Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
18901/16.2T8PRT-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ARISTIDES RODRIGUES DE ALMEIDA
Descritores: SOCIEDADE COMERCIAL
EXTINÇÃO DA SOCIEDADE
CRÉDITO
LEGITIMIDADE ATIVA DO CREDOR
Nº do Documento: RP2020042318901/16.2T8PRT-A.P1
Data do Acordão: 04/23/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A extinção de uma sociedade comercial não gera a extinção dos respectivos créditos sociais.
II - Extinta a sociedade comercial titular de um crédito sobre terceiro, não tendo este crédito, apesar de existente, sido atendido nas operações de liquidação e partilha pelos sócios, depois da extinção da sociedade os ex-sócios podem exigir do devedor a satisfação do crédito, isoladamente na medida do seu interesse ou em coligação na medida da soma do interesse dos ex-sócios coligados.
III - Para reclamarem o pagamento desse crédito, os ex-sócios dispõem, em regra, do prazo de cinco anos, a contar do registo da extinção da sociedade, sob pena de o crédito prescrever (artigo 174.º, n.º 3, do Código das Sociedades Comerciais).
IV - Esse prazo de cinco anos de prescrição do direito de crédito, quando exigido pelos ex-sócios, aplica-se mesmo que o crédito social já esteja reconhecido por sentença ou outro título executivo e, por isso, se fosse exigido pela sociedade, antes da sua extinção, estaria sujeito ao prazo de prescrição ordinária.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Recurso de Apelação
ECLI:PT:TRP:2020:18901.16.2T8PRT.A.P1
*
Sumário
...............................................
...............................................
...............................................
*
Acordam os Juízes da 3.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto:
I. Relatório:
Por apenso à execução para pagamento de quantia certa que lhe é movida por B…, contribuinte fiscal n.º ………, e por C…, contribuinte fiscal n.º ………, ambos residentes em Vila Nova de Gaia, veio o executado D…, contribuinte fiscal n.º ………, residente na Maia, deduzir embargos de executado, demandando a sua absolvição da instância executiva, o levantamento das penhoras e a condenação dos exequentes como litigantes de má-fé.
Alegou para o efeito que a execução tem por base uma sentença judicial onde foi condenado a pagar uma determinada quantia a uma sociedade que entretanto foi dissolvida e liquidada, tendo a execução sido instaurada pelas pessoas que eram sócios dessa sociedade, o que, uma vez extinta a sociedade, não lhes é consentido ou redunda em ilegitimidade dos exequentes; que existe litispendência porque se encontra ainda pendente a execução instaurada pela sociedade com o mesmo objectivo; que antes da sentença dada à execução foi lavrada transacção no mesmo processo, o que impede que a sentença possa ser executada ou ao menos deva ser substituída pela transacção, a qual é nula por reserva mental e simulação, não podendo produzir efeitos; que o direito de crédito prescreveu pelo decurso de mais de cinco anos após a inscrição no registo do encerramento da liquidação.
Os embargados contestaram os embargos, alegando que não há litispendência porque a anterior execução foi extinta por desistência da exequente; que uma vez extinta a sociedade cabe aos sócios o direito de instaurarem as acções necessárias para obter a satisfação dos créditos da sociedade extinta; que o crédito não prescreveu porque o prazo para executar um crédito reconhecido por sentença transitada em julgado é de 20 anos; que a transacção não foi considerada válida uma vez que não estiveram todas as partes envolvidas na referida transacção, inclusive o próprio embargante, vindo a ser proferida sentença; que a empresa credora não renunciou ao seu crédito uma vez que este só foi reconhecido judicialmente em data posterior à acta que aprovou a dissolução, não havendo antes segurança sobre o que viria a ser decidido na acção declarativa.
Findos os articulados, após realização de audiência prévia, o tribunal entendeu poder conhecer de imediato do mérito, o que fez proferindo sentença a julgar os embargos improcedentes e determinar o prosseguimento da execução.
Do assim decidido, o embargante interpôs recurso de apelação, terminando as respectivas alegações com as seguintes conclusões:
A. Vem o presente recurso interposto da circunstância de o Recorrente não se conformar com a Sentença proferida pelo D. Tribunal “a quo”, em que não concordando com os fundamentos invocados pelo mesmo, julgou improcedente os embargos de executado por si deduzidos.
B. Não obstante tal decisão, entende modestamente o ora recorrente que foram violadas várias normas jurídicas, bem assim, foram interpretadas de forma desadequadas com o nosso sistema legal, várias normas jurídicas, devendo, por isso ser resposta a harmonia do Direito.
I- Da ilegitimidade dos embargados
C. Antes de tudo o mais, será de referir que contrariamente ao entendimento perfilhado na sentença recorrida, o recorrente está convicto que no caso presente os embargados são parte ilegítima nos presentes autos porquanto, e nos termos do artigo 160.º, n.º 2 do CSC, “A sociedade considera-se extinta, mesmo entre os sócios e sem prejuízo do disposto nos artigos 162.º a 164.º, pelo registo do encerramento da liquidação”
D. Tal significa que concluída a liquidação e feito o registo de encerramento desta, cessa a personalidade jurídica da sociedade, sendo que só então nesse momento se considera extinta, não podendo, então a sociedade regressar à actividade.
E. Não tendo personalidade jurídica, a sociedade não tem personalidade judiciária, ou seja, a susceptibilidade de ser parte, de “estar, por si, em juízo” (art. 9.º do CPC), e obviamente, tal falta de personalidade judiciária não é, passível de sanação (art. 14.º do CPC) - Cf. Acórdão proferido por este Insigne Tribunal da Relação, datado de 27-03-2008, no âmbito do processo n.º 0831264 (disponível em www.dgsi.pt).
F. Deste modo, fácil será de concluir que os embargados/exequentes carecem de legitimidade, para propor qualquer acção contra o embargante/executado, sendo que tal falta deverá ter como consequência a imediata absolvição da instância, ex vi artigos 576.º, n.º 2, 577.º, alínea c) e 278.º, n.º 1, alínea c), todos do CPC, devendo ser reconhecido por este Insigne Tribunal da Relação do Porto.
II - Dos pressupostos dos artigos 162.º e 164.º, ambos do Código das Sociedade Comerciais
G. Caso não se entenda nos termos supra expostos, o que não se concede, mas por mero dever legal de patrocínio se acautela, será de referir que, conforme resulta do requerimento executivo, bem assim da sentença ora recorrida, a instauração dos presentes autos baseou-se pela aplicação simultânea, e sem mais, dos artigos 162.º e 164.º, ambos do CSC.
H. O artigo 162.º do CSC refere-se tão só a “acções pendentes”, sendo que aquando da extinção da sociedade, estas prosseguem com a generalidade dos sócios, representados pelos liquidatários, sem necessidade de suspender a instância e de habilitar os sucessores para com eles prosseguir os termos da demanda.
I. Com efeito, resulta de forma absolutamente inequívoca que pretenderam os embargados/exequentes tratar dos presentes autos de execução como sendo uma “acção pendente”, quando na verdade nunca o poderá ser.
J. Até porque os embargados intentaram uma nova acção, seja os presentes autos, já no ano de 2016, que tão pouco se trataram de uma apensação ao processo declarativo originário, razão pela qual, o artigo 162.º do CSC, jamais e em momento algum poderá ser aplicável ao caso presente.
K. Por outro lado, e no que concerne à aplicação do artigo 164.º do CSC, também será de referir, contrariamente ao vertido na sentença recorrida, que ao abrigo de um tal normativo legal, nunca poderiam os exequentes deduzir qualquer acção executiva contra o aqui recorrente porque um tal normativo legal apenas e só trata “constatação posterior ao encerramento da liquidação e após a extinção da sociedade, da existência de bens não partilhados” – Cf. Acórdão proferido por este Insigne Tribunal da Relação do Porto, datado de 30-01-2012, proferido no âmbito do processo n.º 6356/09.2TBVFR.P1, disponível em www.dgsi.pt.
L. Ora, o presente caso, não se trata de nenhum “activo superveniente”, uma vez que a sociedade E…, Lda., apenas pretendeu um reconhecimento judicial de um crédito - tal qual se verifica, por exemplo, nos procedimentos de injunção, nomeadamente para as facturas vencidas, ou seja o crédito já existia.
M. Enaltecendo ainda que, os exequentes pretenderam obter o “melhor dos dois mundos”, ao peticionarem os autos de execução ao abrigo do artigo 162.º do CSC e do artigo 164.º do CSC, quando objectivamente tal não é legalmente possível (não é possível alegar que o mesmo pedido é simultaneamente “acção pendente” e um “activo superveniente”).
N. Razão pela qual, também por este prisma, resulta de forma absolutamente inequívoca que não se encontram preenchidos os pressupostos de um tal normativo legal para que os embargados/exequentes, se socorram para fundamentarem a acção executiva interposta, devendo, consequentemente, ser revogada a sentença ora recorrida, para todos os devidos e legais efeitos.
III - Da prescrição do exercício do direito de crédito ao abrigo do disposto no artigo 174.º, n.º 3 do CSC
O. Por fim, e caso uma vez mais não se entenda nos termos supra expostos, será de referir que a considerar-se como legítima e válida a instauração dos autos de execução, dos quais o ora Recorrente deduziu os competentes embargos de executado, e com efeito, a ser “exigível” a cobrança de tal crédito do modo referido, entende, com toda a franqueza, o agora recorrente que uma tal exigibilidade do referido crédito se encontra prescrita, ao abrigo do disposto no artigo 174.º, n.º 3 do Código das Sociedade Comerciais.
P. Em bom rigor, tipifica o artigo 174.º, n.º 3 do CSC que prescrevem no prazo de cinco anos, a contar do registo da extinção da sociedade, os direitos de crédito exigíveis pelos sócios contra terceiros, nos termos dos artigos 163.º e 164.º do referido diploma legal.
Q. Ora, tendo em conta a matéria de facto dada como provada, nomeadamente os pontos “1” e “3”, resulta de forma absolutamente inequívoca e inegável que a exigibilidade do crédito da sociedade E…, Lda., pelos seus sócios [embargados nos presentes autos] contra o ora recorrente [embargante nos presentes autos] se encontra prescrito, nos termos do disposto do artigo 174.º, n.º 3 do CSC (neste sentido veja-se, a título meramente exemplificativo, o decidido pelo nosso Insigne Supremo Tribunal de Justiça, nos Acórdãos proferidos em 30-05-2017 e 06-04-2017, no âmbito, respectivamente, do processo n.º 593/14.5TBTNV.E1 e do processo n.º 275/15.0T8AGH.L1.S1, ambos disponíveis em www.dgsi.pt),
R. Salientando ainda que para a figura da prescrição, sobrelevam, portanto, razões de convivência e oportunidade ligadas aos valores da certeza e segurança jurídicas, pelo que, fundamento algum será de acolher, quando a sentença proferida pelo D. Tribunal “a quo”, perfilha do entendimento que o prazo de prescrição aplicável ao caso em concreto é de 20 anos.
S. Até porque, tendo em conta o artigo 2.º do CSC, deverá também ter-se em consideração que “O direito societário é direito especial por referência ao direito civil comum regulador das pessoas colectivas em geral, com uma génese e disciplina própria que se autonomizou das regas das pessoas colectivas previstas no código civil. O conjunto das disposições do CSCom reguladoras das relações entre a sociedade e os seus administradores vai no sentido da efectivação da responsabilidade quando a ela haja lugar sem sujeição a qualquer outra condição que não seja o conhecimento do acto ou omissão gerador de responsabilidade” – Acórdão proferido pelo nosso Insigne Supremo Tribunal de Justiça, em 10-01-2013, no âmbito do processo n.º 1032/08.6TYLSB.L2, disponível em www.dgsi.pt.
T. Pelo que, sempre se entenderá, de forma objectiva, rigorosa e legal, que no caso em referência deverá ser conhecido que a exigibilidade do crédito por parte dos Embargados, se encontra prescrito, nos termos do disposto no artigo 174.º, n.º 3 do CSC (conforme o aqui Recorrente já havia invocado em sede de Embargos de Executado), devendo este Insigne Tribunal da Relação do Porto também reconhecer tal prescrição, para todos os devidos e legais efeitos, nomeadamente revogando-se a Sentença ora Recorrida.
Nestes termos e nos demais do Direito, entende muito modestamente o ora Recorrente que deve ser concedido provimento ao presente recurso e, por via disso, ser revogada a decisão ora recorrida e substituída por outra que julgue os Embargos de Executado totalmente procedentes, por provados, e absolva o Executado do pedido formulado, para todos os devidos e legais efeitos, com o que V.as Ex.as julgarão, como sempre, com inteira e sã Justiça!
O recorrido respondeu a estas alegações defendendo a falta de razão dos fundamentos do recurso e pugnando pela manutenção do julgado.
Após os vistos legais, cumpre decidir.
II. Questões a decidir:
As conclusões das alegações de recurso demandam desta Relação que decida as seguintes questões:
i) Se os ex-sócios de uma sociedade extinta têm legitimidade jurídica e judiciária para reclamarem, através da execução, o pagamento de um crédito social que não foi considerado na liquidação da sociedade credora extinta antes da instauração da execução.
ii) Se o direito de crédito está prescrito ao abrigo do n.º 3 do artigo 174.º do Código das Sociedades Comerciais.
III. Os factos:
Na decisão recorrida foram julgados provados os seguintes factos:
1.- Os exequentes deram à execução como título executivo a sentença constante do processo executivo a que este está apenso, proferida em 23/09/2009 e transitada em julgado no dia 22/10/2009, no âmbito da acção declarativa ordinária com o n.º 8523/05.9TBVNG-da então 1.ª Vara de Competência Mista de Vila Nova de Gaia, na qual, entre o mais, foi o ora embargante/executado condenado a pagar à sociedade E…, Lda., a quantia de €111.994,48, acrescida de juros moratórios legais, bem como a quantia de €4.638,82, conforme tudo consta do documento junto e cujo teor aqui se dá por reproduzido.
2.- Os exequentes instauraram a presente execução em 20/09/2016, através do requerimento executivo que se encontra junto, nele indicando como título executivo o acima indicado, fazendo constar, do local destinado a exposição dos factos, o seguinte:
«1. Por sentença judicial transitada em julgado em 22/10/2009, os executados foram condenados a pagarem solidariamente à sociedade E…, Lda., encerrada na pendência da acção declarativa, tendo os seus dois sócios, nos termos do artigo 162º e 164º, nº 2 do Código das Sociedades Comerciais, legitimidade para a presente execução: - 111.994, 48 € acrescida de juros à taxa legal; - 4.638, 82 € respeitante ao valor dos bens e equipamentos em falta.
2. Até à presente data, os executados nada pagaram, estando em dívida a quantia de 111.994,48€ acrescida de juros à taxa legal no montante de 30.990,25€ e a quantia de 4.638,82€, no total de 147.632,55€.
3. Aos valores supra descritos acresce a quantia paga a título de taxa de justiça para promoção da presente execução, 51,00€.
4. Assim, resulta que a dívida exequenda totaliza a quantia de 147.674,55€, à qual acrescerão os juros de mora vincendos e todas despesas decorrentes da presente execução, nomeadamente com o Agente de Execução e que serão liquidadas a final.
5. A dívida é certa, exigível e líquida.
6. A sentença condenatória é título executivo, ao abrigo do disposto no artigo 703.º, alínea a) do Código de Processo Civil e 626, nº 2 do CPC.»
3.- Em 07/04/2005, conforme a deliberação dos únicos sócios e aqui exequentes de 30/11/2004, foi dissolvida a referida sociedade E…, Lda., sendo nomeado liquidatário o sócio gerente C…, com posterior encerramento da liquidação, conforme a deliberação de 22/12/2005 (ata n.º 45), o que ficou a constar do registo comercial em 16/02/2006, como tudo consta dos documentos juntos à petição de embargos e nestes autos, cujo teor aqui se dá por reproduzido.
4.- A execução sumária n.º 15477/16.4T8PRT (cujo n.º anterior era 8523/05.9TBVNG.1), do Juízo de Execução do Porto-Juiz 7, foi instaurada no dia 22/07/2016 e foi declarada extinta em Outubro de 2016, por desistência da aí exequente (a referida sociedade extinta), apresentada em 20/09/2016, o que foi tudo notificado às partes, conforme tudo consta da documentação junta aos autos, cujo teor aqui se dá por reproduzido.
5.- Em 29/06/2009, no âmbito da audiência de julgamento da citada acção declarativa ordinária com o n.º 8523/05.9TBVNG, da então 1.ª Vara de Competência Mista de Vila Nova de Gaia, foi celebrado acordo/transacção apenas entre a sociedade aí autora e os aí réus F…, G…, H… e I…, o que foi homologado por sentença proferida nessa data, transitada em julgado em 09/07/2009, prosseguindo o julgamento e tais autos na parte restante do pedido e quanto aos demais réus e aqui executados, conforme tudo consta da documentação junta aos autos, cujo teor aqui se dá por reproduzido.
IV. O mérito do recurso:
A] da falta de legitimidade jurídica ou judiciária dos ex-sócios de uma sociedade extinta para cobrarem um crédito social que não foi objecto da liquidação da sociedade:
Antes de entrar propriamente na análise das questões jurídicas submetidas à apreciação desta Relação, cremos ser conveniente precisar concretamente os factos pelos quais se há-de reger essa apreciação, colocados na sua correcta sequência temporal.
No caso, sucedeu o seguinte:
● Em 30/11/2004, os sócios da sociedade E…, Lda., reunidos em assembleia geral extraordinária, aprovaram uma deliberação no sentido da dissolução da sociedade.
● Em 07/04/2005, em da referida deliberação, o sócio-gerente da sociedade, C…, outorgou escritura pública de dissolução da sociedade, sendo nomeado liquidatário o referido sócio gerente.
● Em (data concretamente não documentada nos autos do ano de) 2005 a sociedade J…, Lda. instaurou acção declarativa de condenação contra D… (1), K… (2), F… (3), G… (4), H… (5) e I… (6), pedindo a condenação dos réus a pagarem-lhe, solidariamente, as quantias de €111.994,48, acrescida de juros de mora à taxa legal, e de €4.638,82, com fundamento no incumprimento de um contrato denominado de cessão de exploração, fiança e pacto de preferência de um estabelecimento comercial.
● Em 22/12/2005 os sócios da sociedade deliberaram aprovar as contas da liquidação e considerar encerrada a liquidação.
● Em 16/02/2006 a deliberação de encerramento da liquidação da sociedade foi inscrita no registo comercial.
● Em 29/06/2009, no decurso da audiência de julgamento realizada na acção declarativa mencionada, foi lavrada em acta transacção entre a autora e os réus F… (3), G… (4), H… (5) e I… (6), nos termos da qual a sociedade reduziu o seu pedido contra estes e estes assumiram a obrigação de pagar o montante acordado.
● Essa transacção foi homologada por sentença proferida nessa data e transitada em julgado que condenou as partes na transacção nos seus precisos termos.
● O processo prosseguiu os seus termos quanto à parte restante, vindo em 23/09/2009 a ser proferida sentença julgando a acção parcialmente procedente e condenando os réus D… (1) e K… (2) a pagarem, solidariamente, à autora, as quantias de €111.994,48, acrescida de juros de mora à taxa legal, e de €4.638,82.
● Em 22/07/2016, foi instaurada em nome da sociedade J…, Lda. execução para pagamento de quantia certa contra D… (1) e K… (2), para obtenção do pagamento da quantia fixada na sentença condenatória proferida na aludida acção declarativa.
● Em 20/09/2016 a exequente apresentou desistência dessa execução, dizendo fazê-lo porque «a sociedade exequente cessou a sua actividade», tendo a execução sido declarada extinta em Outubro de 2016.
● Em 20/09/2016, B… e C…, afirmando-se «os dois sócios» da sociedade E…, Lda., instauraram a execução a que os correspondem presentes embargos contra (1) D… e (2) K… para obtenção do pagamento da quantia fixada na sentença condenatória proferida na aludida acção declarativa.
É perante estes factos que cabe decidir a primeira questão colocada: se os exequentes, leia-se, as pessoas que instauraram a execução em nome próprio mas invocando a qualidade de únicos sócios da sociedade extinta J…, Lda., têm legitimidade para instaurar execução para obterem, por via coerciva, o pagamento de um crédito da sociedade credora.
Nos termos do n.º 1 do artigo 53.º do Código de Processo Civil, que trata precisamente da legitimidade judiciária do exequente e do executado, «a execução tem de ser promovida pela pessoa que no título executivo figure como credor e deve ser instaurada contra a pessoa que no título tenha a posição de devedor».
Esta é a regra: tem legitimidade para instaurar a execução a pessoa que de acordo com o título executivo é o titular do crédito exequendo, tem legitimidade para ser demandado na execução, a pessoa que do mesmo documento resulte ser o titular da posição passiva nessa relação creditícia, o devedor, aquele que no título está vinculado a pagar a quantia exequenda.
O artigo 54.º do mesmo diploma contém várias desvios à regra geral da determinação da legitimidade das partes na execução. Segundo o n.º 1 da norma, «tendo havido sucessão no direito ou na obrigação, deve a execução correr entre os sucessores das pessoas que no título figuram como credor ou devedor da obrigação exequenda; no próprio requerimento para a execução o exequente deduz os factos constitutivos da sucessão».
Daqui decorre portanto que a execução não tem de ser instaurada necessariamente pela pessoa que no título figura como credor; havendo sucessão no direito de crédito, a execução pode afinal ser instaurada por quem não figura no título como credor mas em resultado daquela sucessão tem efectivamente essa qualidade. A disposição não distingue a sucessão mortis causa e a sucessão inter vivos, pelo que se deve admitir que se refere a qualquer delas. O exequente necessita, contudo, de alegar no requerimento executivo os factos constitutivos dessa sucessão no crédito, para justificar a sua legitimidade – cf. Lebre de Freitas, in A acção executiva à luz do Código de Processo Civil de 2013, 6.ª ed., pág. 142 –.
No caso, as pessoas singulares que instauraram a execução e que naturalmente possuem personalidade jurídica e judiciária própria que não se confunde com a personalidade jurídica e judiciária da sociedade que figura como credora na sentença que constitui o título executivo – foi a ela e não aos sócios que os demandados foram condenados a fazerem os pagamentos sentenciados –, não se apresentaram como representantes da sociedade, caso em que seria ela a exequente, apresentaram-se como únicos sócios da sociedade, afirmando que a mesma tinha sido «encerrada na pendência da acção declarativa», razão pela qual, os seus «dois sócios, nos termos do artigo 162º e 164º, nº 2 do Código das Sociedades Comerciais, [têm] legitimidade para a presente execução». Por outras palavras, as pessoas que instauraram a execução apresentaram-se como sucessores na titularidade do direito de crédito que era da sociedade por esta ter sido «encerrada».
O que cabe discutir é pois se com a extinção de uma sociedade comercial – dissolvida e liquidada, com registo do encerramento da liquidação – os respectivos créditos se transmitem para os respectivos sócios, passando estes a serem os titulares do crédito e consequentemente a poderem exercer tal direito por via judicial. Se essa transmissão tiver ocorrido as pessoas que tinham a qualidade de sócios da sociedade extinta têm legitimidade para exigir judicialmente a satisfação do crédito, se não tiver ocorrido eles carecem de legitimidade para o efeito.
A questão corresponde pois já à segunda questão colocada pelos recorrentes: se os sócios da sociedade comercial podem exigir judicialmente o pagamento do crédito da sociedade, encontrando-se esta já extinta.
A lei comercial não contém uma definição de sociedade. Contudo, no artigo 980.º do Código Civil, a lei civil define o contrato de sociedade como sendo aquele em que duas ou mais pessoas se obrigam a contribuir com bens ou serviços para o exercício em comum de certa actividade económica, que não seja de mera fruição, a fim de repartirem os lucros resultantes dessa actividade. Este conceito compreende três elementos essenciais: o elemento pessoal – as partes constituintes; o elemento patrimonial – a contribuição com bens ou serviços (a entrada); o elemento teleológico – o exercício de uma actividade económica com a finalidade de atribuição de lucros.
A sociedade comercial é uma espécie de sociedade, cuja diferença específica reside no seu objecto (prática de actos de comércio) e na sua forma (adopção de um dos tipos previstos na lei comercial – Código das Sociedades Comerciais, artigo 1.º, n.º 2) – apud Brito Correia, in Direito Comercial, Sociedades Comerciais, II, 1997, pág. 5 -. Segundo o n.º 2 do artigo 1.º do Código das Sociedades Comerciais, são sociedades comerciais aquelas que tenham por objecto a prática de actos de comércio e adoptem o tipo de sociedade em nome colectivo, de sociedade por quotas, de sociedade anónima, de sociedade em comandita simples ou de sociedade em comandita por acções.
Nos termos do artigo 5.º do Código das Sociedades Comerciais as sociedades gozam de personalidade jurídica e existem como tais a partir da data do registo definitivo do contrato pelo qual se constituem, sem prejuízo do disposto quanto à constituição de sociedades por fusão, cisão ou transformação de outras.
A sociedade, criada em regra através de um contrato de sociedade mas que também pode ser constituída por acto unilateral, constitui novo sujeito de direitos e obrigações, um ente jurídico próprio distinto das pessoas dos sócios que funciona como centro de imputação de relações jurídicas com autonomia. A partir da data do registo definitivo da sua constituição pela forma legal, a sociedade torna-se titular das relações jurídicas sociais, pertencendo-lhe os bens e direitos sociais e passando a haver um património social que é autónomo e distinto do dos sócios da sociedade. Nas palavras de Coutinho de Abreu, in Curso de Direito Comercial, Volume II, 5ª edição, pág. 156, a ordem jurídica atribui às sociedades comerciais a qualidade de sujeito de direito, de autónomo centro de imputação de efeitos jurídicos.
Ao lado da personalidade jurídica, da susceptibilidade de ser sujeito de direitos e obrigações ou situações jurídicas, surge a capacidade jurídica (de gozo), isto é, a aptidão para ser titular de um círculo, com mais ou menos restrições, de relações jurídicas (cf. Mota Pinto, in Teoria Geral do Direito Civil, 1985, pág. 213).
Sob a epígrafe “capacidade” o artigo 6.º do Código das Sociedades Comerciais estabelece que a capacidade da sociedade compreende os direitos e as obrigações necessários ou convenientes à prossecução do seu fim, exceptuados aqueles que lhe sejam vedados por lei ou sejam inseparáveis da personalidade singular.
«A capacidade de gozo é uma categoria derivada e instrumental da personalidade jurídica: esta consiste na idoneidade ou aptidão abstractas ou genéricas para ser centro de imputação directa e autónoma de relações jurídicas, isto é, de ser sujeito de direitos; a capacidade jurídica ou de gozo faz uma delimitação ulterior: ela exprimindo a definição do conjunto mais ou menos amplo de direitos e obrigações (ou, dito de outra forma, relações jurídicas) de que o sujeito (ou, mais exactamente, certo conjunto de sujeitos) dotado de personalidade pode ser titular (…) Noutros termos, a personalidade jurídica exprime uma qualidade, a capacidade jurídica ou de gozo exprime a quantidade ou medida em que essa qualidade se concretiza em relação a cada tipo de sujeitos (…)» - apud Cassiano Santos, in O artigo 6.º do CSC, a capacidade jurídica da sociedade …, III Congresso Direito das Sociedades em Revista, 2014, Almedina, pág. 529 -.
Tal como as pessoas singulares morrem e com isso cessa a sua personalidade e capacidade jurídica, pode ocorrer a extinção das pessoas colectivas, designadamente as sociedades comerciais. A sua extinção compreende uma sequência de etapas que constituem um procedimento.
A primeira dessas etapas é a dissolução da sociedade. Sobre isso rege o disposto no artigo 141.º do Código das Sociedades Comerciais, nos termos do qual a sociedade se dissolve nos casos previstos no contrato e ainda pelo decurso do prazo fixado no contrato, por deliberação dos sócios, pela realização completa do objecto contratual; pela ilicitude superveniente do objecto contratual ou pela declaração de insolvência da sociedade. A dissolução opera através de um acto singular, a deliberação dos sócios, a declaração do conservador de registo comercial ou a sentença judicial, nos casos e termos definidos nos artigos 141.º, 142.º e 143.º do Código das Sociedades Comerciais.
A dissolução da sociedade é um acto jurídico que põe fim ao acto jurídico que determinou a sua constituição (contrato de sociedade ou acto unilateral), determinando a modificação da situação jurídica da sociedade, embora ainda não a sua extinção. «A dissolução opera a modificação da situação ou do estatuto da sociedade dotada de personalidade jurídica (ou, ainda, da relação jurídica gerada pelo acto constituinte da sociedade)» - apud. Código das Sociedades Comerciais em Comentário, Coord. Coutinho de Abreu, Almedina, Coimbra, Volume II, 2011, comentário ao artigo 141.º -.
Nos termos do n.º 1 do artigo 146.º, salvo quando a lei disponha de forma diversa, a sociedade dissolvida entra imediatamente em liquidação. O n.º 2 acrescenta que a sociedade em liquidação mantém a personalidade jurídica e, salvo quando outra coisa resulte das disposições subsequentes ou da modalidade da liquidação, continuam a ser-lhe aplicáveis, com as necessárias adaptações, as disposições que regem as sociedades não dissolvidas.
Por conseguinte, a sociedade dissolvida conserva a personalidade jurídica mas avança para a fase da liquidação. Para Pinto Furtado, in Curso de Direito das Sociedades, Almedina, Coimbra, 3ª ed., 2000, pág. 544, «a dissolução do contrato produz uma dupla ordem de efeitos: por um lado, torna actual o direito do sócio ao resultado da liquidação; por outro, limita a função da própria pessoa colectiva, funcionalizando a actividade dos seus órgãos à finalidade da extinção».
«O termo “liquidação”, portanto, designa a situação jurídica da sociedade no período (mais ou menos longo) compreendido entre a respectiva dissolução e o momento em que o encerramento da liquidação é registado - facto que verdadeiramente determina extinção do ente societário (cfr. art. 160.º, 2 CSC). Mas a expressão “liquidação” é igualmente utilizada para referir um processo, isto é, ao conjunto ordenado de actos a realizar ao longo daquela fase terminal da vida societária. Assim, o processo de liquidação orienta-se para a cessação das diversas relações jurídicas com epicentro na sociedade (que em breve se extinguirá como pessoa jurídica), compreendendo como etapas fulcrais o apuramento da situação patrimonial da sociedade dissolvida (art. 149.º); a satisfação do passivo social (art. 154.º); e a partilha do activo remanescente (art. 156.º) a transmissão e entrega dos bens aos sócios (art. 159.º).» - apud Carolina Cunha, in Responsabilidade dos sócios pelo passivo superveniente após extinção da sociedade nos casos de ausência de liquidação, III Congresso Direito das Sociedades em Revista, 2014, Almedina, pág. 172 -.
Através da liquidação procura-se apurar e cumprir as obrigações sociais, cobrar os créditos da sociedade e, depois de satisfeitas todas as dívidas da sociedade, dar destino aos valores que constituem o património da sociedade entregando aos sócios o remanescente do património social.
Para Pinto Furtado, loc. cit., pág. 560, a liquidação consiste na ultimação dos negócios pendentes, satisfação das dívidas da sociedade, cobrança de créditos e a redução a dinheiro do património residual. Segundo Menezes Cordeiro, in Código das Sociedades Comerciais Anotado, Almedina, 2ª edição, 2011, pág. 543, a liquidação pauta-se pelos seguintes princípios: (a) manutenção da personalidade colectiva; (b) publicidade; (c) autonomia privada; (d) prestação de contas e responsabilidade; (e) satisfação dos credores; (f) partilha aos sócios.
A liquidação pode ser realizada por via extrajudicial, nos termos regulados no artigo 146.º e seguintes do Código das Sociedades Comerciais, mas também, em certos casos por via administrativa ou por via judicial. A liquidação administrativa está prevista e regulada nos artigos 15.º e seguintes do Regime Jurídico dos procedimentos administrativos de dissolução e liquidação de entidades comerciais (RJPADL) aprovado pelo Decreto-Lei n.º 76-A/2006, de 29 de Março. Ela pode ter lugar por vontade dos sócios traduzida em deliberação ou por imposição legal (artigo 150.º, n.º 3, 146.º, n.º 6, do Código das Sociedades Comerciais, artigo 4º, n.º 4, do RJPADL, artigo 234º, n.º 4, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas). A liquidação judicial de sociedades que terá lugar no caso de liquidação subsequente à declaração de nulidade ou anulação do contrato de sociedade, previsto no artigo 165.º, n.º 2, do Código das Sociedades Comerciais, seguirá os termos processuais previstos no Código de Processo Civil. Na liquidação judicial pode incluir-se a liquidação subsequente à declaração de insolvência da sociedade. Com efeito, a declaração de insolvência produz automaticamente a dissolução da sociedade – artigo 141º, n.º 1, alínea e) – e se os credores não aprovarem um plano de insolvência seguir-se-á a liquidação da massa insolvente por apenso ao processo de insolvência (artigo 170º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas), sendo que o encerramento desta liquidação também determina a extinção da sociedade (artigo 234º, n.º 3, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas).
Em regra – excepcionam-se as situações de liquidação instantânea legalmente reservada para os casos de inexistência de activo e de passivo – a liquidação é realizada pelos liquidatários, os quais tomam o lugar do órgão de administração da sociedade dissolvida (artigos 151º e 152º). Os liquidatários serão, em princípio, os próprios membros do órgão de administração, mas por cláusula do contrato de sociedade ou deliberação dos sócios podem ser nomeadas outras pessoas, designação que pode ainda ter lugar por via administrativa.
Os liquidatários têm competência para executar a generalidade dos actos incluídos na liquidação, podendo, designadamente ultimar os negócios pendentes, cumprir as obrigações da sociedade, cobrar os créditos da sociedade, reduzir a dinheiro o património residual e propor a partilha dos bens sociais remanescente. Os sócios podem ainda autorizar os liquidatários a continuar temporariamente a actividade da sociedade, a contrair empréstimos necessários à concretização da liquidação, a alienar o património da sociedade, a trespassar o estabelecimento da sociedade.
Os liquidatários devem reclamar os créditos da sociedade ainda que os prazos hajam sido estabelecidos em benefício da própria sociedade (artigo 153º, n.º 2). Os liquidatários devem outrossim pagar ou consignar todas as dívidas da sociedade para as quais seja suficiente o activo social (artigo 154.º).
Concluída a liquidação, os liquidatários apresentarão as contas finais da liquidação, discriminando os resultados das operações de liquidação, acompanhadas por um relatório completo da liquidação e por um projecto (mapa) de partilha do activo restante. As contas e o relatório são apresentados aos sócios que deliberarão sobre a sua aprovação.
Uma vez aprovadas as contas da liquidação e acautelados os direitos dos credores, proceder-se-á à partilha entre os sócios dos activos restantes. Em regra a partilha será feita em dinheiro, mas pode ser feita em espécie, através da adjudicação de bens sociais aos sócios se o pacto social o previr ou os sócios o aprovarem por unanimidade.
A partilha entre os sócios do activo restante deve seguir a ordem estabelecida no n.º 2 do artigo 156.º: em primeiro lugar, devem ser reembolsadas as entradas efectivamente realizadas, só depois disso, se sobrar saldo para partilhar, este deve ser repartido na proporção aplicável à distribuição de lucros.
O último acto das funções do liquidatário e, concomitantemente da existência jurídica da sociedade comercial, é a inscrição no registo comercial do encerramento da liquidação, a qual determina a extinção efectiva da sociedade (artigo 160.º do Código das Sociedades Comerciais), leia-se, o fim da respectiva personalidade e capacidade jurídicas.
O problema que amiúde se coloca é o que sucede quando a sociedade comercial se extinguiu – o encerramento da liquidação está inscrito no registo – mas se vem a verificar que ou não houve partilha dos bens sociais ou não consta que nesta os sócios tenham recebido bens sociais e no entanto se apura que a sociedade tinha dívidas – passivoque não foram pagas na liquidação ou tinha bens ou direitos patrimoniaisactivoque não foi reclamado permanecendo por cobrar aos respectivos credores.
No Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18/01/2018, proc. n.º 2153/13.9TYLSB.L1.S2, in www.dgsi.pt, o caso em apreço é ainda mais singular. Tratava-se de uma situação em que o registo do encerramento da sociedade foi feito porque no respectivo processo administrativo se concluiu pela inexistência de «activo e passivo a liquidar» – logo, não houve partilha – e se vem a apurar que a sociedade tinha activo – um bem imóvel inscrito no registo! – e que esse activo gera continuamente encargos, ficando por satisfazer o direito do correspondente credor.
A primeira ideia que é necessário convocar é a de que a extinção da sociedade não determina a extinção dos respectivos direitos ou obrigações. Da circunstância de se ter extinguido a sociedade que era titular de um determinado crédito ou devedora de uma certa dívida, não resulta ope legis que esses direitos ou obrigações se tenham extinguido em simultâneo. Apesar da extinção da sociedade o devedor social não fica desonerado da sua dívida nem o credor da dívida social vê extinto o seu direito de crédito.
Isso é assim desde logo porque não existe norma legal que imponha essa consequência jurídica, sendo certo que não se pode confundir a extinção do centro autónomo de imputação de direitos ou obrigações com a extinção dos direitos e obrigações que ocorre apenas nas situações legalmente previstas.
Por outro lado, a personalidade das pessoas colectivas é análoga à personalidade das pessoas singulares. Elas constituem uma forma especial de agregação de vontades colectivas que adquire autonomia jurídica, tendo em vista o desenvolvimento de uma certa actividade e tendo em mente um específico objectivo ou finalidade. Daí que, como estabelece o artigo 160.º, n.º 2, do Código Civil, lhe estejam vedados os direitos e obrigações vedados por lei ou inseparáveis da personalidade singular mas, em regra, não mais que isso.
Ora se no caso da extinção da personalidade jurídica das pessoas singulares – a morte – as respectivas relações patrimoniais não se extinguem e passam a integrar o acervo hereditário que através da partilha será oportunamente encabeçado pelos herdeiros do titular falecido (artigo 2024.º do Código Civil), por maioria de razão não se devem extinguir as relações patrimoniais de que é titular uma pessoa colectiva e mais concretamente uma sociedade comercial. Não existe efectivamente qualquer interesse público nessa extinção, a qual, ao invés, seria extremamente negativa para o comércio em geral.
Acresce que, como vimos, o Código das Sociedades Comerciais se preocupou em regulamentar o regime da dissolução, liquidação e extinção das sociedade comerciais, regulando o processo de liquidação e assinalando-lhe o objectivo de realizar a satisfação do passivo social e determinar o activo restante passível de distribuído pelos sócios. Esse regime tem implícita a preocupação de não permitir a extinção da sociedade sem a satisfação do passivo social na medida em que o activo social o permita, devendo para o efeito congregar-se a totalidade do activo.
Se não fosse essa a preocupação, não se justificaria que a sociedade não pudesse extinguir-se imediatamente após a sua dissolução. Por outras palavras, o regime legal tem implícito que a extinção do passivo social deve ocorrer com o respectivo pagamento, não com a extinção da sociedade, e que o activo social que respondia por esse pagamento deve continuar a assegurá-lo ainda que a sociedade esteja a caminho da extinção, tendo já aprovada a respectiva dissolução. O mesmo deve valer por identidade de razões quanto à extinção do activo social.
A questão que se tem de colocar de seguida é a seguinte: se apesar da extinção da sociedade comercial nem o activo nem o passivo social titulado pela mesma se extinguem ope legis, para quem, como e a que título se transfere a titularidade dos correspondentes direitos e obrigações.
Para responder a essa questão devemos ter presente que um dos direitos dos sócios decorrentes da qualidade de titulares de parte do capital social da sociedade é o direito ao saldo da liquidação. Trata-se de um direito patrimonial que quando a sociedade se constitui se assume como um direito em potência e quando a sociedade se dissolve se transforma num direito concreto. Ele compreende em rigor o direito ao reembolso do valor das entradas e o direito ao saldo da liquidação propriamente dito. Se no momento da liquidação e em resultado desta a sociedade apresentar um saldo inferior ao valor das entradas os sócios apenas têm direito ao reembolso da parte respectiva do valor das entradas. Se esse saldo exceder o valor das entradas, cada sócio tem direito à sua quota-parte nesse saldo, segundo critérios de repartição fixados por lei ou pelo contrato (artigo 156.º, n.º 2).
Escreve Coutinho de Abreu, in Curso de Direito Comercial, Volume II, 5ª edição, págs. 428/429, a propósito do direito dos sócios a quinhoar nos lucros, previsto na alínea a) do n.º 1 do artigo 21º do Código das Sociedades Comerciais, que na liquidação da sociedade, «depois de satisfeitos ou acautelados direitos dos credores sociais (artigo 154º do CSC), existindo activo remanescente, ele é destinado, de acordo com “mapa de partilha” integrante das contas finais aprovadas por deliberação dos sócios (arts. 157º, 1, 3, 4, 159º), em primeiro lugar ao reembolso do montante das entradas realizadas (art. 156º, 2); se restar algum activo – o lucro final ou de liquidação propriamente dito –, será distribuído pelos sócios na medida aplicável à distribuição dos lucros em geral (artigo 156º, 4), isto é, segundo a proporção dos valores das respectivas participações no capital social, se não houver cláusula estatutária ou norma legal especial (v. g., art. 341º, 2, in fine), dispondo diferentemente – art. 22º. Portanto, com a deliberação de aprovação das contas finais, os sócios ficam com direito (de crédito) à entrega (pela sociedade) dos respectivos quinhões no lucro de liquidação. (…) Aos prazos de cumprimento das obrigações de entrega das quotas-partes no lucro final são aplicáveis as regras gerais do CCiv. (arts. 777º, ss.), se outras não forem estabelecidas pela deliberação que aprova as contas finais (o mapa da partilha) – cfr. art. 159º, 1 – ou pelo estatuto social.»
No dizer de Raúl Ventura, in Dissolução e liquidação de sociedades – Comentário ao Código das Sociedades Comerciais, Almedina, 1999, na reconstrução operada no Código das Sociedades Comerciais em Comentário, Coord. Coutinho de Abreu, Almedina, Volume II, 2011, comentário de Carolina Cunha ao artigo 156.º, «“só por equívoca e deslocada semelhança com o instituto de direito sucessório” é que o termo “partilha” é utilizado em sede de liquidação. O que está em causa é, isso sim, o acto de cumprimento da obrigação, resultante do contrato de sociedade, de atribuir a cada sócio uma parte determinada do saldo de liquidação. Dito de outro modo: a participação do sócio do sócio compreende, entre outros, o direito (eventual) à quota de liquidação, direito que, uma vez constituído, passa a integrar o seu património pessoal. Ora, é justamente para satisfação desse direito que os sócios-credores recebem da sociedade-devedora uma porção do activo líquido restante. Há, portanto, uma “sucessão” a título particular nos bens recebidos pelos sócios, “mas esta sucessão resulta de um acto translativo praticado pela sociedade, através de um seu órgão, em cumprimento de uma obrigação anterior”».
Merece pois plena concordância a afirmação constante do Acórdão Supremo Tribunal de Justiça de 25/10/2018, proc. n.º 3275/15.7T8MAI-A.P1.S2, in www.dgsi.pt, segundo a qual do conjunto das disposições que regem a dissolução da sociedade «decorre inequivocamente que as relações jurídicas em que a sociedade extinta era parte se mantêm depois da extinção da sociedade, passando esta, em regra, a ser substituída pela generalidade dos sócios, representados pelos liquidatários». No mesmo sentido, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 26/06/2008 e de 06/06/2019 (proc. 593/14.5TBTNV.E2.S2), ambos in www.dgsi.pt, podendo ler-se neste último que apesar da extinção da sociedade, havendo um activo superveniente, ele «pertencerá, em contitularidade, aos antigos sócios», os quais poderão demandar o devedor «na medida do seu interesse, como resulta do disposto no art. 164.º, n.º 2, do Código das Sociedades Comerciais» -.
A doutrina chama no entanto à atenção que não se trata propriamente de os sócios terem «um direito sobre os bens que lhes foram “atribuídos”; têm, isso sim, um direito contra a sociedade (que pode ser judicialmente exercido, se for o caso), que deve efectuar a entrega a que está obrigada» - Carolinha Cunha in Código das Sociedades Comerciais em Comentário, Coord. Coutinho de Abreu, Almedina, Volume II, 2011, comentário ao artigo 159.º -. Esta autora, citando Raúl Ventura, loc. cit., pág. 428-429, afirma que «a deliberação dos sócios sobre o projecto de patilha não transmite a propriedade dos bens ou a titularidade dos direitos que compõem o activo restante; estes continuam na esfera jurídica da sociedade até que o liquidatário execute a deliberação: a deliberação apenas acerta o objecto de cada uma das obrigações que a sociedade tem para com cada um dos sócios». Esta construção encontra reflexo no artigo 164.º, n.º 1, do Código das Sociedades Comerciais, quando se refere à partilha adicional.
Sendo assim não há nenhuma razão para deixar de fora do âmbito desse direito alguns dos bens sociais apenas pela circunstância acidental de os mesmo não terem sido objecto de liquidação, sendo certo que não cabe cuidar aqui da protecção dos terceiros credores que também podiam obter satisfação dos seus direitos de crédito através desse activo social.
Esta questão foi equacionada de forma directa pelo legislador que a trata no artigo 164.º do Código das Sociedades Comerciais, cuja epígrafe é «activo superveniente» e que dispõe o seguinte:
«1 - Verificando-se, depois de encerrada a liquidação e extinta a sociedade, a existência de bens não partilhados, compete aos liquidatários propor a partilha adicional pelos antigos sócios, reduzindo os bens a dinheiro, se não for acordada unanimemente a partilha em espécie.
2 - As acções para cobrança de créditos da sociedade abrangidos pelo disposto no número anterior podem ser propostas pelos liquidatários, que, para o efeito, são considerados representantes legais da generalidade dos sócios; qualquer destes pode, contudo, propor acção limitada ao seu interesse.
3 - A sentença proferida relativamente à generalidade dos sócios constitui caso julgado para cada um deles e pode ser individualmente executada, na medida dos respectivos interesses.»
Esta norma parece pressupor que houve liquidação e partilha e que essas operações deixaram de fora bens sociais. Todavia, parece poder incluir-se no seu texto, por mera interpretação extensiva, a situação em que não houve sequer liquidação nem partilha por se ter entendido ou declarado, mal, que não havia qualquer activo social. O que releva para efeitos da norma é que haja bens sociais que não foram objecto das operações de liquidação e partilha – porque estas não foram feitas ou foram feitas mas não os incluíram – permanecendo após a extinção da sociedade numa espécie de limbo jurídico.
A norma também não oferece uma definição do conceito de “superveniência” que face à respectiva epígrafe parece ser pressuposto da sua aplicação. Todavia, da sua redacção parece poder concluir-se que a norma tem em mente não apenas o activo que cuja existência só foi conhecida depois da partilha, como o activo que apesar de existir e ser ou dever ser conhecido por qualquer razão não foi abrangido pelas operações de liquidação e partilha. Isso pode suceder designadamente porque o crédito era litigioso e o liquidatário entendeu que era improvável que ele viesse a ser reconhecido judicialmente (pense-se no caso de a sociedade extinta ter pendente um processo contra a Administração Fiscal por causa da liquidação de um imposto relativamente ao qual Administração fez reiteradamente uma interpretação jurídica que só ao fim de anos vem a ser repudiada pelos Tribunais Fiscais). Activo superveniente será assim todo o activo social que posteriormente à liquidação se constata que existia e não foi objecto das operações de liquidação e partilha, independentemente das razões porque isso sucedeu.
Conforme a esse propósito se assinala no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30/05/2017, proc. n.º 593/14.5TBTNV.E1.S1, in www.dgsi.pt, «relativamente ao alcance de “activo superveniente”, o que se prevê e regula no nº 1 do art. 164º do CSC não é mais do que a constatação (verificação), posterior ao encerramento da liquidação e após extinção da sociedade, da existência de bens não partilhados, não se exigindo que tais bens sejam supervenientes, no sentido estrito da sua ocorrência histórica, mas apenas que não hajam sido partilhados (neste sentido, na jurisprudência das Relações, Acórdão da Relação do Porto, de 13 de Setembro de 2007, disponível em http://www.dgsi.pt). Previne-se aqui a repristinação da sociedade: uma vez «desaparecida a sociedade-sujeito, e mantidos vivos os direitos da sociedade (…), só os sócios podem ser os novos titulares desse activo (…)» (Raúl Ventura, Dissolução e Liquidação de Sociedades, 1987, pág. 480)».
Para efeitos de aplicação do regime do artigo 164.º do Código das Sociedades Comerciais é pois irrelevante para o activo não considerado nas operações de liquidação e partilha já estivesse constituído na data em que estas tiveram ou deviam ter tido lugar e mesmo que já se encontrasse reconhecido judicialmente em acção intentada pela sociedade que veio a ser extinta.
No caso, antes de ser extinta, a sociedade comercial instaurou uma acção declarativa de condenação peticionando dos devedores o pagamento do seu crédito. Sabe-se que isso sucedeu depois da aprovação em assembleia geral da deliberação de dissolução, mas não se sabe se a acção foi instaurada antes ou depois da (à data, legalmente necessária) escritura de dissolução da sociedade (não se apurou a data da instauração da acção, constando apenas que isso ocorreu no ano de 2005).
Esse facto é, no entanto, irrelevante, porque por um lado era nessa acção que cabia apurar as eventuais consequências da entrada da sociedade em liquidação e da sua posterior extinção para efeitos de legitimidade judiciária para instaurar a acção ou para prosseguir com ela.
Acresce que nos termos do artigo 162.º do Código das Sociedades Comerciais as acções que se encontrarem pendentes na data em que a sociedade parte nelas é extinta continuam após a extinção da sociedade, a qual se considera substituída pela generalidade dos sócios, representados pelos liquidatários, sem necessidade de a instância se suspender ou de se realizar a habilitação. Por conseguinte, apesar de na pendência da acção declarativa ter sido inscrito no registo comercial o encerramento da liquidação e com isso a sociedade ter sido extinta, a acção podia prosseguir os seus termos e nela ser proferida, como foi, sentença a condenar os devedores a pagar o crédito da sociedade.
Esta norma já não tem aplicação à situação posterior que é aquela com que nos deparamos, isto é, à situação de posteriormente à extinção da sociedade os sócios quererem obter o pagamento desse crédito social, designadamente instaurando a competente execução no caso de possuir título executivo. O objecto da previsão do artigo 162.º são as acções pendentes à data da extinção da sociedade, não as acções que venham a ser instauradas posteriormente, as quais, como é bom de ver, já não podem ser instauradas pela sociedade porque esta não tem mais personalidade jurídica ou judiciária.
A norma que se aplica é o já referido artigo 164.º. Esta norma começa por estabelecer o dever dos liquidatários de propor a partilha adicional do activo social apurado, estabelecendo que a adjudicação dos bens se fará em espécie se houver acordo unânime dos antigos sócios e, na falta deste, em dinheiro após a venda dos bens (redução dos bens a dinheiro).
Este dever podia configurar-se como um pressuposto necessário da aquisição pelos sócios do direito aos bens, leia-se, da transferência da titularidade dos bens para os sócios, sobretudo tendo presente o já referido quanto ao aspecto de o direito dos sócios, antes da concretização da partilha, não ser ainda um direitos sobre os bens mas um direito sobre a sociedade, um direito aos bens exigível da sociedade.
Todavia, porque à ordem jurídica é estranha e anómala a situação de haver direitos ou posições jurídicas sem titular, o n.º 2 da norma preocupa-se especificamente com a cobrança de créditos da sociedade abrangidos pelo disposto no número anterior, isto é, com a situação de o activo superveniente ser um crédito sobre terceiros e haver necessidade de obter o seu reconhecimento ou cobrança por via judicial.
Para o efeito, a norma dispõe que as acções para cobrança (declarativas ou executivas, não distingue) do crédito podem ser propostas pelos liquidatários, que, para o efeito, são considerados representantes legais da generalidade dos sócios, mas também podem ser instauradas por qualquer dos sócios desde que limitadas ao seu interesse.
A norma confere assim aos sócios legitimidade para instaurar a acção; por uma questão de facilidade, poderá ser o liquidatário a propor a acção mas terá nesta a qualidade de mero representante legal dos sócios, pelo que serão eles a verdadeira parte na acção, razão pela qual desde que estejam todos reunidos eles poderão assumir directamente a iniciativa.
Não estando reunidos todos os sócios, mas querendo algum deles instaurar a acção não está impedido de o fazer isoladamente, mas nesse caso o seu pedido estará limitado ao seu interesse, leia-se, à medida da sua quota-parte na distribuição a fazer do crédito superveniente. Naturalmente se um o pode fazer de modo individual, nada impede vários sócios ou todos eles de instaurarem a acção em coligação pela medida que corresponde ao somatório do interesse de cada um.
Ora a execução embargada foi instaurada pelos dois ex-sócios da sociedade extinta, o que vale por dizer que foi instaurada pela totalidade dos ex-sócios, pelo que estes podem reclamar na mesma a totalidade do crédito da sociedade extinta (nesse sentido o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12/12/2013, proc. n.º 1735/11.8TBBRG.G1-A.S1-A, in www.dgsi.pt).
Em conclusão, extinta a sociedade comercial titular de um crédito sobre terceiro, não tendo este crédito sido objecto das operações de liquidação e partilha pelos sócios, depois da extinção da sociedade os ex-sócios podem coligar-se e exigir do devedor a satisfação do crédito na medida da quota-parte do interesse dos sócios coligados. Para o efeito, os ex-sócios dispõem de legitimidade para, instaurarem acções judiciais para cobrança do crédito, independentemente da liquidação e sem prejuízo de isso ser feito pelo liquidatário que actuará no caso como representante legal da globalidade dos sócios.
Improcedem por isso as excepções arguidas pelo embargante com fundamento na falta de legitimidade e/ou de legitimação para instaurar a acção executiva embargada.
B] Da prescrição do direito de crédito ao abrigo do artigo 174.º, n.º 3, do CSC:
O artigo 174.º do Código das Sociedades Comerciais regula os prazos de prescrição de um conjunto diverso de direitos relativos à vida das sociedades comerciais, sejam eles direitos da sociedade, dos sócios ou mesmo de terceiros.
O n.º 3 do preceito, na parte que interessa para o caso, estabelece que prescrevem no prazo de cinco anos, a contar do registo da extinção da sociedade, os direitos de crédito exigíveis pelos antigos sócios contra terceiros, nos termos dos artigos 163.º e 164.º, se, por força de outros preceitos, não prescreverem antes do fim daquele prazo.
Na anotação ao artigo 174.º, Carolina Cunha, in Código das Sociedades Comerciais em Comentário, Coord. Coutinho de Abreu, Almedina, Volume II, 2011, afirma o seguinte a propósito desta disposição:
« O n.º 3 incide sobre o período posterior à extinção da sociedade (operada pelo registo do encerramento da liquidação - cfr. art. 160º, 2) e contempla as situações de “passivo superveniente” (art. 163º) e de “activo superveniente” (art. 164º), ou seja, a prescrição dos direitos de crédito de terceiros contra a sociedade (exercíveis, no termos do art. 163º, contra os antigos sócios, em sua substituição) e dos direitos da sociedade extinta, agora encabeçados nos sócios, contra terceiros. O facto relevante é, previsivelmente, a extinção da sociedade. A norma ressalva, todavia, possibilidade de os direitos em causa, por força de outros regimes (desde logo, das regras gerais do CCiv que lhes sejam aplicáveis), prescreverem ainda antes do final do prazo de cinco anos a que submete seu exercício».
Não parece que se possa entender de modo diferente.
No caso, o direito de crédito que os exequentes se apresentam a exercer através da execução embargada era um activo social, um direito de crédito da sociedade e não um direito dos sócios. Se a sociedade não tivesse sido dissolvida e liquidada só ela podia apresentar-se a reclamar o pagamento desse crédito por ser ela a (única) titular do mesmo. Os sócios apenas podem assumir essa posição porque a sociedade credora foi extinta e o respectivo direito de crédito não foi objecto de liquidação, podendo o seu pagamento ser exigido pelos ex-sócios ao abrigo do disposto no artigo 164.º, n.º 2, parte final, do Código das Sociedades Comerciais. A situação enquadra-se pois claramente na previsão do artigo 174.º, n.º 3, do mesmo diploma, o qual, note-se, refere de modo expresso os direitos de crédito exigíveis – e não titulados, porque se trata ainda de créditos sociais – pelos antigos sócios contra terceiros nos termos do artigo 164.º.
Isso mesmo é afirmado no já citado Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30/05/2017, proc. n.º 593/14.5TBTNV.E1.S1, in www.dgsi.pt, onde se pode ler que «as acções para cobrança de créditos, possibilitadas pelo nº 2 do art. 164º do CSC … estarão sempre sujeitas ao prazo máximo de prescrição de cinco anos, a contar do registo da extinção da sociedade (art. 174º, nº 3 do mesmo código)». Também no igualmente citado Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12/12/2013, proc. n.º 1735/11.8TBBRG.G1-A.S1-A, in www.dgsi.pt, se afirma que «do que estamos a falar quando falamos, portanto, dos direitos de crédito exigíveis por antigos sócios contra terceiros é da cobrança de créditos da sociedade que estejam abrangidos - é este o nº1 do art.164º - na existência de bens não partilhados. Estes créditos, sim, estes créditos em relação aos quais se pode falar de cobrança, esses, prescrevem no prazo de cinco anos
A questão que se pode colocar e que está na origem da decisão recorrida de julgar improcedente a arguição da prescrição é se este prazo de prescrição deixa de se aplicar nos casos a que se refere o artigo 311.º do Código Civil, isto é, quando o crédito da sociedade tiver sido reconhecido por sentença ou outro título executivo.
O artigo 174.º do Código das Sociedades Comerciais prevê um curto prazo de prescrição do direito de crédito. Trata-se de uma previsão legal, ao lado de muitas outras do nosso ordenamento jurídico que fixam prazos curtos de prescrição (v.g. artigos 310º do Código das Sociedades Comerciais, 227º, n.º 2, 482º, 498º, n.º 1, 317º do Código Civil, 337º, n.º 1, do Código do Trabalho, 10º, n.º 1, Lei 23/96, de 26 de Julho), que deixa transparecer a preocupação do legislador de impedir que a discussão sobre determinados direitos de crédito ocorra muito tempo depois de ocorrido o facto constitutivo do direito e/ou a partir do qual ele pode ser exercido pelo credor, antecipando-se assim os efeitos da paz jurídica quer para o credor e o devedor quer para o comércio em geral.
O artigo 311.º do Código Civil exige para a transformação do prazo de prescrição de curto prazo no prazo de prescrição ordinário que haja uma sentença transitada que reconheça o crédito ou outro título executivo. O seu objectivo não é prejudicar a intenção subjacente ao prazo curto de prescrição, é antes a de aceitar que se o direito de crédito já se encontra reconhecido por sentença ou por título executivo os riscos associados à discussão da sua existência são menores e, por outro lado, o devedor já sabe que pode contar com a possibilidade de o credor instaurar execução para a cobrança do crédito pelo que não se justifica mais antecipar a prescrição para antes do prazo comum (ordinário) de prescrição.
Parece, pois, que nada obsta à aplicação do disposto no artigo 311.º do Código Civil também aos prazos de prescrição de curto prazo do artigo 174.º do Código das Sociedades Comerciais, uma vez que o direito civil é direito subsidiário quer do Código das Sociedades Comerciais (artigo 2.º), quer do próprio Código Comercial (artigo 3.º).
Todavia, ao contrário do que foi entendido na decisão recorrida, esta afirmação não resolve a questão por inteiro. Com efeito, importa ter presente de que crédito estamos a falar quando procuramos averiguar se o mesmo se encontra reconhecido por sentença judicial ou outro título executivo.
No caso, dá-se a circunstância de a sociedade comercial, antes de se encontrar extinta, ter instaurado uma acção declarativa de condenação contra os devedores pedindo a condenação destes a pagar o crédito. A sociedade foi depois extinta (em 16/02/2006) e a sentença que condenou o devedor no pagamento apenas foi proferida na acção declarativa depois da extinção da sociedade (em 23/09/2009, tendo transitado em julgado em 09/07/2009).
O crédito que estava a ser peticionado nessa acção e que veio a ser reconhecido pela sentença proferida era o crédito da sociedade e quem estava a peticionar o seu pagamento era a respectiva titular, a sociedade. Nessa altura o crédito não estava sujeito ao prazo do artigo 174.º do Código das Sociedades Comerciais, estava sim subordinado ao prazo de prescrição correspondente à natureza da obrigação geradora do direito de crédito.
A previsão do n.º 3 do artigo 174.º do Código das Sociedades Comerciais o que tem por objecto são os direitos de crédito exigíveis pelos antigos sócios contra terceiros nos termos do artigo 164.º. A prescrição que ele regula não é, pois, a do crédito exigível pela sociedade, leia-se, o crédito social quando o seu pagamento é exigido pela sociedade – o que terá de fazer necessariamente antes da respectiva extinção, isto é, o mais tardar no decurso da sua liquidação, através do liquidatário, antes do seu encerramento –. A prescrição regulada no preceito é a do crédito que era da sociedade mas que ela já não pode exigir por se encontrar extinta e que, por isso, com fundamento no próprio artigo 164.º do Código das Sociedades Comerciais, passou a poder ser exigido directamente pelos ex-sócios na qualidade de últimos beneficiários – em virtude do seu direito ao lucro final ou de liquidação – do pagamento que venha a ser alcançado.
A norma tem a intenção de não permitir aos ex-sócios esperarem muito tempo para reclamarem dos terceiros devedores os créditos da sociedade extinta que não foram cobrados no decurso da respectiva liquidação, impondo um prazo curto de estabilização das relações creditícias criadas pela e/ou com a sociedade extinta. O legislador podia ter optado por manter o prazo de prescrição que originariamente cabia ao direito de crédito da sociedade, permitindo aos ex-sócios exigir o pagamento do crédito enquanto não decorresse esse prazo de prescrição. Todavia, não foi essa a decisão do legislador. Ao invés, ele criou um prazo de prescrição autónomo, específico, próprio, para a situação de o crédito estar a ser exigido pelo ex-sócio após a extinção da sociedade.
Tal como não se pode defender que o prazo do artigo 174.º do Código das Sociedades Comerciais cede quando o prazo de prescrição originário ou natural do crédito social for superior a cinco anos – a norma apenas excepciona de forma expressa os casos em que por força de outra disposição, o prazo é menor, rectius, em que a prescrição ocorre antes dos cinco anos –, também não se pode defender que se o crédito da sociedade já se encontrasse reconhecido por sentença ou outro título executivo os ex-sócios poderiam exigir o seu pagamento para além dos cinco anos, à imagem do que poderia fazer a sociedade se não tivesse sido extinta.
Para que tal sucedesse, aplicando-se então o disposto no artigo 311.º do Código Civil, seria necessário que a acção na qual vem a ser reconhecido o crédito tivesse sido instaurada já pelos ex-sócios depois da extinção da sociedade e a sentença judicial lhes reconhecesse a eles (a possibilidade de exigir) o crédito ou que o outro título executivo tivesse sido obtido também pelos ex-sócios depois dessa extinção (isto é, em resultado de uma situação em que o devedor reconheça ao ex-sócio o direito de crédito). Não foi essa a situação que se verificou nos autos.
Por conseguinte, tendo a sociedade comercial credora sido extinta em 16/02/2006 e tendo os ex-sócios instaurado a acção executiva contra o devedor reclamando para si o pagamento do crédito somente em 20/09/2016, mais de 10 anos depois da extinção da sociedade, o crédito que os mesmos pretendem exigir do terceiro devedor encontrava-se já prescrito, independentemente de saber se o estaria no caso de a sociedade não ter sido extinta e ser ela a exigir o pagamento.
Procede assim o recurso no tocante à excepção da prescrição que deverá ser julgada verificada.
V. Dispositivo:
Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação em julgar o recurso procedente e, em consequência, revogam a sentença recorrida, julgando o crédito exequendo prescrito e determinando em consequência a extinção da execução no tocante ao embargante/recorrente.
Custas dos embargos e do recurso pelos embargados/recorridos, os quais vão condenados a pagar ao embargante/recorrente as respectivas custas de parte e eventuais encargos.
*
Porto, 2 de Abril de 2020.
*
Aristides Rodrigues de Almeida (R.to 549)
Francisca Mota Vieira
Paulo Dias da Silva
[a presente peça processual foi produzida com o uso de meios informáticos e tem assinaturas electrónicas]