Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
3584/19.6T8MTS.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: PAULA LEAL CARVALHO
Descritores: AÇÃO EMERGENTE DE ACIDENTE DE TRABALHO
NEXO CAUSAL ENTRE O ACIDENTE E AS LESÕES
DISCORDÂNCIA
INÍCIO DA FASE CONTENCIOSA
TRAMITAÇÃO PROCESSUAL
Nº do Documento: RP202111153584/19.6T8MTS.P1
Data do Acordão: 11/15/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: RECURSO IMPROCEDENTE; CONFIRMADA A DECISÃO.
Indicações Eventuais: SOCIAL (4.ª SECÇÃO)
Área Temática: .
Sumário: I - A questão da discordância quanto à natureza da incapacidade (temporária ou permanente), dos respectivos coeficientes de desvalorização e da data da alta clínica insere-se no âmbito da própria questão da discordância relativa à fixação da incapacidade a que se reportam os arts. 117º, nº 1, al. b) e 138º, nº 2, do CPT, pelo que, se estiverem em causa, apenas, essas questões o início da fase contenciosa deve ter lugar, nos termos do citado art. 117º, nº 1, al. b), por requerimento para exame por junta médica.
II - Mas se estiver em causa qualquer outra questão, designadamente a do nexo causal entre o acidente e as lesões e/ou sequelas que o sinistrado apresente, já tal questão extravasa o âmbito da mera discordância relativamente à incapacidade (fixação da sua natureza, grau e data da consolidação médico-legal), não podendo ser apreciada no âmbito da tramitação simplificada prevista nos citados arts. 117º, nº 1, al. b) e 138º, nº 2, antes devendo sê-lo por via da apresentação de petição inicial [arts. 117º, nº 1, al. a) e 138º, nº 1] e subsequente tramitação processual prevista no CPT [citação, contestação, despacho saneador, julgamento].
III - No caso, pelas razões referidas no acórdão, está ou poderá estar em causa o nexo de causalidade entre o acidente e eventuais lesões e/ou sequelas que o A. apresente, pelo que a tramitação adequada é a prevista nos arts. 117º, nº 1, al. a), e 138º, nº 1, do CPT, isto é, através da apresentação de petição inicial, com a subsequente e necessária tramitação legal.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Procº nº 3584/19.6T8MTS.P1
Relator: Paula Leal de Carvalho (Reg. nº 1132)
Adjuntos: Des. Rui Penha
Des. Jerónimo Freitas


Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação do Porto:


I. Relatório

Na presente acção declarativa de condenação, com processo especial emergente de acidente de trabalho, participado acidente de trabalho de que terá sido vítima o A. B…, com mandatário judicial constituído e litigando com o benefício de apoio judiciário na modalidade de dispensa de pagamento de taxa de justiça e demais encargos do processo, e Ré, C…, S.A, teve lugar, na fase conciliatória do processo, exame médico singular e tentativa de conciliação, que se frustrou nos termos constantes do respectivo auto de (não) conciliação, na sequência do que o A. requereu, ao abrigo dos arts. 117º, nº 1, al. b), e 138º, nº 2, al. b), do CPT, exame por junta médica, tendo formulado quesitos, e aduzindo ainda considerações relativas à profissão que exerce, concluindo que “não está em condições para exercer com a necessária segurança as difíceis e arriscadas condições em que é chamado a exercer a sua profissão diariamente” e que “Em face do supra exposto, o sinistrado REQUER aquilo que em nosso modesto entender, será a mais elementar diligência probatória: a realização de um inquérito profissional.”
Foi então proferida a seguinte decisão, que se transcreve por se tratar da decisão recorrida:
“Compulsados os autos verifica-se que na tentativa de conciliação, conforme resulta de fls. 252/253, as partes não se conciliaram por nenhuma aceitar o grau de desvalorização, os períodos de incapacidade temporária fixados pelo I.M.L. na sequência do exame médico e ainda por o sinistrado não aceitar a data da alta.
Frustrada a conciliação, veio o sinistrado requerer a realização de exame por junta médica nos termos do art. 138º, nº 2 do C.P.T.
Ora, nos termos do art. 117º, nº 1 al. b) do C.P.T. a fase contenciosa do processo de acidente de trabalho inicia-se através do requerimento de junta médica e não através de petição inicial, quando apenas esteja em causa a fixação da incapacidade para o trabalho, prosseguindo o processo apenas para esse efeito. É, de resto, o que resulta também do teor do art. 138º, nº 2 do mesmo Código, ao determinar que se na tentativa de conciliação apenas tiver havido discordância quanto à questão da incapacidade, o pedido de junta médica a que se refere o nº 1 do mesmo preceito legal é deduzido em requerimento a apresentar no prazo do art. 119º, nº 1 do C.P.T.
No caso dos autos, discutindo-se embora a questão da incapacidade, há outras questões de facto controvertidas, como a data da alta e os períodos de incapacidades temporárias, pelo que não estão verificados os pressupostos do art. 138º, nº 2 do C.P.T.
De resto, o Ministério Público no auto de não conciliação exarou despacho mandando aguardar os autos nos termos e para os efeitos do disposto pelo art. 119º do C.P.T., pelo que, certamente só por lapso, foi apresentado requerimento pelo sinistrado com vista ao prosseguimento dos autos ao abrigo do disposto pelos arts. 117º, nº 1, al. b) e 138º, nº 2 do Código de Processo do Trabalho.
Assim, entendendo que nos presentes autos não se encontram reunidos os requisitos de aplicação dos arts. 117º, nº 1, al. b) 138º, nº 2 do C.P.T., mas antes os do art. 119º do mesmo Código, decide-se indeferir o requerido pelo sinistrado.
Custas do incidente anómalo pelo sinistrado, com 1 UC de taxa de justiça, sem prejuízo do apoio judiciário com que litiga (fls. 31/32).
Notifique.
*
Por outro lado, nos termos do art. 119º, nº 4 do C.P.T., declaro suspensa a instância.
Notifique.”.

Inconformado, veio o A. recorrer, tendo formulado as seguintes conclusões:
“1. Nos termos do disposto no nº 2 do artigo 138º do CPT, quando a discordância das partes se limite à ”questão da incapacidade”, a fase contenciosa inicia-se mediante Requerimento para a realização de junta médica.
2. É de concluir que a discordância das partes se limita à questão da incapacidade, quando em causa apenas está o apuramento da incapacidade, a data da alta e os períodos relativos às incapacidades temporárias, tudo aspectos que não demandam a realização de outras diligências de prova que não sejam uma perícia.
3. Não tendo entendido assim, o despacho recorrido violou aquele nº 2 do artigo 138º do CPC.
NESTES TERMOS e nos melhores de Direito que sempre resultarão do douto suprimento de V.as Exas, deverá ser revogado o despacho recorrido, e substituído por outro que determine a realização da junta médica, seguindo-se os demais termos até final, (…)”

Não foram apresentadas contra-alegações.

Aberta vista ao Exmº Sr. Procurador-Geral Adjunto entendeu o mesmo, pelas razões que invoca, não ser de emitir parecer.

Na sequência de despacho da ora relatora, baixados os autos à 1ª instância, foi à acção fixado o valor de €5 851,73.

Colheram-se os vistos legais.
***
II. Matéria de facto assente

1. Tem-se como assente o que consta do relatório precedente e, bem assim, o seguinte, que se encontra documentalmente provado:

2. Do boletim de exame e alta emitido pelos serviços clínicos da Ré e junto aos 17.10.2019 e a 05.11.2019, consta, sob a epígrafe, “diagnóstico definitivo”, o seguinte:
“9240 Contusão de Anca e Coxa”
“7231 Cervicalgia”
E, bem assim, “curado sem desvalorização”.

3. Do exame médico singular, realizado na fase conciliatória do processo, consta, para além do mais, o seguinte:
“(…)
A. QUEIXAS
Nesta data, o(a) examinando(a) refere as queixas que a seguir se descrevem:
1. A nível funcional, (…)refere:
Postura, deslocamentos e transferências: dificuldade em caminhar mais do que algumas centenas de metros, em iniciar a marcha, agachar-se, ajoelhar-se, correr e saltar; Manipulação e preensão: limitação funcional dos membros superiores, de predomínio direito;
(…)
Cognição e afetividade: dificuldade em viajar de automóvel quando conduzido pela mesma pessoa com quem sofreu o acidente; não tem receio de conduzir o seu automóvel afirma não ter vitalidade e sentir falta de energia, após ter sofrido este acidente; (…)
Fenómenos dolorosos: dor na região posterior do pescoço, em ambos os joelhos (de predomínio esquerdo), na anca direita e nos ombros (de predomínio direito) que irradia pelos membros superiores até à face anterior do cotovelo e do antebraço, despoletada pelos esforços e movimentos destes segmentos afirma tomar Ben-u-ron em SOS, como analgésico;
(…)
2. A nível situacional, compreendendo este nível a dificuldade ou impossibilidade de uma pessoa efetuar certos gestos necessários à sua participação na vida em sociedade, em consequência das sequelas orgânicas e funcionais e de fatores pessoais e do meio, refere:
Atos da vida diária: dificuldade em caminhar mais do que algumas centenas de metros, em iniciar a marcha, agachar-se, ajoelhar-se e subir dessas posições, correr e saltar;
(…)
Vida profissional ou de formação: actualmente não estará a trabalhar dificuldade em trabalhar agachado e ajoelhado (colocar fita para proteger rodapés e em pintar rodapés) dificuldade em proteger o chão com cartão dificuldade em pintar paredes altas e tectos dificuldade em carregar material pesado: sacos de cimento, pranchas (incluindo montar e desmontar as mesmas), etc.
B. EXAME OBJECTIVO
1. Estado geral
O(a) Examinando(a) apresenta-se: consciente, orientado(a), colaborante, com bom estado geral, idade aparente de harmonia com a idade real
O(a) Examinando(a) é dextro(a) e apresenta marcha normal, sem apoio nem claudicação
2. Lesões e/ou sequelas relacionáveis com o evento
O(A) examinando(a) apresenta as seguintes sequelas :
-Ráquis: mobilidade da coluna cervical conservada e dolorosa na flexão anterior sem contracturas ou atrofias evidentes reflexos osteotendinosos dos membros superiores presentes e simétricos força muscular conservada
Tórax: sem assimetrias ou deformidades visíveis tórax simétrico e expansível dor e discreta proeminência palpável na região do terço médio do esterno
- Abdómen: sem alterações
- Períneo: sem alterações - Membros superiores: mobilidades dos ombros conservada; bilateramente eleva os membros acima dos 90º, leva a mão à nuca, ao ombro oposto, à região lombar e acima da cabeça sem atrofias relevantes (perímetro do braço e antebraço direitos superiores em 1 cm
- Membros inferiores: dor à mobilização de ambos os joelhos, sem sinais inflamatórios sem atrofia das coxas ou da pernas quando comparadas com as contralaterais sem rigidez ou instabilidade dos joelhos mobilidade dos tornozelos e das ancas preservada
3. Lesões e/ou sequelas sem relação com o evento
O(A) examinando(a) apresenta as seguintes sequelas :
Membro inferior direito: sequelas de fractura da perna
(…)
DISCUSSÃO
1. (…)
2. A data da consolidação médico-legal das lesões é fixável em 08-11-2018, tendo em conta os seguintes aspetos: a data da alta clínica, o tipo de lesões resultantes e o tipo de tratamentos efectuados
3. No âmbito do período de danos temporários são valorizáveis, entre os diversos parâmetros do dano, os seguintes:
Incapacidade temporária absoluta (correspondente ao período durante o qual a vítima esteve totalmente impedida de realizar a sua actividade profissional), desde 19-06-2018 até 19-08-2018, desde 02-10-2018 até 22-10-2018, fixável num período total de 83 dias
Incapacidade temporária parcial (correspondente ao período durante o qual foi possível à vítima desenvolver a sua actividade profissional, ainda que com certas limitações), desde 20-08-2018 até 01-10-2018 (30 %), desde 23-10-2018 até 08-11-2018 (30 %), fixável num período total de 60 dias
4. A incapacidade permanente parcial resultante de acidente(s) anterior(es) é de 0. .
A incapacidade permanente parcial resultante do acidente atual, tendo em conta as sequelas atrás descritas e a consulta da Tabela Nacional de Incapacidades para Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais (Anexo I, Dec. Lei nº 352/07 de 23 de Outubro), é de 4,5000%. A taxa atribuída tem em conta o(s) artigo(s) da Tabela referido(s) no quadro abaixo indicado e a bonificação pelo factor 1,5 pela idade da vítima à data da consolidação (maior ou igual a cinquenta anos)
5. Relativamente às alterações que o Examinando refere como estando associadas ao acidente dos autos, apenas é possível estabelecer relação das queixas a nível do esterno com o mecanismo do acidente e as lesões descritas na consequência do mesmo.
Também não é possível excluir causa externa a este acidente (nomeadamente a existência de outro evento traumático) responsável por outras lesões e pelas restantes queixas/sequelas apresentadas pelo Examinando.”

4. No referido exame, o Sr. Perito médico enquadrou as lesões no Cap. I.2.2.b) da TNI, tendo atribuído o coeficiente de desvalorização de 0,03 e, fruto da aplicação do factor de bonificação de 1,5, a IPP de 4,5%, dele constando ainda como data da consolidação médico-legal das lesões a de 08.11.2018.

5. Realizada, na referida fase conciliatória, a tentativa de conciliação, veio a mesma a frustrar-se, constando do respectivo auto o seguinte:
“(…)
Pelo sinistrado foi dito que: no dia 18-06-2018, pelas 14:55 horas, na Póvoa de Varzim, quando trabalhava sob as ordens, direcção e instrução de «D…, Lda», com sede em Vila do Conde, exercendo as funções de pintor de construção civil, sofreu um acidente de trabalho que consistiu em: ter sofrido um acidente de viação quando circulava como passageiro na viatura da sua entidade patronal, tendo sofrido traumatismo da região esternal, ombro direito e joelho esquerdo. Do acidente resultaram as lesões constantes do(s) auto(s) de exame médico constante dos presentes autos.
Auferia à data do acidente a remuneração de €580,00x 14 meses+€5,81x22x11( total anual de €9.526,02).
A Entidade Empregadora tinha a sua responsabilidade transferida para a seguradora supra identificada através da apólice n.º ../……..
O sinistrado não aceita o resultado do exame médico realizado pelo INML no qual foi atribuída ao sinistrado a IPP de 4,5%, com fator de bonificação.
O sinistrado também não aceita a data da alta fixada pelo INML em 08-11-2018 assim
como não aceita os períodos de incapacidades temporárias atribuídos no mesmo relatório – ITA 83 dias e ITP 60 dias-.
O sinistrado reclama o pagamento da pensão anual e obrigatoriamente remível decorrente da IPP que vier a ser fixada em exame por junta médica.
Reclama ainda da seguradora o pagamento da quantia de €60,00, a título de despesas de deslocação a tribunal.
Reclama ainda os juros de mora sobre as quantias supra referidas.
Pelo representante da seguradora foi dito que: reconhece o acidente supra descrito como de trabalho, o nexo de causalidade entre as lesões descritas no auto de exame médico que aqui se dá por reproduzido para todos os efeitos legais, as lesões e as sequelas que sofreu e o acidente, a transferência da responsabilidade por acidentes de trabalho através da apólice n.º../……, pelo vencimento anual reclamado pelo sinistrado no valor de €657,31x 14 meses, acrescido de subsídio de refeição no valor de € €580,00x 14 meses+€5,81x22x11( total anual de €9.526,02).
Aceita a data da alta (8-11-2018), mas não aceita o resultado do Exame Médico efectuado no INML que atribuiu ao sinistrado a IPP de 4,5% com fator de bonificação, nem as sequelas nele descritas, porquanto só aceita as lesões e sequelas constantes do seu boletim clinico.
Não aceita também os períodos de incapacidade temporária fixado no exame realizado pelo INML, aceitando apenas os constantes dos seus boletins clínicos presentes nos autos do processo.
Só aceita pagar ao sinistrado a quantia de € 60,00 de despesas de transportes caso venha a ser fixada alguma I.P.P. ou venham a ser reconhecidos os períodos de IT´s fixados pelo INML.
Seguidamente, pelo Digno Procurador da República foi proferido o seguinte despacho:
Fiquem os autos aguardar nos termos e para os efeitos do disposto no artº 119º do CPT.
Do despacho supra foram os presentes notificados, declarando ficar cientes.”

6. No requerimento para exame por junta médica, o A., para além de outros, formulou os seguintes quesitos:
“i. Como consequência das lesões sofridas no acidente, o sinistrado apresenta, atualmente, perda de força e formigueiro nos membros superiores e inferiores?
j. Como consequência das lesões sofridas no acidente, o sinistrado apresenta, atualmente, dores no ombro direito e joelho esquerdo que o incapacitam?
k. Como consequência das lesões sofridas no acidente, o sinistrado apresenta, atualmente, dificuldade na sua locomoção?”
***
III. Do Direito

1. O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas pelo recorrente, não sendo lícito ao tribunal ad quem conhecer de matérias nelas não incluídas, salvo porém as matérias que sejam de conhecimento oficioso, (arts. 635, nº 4, e 639º, nº 1, do CPC aprovado pela Lei 41/2013, de 26.06, aplicável ex vi do art. 1º, nº 2, al. a), do CPT aprovado pelo DL 295/2009, de 13.10, alterado, designadamente, pela Lei 107/2019).
Assim, a única questão a decidir consiste em saber se a fase contenciosa deve prosseguir nos termos da tramitação simplificada prevista nos arts. 117º, nº 1, al. b) e e 138º, nº 2, do CPT [isto é, com apresentação apenas de requerimento para exame por junta médica e realização da mesma], como entende o Recorrente ou nos termos da tramitação a que se reportam os arts. 117º, nº 1, al. b), e 126º, nº 1, e segs. do CPT [isto é, com a presentação da petição inicial e subsequente tramitação prevista no citado Código], como defendido na decisão recorrida.
Apreciemos.

2. Um dos requisitos indispensáveis à caracterização de um acidente como acidente de trabalho é que dele resultem lesões que sejam determinantes de incapacidade para o trabalho (seja esta temporária ou permanente) – art. 8º, nº 1, da Lei 98/2009, de 04.09 (a aplicável ao caso dada a data do em apreço acidente).
Ou seja, é necessário que o sinistrado apresente uma lesão e que esta seja consequência do acidente, este o nexo de causalidade, o qual pode, todavia, decompor-se ou apresentar vários subnexos. Assim é que do acidente pode decorrer uma lesão e esta, por sua vez, pode determinar uma outra lesão ou sequela, caso em que, tudo, está abrangido pelo referido nexo causal entre o acidente e as lesões dele decorrentes; ou, dito de outro modo, necessário é que a lesão e as eventuais sequelas que o sinistrado apresente estejam, em relação ao acidente, numa relação de causa-efeito, de tal modo que a eventual sequela seja determinada pela lesão sofrida no acidente [e, isso, sem prejuízo do disposto no art. 11º, nº 2, da mesma].
A existência de lesão(ões) e/ou sequelas determinadas pelo acidente [e/ou do agravamento a que se reporta o citado art. 11º, nº 2] é pois essencial ao conceito de acidente de trabalho, assim como é essencial que ela(s) se encontre(m) devidamente concretizada(s)/identificada(s).
Perante a eventual existência de uma lesão e/ou sequela e do seu nexo causal com o acidente, é, pois, necessário, que a decisão da matéria de facto que venha a ser proferida se pronuncie sobre tais questões, no sentido de dar como provada, ou como não provada, a existência da lesão, da sequela e/ou do agravamento (caso existam) e, em caso afirmativo, dar como provado, ou não provado, o respectivo nexo causal. E tal é necessário não apenas tendo em vista a definição da situação clínica do sinistrado ab initio, mas também porque, para o futuro, tal poderá mostrar-se de relevância fundamental, sendo certo que a situação clínica do sinistrado poderá evoluir (favorável ou desfavoravelmente) e, assim, determinar a necessidade da sua revisão. Ora, para o efeito, indispensável é que as lesões e eventuais sequelas decorrentes de um acidente de trabalho, existindo, sejam ab initio concretizadas e definidas, assim como o respectivo nexo causal.
Ainda nos termos da Lei 98/2009, referem: o art. 19º, no que toca à natureza da incapacidade, que ela pode ser temporária (parcial ou absoluta) ou permanente (que pode ser parcial, absoluta para o trabalho habitual ou absoluta para todo e qualquer trabalho); o art. 20º, que a determinação da incapacidade é efectuada de acordo com a TNI; o art 21º, sobre o modo de avaliação e graduação da incapacidade, dispondo ainda o nº 4 que, estando em causa situação de IPATH o tribunal possa solicitar pareceres especializados.

3. Do ponto de vista processual à efectivação judicial da reparação devida por acidente de trabalho corresponde uma acção própria, com uma forma de processo especial, prevista no CPT, qual seja a constante dos seus arts. 99º e segs. Tal processo é composto por duas fases: uma, primeira, designada por fase conciliatória, na qual avultam a realização de exame médico singular, a realizar por perito médico do Tribunal (ou do Instituto de Medicina Legal), com vista à determinação das lesões e sequelas e à avaliação da correspondente incapacidade, seguida de tentativa de conciliação, na qual as partes se pronunciam sobre todas as questões relevantes à determinação da reparação devida (art. 109º).
Obtido acordo, será o mesmo homologado (arts. 109º, 111º e 114º).
Caso contrário, das duas, uma: (a) ou as partes, na tentativa de conciliação, acordaram sobre todos os aspectos relevantes, incluindo o nexo de causalidade entre o acidente e as lesões, apenas discordando quanto à incapacidade; (b) ou a razão da discórdia tem por objecto qualquer outra questão que não, apenas, a da incapacidade.
Em ambas as situações, inicia-se então uma fase contenciosa, com diferente tramitação consoante se esteja perante a situação referida em a) ou b).
Na hipótese referida em a), ela tem início com requerimento solicitando exame por junta médica (arts. 117, nº 1, al. b) e 138º, nº 2), a ele se procedendo (no processo principal), nos termos do art. 139º, após o que será proferida decisão, de harmonia com o art. 140º, nº 1.
Na hipótese referida em b), tal fase tem início com uma petição inicial (art. 117º, nº 1), seguindo-se os demais articulados previstos. Se, para além das demais questões, estiver em causa também a discordância da incapacidade, deverão as partes, nos articulados, requerer o exame por junta médica. Proferido despacho saneador e seleccionada a matéria de facto, se estiver também em causa a fixação da incapacidade, deverá o juiz determinar a abertura de apenso para o efeito, no qual se decidirá da questão da fixação da incapacidade, fixando-se a natureza e grau de desvalorização, mas podendo a decisão ser impugnada no recurso a interpor da decisão final (arts. 126º, nº 1, 132º, nº 1 e 140º, nº 2). Todas as demais questões são decididas no processo principal, após a legal tramitação, que inclui audiência de discussão e julgamento.

4. A fixação da incapacidade a que se reportam os citados arts. 117º, nº 1, al. b) e 138º, nº 2, do CPT, a levar a cabo por junta médica, abrange não apenas a fixação do coeficiente de desvalorização, mas também a determinação da natureza da incapacidade – se temporária ou definitiva – e, por consequência, quanto à temporária, a fixação dos correspondentes coeficientes de desvalorização por reporte aos respectivos períodos de incapacidade e, quanto à permanente, o correspondente grau de desvalorização por reporte ao momento a partir da qual a mesma se verifica, momento esse que corresponde à data da alta clínica, como tal se entendendo “a situação em que a lesão desapareceu totalmente ou se apresenta como insuscetível de modificação com terapêutica adequada” (art. 35º, nº 3, da Lei 98/2009).
Deste modo, a questão da discordância quanto à natureza da incapacidade (temporária ou permanente) e da data da alta clínica não só está intimamente relacionada, como se insere no âmbito da própria questão da discordância relativa à fixação da incapacidade a que se reportam os citados preceitos. Passando a fixação da incapacidade, como passa, pela determinação da sua natureza - se temporária ou permanente-, tal pressupõe necessariamente um juízo sobre tal questão e sobre a data da alta definitiva, rectius, da consolidação médico legal das lesões, do sinistrado. Ao fixar a incapacidade há, em relação a cada momento a que essa fixação se reporta, que formular o juízo sobre se o sinistrado se encontra ou não curado clinicamente, pois que, ao fixá-la, há que dizer se a incapacidade é temporária ou permanente. Para além de que a data da alta clínica é uma questão de natureza exclusivamente médica, sobre a qual aliás se deve pronunciar o perito médico singular (no exame médico que leva a cabo na fase conciliatória do processo) e, em caso de discordância, a junta médica (a ter lugar na fase contenciosa).
E daí que, se estiver em causa a discordância das partes relativamente à data da alta clínica (e, por consequência, também quanto aos períodos de incapacidade temporária), se nos afigure que o início da fase contenciosa deva ter lugar, nos termos dos arts. 117º, nº 1, al. b), e 138º, nº 2, do CPT, por requerimento para exame por junta médica, a apresentar no prazo de 20 dias, devendo essa questão ser discutida nos termos do processado correspondente (e não por petição inicial, com o processado próprio desta forma), no âmbito do qual, diga-se, são também admitidas diligências tendentes ao esclarecimento da questão, designadamente requisição a qualquer organismo dos elementos clínicos relativos ao sinistrado, junção e/ou requisição de pareceres médicos especializados e/ou de meios auxiliares de diagnóstico, para além de que tem o sinistrado o direito de apresentar na junta médica o seu perito.
Nesse sentido se pronuncia, designadamente, o Acórdão da Relação de Coimbra de 28.09.2006, in Colectânea de Jurisprudência, 2006, T II, pág. 52 a 54, de cujo sumário consta o seguinte: “1. A “questão da incapacidade” é complexa e pode envolver, para além da controvérsia relativamente à natureza e ao grau da incapacidade permanente, a determinação das lesões e do início dessa incapacidade (data da alta clínica), bem como ainda a fixação das incapacidades temporárias, no que toca à sua duração e respectivos graus de desvalorização. II. Se uma seguradora não aceita conciliar-se com o sinistrado na tentativa de conciliação apenas porque discorda dum ou mais dos referidos pontos relativos à “questão da incapacidade”, termina a fase conciliatória do processo, pelo que deve apresentar, no prazo legal, requerimento a solicitar exame por junta médica, assim dando início à sua fase contenciosa. III. (…)”. E, assim também, o Acórdão da Relação de Évora, de 16.04.2015, in Colectânea de Jurisprudência, 2015, T II, pág. 264 a 267, de cujo sumário consta que: “I. a fase contenciosa do processo emergente de acidente de trabalho pode ter por base a apresentação de uma petição inicial ou de um requerimento de junta médica, devendo ter sido este último o formulado pela entidade responsável, face à posição por si assumida na Tentativa de Conciliação, no sentido de apenas discordar com o período de ITA atribuído pelo perito médico-legal ao sinistrado e com a IPA por ele igualmente fixada. (…)”.

5. Mas se estiver em causa qualquer outra questão, designadamente a do nexo causal entre o acidente e as lesões e/ou sequelas que o sinistrado apresente, já tal questão não poderá ser apreciada no âmbito da tramitação simplificada prevista nos citados arts. 117º, nº 1, al. b) e 138º, nº 2, antes devendo sê-lo por via da apresentação de petição inicial [arts. 117º, nº 1, al. a) e 138º, nº 1] e subsequente tramitação processual prevista no CPT [citação, contestação, despacho saneador, julgamento].
Com efeito, no que, concretamente, se refere ao nexo de causalidade entre o acidente e as lesões e/ou sequelas, consubstancia ela questão que extravasa a da mera discordância relativamente à incapacidade (fixação da sua natureza, grau e data da consolidação médico-legal) a atribuir, sendo que não compete à junta médica a apreciação do referido nexo causal. Poder-se-á, como elemento adjuvante do tribunal, mas sem prejuízo das demais provas a produzir em sede de audiência de discussão e julgamento, aceitar que o tribunal solicite à junta médica que, face aos conhecimentos médicos de que dispõem, se pronunciem sobre tal matéria, mas nunca poderá, a simples realização da junta médica, suprir a necessidade da fase contenciosa a que se reporta o art. 117º, nº 1, al. a), e respectiva tramitação.

6. Revertendo ao caso em apreço, entendeu-se na decisão recorrida que, discutindo-se embora a questão da incapacidade, existiam outras “questões de facto controvertidas, como a data da alta e os períodos de incapacidades temporárias, pelo que não estão verificados os pressupostos do art. 138º, nº 2 do C.P.T.”.
Decorre do que se disse no ponto anterior que entendemos que a controvérsia sobre a data da alta e dos períodos de incapacidade temporária se encontram abrangidos na questão da fixação da incapacidade, a tramitar nos termos do art. 117º, nº 1, al. b).
Não obstante, tanto mais tendo em conta os quesitos i), j) e k) do requerimento de exame por junta médica formulado pelo A./Recorrente, o que se nos afigura é que, para além da data da alta e da fixação dos períodos de incapacidade temporária [e da incapacidade permanente e respectivos coeficientes de desvalorização], poderá também estar em causa questão relativa ao nexo de causalidade entre o acidente e eventuais lesões e/ou sequelas.
Com efeito, e pese embora na tentativa de conciliação o A. haja declarado que “do acidente resultaram as lesões constantes do auto de exame médico”, não resulta, todavia e pelo menos com a necessária segurança, o reconhecimento pelo A. de que do acidente apenas terão resultado as lesões consideradas pelo perito médico como consequência do mesmo e não já outras lesões/sequelas.
Na verdade, do auto de tentativa de conciliação resulta também que o A. não aceitou o resultado do exame médico realizado pelo INML que lhe atribuiu a IPP de 4,5%, nele não sendo referidas as razões dessa discordância, designadamente que ela se cinja ao enquadramento das lesões/sequelas tidas em conta em tal exame e/ou ao concreto coeficiente de desvalorização e não a eventuais outras lesões e/ou sequelas, tanto mais tendo em conta que no auto de exame médico singular se relataram queixas do sinistrado, designadamente ao nível da mobilidade e fenómenos dolorosos dos joelhos, que apresenta sequelas de fractura da perna não relacionáveis com o acidente e, no ponto 5 da “Discussão” se refere que “5. Relativamente às alterações que o Examinando refere como estando associadas ao acidente dos autos, apenas é possível estabelecer relação das queixas a nível do esterno com o mecanismo do acidente e as lesões descritas na consequência do mesmo. Também não é possível excluir causa externa a este acidente (nomeadamente a existência de outro evento traumático) responsável por outras lesões e pelas restantes queixas/sequelas apresentadas pelo Examinando.”.
Ou seja, existem queixas e sequelas que o sinistrado alegou apresentar e/ou que apresentará, mas cujo nexo de causalidade com o acidente foi excluído em tal exame. E, por outro lado, decorre dos quesitos formulados pelo A. no requerimento para exame por junta médica, designadamente dos quesitos i), j) e k) [“i. Como consequência das lesões sofridas no acidente, o sinistrado apresenta, atualmente, perda de força e formigueiro nos membros superiores e inferiores? j. Como consequência das lesões sofridas no acidente, o sinistrado apresenta, atualmente, dores no ombro direito e joelho esquerdo que o incapacitam? k. Como consequência das lesões sofridas no acidente, o sinistrado apresenta, atualmente, dificuldade na sua locomoção?], que o mesmo alude a sequelas ao nível do membro inferior e de locomoção, cujo nexo de causalidade foi afastado no exame médico singular. Ora, se pretende discutir a existência de tais lesões e o seu nexo causal com o acidente como, ao que decorre dos quesitos que formulou, parece pretender, então deverá fazê-lo por via da apresentação de petição inicial e não de simples requerimento para exame por junta médica.
Acresce que, na referida tentativa de conciliação, a Ré Seguradora não só não aceitou a incapacidade atribuída, como também não aceitou as sequelas descritas no auto de exame médico, referindo que “só aceita as lesões e sequelas constantes do seu boletim clinico”, sendo que, do Boletim de Exame e Alta apenas consta “contusão de anca e coxa” e “cervicalgia” e, bem assim, que o A. se encontra curado sem desvalorização.
Importa também dizer que se, porventura, no decurso da acção se viesse a constatar que, afinal, apenas estará em causa a determinação da natureza da incapacidade, a fixação dos seus coeficientes de desvalorização e a data da alta definitiva, nada impediria, então, o aproveitamento dos requerimentos de exame por junta médica que venham a ser apresentados (com os articulados) e, daí em diante, a adaptação da tramitação processual em consonância com a forma de processo adequada.
Ou seja e concluindo, tendo em conta que, face ao referido (tanto mais, na perspectiva do Recorrente face aos quesitos que formulou), estará ou poderá estar em causa o nexo de causalidade entre o acidente e eventuais lesões e/ou sequelas que o A. apresente, a tramitação adequada é a prevista nos arts. 117º, nº 1, al. a), e 138º, nº 1, do CPT, isto é, a apresentação de petição inicial, com a subsequente e necessária tramitação legal.
E, assim sendo, é de confirmar a decisão recorrida, embora por fundamento diverso.
***
IV. Decisão

Em face do exposto, acorda-se em negar provimento ao recurso, confirmando-se a decisão recorrida, embora por fundamento diverso.

Custas pela Recorrente, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia.

Porto, 15.11.2021
Paula Leal Carvalho
Rui Penha
Jerónimo Freitas