conexão entre a violação de deveres laborais por parte do recorrente e o pedido da ação, mas aquela, apenas enquanto vigorou o contrato de trabalho e tão-só enquanto pressuposto da prática de um conjunto mais alargado de atos suscetíveis de configurar uma situação jurídica diferente, que a A. desenha como sendo de concorrência desleal, com os seus efeitos indemnizatórios próprios.
Ainda que seja necessário discutir a conduta laboral do 2º R., não se trata aqui de aplicar sanções laborais, mas de apurar a responsabilidade e decidir a ação, no sentido de saber se à A. assiste o direito a ser indemnizada por danos causado pelo 2º R., por colaboração com terceiros estranhos à relação laboral, na prática de atos qualificáveis como concorrência desleal.
Embora conexa, a questão objeto da petição inicial é distinta do exercício dos direitos diretamente emergentes das relações de trabalho, tem uma natureza eminentemente civil. Mesmo que se discuta a culpa do 2º R., sê-lo-á juntamente com a discussão dos demais pressupostos de responsabilidade civil, com vista à fixação de uma indemnização por concorrência desleal, em que, nos termos da petição inicial, são responsáveis solidários terceiros alheios à relação laboral, secundária relativamente à relação essencial ou dominante. O que está em causa não é a relação laboral em si mesma, mas os fundamentos da responsabilidade civil pela prática de atos de concorrência desleal e a obrigação de indemnizar nos termos da lei geral substantiva. Daí que também não tenha aqui aplicação o fundamento da atribuição de competência ao Juízo de Trabalho nos termos da al. n) do nº 1 do art.º 126º da LOSJ.
Como se refere no acórdão da Relação do Porto de 13.7.2022[7], “a al. b), aqui em causa, ao referir-se às questões que emergem da relação de trabalho subordinado liga-se diretamente ao contrato de trabalho [“aquele pelo qual uma pessoa singular se obriga, mediante retribuição, a prestar a sua atividade a outra ou outras pessoas, no âmbito de organização e sob a autoridade destas” artigo 11.º do Código do Trabalho – CT], abrangendo, sem razões a dúvidas, a sua existência e validade, e a sua cessação e, bem assim os seus elementos mais definidores, como a retribuição, a categoria funcional, o exercício da autoridade do empregador ou o exercício do poder disciplinar. Fora deste núcleo alargado, em princípio, não caberão na competência especializada laboral, prevista naquela alínea, as demais questões, ainda que envolvam um trabalhador ou ex-trabalhador e o seu atual ou antigo empregador”.
Decorre do exposto que a decisão recorrida merece confirmação, sendo o recurso improcedente.[8]
*
SUMÁRIO (art.º 663º, nº 7, do Código de Processo Civil):
……………………….
……………………….
……………………….
*
V.
Pelo exposto, acorda-se nesta Relação em julgar a apelação improcedente e, em consequência, confirma-se a decisão recorrida, pela qual o Juízo Central cível de santa Maria da Feira se considerou competente em razão da matéria para conhecer e decidir da ação.
*
Custas da apelação pelo recorrente, por ter decaído no recurso (art.º 527º, nº 1, do Código de Processo Civil), levando-se e conta a taxa de justiça paga pela sua interposição.
*
*
Porto, 20 de abril de 2023
Filipe Caroço
Judite Pires
Aristides Rodrigues de Almeida
_________________
[1] Diploma a que pertencem todas as disposições legais que se citarem sem menção de origem.
[2] Lei nº 62/2013, de 26 de agosto, adiante designada por LOSJ.
[3] Normativo que, nas suas alíneas a) a s) estabelece os fundamentos da competência dos Juízos do trabalho em matéria cível.
[4] Noções Elementares de Processo Civil, vol. I, pág. 88.
[5] Cf. acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 18.3.2004, proc. 04B873, de 13.5.2004, proc. 04A1213, de 10.4.2008, proc. 08B845, e de 14.12.2017, proc. 3653/16.4T8GMR, in www.dgsi.pt, acórdão da Relação do Porto de 7.11.2000, Colectânea de Jurisprudência, Tomo V, pág. 184.
[6] Manuel de Andrade, Noções Elementares do Processo Civil, edição de 1993, reimpressão, págs. 90 e 91 e acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10.4.2019, proc. 6632/18.3T8LSB-A.L1.S1, in www.dgsi.pt.
[7] Proc. 15605/21.8T8PRT.P1, in www.dgsi.pt.
[8] No sentido desta nossa posição, com algum paralelismo, embora relativamente a situações algo diferentes, cf. acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 17.10.2012, proc. 206/12.0TTTVD.L1-4, de 24.9.2013, proc. 2796/10.2TBPRD.P1.S1, de 10.12.2015, proc. 3/14.6TVLSB.L1.S1, de 22.11.2018, proc. 3259/15.5T8CSC-A.L1.S1, de 26.9.2019, proc. 14799/17.1T8LSB.L1-2, acórdãos da Relação do Porto de 16.4.2012, proc. 561/11.9TTPRT.P1, de 10.2.2020, proc. 39/19.2T8VLG.P1, citados no referido acórdão desta Relação do Porto de 13.7.2022.