Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2709/21.6T8VNG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: RUI PENHA
Descritores: ERRO NA APRECIAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
IMPUGNAÇÃO "EM BLOCO"
CATEGORIA PROFISSIONAL
ASSÉDIO MORAL
RESOLUÇÃO DO CONTRATO DE TRABALHO
PENDÊNCIA DE PROCESSO DISCIPLINAR
Nº do Documento: RP202306052709/21.6T8VNG.P1
Data do Acordão: 06/05/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: RECURSO IMPROCEDENTE; CONFIRMADA A SENTENÇA
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO (SOCIAL)
Área Temática: .
Sumário: I - O eventual erro na apreciação da matéria de facto deve ser conhecido nos termos do art. 662º do CPC, nomeadamente do seu nº 2, al. c), e não como nulidade da sentença.
II - A impugnação da matéria de facto “em bloco” viola o disposto no artigo 640.º do CPC, excepto se estiver em causa um pequeno número de factos ligados entre si e um número reduzido de meios de prova.
III - É lícito às partes remeter para determinada convenção coletiva de trabalho a regulação da sua relação contratual.
IV - A categoria profissional tem a tripla função de definição do posicionamento hierárquico, funcional e salarial do trabalhador, de tal sorte que este deverá exercer as funções correspondentes à categoria profissional para que foi contratado, que lhe foi atribuída ou a que haja ascendido.
V - A apreciação das situações de alegado assédio moral impõem o uso da cautela necessária na apreciação do concreto circunstancialismo de cada caso, sendo certo que nem todas as situações de exercício arbitrário do poder de direção se reconduzem a tal figura.
VI - Um processo disciplinar com vista ao despedimento do trabalhador não obsta a que este possa resolver o contrato com justa causa, na pendência daquele processo, se a entidade patronal deixou de lhe pagar salários.
VII - Não é abusivo o exercício do direito de resolução do contrato de trabalho, com fundamento na falta de pagamento de salários, ainda que na pendência de processo disciplinar para despedimento do trabalhador.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 2709/21.6T8VNG.P1

Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação do Porto

I. Relatório
AA, residente na Praceta ..., ..., 5º Dto. Frente, Vila Nova de Gaia, patrocinado por mandatário judicial, veio intentar a presente acção declarativa de condenação, com processo comum, contra A..., Lda., com sede na Rua ..., ..., Porto.
Formula os seguintes pedidos:
1. Que a ré seja condenada a pagar ao autor os créditos supraditos, quais ascendem a €69.528,72 (sessenta e nove mil quinhentos e vinte e oito euros e setenta e dois cêntimos), consequentemente, condene-se a ré a pagar tal montante com juros de mora contados desde a citação até integral e efetivo pagamento;
2. Que a ré seja condenada a pagar, por danos não patrimoniais, ao autor o valor de €20.000,00 (vinte mil euros), consequentemente, condene- se a ré a pagar tal montante com juros de mora contados desde a citação até integral e efetivo pagamento;
3. Que seja considerada válida a resolução contratual levada a cabo pelo autor, por consequência, seja considerado extinto o contrato de trabalho desde a data da receção da mesma pela ré;
4. Que seja a ré condenada a pagar indemnização a determinar entre 15 e 45 dias, consequentemente, condene-se a ré nesta indemnização;
5. Que seja considerado como extinto o procedimento disciplinar instaurado ao autor por a ré, após comunicação de resolução, não ter o poder para exarar decisão disciplinar em virtude de cessação do contrato de trabalho;
6. Que a ré seja notificada para apresentar os extractos bancários da sua conta bancária desde o ano de 2018 até ao ano de 2020, para que com isso sejam verificados todos os pagamentos por multibanco que os clientes fizeram para pagar os respetivos serviços;
7. Que seja chamado a depor como parte o sócio e gerente da ré, BB, no que concerne ao ponto 37º, 128º e 213º;
8. Que seja chamado a depor como parte o sócio e gerente da ré CC para depor sob o ponto 128º;
9. Que sejam apensados aos autos os autos de procedimento cautelar;
10. Que seja a ré notificada para vir juntar aos autos o processo disciplinar que culminou no despedimento do autor.
Alega, em síntese, que: Foi contratado pela ré como motorista de táxi em 01.08.2015; acontece que o autor desde a data em que foi contratado até ao final do seu contrato exercia duas funções a de motorista e a função de gestor de frota, que passou a ser a função essencial; foi acordada o pagamento ao autor da percentagem de 35% do produto como motorista, onde parte dessa percentagem era retribuição e a outra parte era prémio; a retribuição descrita no contrato de trabalho e nos demais recibos de vencimento refere que a mesma era equivalente, naquele ano, à retribuição mínima mensal; ficando de fora a retribuição como gestor de frota, cuja necessidade de aumento o autor veio a sentir quando passou em 2019 a realizar essas funções quase em exclusivo; em agosto do ano de 2019 o autor conseguiu que a ré aumentasse a sua retribuição do salário mínimo nacional para €1.000,00, contudo não refletiu isso nos recibos de vencimento; os trabalhadores da empresa não recebiam o que de facto constava no recibo, andavam no regime de percentagem; nos meses em que o carro tinha, por qualquer motivo de ficar parado, o motorista corria o risco de não receber a retribuição, no entanto, no final do mês mesmo assim rubricava o recibo de vencimento e a empresa queria que os trabalhadores estivessem sempre disponíveis para receberem qualquer trabalho, e que não gozassem férias, que o trabalhador prescinda de feriados, domingos, sábados e festividades; ré nem sequer fez formação aos trabalhadores; em virtude da solicitação de direitos e créditos por parte do autor e por representar o seus colegas perante a ré, esta a partir de março de 2020 veio a tomar alguns comportamentos contra o autor; nomeadamente, a ré, aproveitou o estado de emergência, enviou uma carta ao autor a dar conta que a Sra. DD era a gestora de frota da ré e que todos os assuntos relacionados com a empresa, deviam passar por ela; o autor mostrou a sua oposição a tal esvaziamento da sua função, e mais aproveitou para dar conta dos créditos que entende ter perante a ré e que a ré até à data não lhe pagou; créditos esses que são os referentes a isenção de horário de trabalho, dias feriados trabalhados, trabalho prestado em tempo de descanso semanal, trabalho realizado de noite, férias que não foram gozadas, retribuição dessas férias, subsídio de férias e subsídios de Natal; a empresa mantinha reuniões com os funcionários todos, com a exceção do autor; não pagou salários ao autor; a alegada gestora da ré referiu, para quem quisesse ouvir, numa sala com 8 funcionários da ré e colegas do autor, “vejam o que o AA roubou”; este comportamento deixou o autor envergonhado, vexado, ficando rotulado perante os seus colegas como ladrão assim sem mais nem menos; isso abalou o autor, deixou-o ansioso, perdido, triste, revoltado, deixou-o a sentir-se que não valia nada, deixou-o doente mentalmente e fisicamente, porque lhe afetou gravemente o sono; a ré, para lá de não pagar tais créditos e também de não pagar qualquer retribuição ao autor desde o mês de março, instaura processo disciplinar para nele alegar factos falsíssimos e que para lá disto ainda com graves falhas procedimentais; na referida nota de culpa vem descrito que o autor desviou no ano de 2020 o valor de €31.084,40; no dia 25/09/2020 o autor dirigiu duas cartas de resolução do contrato à ré; a ré dirigiu ao autor uma missiva datada de 14/10/2020 a pedir que a referida resolução seja certificada por notário; o que o autor fez, enviada a 23/10/2020, só recebida pela ré a 03/11/2020, para, entretanto, a ré notificar o autor em outubro da decisão de despedimento.
Realizou-se diligência de audiência das partes, saindo frustrada a conciliação.
A ré veio contestar e reconvir pedindo a condenação do autor a pagar-lhe o valor de € 49.572,45. Invoca a caducidade do direito a operar a resolução e alega, em síntese: na carta de resolução o autor refere ter conhecimento dos factos que invoca há mais de um ano; O valor do vencimento mensal da Autora, à data da celebração do contrato era de € 520,00; As funções para que o Autor foi contratado foram as de “motorista”; Nunca o Autor exerceu funções de gestor de frota; Eram os próprios motoristas que retiravam do seu apuro uma percentagem de 35% que eram sua pertença, sendo que posteriormente procedia ao depósito do remanescente, para posterior acerto de contas finais com a entidade patronal; no mais impugnando o alegado pelo autor. Alegando, quanto à reconvenção, que o autor ficou com apuros da actividade que não entregou à ré.
O autor respondeu à matéria da excepção e à reconvenção, pugnando pela inadmissibilidade da reconvenção e pela improcedência da excepção e solicitando a condenação da ré como litigante de má fé.
A ré respondeu defendendo a admissibilidade da reconvenção.
Realizou-se audiência prévia, tendo sido admitido o pedido reconvencional, julgada improcedente a excepção de caducidade do direito de resolução, e fixados o objecto do litígio e os temas de prova.
Fixou-se o valor da acção em € 139.101,17.
Procedeu-se a julgamento, com gravação da prova pessoal nele produzida.
Foi proferida sentença, com fixação da matéria de facto provada e não provada, na qual se decidiu a final: “julgo a presente ação parcialmente procedente, por parcialmente provada, e, em consequência:
1) Condeno a R., A..., Lda., a pagar ao A., AA, a quantia de € 1 270 (mil duzentos e setenta euros) a título de retribuições-base dos meses de maio, junho e julho de 2020;
2) Condeno a R. a pagar ao A. o montante que se viver a apurar em sede de liquidação de sentença relativo a retribuição por isenção de horário de trabalho;
3) Condeno a R. a pagar ao A. o montante que se vier a apurar em sede de liquidação de sentença relativo ao trabalho noturno prestado pelo segundo em benefício da primeira;
4) Condeno a R. a pagar ao A. a importância de € 236,36 (duzentos e trinta e seis euros e trinta e seis cêntimos) referente a retribuição de férias do ano de 2015;
5) Condeno a R. a pagar ao A. o montante que se viver a apurar em sede de liquidação de sentença e relativo à retribuição de férias dos anos de 2016 a 2019;
6) Condeno a R. a pagar ao A. a quantia de € 236,36 (duzentos e trinta e seis euros e trinta e seis cêntimos) referente ao subsídio de férias do ano de 2015;
7) Condeno a R. a pagar ao A. o quantitativo de € 216,65 (duzentos e dezasseis euros e sessenta e cinco cêntimos) relativo ao subsídio de Natal do ano de 2015;
8) Condeno a R. a pagar ao A. os montantes que se vierem a apurar em sede de liquidação de sentença e referentes aos subsídios de férias e aos subsídios de Natal dos anos de 2016 a 2019;
9) Condeno a R. a pagar ao A. o montante de € 3 000 (três mil euros) a título de retribuição-base dos meses de abril, maio e setembro de 2020;
10) Condeno a R. a pagar ao A. o valor de € 173,10 (cento e setenta e três euros e dez cêntimos) a título de formação profissional não ministrada relativa ao ano de 2020;
11) Condeno a R. a pagar ao A. o montante que se vier a apurar em sede de liquidação de sentença a título de formação profissional não ministrada relativa aos anos de 2018 e 2019;
12) Condeno a R. a pagar ao A., a título de indemnização devida pela resolução do contrato de trabalho com justa causa, a quantia de € 5 166,67 (cinco mil cento e sessenta e seis euros e sessenta e sete cêntimos);
13) Condeno a R. a pagar ao A. juros de mora, à taxa legal, a incidir sobre os montantes referidos em 1), 4), 6), 7), 9), 10) e 12), e a partir do vencimento de cada uma de tais prestações, até efetivo e integral pagamento;
14) Absolvo a R. do restante peticionado;
15) Condeno o A. a pagar à R. o montante que se viver a apurar em sede de liquidação de sentença e relativo aos apuros à segunda pertencentes e que se encontram na posse do primeiro;
16) Absolvo a R. do pedido de condenação da mesma como litigante de má-fé.”
Inconformados interpuseram autor e ré recurso de apelação.
Conclui o autor:
A. Nós consideramos que devem ser discutidos no presente recurso os temas referentes: às funções de motorista e gestor, à isenção de horário de trabalho, ao trabalho noturno, aos feriados, ao trabalho suplementar, ao trabalho durante os fins de semana e finalmente o assédio laboral tudo acima alegado;
B. Quais ou foram considerados como não provados ou não foram considerados na sentença;
Das duas funções do autor;
C. Portanto, no que toca às funções que o autor exerceu na empresa, nós consideramos que constam como provadas duas funções, nomeadamente, a função de motorista e a função de gestor;
D. De facto, a primeira função deve ser retribuída e avaliada pela Convenção Coletiva de Trabalho (BTE nº 16 de 29/04);
E. Ora, no que toca à outra função que foi dada como provada essa deve ser retribuída e avaliada pelo que vem descrito no Código do Trabalho;
F. Na realidade, apesar do autor ter trabalhado como motorista e gestor ao mesmo tempo até meados de 2019 o certo é que para simplificar, nós teremos que encontrar dois momentos das respetivas funções;
G. Assim, a de motorista e a de gestor foram exercidas desde o início do contrato até meados de 2019 e a de gestor foi exercida desde meados de 2019 até setembro de 2020 (altura da resolução contratual);
H. O que nesta parte a sentença na parte do direito deveria ter considerado que o autor trabalhou nas duas funções desde setembro de 2015 até meados de 2019, sendo que a partir daqui só fazia pontualmente motorista e maioritariamente a de gestor;
I. E que dessas duas funções conjugadas no início e depois conjugadas pontualmente no final do contrato fizeram com que o autor trabalhasse quase 24 horas, ou melhor que trabalhasse muitas horas todos os dias por conta das duas funções;
J. O que tal conjugação de funções faz com que o autor tenha produzido trabalho em isenção de horário todos os dias, que tenha feito trabalho noturno todos os dias, que tenha trabalhado todos os feriados, que tenha feito trabalho suplementar todos os dias e que tenha trabalhado todos os sábados e domingos;
K. Assim, nesta parte e para dar cumprimento ao artigo 639º, nº 1 do C.P.C concluímos que a sentença deveria ter considerado que o autor exerceu duas funções em simultâneo e que por causa disso ele trabalhava todos os dias e para lá do horário normal de trabalho;
Da isenção de horário de trabalho;
L. Por efeito, o autor trabalhou em regime de isenção de horário de trabalho como foi demonstrado;
M. No entanto, a sentença não conseguiu apurar o número de dias que o autor trabalhou;
N. Portanto, por aquilo que já dissemos quanto às funções acima exercidas e há prova que foi feita, nomeadamente os depoimentos das testemunhas, o autor trabalhou todos os dias desde o início do seu contrato e até que foi colocado de parte em março de 2020;
O. Assim, nesta parte e dando cumprimento ao artigo 639º, nº 1 do C.P.C concluímos que deveria ter sido considerado que o autor trabalhou todos os dias do seu contrato em regime de isenção de horário de trabalho, portanto, o que deve ser declarado com as respetivas consequências nos créditos e suas contas (aqui remetemos para a nossa P.I. retificada);
Do trabalho noturno;
P. Vem referido na sentença que o autor fez trabalho noturno, no entanto, refere que não os concretos termos em que o fez;
Q. A sentença reduz tal desiderato apenas às funções de gestor e não incluiu as funções de motorista;
R. Ora, nós pelos depoimentos das testemunhas chegamos em concreto que até meados de 2019 o autor pelo menos nas funções de motorista trabalhava durante a noite (vd. depoimento de EE);
S. E que a partir de meados de 2019 o autor também fazia trabalho noturno, porque tinha de estar disponível para os colegas que trabalhavam durante a noite;
T. Portanto, dando cumprimento ao artigo 639º, nº 1 do C.P.C, concluímos que o autor trabalhou no horário das 18:00 às 06:00 desde o início do contrato até meados de 2019, contudo, a partir daqui como gestor tinha de estar disponível durante a noite e acorria a situações durante a noite, por efeito, também realizou trabalho noturno nesta altura o que deve ser declarado com as respetivas consequências nos créditos e suas contas;
Dos feriados;
U. Nesta parte, dos feriados, a sentença considerou como não provados os feriados, ou seja, que o trabalhador não trabalhou nos feriados;
V. No entanto, vendo aqueles depoimentos das testemunhas facilmente se retira que o autor trabalhou como motorista das 18:00 às 06:00, portanto, 12 horas;
W. Conjugando os depoimentos de todos vemos que o autor trabalhava todos os dias e até mais do que 12 horas, mas que trabalhava todos os dias, nomeadamente, os feriados;
X. Portanto, dando cumprimento ao artigo 639º, nº 1 do C.P.C, concluímos que o autor trabalhou todos os feriados, o que posto isto deveria ter sido considerado na sentença que o autor trabalhou todos os feriados, o que não tendo sido feito deve agora ser declarado com as respetivas consequências nos créditos e suas contas;
Do trabalho suplementar;
Y. Nesta parte diz a sentença que o autor não provou o trabalho suplementar, ora olhando os depoimentos das testemunhas, nós notamos que pelo horário de trabalho, qual até meados de 2019 foi das 18:00 às 06:00, que o autor realizou desde setembro de 2015 a meados de 2019 fez todos os dias pelo menos 12 horas de trabalho suplementar;
Z. E que nas funções de gestor que depois viria a exercer maioritariamente também o fez, note-se que ele por causa das duas funções não tinha descanso e há testemunhas que referem mesmo que ele trabalhava 24 horas por dia;
AA. Portanto, dando cumprimento ao artigo 639º, nº 1 do C.P.C., concluímos que o autor trabalhou pelo menos até meados de 2019 todos os dias 12 horas por dia e que a partir de meados de 2019 até que cessou o contrato também fez trabalho suplementar o que tal deve ser declarado com as respetivas consequências nos créditos e suas contas;
Do trabalho durante os Sábados e os Domingos;
BB. Também a sentença considera como não provado que o autor tenha prestado trabalho aos Sábados e aos Domingos;
CC. O que nesta parte lendo os depoimentos acima descritos das testemunhas não podemos deixar de considerar que é certo e claro que o autor trabalhou todos os Sábados e Domingos desde o início do seu contrato até meados de 2019 e que quando abraçou as funções de gestor ele também trabalhava nesses dias, porque tinha de estar disponível para o que fosse preciso, nomeadamente, até deixava as suas funções de gestor e ia fazer as vezes de colegas que não podiam conduzir;
DD. Portanto, dando cumprimento ao artigo 639º, nº 1 do C.P.C, concluímos que o autor trabalhou todos os Sábados e aos Domingos pelo menos até meados de 2019 e que a partir de meados de 2019 até que cessou o contrato também fez trabalho nestes dias o que tal deve ser declarado com as respetivas consequências nos créditos e suas contas;
Do assédio moral;
EE. Foi dado como provado na sentença que a ré criou um grupo no whatsapp para os seus funcionários, do qual exclui o autor, mais que convocou todos os motoristas para reuniões desde maio de 2020 e excluiu o autor dessas reuniões, que a ré através da sua representante DD, abriu uma pasta e referiu para quem quisesse ouvir – vejam o que o AA roubou;
FF. Aliás como superior hierárquico dos demais funcionários viu que estes o viram ser atacado e isso também o consumiu, para não dizermos que foi absolutamente afastado de tais funções sem qualquer tipo de justificação ou procedimento;
GG. Por tal, foi dado como provado que tais condutas o deixaram num estado de ansiedade, tristeza e nervosismo, que até o deixa sem sono quando se lembra;
HH. Ora, nós entendemos que tais condutas por parte da ré são condutas que configuram assédio moral, são condutas que configuram e tiveram a capacidade de produzir danos no autor;
II. Aliás que tais condutas culminaram na resolução que o autor enviou para duas moradas da ré em setembro;
JJ. Portanto, dando cumprimento ao artigo 639º, nº 1 e nº 2 do C.P.C, concluímos que a sentença deveria ter considerado que a ré violou o artigo 29º, nº 1 e nº 2 do Código de Trabalho, por consequência deveria considerar indemnizar o autor pelos danos causados pela ré, ora por causa de tal assédio, o que tal deve ser declarado com as respetivas consequências.
A ré apresentou as seguintes conclusões:
I. Resulta que do facto constatado de que não é referido, na matéria dada como provada, de que quantia o autor se apropriou dos valores da empresa ré, referindo somente a talhe de foice, na alínea mm) “Na referida Nota de Culpa vem descrito que o A. Desviou, no ano de 2020, o valor de € 31.084,40;”, sendo que o facto da apropriação não consta a matéria dada como provada, ainda que esta matéria essencial para prova do pedido reconvencional; Não consta igualmente da matéria dada como não provada qualquer facto que negue tal apropriação.
II. No entanto, na sentença o autor é condenado a pagar à ré o montante que se vier a apurar em sede de liquidação de sentença e relativo aos apuros pertencentes à ré e que se encontram na posse do autor.
III. Os fundamentos da Sentença quanto pedido reconvencional estão em oposição com a decisão, existe uma latente ambiguidade e obscuridade, que tornam a decisão, a este respeito, ininteligível (artigo 615º nº 1 alínea c) do Código de Processo Civil)
IV. O Tribunal “a quo” não se pronunciou sobre esta questão e deveria ter-se pronunciado, ou seja, deveria ter dado como provado um facto que a final decide sobre o mesmo, pese embora o facto de referir que por transação judicialmente homologada, a aqui Apelante e Apelado, este reconhece ter na sua posse apuro de valores que pertencem à Apelante. (artigo 615º nº 1 alínea d) do Código de Processo Civil)
V. Existe NULIDADE de Sentença, que ora se argui.
VI. Para que seja aplicável instrumento de regulamentação colectiva, é necessários que as partes se encontrem filiados nas respectivas entidades outorgantes do mesmo, podendo a aplicabilidade resultar por força de uma portaria de extensão ou no caso das partes o convencionarem em sede do contrato colectivo de trabalho.
VII. No caso dos autos é inquestionável que não existe filiação dupla das partes, para além de que, a BTE invocada no contrato de trabalho é o nº 33 de Setembro de 2004, a data do contrato é 2015, e a convenção colectiva desta data é inaplicável ao referido contrato.
VIII. Em sede de audiência de partes foi o agora apelado convidado a apresentar nova petição inicial, veio explicar os seus cálculos, com uma nova CCT publicada no boletim de trabalho nº 16 de 29/04/2010, esta também anterior ao contrato de trabalho.
IX. Não existe no universo e comunidade jurídica a figura do “trato sucessivo” de convenções de trabalho.
X. De todo o modo, em caso de cessação de vigência de convenção coletiva ou decisão arbitral aplicada por portaria de extensão, é aplicável o disposto no nº 8 do artigo 501º do Código do Trabalho.
XI. Categoria profissional constitui a posição do trabalhador na organização empresarial em que se integra, e é definida pelo conjunto de serviços e tarefas constantes do seu contrato de trabalho.
XII. A categoria contratual ou categoria-função corresponde a uma determinação qualitativa da prestação de trabalho contratualmente prevista.
XIII. A categoria profissional é o conjunto de empregados que em virtude do exercício de uma mesma actividade de trabalho ou profissão, possuem interesses jurídicos e económicos próprios e coincidentes.
XIV. No caso dos autos o Apelado sempre teve a categoria profissional de motorista, com o vencimento correspondente ao s.m.n. em cada ano, sendo que as funções que sempre exerceu foram as inerentes a essa categoria.
XV. Deverão ser dados como não provadas, a este propósito, as alíneas d), e), f), g), h), i), j), k), p), q), r) e s), todos estes factos dados como provados, não o deveriam ter sido, mas sim como não provados dado que todos decorrem, na análise do tribunal “À quo”, da categoria profissional que o apelado nunca teve, aliás decorre do senso comum e de uma análise não muito aprofundada, que em 2019 a função de motorista fosse exercida pontualmente pelo aqui apelado e que só a exercesse em caso de necessidade da empresa.
XVI. Os contratos directos para os funcionários da empresa na zona de Vila Nova de Gaia, forma criados, incrementados e afirmados pelo Apelado, mas tal facto não lhe concede a mudança de categoria profissional, por seu mote próprio.
XVII. De todos os factos aqui enunciados, dados como provados, não tiveram a mínima concretização na prova produzida, não foi enunciado um único trabalhador contratado pelo Apelado (obviamente não podem ser contabilizados os familiares do mesmo), não foi apontada de qualquer tentativa de assalto, qualquer reclamação, nenhum acidente.
XVIII. Uma decisão sobre a factualidade não se apresenta incólume perante a necessidade do julgador ter formado a sua convicção acerca da realidade que lhe foi submetida. A objectividade decorrente da prova produzida perante o julgador é trespassada pela natural subjectividade deste.
XIX. Em face deste depoimento de parte do BB não poderiam ser dados como provados os factos constantes das alíneas p), q), r), s) e t) da matéria dada como provada, os quais deveria constar da matéria dada como não provada, sendo a acção interposta pelo Autor dada como improcedente.
XX. O autor nunca exerceu qualquer outra função e categoria que não fosse a de motorista. Deveriam ser dados como não provadas a alíneas d) até k), da matéria dada como não provada.
XXI. Devem ser dados como não provados os factos constantes das alíneas y) e z) da matéria dada como provada. Com a respectiva repercussão na decisão final, ou seja, a improcedência total da acção.
XXII. Do depoimento da testemunha FF resulta que o autor nunca poderia ter sido gestor de frota, quando se encontra abundantemente provado que sempre foi sempre motorista.
XXIII. Do depoimento da testemunha GG nada poderá ser retirado, uma vez que este se afigura demasiadamente ensaiado, até pela aparente descontracção com que é proferido, sendo notórias contradições incontornáveis.
XXIV. Do depoimento da DD e da experiência e senso comum, não poderia, nem resultou provado de qualquer outro depoimento as alíneas hh), ii) e jj) da matéria fáctica dada como provada, sendo que terá essa falta de prova decorreriam sempre consequências processuais, que se iriam reflectir no apuramento de eventual indemnização, nomeadamente o número 12 da decisão.
XXV. Desde já se diga, que o despedimento levado a cabo pelo aqui apelado, nunca poderia ter sido dado como lícito e pelas razões afloradas na Douta Sentença (salários em atraso) uma vez que sendo o então autor condenado no pedido reconvencional a pagar os apuros que se encontram na sua posse à aqui apelante, não poderá ser razão de despedimentos a falta de pagamento de salário, durante um processo disciplinar que é interrompido pela carta referida.
XXVI. Provado que o trabalhador se locupletou com valores da entidade empregadora (se não provado, consta uma condenação nessa conformidade), obviamente tudo levava a crer o inevitável despedimento com justa causa, e o Autor em desespero de causa e de forma ardilosa remete carta a despedir-se, com o fundamento de salários não pagos.
XXVII. A forma que foi usada pelo Autor não obedece ao prescrito no artigo 395º do Código de Trabalho, até porque era do conhecimento do mesmo que tinha na sua posse valores que pertenciam à sua entidade patronal.
XXVIII. Admitindo, que se faz por mero exercício de patrocínio, que a forma tinha sido obedecida, a justa causa do despedimento comunicada pelo trabalhador é apreciada nos termos do nº 3 do artigo 351º, ou seja, atendeu-se no quadro de gestão da empresa, o grau de lesão dos interesses do empregador, carácter das relações entre as partes e demais circunstâncias relevantes para o caso.
XXIX. O tribunal “a quo” faz tábua rasa do facto de que deu condenação ao Autor, de se ter locupletado com valores da empresa, em valores consideravelmente superiores aos alegados salários em atraso, e estando em curso um processo disciplinar, no qual já tinha havido resposta à nota de culpa.
XXX. O despedimento levado a cabo pelo trabalhador, aqui apelado, é ilícito, quer porque foi comunicado no decurso de processo disciplinar e na sua fase final, quer porque a Apelante era credora de valores que o Autor ilicitamente se apropriou, a carta de despedimento foi um acto premeditado para evitar o despedimento como processo disciplinar e poder accionar a empresa/Apelante.
XXXI. É legitimo a entidade patronal proceder à compensação de créditos seus, decorrente diretamente da relação laboral.
XXXII. Sendo declarado ilícito o despedimento levado a cabo pelo Apelado, por inexistir justa causa, não terá lugar a indemnização, cabendo lugar a acerto de contas entre valores apropriados e créditos devidos decorrentes do despedimento sem justa causa, do trabalhador.
XXXIII. O Apelado endereçou carta de despedimento à Apelante, estando em curso processo disciplinar cujo fundamento era essencialmente o facto do trabalhador se ter apropriado ilicitamente de valores que lhe foram confiados pelos colegas motoristas para serem entregues à entidade patronal que não chegou a acontecer, o ora apelado sabia da veracidade dos factos constantes do processo disciplinar, e no decurso do mesmo, de forma a evitar o seu certo despedimento com justa causa, endereçou carta à Apelante resolvendo o contrato de trabalho existente de motorista, argumentando falta de pagamento de retribuições de quatro meses, embora tenha reclamado outros valores que entenderá também devidos.
XXXIV. A apropriação de valores (apuros) pelo trabalhador, foi confirmada com uma condenação do trabalhador a entregar os valores de que se apropriou.
XXXV. O direito que o trabalhador exerceu é manifestamente ilegítimo, uma vez que o mesmo excedeu manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes e pelo fim social ou económico desse direito (artigo 334º do Código Civil), é manifesto o abuso de direito pelo Apelado.
XXXVI. Se atendermos no procedimento cautelar apenso aos autos, os créditos aí reclamados pelo Autor foram dados como liquidados em função do contra crédito detido pela Ré, aqui Apelante, ou seja, desde esse acordo, os créditos do trabalhador reclamados pelo Autor na providência cautelar foram dados como liquidados.
XXXVII. Como resulta da Douta Sentença o pedido reconvencional foi reconhecido, não no que respeita aos valores, mas à existência do mesmo, ou seja, houve para o Tribunal “a quo” apropriação ilícita pelo Autor/ Apelado de apuros pertencentes à sua entidade patronal, aqui Apelante, sendo que este reconhecimento, salvo melhor opinião, terá obrigatoriamente que alterar toda a decisão restante, incluindo sobretudo a ilicitude do despedimento levado a cabo pelo trabalhador, carecendo esta de qualquer fundamento.
NORMAS VIOLADAS:
Artigo 615º nº 1 alíneas c) e d) do Código de Processo Civil; artigo 395º do Código do Trabalho; artigo 394º nºs 4 e 5 do Código do Trabalho; artigo 351º nº 3 do Código do Trabalho e 334 do Código Civil.
O autor respondeu ao recurso da ré, concluindo:
I. No que toca à nulidade da sentença, não vemos em análise do artigo 615º do C. P. C. que os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou que nesta conste alguma ambiguidade ou obscuridade que a torne ininteligível, nem sequer se nota que naquilo que a recorrente diz, o juiz deixou de se pronunciar sobre as questões que esta agora levanta, portanto temos de concordar com a decisão;
II. Naquela parte em que a recorrente afirma que os pontos d), e), f), g), h), i), j), k), p), q), r), s), y), z), hh), ii) e jj), cujos aquela pretende que sejam considerados como não provados, o certo é que a prova que foi trazida à audiência de julgamento é de todo abundante no sentido de que demonstra claramente que estes pontos foram dados como provados e bem, portanto temos de concordar com a decisão;
III. No entanto, quanto ao ponto t) facto é que a recorrente não pagou os subsídios de férias e subsídio de Natal de 2020, isto porque da prova testemunhal e documental trazida aos autos não ressalta em lado alguma prova disso, portanto, nesta parte temos de concordar com a recorrente no sentido de não dar como provado este facto;
IV. Quanto à licitude ou não da resolução produzida pelo trabalhador, temos a referir que tendo sido dado como provado que a recorrente não pagava a retribuição do autor desde maio de 2020, ora isto demonstrado no acordo do procedimento cautelar;
V. E que esse incumprimento se manteve até à data da resolução contratual pelo autor, ora se virmos só este ponto, nomeadamente a falta de pagamento de retribuição, é certo que o C.T. no seu artigo 394º, nº 1 e nº 2, al. a) refere que é justa causa de resolução pelo trabalhador a falta de pagamento pontual da retribuição;
VI. E facto é que desde maio a setembro a recorrente também não pagou essa retribuição (para lá de outros factos), aliás como se pode ver nos autos a recorrente pagou a todos, mas não pagou ao recorrido (tiveram de ser os filhos e os irmãos a ajudá-lo);
VII. Portanto, o recorrido no âmbito do seu direito de resolução fez assim extinguir o contrato de trabalho e que o fez licitamente, consequentemente é lícita a sua resolução, bem como a conclusão que o Sr. Juiz à quo chegou nesta parte;
VIII. Mas, acima de tudo o contrato, esse que estava em vigor com todos os seus direitos e deveres, mas, deveres que a recorrente insistiu ela própria a incumprir;
IX. Existindo ou não procedimento disciplinar o certo é que tal não extinguiu o contrato de trabalho e o certo é que tal procedimento estava a ser usado para a recorrente tentar ela fugir ao cumprimento das suas obrigações (estas que são muitas como se veio a demonstrar) e por tal enriquecer à conta do recorrido;
X. Na verdade, em momento algum da prova documental e testemunhal foram aferidos elementos inerentes ao procedimento disciplinar, em rigor a recorrente não demonstra prova alguma desses elementos;
XI. E na realidade em momento algum a recorrente na sua contestação, bem como ao longo destes autos, levantou esta questão e nem o abuso de direito (aliás, na contestação até admite que está a incumprir o pagamento dos salários);
XII. Por efeito, todas as alegações da recorrente, bem como o seu recurso devem improceder, porque não existe qualquer violação das normas que a recorrente diz que considera violadas nem sequer há outra interpretação, qual a recorrente pretende ver levada a cabo.
Foi proferido despacho admitindo os recursos e, sobre as invocadas nulidades, consignando “que não se vislumbra padecer a sentença recorrida de qualquer nulidade, incluindo as previstas no art. 615º nº 1 c) e d) do C.P. Civil.”
O Ilustre Magistrado do Ministério Público teve vista nos autos, pronunciando-se pela improcedência dos recursos, parecer a que as partes não responderam.
Admitido o recurso e colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
Como se sabe, o âmbito objectivo dos recursos é definido pelas conclusões do recorrente (arts. 635º, nº 4, e 639º, nº 1 e 2, do CPC, por remissão do art. 87º, nº 1, do CPT), importando assim decidir quais as questões naquelas colocadas.
Importa apreciar, no recurso do autor:
I. Impugnação da decisão relativa à matéria de facto;
II. Da categoria profissional do autor;
III. Dos créditos do autor;
IV. Do assédio moral.
No recurso da ré
I. Nulidade da sentença;
II. Impugnação da decisão relativa à matéria de facto;
III. CCT aplicável e categoria profissional do autor;
IV. Da licitude da resolução do contrato.

II. Factos provados
a) Por acordo judicialmente homologado datado de 14 de abril de 2021, constante de fls. 108 e 109 do apenso A (procedimento cautelar comum), ficou estipulado o seguinte: o A. possui apuros de valores da R. na sua posse; a R. reconhece que não procedeu ao pagamento ao A. dos valores relativos aos vencimentos dos meses de maio, junho e julho (lay-off), no montante global de € 1 270; este quantitativo de € 1 270 será deduzido ao valor dos referidos apuros; não obstante o acordado, as partes não prescindem de discutir todas as questões suscitadas nos presentes autos de processo comum;
b) O A. era trabalhador da R., tendo ambos assinados, em 1 de agosto de 2015, contrato de trabalho, o qual produziu os seus efeitos nesse dia, contrato esse que se encontra junto aos presentes autos a fls. 21 e 22;
c) As funções para as quais o A. foi contratado foram as “inerentes à categoria de motorista” de táxi;
d) A função de motorista, a partir de meados de 2019, era exercida pontualmente pelo A., quando a empresa por alguma dificuldade necessitava de um motorista por falta de outro;
e) O A., sob as ordens do gerente da R., fazia contratação de funcionários (publicitava que a empresa tinha uma vaga para motorista de táxi, depois reunia com os candidatos e, verificando que os mesmos correspondiam aos requisitos da empresa, disso dava conta ao gerente da empresa, o qual validava, ou não, a entrada do funcionário na empresa, através da assinatura do contrato de trabalho);
f) Era o A. que, por ordem da gerência da R., oferecia o seu contacto direto a cada funcionário da empresa para que caso houvesse alguma situação, fosse esta com clientes (tentativas de assalto, reclamações), fosse com o próprio carro (avarias, acidentes), aqueles o pudessem contactar vinte e quatro horas por dia;
g) Todas as agendas dos motoristas tinham os números de emergência, nos quais constava o do A.;
h) Nas faturas da empresa foi impresso pela gerência o número de telefone do A. para contactos pelos clientes em caso de reclamação dos serviços;
i) Quando existiam problemas com o motorista ou com o carro, nomeadamente quando avariava ou quando aconteciam acidentes, ou quando existiam tentativas de assalto durante a noite aos motoristas da empresa, era o A. que, durante a noite, se dirigia ao local onde estivessem esses motoristas, auxiliando-os e efetuando os necessários contactos com autoridades, mecânicos e seguradoras;
j) Era o A. quem passava à gerência os pedidos dos trabalhadores, nomeadamente em matéria de reivindicações de direitos e créditos;
k) Era o A. que depois passava aos trabalhadores a resposta da gerência;
l) Quando os motoristas recebiam dos clientes em dinheiro, era este entregue ao A. e posteriormente o A. encontrava-se com o gerente da R., BB, para lhe entregar as contas;
m) O motorista entregava ao A. uma descrição do que trabalhou e o remanescente do dinheiro que tinha em mão (porque havia pagamentos de clientes feitos por multibanco), e faziam logo ali um acerto de contas;
n) O motorista retirava a sua percentagem e apresentava todos os documentos de despesas com gasóleo e todos os documentos emitidos pelo multibanco;
o) De seguida, o A. reunia com o sócio-gerente da R., BB, e entregava-lhe as contas, que logo ele analisava e dava como boas ou más;
p) Tudo o que o A. retirasse de produto como motorista para si recebia 35% de tal produto;
q) Caso lhe avariasse o carro ou tivesse um acidente e o carro tivesse de ficar parado, o A. não receberia o valor da retribuição nesse mês;
r) Caso fizesse férias, o A. não recebia a sua retribuição;
s) Em mês não concretamente apurado do ano de 2019, o A., apoiando-se na mediação de um amigo comum com o gerente da R., conseguiu que este último, BB, aumentasse a sua retribuição do salário mínimo nacional para € 1 000, apesar de a R. não ter refletido isso nos recibos de vencimento;
t) A R., a partir de agosto de 2020, inclusive, pagou ao A. subsídio de férias e subsídio de Natal;
u) A R. nunca proporcionou formação profissional aos seus trabalhadores;
v) A R. enviou uma carta ao A., datada de 7 de abril de 2020 e cuja cópia consta de fls. 38, com o seguinte teor: “a empresa A..., mudou a sua gestão no passado dia 05/04/2020, e neste momento a gestão da mesma está a cargo da colega DD. Informamos que para qualquer assunto relacionado com a empresa, devem entrar em contacto com a Gestão, através do email: DD.u2@gmail.com ou através do número ....”;
w) Mediante carta remetida ao A. e com data de 7 de abril de 2020, assinada por DD, esta escreveu: “Caro Colega, Venho desta forma apresentar me como nova Gestora da empresa A... (...). Assumi a gestão da TMR, dia 05/04/2020, pelo que a partir dessa data todos os assuntos relacionados com a empresa, devem passar por mim (...).”;
x) O A. dirigiu à R. a carta com data de 1 de junho de 2020, cuja cópia consta de fls. 40 a 41 vº dos presentes autos;
y) O A., no exercício da sua atividade, prestou trabalho em regime de isenção de horário de trabalho, estando sempre disponível para, em qualquer dia e a qualquer hora, acorrer a alguma situação que envolvesse os taxistas e/ou os táxis da R.; Redacção alterada, conforme decidido infra, passando a ter a seguinte: “O A., no exercício da sua atividade, estava sempre disponível para, em qualquer dia e a qualquer hora, acorrer a alguma situação que envolvesse os taxistas e/ou os táxis da R.”
z) O trabalho referido em y) foi prestado desde a data de 1 de agosto de 2015 até à altura em que a R. nomeou DD;
aa) O contrato de trabalho do A. foi suspenso em 16 de março de 2020, por causa da situação de pandemia;
bb) No mês de março de 2020 DD dirigiu-se a casa do A. e exigiu a este a entrega de todas as chaves, de todos os documentos e de todos os elementos referentes aos carros, nomeadamente TPAS, agendas dos motoristas, etc.;
cc) O A., não lhe reconhecendo legitimidade, recusou a entrega de tais elementos, porque respondia perante o sócio-gerente, e referiu que se a empresa pretendia tais elementos tinha de dirigir esse pedido formalmente a cada motorista;
dd) A R. criou um grupo de WhatsApp para os seus funcionários, do qual excluiu o A.;
ee) Todos os motoristas, desde pelo menos maio de 2020 e com exceção do A., foram convocados para reuniões com DD, que se arrogou representante da empresa;
ff) Numa daquelas reuniões, DD, sem nada o prever, abriu uma pasta e, para quem quisesse ver, disse, à frente de funcionários da R., “vejam o que o AA roubou, vejam”;
gg) O que deixou o A. envergonhado, deixando-o num estado de ansiedade, tristeza e nervosismo, cujos sentimentos ainda hoje o deixam com dificuldades em dormir quando tais palavras lhe vêm à cabeça;
hh) O A. teve de recorrer aos filhos, maiores e casados, para que o socorrem-se, a ele à esposa, pagando as suas contas, nomeadamente a renda da casa;
ii) A mãe daqueles filhos é pessoa diabética em grau IV, que necessita de ter alimentos todos os dias de acordo com a sua doença;
jj) Isso abalou o A., deixou-o ansioso, perdido, triste, revoltado, deixou-o a sentir-se que não valia nada, deixou-o doente mentalmente e fisicamente, porque lhe afetou o sono;
kk) A R. instaurou ao A. processo disciplinar;
ll) A Nota de Culpa naquele processo disciplinar tem data de 31 de julho de 2020 e foi recebida pelo A. em 10 de agosto de 2020;
mm) Na referida Nota de Culpa vem descrito que o A. desviou, no ano de 2020, o valor de € 31 084,40;
nn) O A., no dia 25 de setembro de 2020, dirigiu duas cartas de resolução do contrato, de fls. 73 a 75 e 174 a 177, uma para a sede oficial da R. e outra para a Rua ..., ..., em ...;
oo) A segunda daquelas cartas foi recebida na data de 29 de setembro de 2020;
pp) A R. dirigiu ao A. uma missiva, datada de 12 de outubro de 2020, a pedir que a referida resolução fosse certificada por Notário, o que o A. fez;
qq) Por comunicação datada de 14 de outubro de 2020 a R. comunicou ao A. a sua decisão de o despedir com justa causa, com efeitos no dia 15 de outubro de 2020, conforme resulta de fls. 26 a 30 vº dos presentes autos.
Factos não provados:
1. O A. exercesse a função de gestor desde a data em que foi contratado pela R.;
2. O A. tenha aceitado, ao longo do seu contrato, rubricar os recibos de vencimento, apesar de os mesmos não refletirem a realidade;
3. O A., em 2015, tenha trabalhado, desde agosto a dezembro, cento e cinquenta e dois dias;
4. O A., em 2016, haja trabalhado trezentos e cinquenta e quatro dias;
5. O A., em 2017, tenha trabalhado trezentos e cinquenta e quatro dias;
6. O A., em 2018, haja trabalhado trezentos e cinquenta e quatro dias;
7. O A. em, 2019, tenha trabalhado, até agosto, duzentos e quarenta e três dias;
8. O A., em 2015, haja trabalhado das 8h às 20h nos dias 15 de agosto, 8 de dezembro e 25 de dezembro;
9. Em 2016 o A. tenha trabalhado doze horas nos dias 1 de janeiro, 25, 27 de março, 25 de abril, 1 de maio, 26 de maio, 15 de agosto, 5 de outubro, 1 de novembro, 1, 8 e 25 de dezembro;
10. Em 2017 o A. haja trabalhado doze horas nos dias 1 de janeiro, 14, 16 e 25 de abril, 1 de maio, 10 e 15 de junho, 15 de agosto, 5 de outubro, 1 de novembro, 1, 8 e 25 de dezembro;
11. Em 2018 o A. haja trabalhado doze horas nos dias 1 de janeiro, 30 de março, 1 e 25 de abril, 1 de maio, 31 de maio, 10 de junho, 15 de agosto, 5 de outubro, 1 de novembro, 1, 8 e 25 de dezembro;
12. Em 2019 o A. tenha trabalhado doze horas nos dias 1 de janeiro, 19, 21 e 25 de abril, 1 de maio, 31 de maio, 10 de junho, 15 de agosto, 5 de outubro, 1 de novembro, 1, 8 e 25 de dezembro;
13. Em 2020 o A. tenha trabalhado doze horas no dia 1 de janeiro;
14. O A. haja trabalhado todos os fins de semana, sem descanso e sem exceção;
15. Nesses períodos o horário de trabalho do A. fosse das 8h às 20h, e muitas vezes trabalhasse das 21h à 1h;
16. Em 2015 o A. tenha trabalhado cinquenta e dois sábados (dois dos quais feriado – 25 de Abril e 5 de agosto);
17. O A. haja trabalhado nesse ano cinquenta e dois domingos (um dos quais feriado – 5 abril – Páscoa);
18. Em 2016 o A. tenha trabalhado cinquenta e três sábados;
19. No mesmo ano tenha trabalhado cinquenta e dois domingos (três dos quais feriado – 27 de abril, que foi a Páscoa, 1 de maio e 25 de dezembro);
20. No ano de 2017 o A. haja trabalhado cinquenta e três sábados (um dos quais feriado – 10 de junho) e cinquenta e cinco domingos (dois dos quais feriado – 1 de janeiro e 16 de janeiro);
21. O A., no ano de 2018, haja trabalhado cinquenta e três sábados (dois dos quais feriado – 1 e 8 de dezembro) e cinquenta e dois domingos (dois dos quais feriado – 1 de abril e 10 de junho);
22. O A., no ano de 2019, tenha trabalhado cinquenta e dois sábados (um dos quais feriado – 5 de outubro) e cinquenta e dois domingos (três dos quais feriado – 21 de abril, 1 e 8 de dezembro);
23. A R. haja pago todos os salários aos trabalhadores;
24. O gerente da R. tenha sido solicitado pelo A. para uma reunião com este, mas não haja respondido;
25. A R., em meados de maio, haja pago ao A. o valor de € 565 por vale postal, referente ao mês de março de 2020;
26. Desde o ano de 2015 o A., todos os dias desde que entrou para a empresa, tenha realizado cinco horas de trabalho noturno como motorista;
27. Como gestor, a partir do ano de 2019, o A. também tenha realizado essas horas de trabalho noturno;
28. O A. todos os anos só tirasse onze dias de férias;
29. O processo disciplinar que a R. moveu ao A. tenha tido dois objetivos: continuar a segregação e o respetivo assédio e furtar-se ao pagamento dos créditos do A.;
30. No período compreendido entre 7 de janeiro de 2020 e 5 de março de 2020 tenha sido depositado, pelo A. (em dinheiro) e pelos clientes da R. (por multibanco), o montante global de € 28.404,05;
31. Desde janeiro até março de 2020 os funcionários da R., incluindo o A., tenham recebido a título de retribuição o quantitativo total de € 22.907,92;
32. O A. não tenha entregue ao R. as seguintes quantias relativas a apuros, e descontadas as despesas com os táxis: em 2018, € 9.727,05; em 2019, € 8 761; em 2020, € 4.602,25;
33. O A. tenha na sua posse, desde janeiro de 2020, dois veículos pertença da R., recusando-se a entregar os mesmos: viatura da marca Chevrolet com a matrícula ..-MR-.. e viatura da marca Skoda com a matrícula ..-ZS-..;
34. O A., nos anos de 2016 a meados de 2019 tenha auferido, respetivamente, as seguintes retribuições-base: € 530, € 557, € 580 e € 600.

III. Direito
1. Nulidade da sentença (recurso da ré)
Alega a recorrente/ré:
“(...) não é referido, na matéria dada como provada, de que quantia o autor se apropriou dos valores da empresa ré, referindo somente a talhe de foice, na alínea mm) “Na referida Nota de Culpa vem descrito que o A. Desviou, no ano de 2020, o valor de € 31.084,40;”, sendo que o facto da apropriação não consta a matéria dada como provada, ainda que esta matéria essencial para prova do pedido reconvencional.
Por outro lado, não consta da matéria dada como não provada qualquer facto que negue tal apropriação.
No entanto, na decisão o autor é condenado a pagar à ré o montante que se vier a apurar em sede de liquidação de sentença e relativo aos apuros pertencentes à ré e que se encontram na posse do autor.
Os fundamentos da Sentença quanto pedido reconvencional estão em oposição com a decisão, existe uma latente ambiguidade e obscuridade, que tornam a decisão, a este respeito, ininteligível (artigo 615º nº 1 alínea c) do Código de Processo Civil)
E ainda, o Tribunal “a quo” não se pronunciou sobre esta questão e deveria ter-se pronunciado, ou seja, deveria ter dado como provado um facto que a final decide sobre o mesmo, pese embora o facto de referir que por transação judicialmente homologada, a aqui Apelante e Apelado, este reconhece ter na sua posse apuro de valores que pertencem à Apelante. (artigo 615º nº 1 alínea d) do Código de Processo Civil)”
O autor/recorrido respondeu pugnando pela improcedência do recurso quanto às aludidas nulidades.
Refere o Ilustre Magistrado do Ministério Público no seu douto parecer: “Quanto à nulidade da sentença entende-se que não assiste razão à Recorrente A..., Lda., nomeadamente prevista nas als. c) e d) do art. 615º do CPC. Na verdade, A. e Ré a) deu-se como provado o acordo alcançado no procedimento cautelar, nos seguintes termos: “Por acordo judicialmente homologado datado de 14 de abril de 2021, constante de fls. 108 e 109 do apenso A (procedimento cautelar comum), ficou estipulado o seguinte: o A. possui apuros de valores da R., na sua posse; a R. reconhece que não procedeu ao pagamento ao A. dos valores relativos aos vencimentos dos meses de maio, junho e julho (lay-off), no montante global de € 1 270; este quantitativo de € 1 270 será deduzido ao valor dos referidos apuros;”... Assim, salvo melhor opinião não tinha a douta sentença em recurso, que dar como provados factos que constam deste acordo, nomeadamente que o Trabalhador tinha na sua posse, “apuros” da entidade empregadora, que é legitimo compensar estes apuros com dívidas ao trabalhador... E, naturalmente, não estando determinado o valor desses apuros, tem de ficar para liquidação de sentença a concretização de tais valores, sem que haja contradições na sentença.”
Nos termos do art. 615º, nº 1, al. c), do CPC, é nula a sentença quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível.
A propósito considerou-se no acórdão desta Secção Social do Tribunal da Relação do Porto de 7 de Dezembro de 2018, processo 9720/17.0T8PRT.P1: “As nulidades podem ser processuais, se derivam de actos ou omissões que foram praticados antes da prolação da sentença; podem também ser da sentença, se derivam de actos ou omissões praticados pelo Juiz na sentença. A nulidade invocada reporta-se a uma contradição real entre os fundamentos e a decisão: a construção da sentença é viciosa, uma vez que os fundamentos referidos pelo juiz conduziriam necessariamente a uma decisão de sentido oposto ou, pelo menos, de sentido diferente. Ou, por outras palavras, quando existe uma quebra no raciocínio lógico, não retirando o juiz, das premissas de que parte, a conclusão lógica que se imporia no silogismo judiciário. De referir que tal nulidade não se confunde com eventual erro de julgamento, em que, embora podendo (eventualmente) fazer uma errada subsunção dos factos ao direito, não existe qualquer quebra ou contradição no raciocínio lógico, conduzindo o que diz com o resultado que retira.”
Salienta-se ainda no acórdão do STJ de 26 de Janeiro de 2021, processo 2350/17.8T8PRT.P1.S2, acessível em www.dgsi.pt, “O vício a que se reporta o apontado segmento normativo implica, por um lado, que haja uma contradição lógica no Aresto, o que significa, para a sua ocorrência, que a fundamentação siga um determinado caminho e a decisão opte por uma conclusão completamente diversa, e, por outro, que tal fundamentação inculque sentidos diversos e/ou seja pouco clara ou imperceptível.”
Por outro lado, a obscuridade ocorre quando “a sentença, ou parte dela, é ininteligível” e, na ambiguidade, quando a sentença se apresenta “também total ou parcialmente, com um sentido duplo”, conforme José Lebre de Freitas, A. Montalvão Machado e Rui Pinto, no Código de Processo Civil Anotado, Volume 2º, Coimbra: Coimbra Editora, 2001, pág. 672.
Quanto à última, nos termos do art. 615º, nº 1, al. d), do CPC, a sentença é nula quando a mesma deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar. O juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras, e não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras (art. 608º, nº 2, do CPC). É a violação deste preceito que aqui é cominada com nulidade da sentença (Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, volume V, 2012, pág. 142). Mas, como referem José Lebre de Freitas, A. Montalvão Machado e Rui Pinto, no Código de Processo Civil Anotado citado, pág. 670, “Há nulidade quando falte em absoluto a indicação dos fundamentos de facto ou a indicação dos fundamentos de direito da decisão (...). Não a constitui a mera deficiência de fundamentação”. Este é entendimento pacífico na doutrina e na jurisprudência. Veja-se igualmente Jorge Pai de Amaral, em Direito Processual Civil, 9ª edição, 2010, pág. 393.
No caso a recorrente vem invocar como fundamento da nulidade, não ter a sentença consagrado o valor dos “apuros” na posse do recorrido e que o mesmo deles se “apropriou”.
Considerou-se na sentença: “Resta incidirmos sobre o pedido reconvencional formulado. Neste circunspecto, pretende a R. ver o A. condenado no pagamento do quantitativo global de € 23 090,30, relativo a valores de apuros pertença da R, referentes aos anos de 2018, 2019 e 2020, e que o A. tem na sua posse. Analisada, uma vez mais, a matéria de facto tida por provada e não provada, da mesma retira-se, desde logo, que, por força da já supra referenciada transação judicialmente homologada a que as aqui partes chegaram a fls. 108 e 109 do apenso A, estas concordaram que o A. possui na sua posse apuros de valores da R. No entanto, não foi possível concretizar o valor de tais apuros, pelo que se remete a respetiva liquidação para momento processual posterior, o que se faz ao abrigo do disposto no art. 609º nº 2 do C. P. Civil.”
Constata-se, pois, que a sentença aborda a questão, de forma que não se revela contraditória ou ambígua, pelo que não se verifica qualquer das apontadas nulidades.
Acresce que, nesse caso, de eventual não consideração de determinado facto, estaremos numa situação de eventual erro de julgamento e não de nulidade por omissão de pronúncia. Conforme se refere no acórdão do STJ de 17 de Outubro de 2017, processo 1204/12.9TVLSB.L1.S1, acessível em www.dgsi.pt, “As causas de nulidade de sentença (ou de outra decisão), taxativamente enumeradas nesse artigo 615º, visam o erro na construção do silogismo judiciário e não o chamado erro de julgamento, a injustiça da decisão, ou a não conformidade dela com o direito aplicável, nada tendo a ver com qualquer de tais vícios a adequação aos princípios jurídicos aplicáveis da fundamentação utilizada para julgar a pretensão formulada: não são razões de fundo as que subjazem aos vícios imputados, sendo coisas distintas a nulidade da sentença e o erro de julgamento, que se traduz numa apreciação da questão em desconformidade com a lei.” No mesmo sentido o acórdão do mesmo Supremo Tribunal de 3 de Outubro de 2017, processo 2200/10.6TVLSB.P1.S1, ainda acessível em www.dgsi.pt.
Por outro lado, o eventual erro na apreciação da matéria de facto deve ser conhecido nos termos do art. 662º do CPC, nomeadamente do seu nº 2, al. c), e não como nulidade da sentença.
Improcedem, pois, os apontados fundamentos do recurso da ré.

2. Impugnação da decisão relativa à matéria de facto (recurso do autor)
O recorrente/autor veio impugnar a decisão relativa à matéria de facto, referindo:
Pela isenção de horário de trabalho;
52.Assim, foi provado que o autor trabalhou em regime de isenção de trabalho e foi claramente atribuído ao autor esse direito, no entanto, não se conseguiram liquidar os dias que o autor trabalhou;
53.Ora, nós entendemos que nesta parte conseguiu o autor provar os dias de trabalho prestado, porque foram todos, ou seja, se trabalhava como motorista ele também era gestor e não parava, se parava para descansar tinha de estar disponível;
54. Veja-se o depoimento da testemunha EE na respetiva audiência de julgamento: (...)
55. O que aqui chegados, mas que depois iremos concluir abaixo, contudo aqui temos já a retirar que de facto desde 2015 o autor trabalhava todos os dias e tinha de estar disponível para dar apoio (como gestor) aos demais colegas que pelo menos partir de fevereiro de 2016 (vd a passagem supra [00:02:52] EE) aumentaram e por isso disponível todos os dias.
56. Posto isto, por este depoimento temos que o autor trabalhou, pelo menos desde setembro de 2015 nas funções como motorista e nas funções como gestor e por causa das duas conjugadas teve de estar disponível 24 horas por dia e 365 dias por ano (conjugando o seu sono com aquelas interrupções);
57. Olhamos agora para o depoimento da testemunha HH; (...)
58. Chegados aqui constatamos que o autor trabalhava 24 horas, naturalmente teria o seu sono, no entanto, seria um sono de comerciante tinha de estar disponível para qualquer situação como atrás também já se ressaltou;
59. Contudo, continuando a olhar para os depoimentos constatamos que o Sr. II é também perentório a referir que mesmo durante a noite o autor tinha de estar disponível;
60. Vejamos: (...)
61. Mas, podemos ver outros depoimentos, ora vejamos o de JJ: (...)
62. Vejamos também a testemunha FF: (...)
63. Vamos olhar para outra testemunha neste caso KK; (...)
64. Ora retiramos destes depoimentos que o autor pelo menos desde setembro de 2015 tinha de estar disponível como motorista trabalhando todos os dias e depois a partir de agosto de 2019 (ou melhor meados de 2019) trabalhou também todos os dias;
65.Portanto, o autor provou que trabalhou todos os dias, porém compreendemos que tal remuneração de isenção de horário de trabalho tenha de ser apurada, ora até meados de 2019 pela convenção coletiva e desta data em diante pelo Código do Trabalho;
Pelo trabalho noturno;
66.No que toca ao trabalho noturno vem dito na sentença que foi provado que o autor trabalhou durante a noite, no entanto, que o autor só realizava esse trabalho quando era solicitado pelos seus colegas;
67. Ora, a sentença reduz tal desiderato à parte da função de gestor;
68. Todavia, nós olhando os depoimentos constatamos que pelas palavras de EE supra descritas, que por economia não as voltamos a reproduzir, ora nomeadamente, desde “[00:02:52] EE:” a “[00:06:53] EE:”;
69. Esta testemunha refere que o autor trabalhava todos os dias desde 2015 até por volta de 2018 (nós dizemos meados de 2019 como foi apurado na sentença) e no horário das 18:00 às 06:00;
70. Posto isto, entendemos que o autor pelo menos até meados de 2019 realizou trabalho noturno por conta da sua função de motorista;
71. Por conta da função de gestor, ele também trabalhou durante a noite;
72.De facto, nas palavras das demais testemunhas, nomeadamente a testemunha HH, que por mera economia não voltamos a reproduzir, ora diz a nossas instâncias de “[00:09:38] Mandatário do Autor (Dr. LL): a [00:09:46] HH:”
73. Diz que o autor trabalhava durante 24 horas, dia e noite, ora pela função de motorista, ora pela função de gestor;
74.Portanto, este depoimento conjugado com aquele outro constatamos que o autor fez trabalho noturno desde o início do seu contrato até meados de 2019, pelo menos na função de motorista, porque na função de gestor também teve de o fazer, porque teve de estar disponível para auxiliar os demais colegas quando eles o necessitassem;
75. Assim, reiteramos que foi prestado trabalho noturno, na função de motorista desde o início do contrato até que em meados de 2019 começou a exercer essas funções pontualmente, no entanto, como gestor também fez e prestou trabalho noturno;
Dos feriados;
76.Continuando a olhar a sentença, constatamos que a mesma considerou como não provados que o autor não trabalhou nos feriados todos que foram salientados na P.I;
77. Ora, como se viu dos depoimentos anteriores, nomeadamente EE e HH, os quais por mera economia não se voltam a reproduzir falam;
78. O primeiro diz que o autor trabalhava das 18:00 às 06:00 todos os dias e ainda tinha de fazer de gestor da empresa (vd. [00:02:52] EE:”);
79. Ora, daqui se retira que o autor trabalhava na função de motorista 12 horas por dia;
80. A Testemunha HH nas suas declarações, que voltamos a não reproduzir por mera economia diz de “[00:09:22] a [00:09:49]” que o autor trabalhava aos feriados e fazia 24 horas;
81. Ou seja, fazia trabalho de motorista e depois ainda tinha de fazer trabalho de gestor;
82. Portanto, o autor trabalhava todos os feriados, por isso deveria ter sido dado como provado que o autor trabalhou nos feriados;
Do trabalho suplementar;
83. Mais se retira daqueles depoimentos, que acima fomos frisando, que o autor trabalhava nas funções de motorista 12 horas, porque os carros não podiam estar parados e tinham de estar sempre a arranjar mais e mais clientes;
84.Portanto, se a testemunha EE diz que trabalhavam das 18:00 às 06:00 significava que o autor trabalhava essas 12 horas;
85. E se a testemunha HH refere que o autor tinha de trabalhar nessas funções de depois tinha de trabalhar nas de gestor o resto do tempo, é saliente que o autor fez trabalho suplementar nas duas funções;
86. Porém, na função de motorista é mais fácil de se atingir, porque EE refere os períodos, enquanto, para a outra função o autor tinha de estar disponível, ora para receber os carros, ora para entregar os carros, ora para fazer as contas quando os carros chegavam, ora para se deslocar a algum acidente ou assalto, ora para tomar parte de reclamações etc.;
87. Posto isto, entendemos que o autor prestou trabalho suplementar na função de motorista e por mais 4 horas que o período normal de trabalho;
88.Nas funções de gestor, ele também prestou trabalho suplementar, cujo se repercutiu àquela disponibilidade diária para realizar todo aquele serviço a favor da empresa;
89.Por efeito, entendemos que deve ser dado como provado a prestação deste trabalho suplementar;
Trabalho durante os fins de semana (sábados e domingos);
90. Tendo em conta aqueles depoimentos que acima já reproduzimos, nomeadamente, HH desde [00:09:12] a [00:09:52] e EE desde [00:02:44] a [00:07:51];
91.Retira-se dos mesmos que o autor como motorista trabalhou durante todos os fins de semana e como gestor acabava a ter de trabalhar, porque tinha de estar disponível para os demais colegas, fosse para receber os carros, fosse para entregar os carros, fosse para fazer contas, fosse para receber reclamações, acorrer a ajudar a algum colega, etc.
92. Posto isto, o autor como motorista, desde que iniciou o contrato de trabalho e até meados de 2019, teve de trabalhar aos fins de semana e como gestor teve igualmente de trabalhar nesses feriados, porque tinha de estar disponível 24 horas por dia ou noite;
93. Assim, entendemos que deveria ter sido considerado como provado que o autor trabalhou durante todos os fins de semana, como motorista e ainda como gestor;”
E nas conclusões:
“Da isenção de horário de trabalho;
(...)
O. Assim, nesta parte e dando cumprimento ao artigo 639º, nº 1 do C.P.C concluímos que deveria ter sido considerado que o autor trabalhou todos os dias do seu contrato em regime de isenção de horário de trabalho, portanto, o que deve ser declarado com as respetivas consequências nos créditos e suas contas (aqui remetemos para a nossa P.I. retificada);
Do trabalho noturno;
(...)
T. Portanto, dando cumprimento ao artigo 639º, nº 1 do C.P.C, concluímos que o autor trabalhou no horário das 18:00 às 06:00 desde o início do contrato até meados de 2019, contudo, a partir daqui como gestor tinha de estar disponível durante a noite e acorria a situações durante a noite, por efeito, também realizou trabalho noturno nesta altura o que deve ser declarado com as respetivas consequências nos créditos e suas contas;
Dos feriados;
(...)
X. Portanto, dando cumprimento ao artigo 639º, nº 1 do C.P.C, concluímos que o autor trabalhou todos os feriados, o que posto isto deveria ter sido considerado na sentença que o autor trabalhou todos os feriados, o que não tendo sido feito deve agora ser declarado com as respetivas consequências nos créditos e suas contas;
Do trabalho suplementar;
(...)
DD. Portanto, dando cumprimento ao artigo 639º, nº 1 do C.P.C, concluímos que o autor trabalhou pelo menos até meados de 2019 todos os dias 12 horas por dia e que a partir de meados de 2019 até que cessou o contrato também fez trabalho suplementar o que tal deve ser declarado com as respetivas consequências nos créditos e suas contas;”
Refere o Ilustre Magistrado do Ministério Público no seu douto parecer: “Quanto à impugnação da decisão sobre a matéria de facto, entende-se, salvo melhor opinião, que ambos os recursos, não dão cabal cumprimento ao disposto no art. 640º, do CPC, indicando concretamente os factos incorrectamente julgados, os meios de prova que impunham decisão diversa, bem como a decisão que deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas. Embora se refiram a factos que consideram mal julgados, não vêm referidos os concretos meios probatórios constantes do processo ou do registo ou gravação nele realizada, que determinavam diferente decisão. Não basta dizer que determinados factos não se provaram é necessário indicar elementos de prova que impunham decisão diversa.”
Nos termos do art. 640º, nº 1, do CPC, quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
Acrescenta-se no nº 2 do mesmo artigo: No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte: a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes; b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
Impõe-se aqui um ónus rigoroso ao recorrente, cujo incumprimento implica a imediata rejeição do recurso (Fernando Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, 7ª edição, Coimbra: Almedina, 2006, pág. 170).
A garantia do duplo grau de jurisdição em matéria de facto converge com o ónus específico de alegação do recorrente no que concerne à delimitação do objecto do recurso e à respectiva motivação, pelo que não pode ser recebido o recurso sobre a decisão da matéria de facto se o recorrente não indicar os segmentos por ele considerados afectados de erro de julgamento e os motivos da sua discordância por via da concretização dos meios de prova produzidos susceptíveis de implicar decisão diversa da impugnada (Acórdão do STJ de 1 de Julho de 2004, processo nº 04B2307, acessível em www.dgsi.pt).
Importa, ainda, considerar que, se por um lado, sendo objeto do recurso, como é, delimitado pela conclusões, a parte que pretenda impugnar a decisão da matéria de facto deve indicar nas conclusões quais os concretos pontos da decisão da matéria de facto de que discorda e o sentido das respostas que pretende (conforme acórdão do STJ de 7 de Julho de 2016, processo 220/13.8TTBCL.G1.S1, acessível em www.dgsi.pt), já a fundamentação dessa impugnação, mormente quanto aos meios probatórios em que assenta a impugnação, poderá ela ter lugar em sede de alegações, conforme o acórdão do STJ de 20 de Dezembro de 2017, processo 2994/13.2TTVRL.G1.S2, ainda acessível em www.dgsi.pt. No mesmo sentido o acórdão do mesmo STJ de 12 de Julho de 2017, processo 167/11.2TTTVD.L1.S1, igualmente acessível em www.dgsi.pt.
Por outro lado, a indicação e análise da prova que justifica decisão distinta da proferida em primeira instância tem que ser feita individualmente para cada facto e não para toda a matéria de facto que se pretende impugnar ou em grupos de factos. Nesse sentido se tem pronunciado o STJ, nomeadamente no acórdão de 5 de Setembro de 2018, processo 15787/15.8T8PRT.P1.S2, ainda acessível em www.dgsi.pt, do qual consta: “não tendo o recorrente concretizado os meios de prova que em relação a cada um dos factos impugnados impõem uma decisão diversa, temos de concluir que não cumpriu os ónus impostos pelo mencionado preceito.” Veja-se igualmente o acórdão do STJ de 27 de Setembro de 2018, processo 2611/12.2TBSTS.L1.S1, acessível em www.dgsi.pt, e o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 5 de Novembro de 2012, processo 434/09.5TTVFR.P1, acessível em bdjur.almedina.net.
Segundo Lopes do Rego, “A expressão ‘ponto da matéria de facto’ procura acentuar o carácter atomístico, sectorial e delimitado que o recurso ou impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto em regra deve revestir, estando em harmonia com a terminologia usada pela alínea a) do nº 1 do art. 640º: na verdade, o alegado ‘erro de julgamento’ normalmente não inquinará toda a decisão proferida sobre a existência, inexistência ou configuração essencial de certo ‘facto’, mas apenas sobre determinado e específico aspecto ou circunstância do mesmo, que cumpre à parte concretizar e delimitar claramente” (Carlos Lopes do Rego, Comentários ao Código de Processo Civil, vol. I, Coimbra: Almedina, 2004, pág. 608).
Veja-se ainda António Abrantes Geraldes, em Recursos no Novo Código de Processo Civil, Coimbra: Almedina, 2013, páginas 126-127 e 129, concluindo: “as referidas exigências devem ser apreciadas à luz de um critério de rigor. Trata-se, afinal, de um decorrência do princípio da autorresponsabilidade das partes, impedindo que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo”.
O art. 640º do CPC é claro e expresso na consequência da omissão do cumprimento dos requisitos nele previstos, qual seja a imediata rejeição da impugnação. Conforme se refere no sumário do mencionado acórdão do STJ de 27 de Setembro de 2018, “Relativamente ao recurso de impugnação da decisão sobre a matéria de facto não há lugar ao despacho de aperfeiçoamento das respectivas alegações uma vez que o art. 652º, nº 1, al. a), do CPC, apenas prevê a intervenção do relator quanto ao aperfeiçoamento “das conclusões das alegações, nos termos do nº 3 do art. 639º, ou seja, quanto à matéria de direito e já não quanto à matéria de facto.”
Analisada a impugnação do recorrente/autor ressalta desde logo a falta de indicação em concreto da matéria de facto consagrada como provada ou não provada na sentença, que se considera incorrectamente julgada, ou por referência ao alegado nos articulados se a mesma não tivesse reflexo na matéria de facto fixada na sentença, limitando-se o recorrente às referências genéricas “deveria ter sido considerado que o autor trabalhou todos os dias do seu contrato em regime de isenção de horário de trabalho”, “concluímos que o autor trabalhou no horário das 18:00 às 06:00 desde o início do contrato até meados de 2019, contudo, a partir daqui como gestor tinha de estar disponível durante a noite e acorria a situações durante a noite, por efeito, também realizou trabalho noturno nesta altura o que deve ser declarado”, “deveria ter sido considerado na sentença que o autor trabalhou todos os feriados”, “concluímos que o autor trabalhou pelo menos até meados de 2019 todos os dias 12 horas por dia e que a partir de meados de 2019 até que cessou o contrato também fez trabalho suplementar o que tal deve ser declarado”.
Poderá defender-se que a referência em questão constitui concretização suficiente, ainda que deficiente, dos “pontos de facto que considera incorretamente julgados”?
A resposta não pode deixar de ser negativa.
Efectivamente, a matéria invocada de forma genérica nas conclusões consta expressamente nas alíneas da matéria de facto provada (conforme als. x) e y) dos factos provados, relativamente à questão da isenção do horário de trabalho), ou dos pontos da matéria de facto julgada como não provada (conforme pontos 3 a 22, 27 e 28 da matéria de facto não provada).
Ora, apreciar as questões colocadas desta forma nas alegações do recorrente/autor, implicaria uma actividade de interpretação e integração das alegações do recorrente, tendo o tribunal que encontrar na matéria de facto provada e não provada qual a matéria que o mesmo pretenderia impugnar, o que está vedado do tribunal, face ao princípio do dispositivo.
Assim, concluindo-se, como se conclui, que o recorrente/autor não especificou quais os “pontos de facto que considera incorretamente julgados”, o que necessariamente teria que fazer nas conclusões, que delimitam o objecto do recurso, por imperativo do art. 640º, nº 1, do CPC, rejeita-se a impugnação efectuada à decisão relativa à matéria de facto.

3. Impugnação da decisão relativa à matéria de facto (recurso da ré)
Alega a recorrente/ré nas conclusões de recurso:
XV. Deverão ser dados como não provadas, a este propósito, as alíneas d), e), f), g), h), i), j), k), p), q), r) e s), todos estes factos dados como provados, não o deveriam ter sido, mas sim como não provados dado que todos decorrem, na análise do tribunal “À quo”, da categoria profissional que o apelado nunca teve, aliás decorre do senso comum e de uma análise não muito aprofundada, que em 2019 a função de motorista fosse exercida pontualmente pelo aqui apelado e que só a exercesse em caso de necessidade da empresa.
XVI. Os contratos directos para os funcionários da empresa na zona de Vila Nova de Gaia, forma criados, incrementados e afirmados pelo Apelado, mas tal facto não lhe concede a mudança de categoria profissional, por seu mote próprio.
XVII. De todos os factos aqui enunciados, dados como provados, não tiveram a mínima concretização na prova produzida, não foi enunciado um único trabalhador contratado pelo Apelado (obviamente não podem ser contabilizados os familiares do mesmo), não foi apontada de qualquer tentativa de assalto, qualquer reclamação, nenhum acidente.
XVIII. Uma decisão sobre a factualidade não se apresenta incólume perante a necessidade do julgador ter formado a sua convicção acerca da realidade que lhe foi submetida. A objectividade decorrente da prova produzida perante o julgador é trespassada pela natural subjectividade deste.
XIX. Em face deste depoimento de parte do BB não poderiam ser dados como provados os factos constantes das alíneas p), q), r), s) e t) da matéria dada como provada, os quais deveria constar da matéria dada como não provada, sendo a acção interposta pelo Autor dada como improcedente.
XX. O autor nunca exerceu qualquer outra função e categoria que não fosse a de motorista. Deveriam ser dados como não provadas a alíneas d) até k), da matéria dada como não provada.
XXI. Devem ser dados como não provados os factos constantes das alíneas y) e z) da matéria dada como provada. Com a respectiva repercussão na decisão final, ou seja, a improcedência total da acção.
XXII. Do depoimento da testemunha FF resulta que o autor nunca poderia ter sido gestor de frota, quando se encontra abundantemente provado que sempre foi sempre motorista.
XXIII. Do depoimento da testemunha GG nada poderá ser retirado, uma vez que este se afigura demasiadamente ensaiado, até pela aparente descontracção com que é proferido, sendo notórias contradições incontornáveis.
XXIV. Do depoimento da DD e da experiência e senso comum, não poderia, nem resultou provado de qualquer outro depoimento as alíneas hh), ii) e jj) da matéria fáctica dada como provada, sendo que terá essa falta de prova decorreriam sempre consequências processuais, que se iriam reflectir no apuramento de eventual indemnização, nomeadamente o número 12 da decisão.
E concretiza no corpo das alegações:
“Definição de categoria profissional no caso dos autos
(...)
Deverão ser dados como não provadas, a este propósito, as alíneas d), e), f), g), h), i), j), k), p), q), r) e s).
(...)
O depoimento do legal representante – MM (24/03/2022, tempo áudio 00:39:09): (...)
Em face deste depoimento não poderiam ser dados como provados os factos constantes das alíneas p), q), r), s) e t) da matéria dada como provada, os quais deveria constar da matéria dada como não provada, sendo a acção interposta pelo Autor dada como improcedente.
(...)
Em face desta parte do depoimento, teriam que ser dados como não provadas as alíneas dadas como provadas na sentença, respeitantes às alíneas m), n) e o), com o consequente efeito negativo do pedido formulado pelo autor.
Ainda,
(...)
O autor nunca exerceu qualquer outra função e categoria que não fosse a de motorista. Deveriam ser dados como não provadas a alíneas d) até k), da matéria dada como não provada.
(...)
Devem ser dados como não provados os factos constantes das alíneas y) e z) da matéria dada como provada. Com a respectiva repercussão na decisão final, ou seja, a improcedência total da acção.
(...)
Demonstrativo de que alguma vez o autor tivesse outra categoria para além de motorista, aliás expressa no contrato de trabalho.
(...)
Resulta do depoimento da testemunha – FF (24/03/2022, tempo áudio 00:40:45): (...)
Desvanece-se por aqui a aspiração do autor a gestor de frota, quando se encontra abundantemente provado que sempre foi sempre motorista.
(...)
Não pode ser dado, por este depoimento que as contas dos motoristas eram entregues da forma descrita na alínea l) e m) da matéria dada como Não provada, devendo estas alíneas ser matéria dada como provada.
O depoimento da testemunha – GG (24/03/2022, tempo áudio 00:26:30):
Afigura-se este depoimento demasiadamente ensaiado, até pela aparente descontracção com que é proferido, sendo notórias contradições incontornáveis, senão vejamos: (...)
Não poderão ser dados como provados os factos constantes das alíneas t) e u) da matéria dada como provada, para além das conclusões que retira de factos a que não tem conhecimento directo.
(...)
Deste depoimento e da experiência e senso comum, não poderia, nem resultou provado de qualquer outro depoimento as alíneas hh), ii) e jj) da matéria fáctica dada como provada, sendo que terá essa falta de prova decorreriam sempre consequências processuais, que se iriam reflectir no apuramento de eventual indemnização, nomeadamente o número 12 da decisão.
O alegado aumento de vencimento
Nunca houve qualquer aumento do vencimento do aqui Apelado, de forma definitiva ou permanente, vejamos aprova produzida:
O depoimento do legal representante – MM (24/03/2022, tempo áudio 00:39:09): (...)
Não pode ser dado como provada a alínea s) dos factos provados mencionados na Sentença em crise.
O depoimento da testemunha – GG (24/03/2022, tempo áudio 00:26:30): (...)
A credibilidade desta testemunha é confrangedora.
O depoimento da testemunha – DD (24/03/2022, tempo áudio 00:51:43): (...)
Deste depoimento resulta que não deveriam ter sido dados como provados os factos constantes da Douta sentença que foram qualificados como tal, mas sim não provados, em concreto a alíneas: d), e), f), i), j), k), s) e y), que deverão ser dados como factos não provados.”
Replicou o recorrido/autor:
“20. (...) a testemunha FF corrobora é corroborada pela testemunha EE e vice versa;
21.Assim, não nos parece que a recorrente tenha razão quando diz que o recorrido era apenas motorista;
22. Quanto ao que foi dado como provado nas al. hh) a jj) temos todas os depoimentos de HH, EE e KK familiares do recorrido que o acompanharam neste período e que o viram bastante abalado tal como se diz na sentença;
(...) 25. Portanto, chegados aqui é abundante a prova sobre estes factos, o que posto isto resulta que a recorrente não tem razão no que alegou e concluiu para estes pontos;”
O Ilustre Procurador Geral Adjunto pronunciou-se pela rejeição do recurso nos termos acima referidos.
Analisando a impugnação da recorrente/ré, relativamente a cada uma das impugnações individualizadas:
Factos provados sob as als. p), q), r), s) e t):
É o seguinte o teor das alíneas em questão:
p) Tudo o que o A. retirasse de produto como motorista para si recebia 35% de tal produto;
q) Caso lhe avariasse o carro ou tivesse um acidente e o carro tivesse de ficar parado, o A. não receberia o valor da retribuição nesse mês;
r) Caso fizesse férias, o A. não recebia a sua retribuição;
s) Em mês não concretamente apurado do ano de 2019, o A., apoiando-se na mediação de um amigo comum com o gerente da R., conseguiu que este último, BB, aumentasse a sua retribuição do salário mínimo nacional para € 1.000, apesar de a R. não ter refletido isso nos recibos de vencimento;
t) A R., a partir de agosto de 2020, inclusive, pagou ao A. subsídio de férias e subsídio de Natal;
Alicerça tal pretensão no depoimento do legal representante da recorrente, MM.
Consta da sentença, quanto à motivação da decisão relativa a tais factos: “As testemunhas FF, EE e II aludiram ao procedimento descrito em m), n) e p), bem como confirmaram o inserto em q) e r). (...) A testemunha GG descreveu pormenorizadamente as diligências que encetou no sentido de, junto do legal representante da R., convencer este da necessidade de aumentar a remuneração mensal do A., intento que conseguiu alcançar, passando aquela do salário mínimo nacional para € 1.000 mensais. Continuou a mesma testemunha que, apesar de ter manifestado a sua concordância, BB deixou claro que não pretendia declarar os ditos € 1.000, razão pela qual nos recibos de retribuição do aqui trabalhador continuou a constar como retribuição-base deste o montante correspondente ao salário mínimo nacional. A testemunha NN, que entrou ao serviço da R. em agosto de 2020, referiu, de forma isenta, que a partir desse mês a aqui entidade empregadora pagou aos seu colaboradores os subsídios de férias e de Natal, desconhecendo se tal assim sucedia em momento temporal anterior. O mesmo foi mencionado pela testemunha DD.”
Considerou-se no recente acórdão desta Secção Social do Tribunal da Relação do Porto de 8 de Maio de 2023, processo 3221/20.6T8PNF.P1, não publicado, subscrito pelo relator e aqui primeiro adjunto, como adjuntos:
“(...) na indicação dos meios probatórios [sejam eles documentais ou pessoais] que sustentariam diferente decisão [art. 640º, nº 1, al. b)], deverão eles ser identificados e indicados por referência aos concretos pontos da factualidade impugnada [ou a um conjunto de factos que estejam interligados e em que os meios de prova sejam os mesmos] de modo a que se entenda a que concretos pontos dessa factualidade se reportam os meios probatórios com base nos quais a impugnação é sustentada, mormente nos casos em que se pretende a alteração de diversa matéria de facto. Só assim será possível ao tribunal ad quem perceber e saber quais são os concretos meios de prova que, segundo o Recorrente, levariam a que determinado facto devesse ter resposta diferente da que foi dada.
[Cfr. Acórdão do STJ de 20.12.2017, Proc. 299/13.2TTVRL.G1.S2, e de 19.12.2018, Proc. 271/14.5TTMTS.P1.S1, ambos in www.dgsi.pt, constando do sumário deste último o seguinte: “I - A alínea b), do nº 1, do art. 640º do CPC, ao exigir que o recorrente especifique “[o]s concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida”, impõe que esta concretização seja feita relativamente a cada um daqueles factos e com indicação dos respetivos meios de prova, documental e/ou testemunhal e das passagens de cada um dos depoimentos. II - Não cumpre aquele ónus o apelante que, nas alegações e nas conclusões, agrega a matéria de facto impugnada em blocos ou temas e indica os meios de prova relativamente a cada um desses blocos, mas omitindo-os relativamente a cada um dos concretos factos cuja decisão impugna.
Assim também os Acórdãos do STJ de 21.09.2022, Proc. 1996/18.1T8LRA.C1.S1, constando do respetivo sumário: “I- A impugnação da matéria de facto “em bloco” viola o disposto no artigo 640.º do CPC, mormente quando não está em causa um pequeno número de factos ligados entre si e um número reduzido de meios de prova (por exemplo, o mesmo depoimento), mas um amplíssimo conjunto de factos (ou, melhor, dois amplos blocos de factos) e numerosos meios de prova” e de 12.10.2022. Proc. 14565/18.7T8PRT.P1.S1, constando do respetivo sumário: “I – Para poder validamente impugnar a matéria de facto, o Recorrente tem de cumprir os ónus imposto pelo art.º 640º do CPC. II – Em princípio, a impugnação da matéria de facto não pode ser feita por blocos de factos, antes tem de ser feita discriminadamente, por concreto ponto de facto. III - E não pode ser feita por remissão genérica para determinados meios de prova, sem demonstrar a sua relevância quanto a determinado facto concreto.”, ambos in www.dgsi.pt].]”
Analisando o caso, em função dos apontados princípios, concluímos que a recorrente/ré procede à identificação dos factos que considera incorrectamente julgados, no caso, provados, e qual o sentido da decisão que entende deve se proferida, como não provados. Já quanto à indicação dos meios de prova que entende justificarem a pretendida alteração, entende-se que a recorrente não cumpre o ónus imposto pelo art. 640º, nº 1, al. b), do CPC.
De facto, a recorrente impugna a decisão relativamente a várias alíneas da matéria de facto considerada provada, violando, assim, a obrigação da impugnação atomística que lhe é imposta pelo referido preceito legal. Ou seja, a recorrente invoca o mesmo depoimento para impugnar a decisão referente a várias alíneas, não especificando qual a parte do mesmo depoimento que fundamenta a impugnação relativamente a cada alínea individualmente, assim impossibilitando a apreciação da impugnação.
É certo, como se referiu, que a impugnação simultânea de vários factos é admissível quando estamos perante “um pequeno número de factos ligados entre si e um número reduzido de meios de prova”, mas não relativamente a factos desligados e diversos. Explicitando, embora essa conexão exista nos factos das als. p), q) e r), ou entre as als. s) e t), no seu conjunto não existe qualquer conexão entre os dois conjuntos.
Assim, rejeita-se a impugnação da decisão relativa à matéria de facto, neste aspecto.
De todo o modo, sempre o depoimento do legal representante da recorrente se revelaria manifestamente insuficiente para abalar a convicção expressa na sentença e acima transcrita.
Factos provados sob as als. m). n) e o):
É o seguinte o teor das alíneas em questão:
m) O motorista entregava ao A. uma descrição do que trabalhou e o remanescente do dinheiro que tinha em mão (porque havia pagamentos de clientes feitos por multibanco), e faziam logo ali um acerto de contas;
n) O motorista retirava a sua percentagem e apresentava todos os documentos de despesas com gasóleo e todos os documentos emitidos pelo multibanco;
o) De seguida, o A. reunia com o sócio-gerente da R., BB, e entregava-lhe as contas, que logo ele analisava e dava como boas ou más;
No caso vertente, entendemos que se está perante uma situação de factos conexos (uma mesma situação cindida nos três referidos factos), pelo que, tendo a recorrente indicado a decisão que entende dever ser proferida e indicando os meios de prova que a sustentam, no caso apenas o depoimento de parte do seu legal representante, se impõe conhecer da impugnação.
Consta da sentença: “As testemunhas FF, EE e II aludiram ao procedimento descrito em m), n) e p), bem como confirmaram o inserto em q) e r). O legal representante da R. (MM), no seu depoimento de parte, reconheceu a veracidade da matéria de facto feita constar da alínea o).”
Ora, ouvida a prova produzida em audiência, não só se confirma o acerto da decisão, como ainda se verifica que o depoimento do legal representante da recorrente reconhece a matéria em causa, como resulta da parte transcrita pela própria recorrente, nomeadamente quando refere “[00:17:04] Meritíssimo Juiz: Mas quem é que depois retirava os dados dos taxímetros? [00:17:09] BB: O Sr. AA ao entregar...”.
Assim, mantém-se a decisão quanto a esta matéria.
Factos provados sob as als. d) até k):
Têm estes a seguinte redacção:
d) A função de motorista, a partir de meados de 2019, era exercida pontualmente pelo A., quando a empresa por alguma dificuldade necessitava de um motorista por falta de outro;
e) O A., sob as ordens do gerente da R., fazia contratação de funcionários (publicitava que a empresa tinha uma vaga para motorista de táxi, depois reunia com os candidatos e, verificando que os mesmos correspondiam aos requisitos da empresa, disso dava conta ao gerente da empresa, o qual validava, ou não, a entrada do funcionário na empresa, através da assinatura do contrato de trabalho);
f) Era o A. que, por ordem da gerência da R., oferecia o seu contacto direto a cada funcionário da empresa para que caso houvesse alguma situação, fosse esta com clientes (tentativas de assalto, reclamações), fosse com o próprio carro (avarias, acidentes), aqueles o pudessem contactar vinte e quatro horas por dia;
g) Todas as agendas dos motoristas tinham os números de emergência, nos quais constava o do A.;
h) Nas faturas da empresa foi impresso pela gerência o número de telefone do A. para contactos pelos clientes em caso de reclamação dos serviços;
i) Quando existiam problemas com o motorista ou com o carro, nomeadamente quando avariava ou quando aconteciam acidentes, ou quando existiam tentativas de assalto durante a noite aos motoristas da empresa, era o A. que, durante a noite, se dirigia ao local onde estivessem esses motoristas, auxiliando-os e efetuando os necessários contactos com autoridades, mecânicos e seguradoras;
j) Era o A. quem passava à gerência os pedidos dos trabalhadores, nomeadamente em matéria de reivindicações de direitos e créditos;
k) Era o A. que depois passava aos trabalhadores a resposta da gerência;
Consta da sentença: “A testemunha FF, tendo sido taxista da R. no período compreendido entre agosto de 2018 e janeiro de 2021, foi perentória em afirmar, com conhecimento de causa, que todos os taxistas que laboravam para aquela tinham na sua posse uma agenda, da qual constava, entre o mais, o número de telefone do A., por forma a que, em caso de necessidade, pudessem contactar com este. Indicação essa que era extensível às faturas da empresa, permitindo, assim, aos clientes desta efetuar alguma reclamação. Estas afirmações foram corroboradas pelo depoimento da testemunha EE, outro taxista que trabalhou para a R., desta feita desde setembro de 2015 até outubro de 2021. Todas as testemunhas arroladas pelo A., com exceção de GG, referiram, unanimemente e de forma explicada, as funções que aquele foi exercendo em benefício da R. ao longo do tempo, a par das de motorista que, a partir de meados do ano de 2019, exercia apenas na falta de outro taxista. De facto, a testemunha FF aludiu ao facto de ser o A. quem programava a ida dos veículos à oficina, distribuía os taxistas pelas viaturas, aprovava as férias e resolvia os assuntos relativos a acidentes de viação, recebia dos taxistas os envelopes com os apuros e entregava estes ao legal representante da R. Estas palavras foram integralmente confirmadas pelo depoimento da testemunha HH. Por outro lado, a testemunha EE, para além de ter confirmado, de forma objetiva, o ora descrito, acrescentou que era o A. quem selecionava os taxistas para trabalharem na R., e que as viaturas ao serviço desta ficavam aparcadas em frente à casa daquele sujeito processual ativo. De resto, a testemunha FF aludiu, de forma convicta, à circunstância de, enquanto taxista que foi da R., só ter conhecido o legal representante desta alguns meses após ter começado a laborar para a mesma. Do mesmo passo, a testemunha EE disse que havia taxistas da R. que não conheciam o patrão pessoalmente, sendo certo que a testemunha JJ e Sá, outro ex-taxista da R. durante cerca de um ano, afirmou que apenas viu por uma vez o legal representante desta. Igual constatação foi trazida pela testemunha KK, que só conheceu tal representante legal cerca de um ano após ter iniciado funções em benefício da R., e mesmo assim por casualidade. Todas as identificadas testemunhas transmitiram a ideia de que o A. estava disponível para resolver qualquer assunto (v.g., assaltos, acidentes, avarias) vinte e quatro horas por dia, deslocando-se ao local da ocorrência sempre que necessário e fosse a que horas fosse. E era o mesmo A. que servia de ponte entre a gerência da R. e os taxistas afetos a esta.”
Analisando o caso, em função dos princípios acima enunciados, concluímos que a recorrente/ré procede à identificação dos factos que considera incorrectamente julgados, no caso, provados, e qual o sentido da decisão que entende deve se proferida, como não provados. Já quanto à indicação dos meios de prova que entende justificarem a pretendida alteração, entende-se que a recorrente não cumpre o ónus imposto pelo art. 640º, nº 1, al. b), do CPC.
Verifica-se, portanto, a falta de impugnação atomística da matéria de facto, ou seja, a não especificação dos meios de prova que fundamentam o pedido, relativamente a cada facto, mas antes a indicação dos mesmos meios de prova relativamente a todos os factos, o que inviabiliza a sua apreciação, uma vez que não se pode aqui dizer que estamos perante um conjunto de factos interligados e em que os meios de prova sejam os mesmos. De facto, a recorrente reproduz extensos excertos dos depoimentos do seu legal representante e da testemunha DD para impugnar vários factos não relacionados directamente, o que inviabiliza a apreciação da impugnação.
Assim, rejeita-se aqui a impugnação da decisão relativa à matéria de facto.
De todo o modo, mais uma vez, não merece censura a decisão, não se revelando suficiente as declarações de parte de legal representante da recorrente, que em parte confirma o que consta da matéria em causa, ou da aludida testemunha, que só conheceu o funcionamento da empresa mais recentemente, para abalar a convicção formada com base nos meios de provas referidos na sentença, pelo que sempre improcederia a impugnação.
Factos provados sob as als. y) e z):
É o seguinte o teor de tais alíneas:
y) O A., no exercício da sua atividade, prestou trabalho em regime de isenção de horário de trabalho, estando sempre disponível para, em qualquer dia e a qualquer hora, acorrer a alguma situação que envolvesse os taxistas e/ou os táxis da R.;
z) O trabalho referido em y) foi prestado desde a data de 1 de agosto de 2015 até à altura em que a R. nomeou DD;
Sustenta a recorrente a impugnação, uma vez mais, no depoimento de parte do seu legal representante.
Consta da sentença, para além do referido no ponto anterior: “Do cotejo entre a cláusula sexta do contrato de trabalho outorgado entre o A. e a R. (de fls. 21 e 22) e o documento de fls. 54, tudo devidamente conjugado com a circunstância de, conforme anteriormente referido, o A. ter total disponibilidade para, em qualquer dia e a qualquer hora, acorrer a alguma situação que envolvesse os taxistas e/ou os táxis da aqui entidade empregadora, permite-nos concluir que o ora trabalhador laborava sujeito ao regime de isenção de horário de trabalho.”
Também aqui a recorrente cumpriu o formalismo previsto no art. 640º do CPC, pelo que importa conhecer da impugnação.
Mais uma vez se afigura insuficiente o invocado depoimento de parte do legal representante da recorrente para contraditar o depoimento das restantes testemunhas, referido a propósito das als. d) a k) e m) a o), bem como os documentos referidos na sentença, acima transcrita.
De todo o modo, existe matéria conclusiva, na al. y), que consiste na afirmação de que o recorrido/autor prestou trabalho em regime de isenção de horário de trabalho. A restante matéria, como se deixou exposto, já resulta das aludidas als. f) a i) e l) a p).
Assim, elimina-se a parte da al. y) em que se refere “prestou trabalho em regime de isenção de horário de trabalho”, por não ser admissível a consagração de matéria conclusiva na fundamentação de facto. Aliás, a “isenção de horário de trabalho” é um conceito jurídico que não depende exclusivamente da disponibilidade do trabalhadora para além do horário de trabalho.
Face ao exposto, a al. y) passa a ter a seguinte redacção: “O A., no exercício da sua atividade, estava sempre disponível para, em qualquer dia e a qualquer hora, acorrer a alguma situação que envolvesse os taxistas e/ou os táxis da R.”
No mais mantém-se a decisão.
Após isto, a recorrente reproduz declarações do seu legal representante e de testemunhas, mas sem repostar tais declarações à impugnação da decisão relativamente à matéria de facto, ao contrário do que faz antes e depois quanto a outras transcrições que refere expressamente que as mesmas levam, no seu entender, a dever considerar-se como não provada determinada matéria considerada provada, como se referiu e se passará ainda a analisar. Assim, nessa medida, as transcrições feitas não têm qualquer relevância, sendo aqui desconsideradas.
Factos provados sob as als. l) e m):
Têm o seguinte o teor:
l) Quando os motoristas recebiam dos clientes em dinheiro, era este entregue ao A. e posteriormente o A. encontrava-se com o gerente da R., BB, para lhe entregar as contas;
m) O motorista entregava ao A. uma descrição do que trabalhou e o remanescente do dinheiro que tinha em mão (porque havia pagamentos de clientes feitos por multibanco), e faziam logo ali um acerto de contas;
Sustenta a recorrente a impugnação no depoimento da testemunha FF, que transcreve.
Consta da sentença o já reproduzido aquando da análise da impugnação relativa às als. d) a k).
Mais uma vez, tratando-se de factos conexos e tendo a recorrente cumprido o formalismo do art. 640º do CPC, importa conhecer da impugnação.
Analisando a questão e ouvida a prova, concorda-se, não só com a decisão, mas também com a fundamentação da mesma, nomeadamente na parte que dá relevância precisamente ao depoimento desta testemunha. Entende-se que a discordância da recorrente se prende com a afirmação da testemunha de que “Cheguei a ver por duas ou três vezes. Não vi mais, OK. Não vou dizer que vi porque não vi. Vi nessa situação, uma vez na estação, uma vez no... uma vez lá no pão quente”. Porém, não só o depoimento deve ser analisado na integra, como também deve ser verificado conjuntamente com a restante prova produzida. Ora. O que resulta, quer dum, quer da outra, é a confirmação da decisão tomada.
Assim, também aqui improcede a impugnação, mantendo-se a decisão em relação a estas alíneas da matéria de facto considerada provada.
Factos provados sob as als. t) e u):
É o seguinte o teor das alíneas em questão:
t) A R., a partir de agosto de 2020, inclusive, pagou ao A. subsídio de férias e subsídio de Natal;
u) A R. nunca proporcionou formação profissional aos seus trabalhadores;
Funda a recorrente a sua discordância no depoimento das testemunhas FF e GG.
Consta da sentença: “A testemunha NN, que entrou ao serviço da R. em agosto de 2020, referiu, de forma isenta, que a partir desse mês a aqui entidade empregadora pagou aos seu colaboradores os subsídios de férias e de Natal, desconhecendo se tal assim sucedia em momento temporal anterior. O mesmo foi mencionado pela testemunha DD. As testemunhas EE, OO, JJ e KK mencionaram, sem hesitar, que nunca beneficiaram de formação profissional ministrada pela R. A este propósito, diga-se que ainda que DD, nas respetivas declarações de parte, tenha aludido ao facto de ter havido uma formação profissional de suporte imediato de vida com DAE, à qual o A. terá assistido, fê-lo de forma vaga e imprecisa (não logrou confirmar, com o mínimo de certeza, o ano em que tal formação terá ocorrido, tão-pouco a duração da mesma).”
Os factos não se encontram em conexão um com o outro, pelo que se rejeita a impugnação em relação aos mesmos, sendo certo que a matéria em questão não é informada pelos depoimentos transcritos pela recorrente.
Factos provados sob as als. hh). ii) e jj):
Consta das alíneas em causa:
hh) O A. teve de recorrer aos filhos, maiores e casados, para que o socorrem-se, a ele à esposa, pagando as suas contas, nomeadamente a renda da casa;
ii) A mãe daqueles filhos é pessoa diabética em grau IV, que necessita de ter alimentos todos os dias de acordo com a sua doença;
jj) Isso abalou o A., deixou-o ansioso, perdido, triste, revoltado, deixou-o a sentir-se que não valia nada, deixou-o doente mentalmente e fisicamente, porque lhe afetou o sono;
Invoca como fundamento da impugnação o depoimento das testemunhas GG e DD. Dada a conexão entre os factos e o cumprimento do disposto no art. 640º do CPC, importa conhecer da impugnação.
Consta da sentença: “Os sentimentos experimentados pelo A. foram trazidos aos autos pelas testemunhas FF, EE e HH. Estas duas últimas testemunhas, por serem familiares diretos do A., demonstraram ter conhecimento dos factos ora objeto de análise.”
A primeira das aludidas testemunhas, embora conheça o recorrido, tendo sido quem indicou o mesmo ao gerente da recorrente para trabalhar com os táxis em Gaia, não revelou conhecimento da vida mais intima deste, nomeadamente em relação à matéria em questão. Quanto à segunda, menos conhecia, sendo a pessoas que passou a “gerir” os táxis da recorrente apenas a partir de 5 de Abril de 2020, conforme facto provado sob a al. v). Talvez por isso, nenhuma das testemunhas referiu a matéria dos factos aqui em apreciação.
Por outro lado, o facto de duas das testemunhas que determinaram a convicção do tribunal serem familiares do recorrido não torna inviável a prova dos factos com base no seu depoimento. Subscrevendo-se a decisão quanto a estes factos, vai indeferida a impugnação, mantendo-se os mesmos como factos provados.
Facto provado sob a al. s):
Consta da al. s) da matéria de facto considerada provada: Em mês não concretamente apurado do ano de 2019, o A., apoiando-se na mediação de um amigo comum com o gerente da R., conseguiu que este último, BB, aumentasse a sua retribuição do salário mínimo nacional para € 1 000, apesar de a R. não ter refletido isso nos recibos de vencimento;
Fundamenta a recorrente a sua discordância no depoimento de parte do seu legal representante.
Consta da sentença a este propósito: “A testemunha GG descreveu pormenorizadamente as diligências que encetou no sentido de, junto do legal representante da R., convencer este da necessidade de aumentar a remuneração mensal do A., intento que conseguiu alcançar, passando aquela do salário mínimo nacional para € 1 000 mensais. Continuou a mesma testemunha que, apesar de ter manifestado a sua concordância, BB deixou claro que não pretendia declarar os ditos € 1 000, razão pela qual nos recibos de retribuição do aqui trabalhador continuou a constar como retribuição-base deste o montante correspondente ao salário mínimo nacional.”
Desde já se adianta subscrevermos a sentença neste aspecto. Não obstante a recorrente referir que “A credibilidade desta testemunha é confrangedora”, referindo-se a GG, certo é que, da transcrição que faz do depoimento do seu legal representante resulta em parte o teor da matéria em questão, não se vendo motivo para desconsiderar o depoimento da testemunha, que, como referido, em parte é confirmado pelo legal representante da recorrente.
Assim, improcede aqui a impugnação, mantendo-se a al. s) da matéria de facto provada.
Factos provados sob as d), e), f), i), j), k), s) e y):
Os factos aqui referidos já foram analisados anteriormente, apresentando agora a recorrente apenas novo fundamento para a impugnação da decisão em relação aos mesmos, o depoimento da testemunha DD.
Nos termos já abordados acima, impõe-se aqui a rejeição da impugnação da decisão relativa à matéria de facto referida, uma vez que se juntaram factos dispares, sem qualquer conexão entre eles, o que inviabiliza a apreciação da decisão, nos termos já apontados.
Assim, rejeita-se aqui a impugnação.
Por outro lado, conforme já referido, o depoimento em causa, até pela dimensão temporal do exercício da actividade da testemunha na empresa, conforme facto provado sob a al. v), não infirma o que resulta do depoimento das demais testemunhas mencionadas na sentença como motivação da decisão relativamente a tais factos, e já acima referido.
Facto provado sob a al. u):
Consta da al. u) da matéria de facto considerada provada: A R. nunca proporcionou formação profissional aos seus trabalhadores;
Fundamenta a recorrente a sua discordância nas declarações da testemunha DD.
Consta da sentença: “As testemunhas EE, OO, JJ e KK mencionaram, sem hesitar, que nunca beneficiaram de formação profissional ministrada pela R. A este propósito, diga-se que ainda que DD, nas respetivas declarações de parte, tenha aludido ao facto de ter havido uma formação profissional de suporte imediato de vida com DAE, à qual o A. terá assistido, fê-lo de forma vaga e imprecisa (não logrou confirmar, com o mínimo de certeza, o ano em que tal formação terá ocorrido, tão-pouco a duração da mesma).”
Mais uma vez subscrevermos a sentença neste aspecto. A testemunha DD fez efectivamente referência a uma formação, conforme referido na sentença, mas, para além de não conseguir justificar a inexistência de qualquer documento comprovativo da mesma, ainda referiu que no primeiro dia viu o recorrido no local, mas não sabia se este frequentou ou não a formação, mais acrescentando que não conhecia nenhum dos outros participantes.
Assim, improcede aqui a impugnação, mantendo-se a al. u) da matéria de facto provada.
Assim, com excepção da alteração da al. y) mantém-se a decisão proferida na sentença relativamente à matéria de facto.

4. Do CCT aplicável (recurso da ré)
Consta da sentença:
“A primeira questão sobre a qual cumpre que nos debrucemos prende-se com a circunstância de saber se, como defende o A., à relação laboral havida entre este e a R. se aplica a Convenção Coletiva de Trabalho publicada no Boletim do Trabalho em Emprego (doravante, B.T.E.) nº 16, de 29 de abril de 2010.
Como bem se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19 de dezembro de 2007 (consultável em www.dgsi.pt), “para que a uma relação de trabalho seja aplicável um determinado instrumento de regulamentação coletiva, é necessário que as partes (trabalhador e empregador) se encontrem filiados nas respetivas entidades (sindicais e patronais) outorgantes, ou que o mesmo IRCT seja aplicável por força de uma PE, ou ainda que as partes tenham convencionado, em sede de contrato individual de trabalho, a aplicabilidade daquele instrumento de regulamentação coletiva.”.
De facto, no nosso ordenamento jurídico vigora o princípio da dupla filiação, nos termos do qual as Convenções Coletivas de Trabalho apenas obrigam as entidades empregadoras que as subscrevam (ou as inscritas em associações de empregadores signatárias) e os trabalhadores ao seu serviço que sejam filiados em associações sindicais outorgantes, conforme resulta do preceituado no art. 496º do C. do Trabalho. Vista a matéria de facto tida por assente, forçoso se torna concluir que, in casu, o referenciado princípio não se mostra preenchido. Realmente, não foi alegado, tão-pouco provado, que o A. fosse sindicalizado.
No entanto, da cláusula 14ª do contrato de trabalho firmado entre o A. e a R. no dia 1 de agosto de 2015 os contraentes fizeram constar o seguinte: “em tudo o que estiver omisso aplica-se o contrato colectivo aplicável ao setor de actividade da entidade patronal, publicado no B.T.E. nº 33 de Setembro de 2004 e demais legislação em vigor.”
As chamadas cláusulas de remissão podem ser definidas como convenções inseridas em contratos individuais de trabalho mediante as quais as partes acordam submeter a sua relação laboral, no todo ou em parte, à disciplina contida numa C.C.T. Tais cláusulas encontram o seu fundamento no princípio da liberdade contratual. Para que uma cláusula de remissão seja valida é necessário que cumpra os requisitos gerais de determinação da prestação. A remissão deve indicar concretamente qual é a C.C.T. que quer ver aplicada à relação laboral ou indicar quais os critérios que presidirão à eleição da C.C.T. aplicável num segundo momento; nestes termos, não é necessário que a C.C.T. aplicável seja a priori determinada, mas deve ser no mínimo determinável.
Vista a redação da cláusula 14ª do contrato de trabalho acima referido, não temos dúvidas em afirmar que os contratantes quiseram sujeitar a estabelecida relação laboral à disciplina vertida no Contrato Coletivo de Trabalho entre a Antral – Associação Nacional dos Transportadores Rodoviários em Automóveis Ligeiros e a Festru – Federação dos Sindicatos de Transportes Rodoviários e Urbanos, com texto consolidado publicado no B.T.E. nº 33, de 8 de setembro de 2004, alterado no B.T.E. nº 33 de 2005, no B.T.E. nº 34 de 2006, no B.T.E. nº 29 de 2007, no B.T.E. nº 5 de 2009, no B.T.E. nº 16 de 2010 e no B.T.E. nº 22 de 2010 (de notar que durante as ora descritas alterações a Festru mudou a sua designação para Fectrans – Federação dos Sindicatos de Transportes e Comunicações).
Ainda que restassem dúvidas quanto à aplicação à relação laboral em apreço daquela C.C.T., as mesmas sempre estariam dissipadas por força do estatuído no art. 1º a) da Portaria de Extensão nº 492/2010, de 13 de julho, que estendeu, no território do Continente, as condições de trabalho constantes da versão daquele Instrumento de Regulamentação Coletiva de Trabalho publicado no B.T.E. nº 16, de 29 de abril de 2010, às relações de trabalho entre empregadores não filiados na associação de empregadores outorgante e os trabalhadores que exerçam a atividade profissional de motoristas de táxi.”
Alega a ré/recorrente:
“Como é referido no Acórdão do STJ de 19 de Dezembro de 2017, mencionado na Douta Sentença, para que seja aplicável instrumento de regulamentação colectiva , é necessários que as partes se encontrem filiados nas respectivas entidades outorgantes do mesmo, podendo a aplicabilidade resultar por força de uma portaria de extensão ou no caso das partes o convencionarem em sede do contrato colectivo de trabalho.
No caso dos autos é inquestionável que não existe filiação dupla das partes, para além de que, a BTE invocada no contrato de trabalho é e nº 33 de Setembro de 2004, a data do contrato é 2015, e a convenção colectiva desta data é inaplicável ao referido contrato.
Em sede de audiência de partes foi o agora apelado convidado a apresentar nova petição inicial, veio explicar os seus cálculos, com uma nova CCT publicada no boletim de trabalho nº 16 de 29/04/2010, esta também anterior ao contrato de trabalho.
Ou seja, quer a CCT constante do contrato de trabalho quer a segunda convenção referida nos autos.
Não existe no universo e comunidade jurídica a figura do “trato sucessivo” de convenções de trabalho.
Atente-se no sumário do Acórdão do STJ de 29 de Setembro de 2021: (...) OU, o Acórdão do STJ de 22 de Junho de 2022: (...)
De todo o modo, em caso de cessação de vigência de convenção coletiva ou decisão arbitral aplicada por portaria de extensão, é aplicável o disposto no nº 8 do artigo 501º do Código do Trabalho.”
Constata-se desde logo que a recorrente não impugna a primeira parte da sentença no extrato citado, ou seja, a recorrente não contesta a aplicação do CCT em causa por via da remissão feita na cláusula 14ª do contrato de trabalho, pelo que nessa medida a decisão transitou em julgado, não havendo sequer que analisar da correcção da sentença na parte em que refere “as mesmas sempre estariam dissipadas por força do estatuído no art. 1º a) da Portaria de Extensão nº 492/2010, de 13 de julho”.
Quanto à correcção da decisão relativamente à questão da remissão do contrato de trabalho para a CCT, veja-se, nomeadamente, o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 27 de Junho de 2014, processo 512/13.6TTVIS.C1, acessível em www.dgsi.pt.
Conforme refere o Ilustre Procurador Geral Adjunto, no seu douto parecer: “Quanto à aplicação da CCT, ela é aplicada, levando em conta o acordado entre A. e Ré. Com efeito como referido na douta sentença em recurso, “da cláusula 14ª do contrato de trabalho firmado entre o A. e a R. no dia 1 de agosto de 2015 os contraentes fizeram constar o seguinte: “em tudo o que estiver omisso aplica-se o contrato colectivo aplicável ao setor de actividade da entidade patronal, publicado no B.T.E. nº 33 de Setembro de 2004 e demais legislação em vigor.” A aplicação deste IRCT é o resultado da vontade das partes.”
Mas, também quanto ao segundo aspecto, a sentença se apresenta correcta, não sendo aqui aplicável os acórdãos citados nas alegações, porquanto, no caso, não estamos perante uma portaria que fixe condições mínimas de trabalho, mas sim perante uma portaria de extensão (acórdão do STJ de 29 de Setembro de 2021), e também não estamos perante uma situação em que a recorrente ou o recorrido fossem associados de sindicado ou associação patronal não subscritores da CCT objecto da extensão (acórdão do STJ de 22 de Junho de 2022), mas sim de partes não filiadas em qualquer sindicato ou associação.
Efectivamente, a Portaria de Extensão deve ser aplicada a trabalhadores não sindicalizados, apenas não sendo aplicável a trabalhadores sindicalizados, ainda que o sindicato em que se encontrem filiados não tenha celebrado qualquer convenção colectiva com o empregador.
Conforme refere António Monteiro Fernandes, em Direito do Trabalho, 14ª edição, 2009, pág. 839, “O fundamento da extensão localiza-se na necessidade social de suprir a inevitável insuficiência do sistema de contratação colectiva, já que este se baseia na exclusiva legitimidade de certos sujeitos e no princípio da filiação. Actuando como meio de aproveitamento de conteúdos contratados a portaria de extensão é, assim, um instrumento correctivo relativamente aos princípios estruturantes do sistema.”
Acrescenta Luís Gonçalves da Silva, em Da Escolha do Trabalhador da Convenção Colectiva Aplicável, na Revista Jurídica Luso-Brasileira, Ano 4 (2018), nº 4, págs. 1969-2034, na pág. 2004, “Na situação em que um trabalhador é destinatário do conteúdo convencional através de portaria de extensão, importa sublinhar que a convenção não é, em bom rigor, aplicada na empresa, pois aplicado é o conteúdo da convenção da qual a portaria se “apropriou”; dir-se-á que a diferença é meramente formal e sem relevância, mas tal apreciação não é exacta, uma vez que ignora que a fonte dos direitos e obrigações que regulam a situação jurídica laboral é a portaria de extensão e não a convenção colectiva, pois, por exemplo, se o empregador incumprir o conteúdo a que está vinculado, não há violação da convenção, mas sim da portaria de extensão; aqui não há autonomia colectiva.”
Assim, improcede este fundamento da apelação.

5. Categoria profissional do autor e salário do mesmo (recursos do autor e da ré)
Refere-se da sentença, após considerações teóricas sobre a questão:
“Volvendo à situação sub judice, temos que se provou que, aquando da contratação do A. pela R., estes acordaram na categoria profissional de motorista de táxi. No entanto e vista a matéria factual tida por assente, a partir de determinada altura (meados de 2019) o A. passou a exercer as funções de motorista pontualmente, assumindo outras, quais sejam: o A., sob as ordens do gerente da R., fazia contratação de funcionários (publicitava que a empresa tinha uma vaga para motorista de táxi, depois reunia com os candidatos e, verificando que os mesmos correspondiam aos requisitos da empresa, disso dava conta ao gerente da empresa, o qual validava, ou não, a entrada do funcionário na empresa, através da assinatura do contrato de trabalho); era o A. que, por ordem da gerência da R., oferecia o seu contacto direto a cada funcionário da empresa para que caso houvesse alguma situação, fosse esta com clientes (tentativas de assalto, reclamações), fosse com o próprio carro (avarias, acidentes), aqueles o pudessem contactar vinte e quatro horas por dia; todas as agendas dos motoristas tinham os números de emergência, nos quais constava o do A.; nas faturas da empresa foi impresso pela gerência o número de telefone do A. para contactos pelos clientes em caso de reclamação dos serviços; quando existiam problemas com o motorista ou com o carro, nomeadamente quando avariava ou quando aconteciam acidentes, ou quando existiam tentativas de assalto durante a noite aos motoristas da empresa, era o A. que, durante a noite, se dirigia ao local onde estivessem esses motoristas, auxiliando-os e efetuando os necessários contactos com autoridades, mecânicos e seguradoras; era o A. quem passava à gerência os pedidos dos trabalhadores, nomeadamente em matéria de reivindicações de direitos e créditos; era o A. que depois passava aos trabalhadores a resposta da gerência; quando os motoristas recebiam dos clientes em dinheiro, era este entregue ao A. e posteriormente o A. encontrava-se com o gerente da R., BB, para lhe entregar as contas; o motorista entregava ao A. uma descrição do que trabalhou e o remanescente do dinheiro que tinha em mão (porque havia pagamentos de clientes feitos por multibanco), e faziam logo ali um acerto de contas; o motorista retirava a sua percentagem e apresentava todos os documentos de despesas com gasóleo e todos os documentos emitidos pelo multibanco; de seguida, o A. reunia com o sócio-gerente BB e entregava-lhe as contas, que logo ele analisava e dava como boas ou más.
As ora descritas funções desempenhadas pelo A. não se enquadram na única categoria profissional que aquele C.C.T. e respetivas alterações prevê, qual seja, a de motorista de táxi e letra A. De facto e segundo o anexo I do C.C.T. entre a Antral e a Fectrans, publicado no B.T.E. nº 16 de 2010, motorista de táxi e letra A é o trabalhador que, possuindo carta de condução profissional, tem a seu cargo a condução de veículos automóveis ligeiros licenciados e devidamente documentados para o transporte de passageiros, competindo-lhe também, além de velar por todos os valores da entidade patronal à sua guarda, zelar pela boa conservação do veículo, nomeadamente a verificação dos níveis de óleo e de água e pressão de ar dos pneus, bem como a mudança de roda em caso de furo na via pública, devendo ainda proceder ao preenchimento das folhas diárias de apuro, de acordo com as instruções fornecidas pela entidade patronal.
Sequentemente e em termos de Regulamentação Coletiva, as funções exercidas pelo A. em benefício da R – a par das de motorista de táxi, pontualmente assumidas a partir de meados de 2019 –, independentemente do nome que se lhes possa dar, não se enquadram em nenhuma categoria, pelo que às mesmas não corresponde na regulamentação coletiva uma concreta retribuição.
Em sede de retribuição-base e analisada a matéria de facto tida por assente, tão-somente se provou que “em mês não concretamente apurado do ano de 2019, o A., apoiando-se na mediação de um amigo comum com o gerente da R., conseguiu que este último, BB, aumentasse a sua retribuição do salário mínimo nacional para € 1000, apesar de a R. não ter refletido isso nos recibos de vencimento”. Desconhecemos se tal incremento remuneratório esteve diretamente relacionado com as referenciadas funções efetivamente levadas a cabo pelo A. a partir de meados de 2019. Relação essa cuja prova incumbia ao A. e que este incumpriu. Pelo que forçoso se torna concluir que tal aumento retributivo apenas produziu efeitos a partir do tal mês não concretamente apurado do ano de 2019. E quanto à apontada retribuição-base de € 1000, o A. reconhece que a R. a liquidou desde meados de 2019 (cfr. o art. 38º da petição inicial aperfeiçoada), sendo-lhe apenas devida a quantia global de € 1270 a título de retribuição dos meses de maio, junho e julho de 2020 (cfr. a alínea a) dos factos provados).”
Alega o recorrente autor:
“23. O que posto isto, somos a retirar que o autor exercia duas funções, isto uma descrita no contrato e factualmente exercida também na prática e outra exercida factualmente na prática;
24. E isto subsume-se que temos duas funções uma que se integra na categoria de motorista de táxi;
25. E outra que se insere na categoria de gestor, nós dizemos que é gestor de frota;
26.Aliás, esta outra função foi documentada pela ré no documento 2 junto com a petição inicial;
27. Portanto, entendemos que o autor cumulou duas funções até meados do ano de 2019, cujas eram a de motorista e esta de gestor;
28.E que a partir de meados de 2019 só exercia a função de gestor, ora pontualmente, quando alguém faltava fazia a de motorista de táxi;
29. O que posto isto, importa ter presente que até meados do ano de 2019 o autor trabalhou como motorista, mas daí em diante trabalhou pontualmente como motorista e maioritariamente como gestor, sendo que daqui em diante com uma retribuição de €1.000,00;
30.Assim, entendemos que até meados de 2019 o autor, que mesmo assim tinha duas funções, tinha de ser pago de acordo com a convenção coletiva de trabalho (BTE nº 16 de 29/04);
31. E que daí em diante, por não ter uma categoria concreta deveria ser retribuído de acordo com o Código do Trabalho;”
Por seu turno, alega a recorrente/ré:
“A categoria contratual ou categoria-função corresponde a uma determinação qualitativa da prestação de trabalho contratualmente prevista.
Em suma a categoria profissional é o conjunto de empregados que em virtude do exercício de uma mesma actividade de trabalho ou profissão, possuem interesses jurídicos e económicos próprios e coincidentes.
No caso dos autos o Apeado sempre teve a categoria profissional de motorista, com o vencimento correspondente ao s.m.n. em cada ano, sendo que as funções que sempre exerceu foram as inerentes a essa categoria.”
Refere o Ilustre Procurador Geral Adjunto: “Quanto ao mais, entende-se que a decisão não merece censura, atentos os fundamentos de facto e de direito nela invocados e que determinaram a procedência parcial da acção.”
Nos termos do art. 118º, nº 1, do Código do Trabalho, o trabalhador deve, em princípio, exercer funções correspondentes à actividade para que se encontra contratado, devendo o empregador atribuir-lhe, no âmbito da referida actividade, as funções mais adequadas às suas aptidões e qualificação profissional.
Considerou no acórdão desta Secção Social do Tribunal da Relação do Porto de 23 de Abril de 2018, proferido no âmbito do processo 27689/15.3T8PRT.P1, ao que se supõe não publicado: “A categoria profissional tem a tripla função de definição do posicionamento hierárquico, funcional e salarial do trabalhador, de tal sorte que este deverá exercer as funções correspondentes à categoria profissional para que foi contratado, que lhe foi atribuída ou a que haja ascendido. A categoria profissional constitui um meio fundamental de determinação dos direitos e garantias do trabalhador, na medida em que irá caracterizar o estatuto profissional do trabalhador na empresa, definindo o seu posicionamento na hierarquia salarial, situando-o no sistema das carreiras profissionais e constituindo o referencial do que lhe pode, ou não, ser exigido pelo empregador. É, neste último aspeto – definição da atividade a desenvolver pelo trabalhador – que, surge a habitualmente designada categoria normativa, a qual corresponde à designação formal dada pela lei ou pelos instrumentos de regulamentação coletiva do trabalho a determinado conjunto de tarefas, com vista à aplicação do regime laboral previsto para essa situação – cfr. Maria do Rosário Palma Ramalho, Direito do Trabalho, Parte II-Situações Laborais Individuais, Almedina, pág. 372. Assim é que deverá haver uma correspondência entre a categoria profissional e as funções desempenhadas pelo trabalhador. A categoria profissional deverá corresponder às funções efetivamente exercidas pelo trabalhador ou, pelo menos, ao núcleo essencial dessas funções e, se institucionalizadas categorias profissionais por instrumento de regulamentação coletiva de trabalho, deverá ao trabalhador ser atribuída a categoria correspondente, prevista nesse instrumento, e não a que, arbitrariamente, o empregadora entenda ser de lhe atribuir.”
Efectivamente, já no âmbito da LCT se entendia que a “qualificação ou categoria de um trabalhador não é a da definição que lhe foi atribuída, mas a que resulta das tarefas que executa ou funções efectivamente exercidas. Essas funções ou tarefas devem ser as próprias ou especificas e não as acessórias ou comuns a uma generalidade de trabalhadores. Para a atribuição de categoria não e necessária a execução de todas as funções definidas no IRC, devendo o trabalhador ser classificado na categoria que mais se aproxime das funções efectivamente exercidas”, conforme acórdão do STJ de 14 de Março de 1986, processo 001326, acessível em www.dgsi.pt. No mesmo sentido os acórdãos dos STJ de 25 de Março de 1992, processo 003212, e de 30 de Janeiro de 2013, processo 77/06.5TTLSB.L1.S1, ambos acessível em www.dgsi.pt, no último dos quais se refere: “A posição do trabalhador na organização da empresa é encontrada através de um conjunto de serviços e tarefas que constituem o objecto da prestação laboral, a que aquele contratualmente se obriga. O conceito de categoria profissional é utilizado em vários sentidos, nomeadamente, os de categoria-função e os de categoria-estatuto. O conceito de categoria-função «descreve em termos típicos, i. e, com recursos aos traços mais impressivos, a actividade a que o trabalhador se encontra adstrito» Por sua vez, a categoria-estatuto, também designada categoria normativa, «corresponde à designação formal dada pela lei ou pelos instrumentos de regulamentação colectiva do trabalho a determinado conjunto de tarefas, com vista à aplicação do regime laboral previsto para essa situação». A categoria profissional do trabalhador é assim determinada no essencial em função do «binómio classificação normativa/funções exercidas», correspondendo ao essencial das funções que o trabalhador se obrigou a desempenhar pelo contrato de trabalho. A categoria profissional, entendida na acepção de categoria-estatuto ou normativa, define a posição do trabalhador na empresa por referência às tarefas típicas que se encontram descritas na lei ou em instrumento de regulamentação colectiva.
Ou seja, conforme se conclui no acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 11 de Junho de 2015, processo 293/12.0TTBGC.G1, ainda acessível em www.dgsi.pt, “a categoria profissional do trabalhador é aquela que corresponder às funções por si efetivamente exercidas, e não a que a entidade patronal lhe atribui. Estas não podem classificar em desarmonia com as tarefas pelos trabalhadores realmente exercidas.”
Conforme se refere no acórdão do STJ de 9 de Outubro de 2013, processo 961/09.4TTVNG.P1.S1, ainda acessível em www.dgsi.pt: “A caracterização da posição do trabalhador na organização da empresa é encontrada a partir do conjunto de serviços e tarefas que constituem o objecto da prestação laboral, a que aquele contratualmente se obriga e que se aglutinam no âmbito da categoria profissional que lhe corresponde. O conceito de categoria profissional é utilizado em vários sentidos, nomeadamente, os de categoria-função e os de categoria-estatuto. O conceito de categoria-função «descreve em termos típicos, i. e, com recurso aos traços mais impressivos, a actividade a que o trabalhador se encontra adstrito (MENEZES CORDEIRO, Manual de Direito do Trabalho, Almedina, 1994, p. 665). Por sua vez, a categoria-estatuto, também designada categoria normativa, «corresponde à designação formal dada pela lei ou pelos instrumentos de regulamentação colectiva do trabalho a determinado conjunto de tarefas, com vista à aplicação do regime laboral previsto para essa situação» (MARIA DO ROSÁRIO DA PALMA RAMALHO, Direito do Trabalho, Parte II – Situações Laborais Individuais, 3.ª Edição, 2010, p. 439). A categoria profissional do trabalhador é assim determinada em função do «binómio classificação normativa/funções exercidas», correspondendo ao essencial das funções que o trabalhador se obrigou a desempenhar pelo contrato de trabalho.”
No mesmo sentido se vem pronunciando esta Secção Social do Tribunal da Relação do Porto, conforme o acórdão de 3 de Maio de 2010, processo 1698/08.7TTPRT.P1, igualmente acessível em www.dgsi.pt, “a doutrina e a jurisprudência foram desde sempre uniformes no sentido de que deve haver correspondência entre as funções efectivamente desempenhadas pelo trabalhador, o seu estatuto profissional e o seu estatuto económico: verificando-se em concreto que o trabalhador exerce um leque de funções enquadrável numa determinada categoria prevista em instrumento colectivo de trabalho, o empregador deve atribuir-lha – também formalmente – e retribuí-lo em consonância. Isto é, deve haver correspondência entre a categoria função e a normativa e a retribuição prevista para esta.”
Veja-se igualmente o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 26 de Abril de 2007, processo 1024/05.7TTCBR.C1, acessível em www.dgsi.pt, citado pelo Magistrado do Ministério Público no seu parecer (onde por lapso se referiu a data de 26.04.2017), “A categoria do trabalhador afere-se não pela denominação ou pelo «nomen juris» atribuído pela entidade patronal ao trabalhador, mas sim pelas funções efectivamente exercidas por este, em conjugação com a norma ou convenção que, para a respectiva actividade, indique as funções próprias de cada um. Se se verifica, que o trabalhador exerce funções previstas (ou que passaram a estar previstas,) em duas ou mais categorias institucionalizadas, deve ser integrado na categoria que, tendo em conta as tarefas nucleares de cada uma delas, mais se aproxime das funções efectivamente exercidas.”
Voltando aos fundamentos invocados em ambos os recursos:
Como se pode verificar, quer o recorrente/autor, quer a recorrente/ré, não põem em causa o decidido relativamente à categoria profissional do autor. O que se questiona é a questão do salário do autor.
Conforme se refere na sentença, a única categoria profissional, que consta do anexo I ao CCT, é a de “Motorista de táxi e letra A. — É o trabalhador que, possuindo carta de condução profissional, tem a seu cargo a condução de veículos automóveis ligeiros licenciados e devidamente documentados para o transporte de passageiros, competindo -lhe também, além de velar por todos valores da entidade patronal à sua guarda, zelar pela boa conservação do veículo, nomeadamente a verificação dos níveis de óleo e de água e pressão de ar dos pneus, bem como a mudança de roda em caso de furo na via pública, devendo ainda proceder ao preenchimento das folhas diárias de apuro, de acordo com as instruções fornecidas pela entidade patronal.”
Ora, a alegação do autor não faz sentido, uma vez que a aplicação do Código do Trabalho, não altera a categoria profissional do mesmo. Ou seja, o que ambos os recorrentes questionam é a decisão quanto ao salário devido ao autor.
E quanto a este aspecto considerou-se na sentença que “tão-somente se provou que “em mês não concretamente apurado do ano de 2019, o A., apoiando-se na mediação de um amigo comum com o gerente da R., conseguiu que este último, BB, aumentasse a sua retribuição do salário mínimo nacional para € 1.000, apesar de a R. não ter refletido isso nos recibos de vencimento”. Desconhecemos se tal incremento remuneratório esteve diretamente relacionado com as referenciadas funções efetivamente levadas a cabo pelo A. a partir de meados de 2019. Relação essa cuja prova incumbia ao A. e que este incumpriu. Pelo que forçoso se torna concluir que tal aumento retributivo apenas produziu efeitos a partir do tal mês não concretamente apurado do ano de 2019. E quanto à apontada retribuição-base de € 1.000, o A. reconhece que a R. a liquidou desde meados de 2019 (cfr. o art. 38º da petição inicial aperfeiçoada), sendo-lhe apenas devida a quantia global de € 1 270 a título de retribuição dos meses de maio, junho e julho de 2020 (cfr. a alínea a) dos factos provados).”
O recorrente/autor nada refere sobre a matéria, entendendo apenas que seria gestor de frota e teria direito a salário superior, sem especificar qual e o fundamento de tal entendimento, e a recorrente/ré impugna a decisão relativa à matéria consagrado na al. s), para concluir que “Nunca houve qualquer aumento do vencimento do aqui Apelado, de forma definitiva ou permanente, vejamos aprova produzida”.
Porém, improcedendo a impugnação da decisão quanto a esta alínea dos factos provados, nada mais há a ponderar sobre a questão, improcedendo ambas as apelações relativamente a estes fundamentos.

6. Dos créditos do autor (recurso do autor)
Considerou-se na sentença:
“No que tange à isenção de horário de trabalho, temos que se provou que o ora trabalhador laborou para a R. sujeito a tal regime enquanto exerceu as funções de motorista (cfr. o art. 76º-A da petição inicial aperfeiçoada). Sendo assim e de acordo com o estipulado no art. 265º nº 1 do C. do Trabalho, o A. tem direito a ser remunerado, pelo trabalho por si prestado em regime de isenção de horário, com uma hora de trabalho suplementar por dia, a calcular nos termos previstos na Cláusula 33ª nº 1 a) do C.C.T. entre a Antral e a Fectrans, publicado no B.T.E. nº 16, de 29 de abril de 2010. No entanto, não foi possível apurar o número de dias de trabalho prestado pelo A. desde que foi contratado pela R. (em 1 de agosto de 2015) até meados de 2019, pelo que relegamos a quantificação daquela retribuição por isenção de horário de trabalho para sede de liquidação de sentença (art. 609º nº 2 do C. P. Civil).
Relativamente ao alegado trabalho prestado em dias feriado e em dias de descanso semanal, dispõe a Cláusula 34ª nº 1 do identificado C.C.T. que aquele é remunerado com o acréscimo de 200%. A que acresce que são considerados, em termos de regulamentação coletiva de trabalho, como feriados os dias descritos na Cláusula 20ª do dito C.C.T., e como descanso semanal o previsto na respetiva Cláusula 19ª. Analisada a matéria de facto tida por assente, conclui-se que o A., ao contrário do que se lhe impunha, não provou que prestou trabalho para a R. em dia ou dias feriados e/ou em dia ou dias de descanso semanal, pelo que soçobra a sua pretensão de ser remunerado em conformidade.
Quanto ao invocado trabalho noturno – o qual, segundo as Cláusulas 18ª e 32ª do referido Contrato Coletivo de Trabalho entre a Antral e a Fectrans, é todo aquele que é prestado entre as 20h de um dia e as 7h do dia seguinte, e confere ao trabalhador o direito a um acréscimo de 25% em relação à remuneração a que dá direito o trabalho equivalente prestado durante o dia –, provou-se que o A. o realizou (cfr. a alínea i) da facticidade assente), mas não os concretos termos em que o fez. Em consequência, também aqui se relega para execução de sentença o apuramento da retribuição devida pela R. a tal título.
Não obstante o A. não ter provado que gozou, em cada ano que durou a sua relação de trabalho com a R., onze dias de férias, esta não provou que liquidou àquele a retribuição a que alude o nº 1 da Cláusula 21ª do identificado Contrato Coletivo de Trabalho. Assim sendo, visto o preceituado no art. 239º nº 1 do C. do Trabalho, o A. tinha direito, no ano de 2015, ao gozo de dez dias úteis de férias remuneradas, o que, tendo por referência a retribuição-base contratualmente acordada de € 520 (cfr. o nº 1 da cláusula sétima do contrato de trabalho de 1 de agosto de 2015), corresponde ao quantitativo de € 236,36 (€ 520 : 22 x 10). Uma vez que se desconhecem, face à prova produzida, as exatas remunerações auferidas pelo A. nos anos de 2016 a 2019, relega-se, também aqui, para execução de sentença a quantificação da retribuição de férias devida ao A. nesses anos.
Atenta a incidência do ónus da prova, a R. provou que, a partir de agosto de 2020, pagou ao A. os subsídios de férias e de Natal, não tendo convencido que o fez em momento anterior. Sequentemente, assiste ao A. o direito a receber da R. os quantitativos a que aludem as Cláusulas 35ª e 36ª do Contrato Coletivo de Trabalho entre a Antral e a Fectrans, publicado no B.T.E. nº 16, de 29 de abril de 2010. Ora, no que tange ao ano de 2015 (ano de admissão do aqui trabalhador ao serviço da R.), o A. deveria ter recebido o montante de € 236,36 a título de subsídio de férias, o que não ocorreu. Já quanto ao subsídio de Natal, o mesmo, no ano de 2015 e de acordo com a forma de cálculo estipulada no nº 2 da referenciada Cláusula 36ª, totaliza € 216,65.
Quanto aos subsídios de férias e de Natal referentes aos anos de 2016 a meados de 2019, os mesmos, pela razão já atrás apontada – não apuramento das retribuições do A. nos anos de 2016 a 2019 –, deverão ser objeto de quantificação em fase processual posterior.
A acrescer, o A. alega que a R. não lhe pagou a retribuição atinente aos meses de abril a setembro de 2020, tudo inclusive. A este propósito, se é certo que a ora entidade empregadora e o aqui trabalhador, em sede de transação a que chegaram no dia 14 de abril de 2021 no apenso A., acordaram que a retribuição em dívida pela primeira ao segundo, nos meses de maio, junho e julho de 2020 (lay-off), é no valor total de € 1270, a R. não provou, como era seu dever processual, que pagou ao A. a retribuição relativa aos meses de abril, maio e setembro de 2020, no montante global de € 3000 (€ 1000 x 3).”
Alega o recorrente/autor:
Pela isenção de horário de trabalho;
52.Assim, foi provado que o autor trabalhou em regime de isenção de trabalho e foi claramente atribuído ao autor esse direito, no entanto, não se conseguiram liquidar os dias que o autor trabalhou;
53.Ora, nós entendemos que nesta parte conseguiu o autor provar os dias de trabalho prestado, porque foram todos, ou seja, se trabalhava como motorista ele também era gestor e não parava, se parava para descansar tinha de estar disponível;
54. Veja-se o depoimento da testemunha EE na respetiva audiência de julgamento: (...)
64. Ora retiramos destes depoimentos que o autor pelo menos desde setembro de 2015 tinha de estar disponível como motorista trabalhando todos os dias e depois a partir de agosto de 2019 (ou melhor meados de 2019) trabalhou também todos os dias;
65.Portanto, o autor provou que trabalhou todos os dias, porém compreendemos que tal remuneração de isenção de horário de trabalho tenha de ser apurada, ora até meados de 2019 pela convenção coletiva e desta data em diante pelo Código do Trabalho;
Pelo trabalho noturno;
66.No que toca ao trabalho noturno vem dito na sentença que foi provado que o autor trabalhou durante a noite, no entanto, que o autor só realizava esse trabalho quando era solicitado pelos seus colegas;
67. Ora, a sentença reduz tal desiderato à parte da função de gestor;
68. Todavia, nós olhando os depoimentos constatamos que pelas palavras de EE supra descritas, (...). Posto isto, entendemos que o autor pelo menos até meados de 2019 realizou trabalho noturno por conta da sua função de motorista;
71. Por conta da função de gestor, ele também trabalhou durante a noite; (...)
74.Portanto, este depoimento conjugado com aquele outro constatamos que o autor fez trabalho noturno desde o início do seu contrato até meados de 2019, pelo menos na função de motorista, porque na função de gestor também teve de o fazer, porque teve de estar disponível para auxiliar os demais colegas quando eles o necessitassem;
75. Assim, reiteramos que foi prestado trabalho noturno, na função de motorista desde o início do contrato até que em meados de 2019 começou a exercer essas funções pontualmente, no entanto, como gestor também fez e prestou trabalho noturno;”
Dos feriados;
76.Continuando a olhar a sentença, constatamos que a mesma considerou como não provados que o autor não trabalhou nos feriados todos que foram salientados na P.I;
77. Ora, como se viu dos depoimentos anteriores, nomeadamente EE e HH, os quais por mera economia não se voltam a reproduzir falam; (...)
81. Ou seja, fazia trabalho de motorista e depois ainda tinha de fazer trabalho de gestor;
82. Portanto, o autor trabalhava todos os feriados, por isso deveria ter sido dado como provado que o autor trabalhou nos feriados;
Do trabalho suplementar;
83. Mais se retira daqueles depoimentos, que acima fomos frisando, que o autor trabalhava nas funções de motorista 12 horas, porque os carros não podiam estar parados e tinham de estar sempre a arranjar mais e mais clientes;
84.Portanto, se a testemunha EE diz (...)
88.Nas funções de gestor, ele também prestou trabalho suplementar, cujo se repercutiu àquela disponibilidade diária para realizar todo aquele serviço a favor da empresa;
89. Por efeito, entendemos que deve ser dado como provado a prestação deste trabalho suplementar;
Trabalho durante os fins de semana (sábados e domingos);
90. Tendo em conta aqueles depoimentos que acima já reproduzimos, nomeadamente, (...)
92. Posto isto, o autor como motorista, desde que iniciou o contrato de trabalho e até meados de 2019, teve de trabalhar aos fins de semana e como gestor teve igualmente de trabalhar nesses feriados, porque tinha de estar disponível 24 horas por dia ou noite;
93. Assim, entendemos que deveria ter sido considerado como provado que o autor trabalhou durante todos os fins de semana, como motorista e ainda como gestor;”
Como se vê, a discordância do recorrente assentava em alteração da matéria de facto, cuja impugnação foi rejeitada, pelos fundamentos expostos acima.
Assim, improcede este fundamento da apelação.

7. Do assédio moral (recurso do autor)
Consta da sentença, após profunda análise doutrinal e jurisprudencial sobre a questão do assédio moral:
“No caso presente, o A. alegou efetivamente toda uma série de factos com os quais pretendeu demonstrar a verificação daquele comportamento reiterado e persecutório por parte da R.
Com relevo para a questão que se nos coloca, o tribunal dispõe dos seguintes factos: a R. enviou uma carta ao A., datada de 7 de abril de 2020 e cuja cópia consta de fls. 38, com o seguinte teor: “a empresa A..., mudou a sua gestão no passado dia 05/04/2020, e neste momento a gestão da mesma está a cargo da colega DD. Informamos que para qualquer assunto relacionado com a empresa, devem entrar em contacto com a Gestão, através do email: DD.u2@gmail.com ou através do número ....”; mediante carta remetida ao A. e com data de 7 de abril de 2020, assinada por DD, esta escreveu: “Caro Colega, Venho desta forma apresentar me como nova Gestora da empresa A... (...). Assumi a gestão da TMR, dia 05/04/2020, pelo que a partir dessa data todos os assuntos relacionados com a empresa, devem passar por mim (...).”; o A. dirigiu à R. a carta com data de 1 de junho de 2020, cuja cópia consta de fls. 40 a 41 vº dos presentes autos; no mês de março de 2020 DD dirigiu-se a casa do A. e exigiu a este a entrega de todas as chaves, de todos os documentos e de todos os elementos referentes aos carros, nomeadamente TPAS, agendas dos motoristas, etc.; o A., não lhe reconhecendo legitimidade, recusou a entrega de tais elementos, porque respondia perante o sócio-gerente, e referiu que se a empresa pretendia tais elementos tinha de dirigir esse pedido formalmente a cada motorista; a R. criou um grupo de WhatsApp para os seus funcionários, do qual excluiu o A.; todos os motoristas, desde pelo menos maio de 2020 e com exceção do A., foram convocados para reuniões com DD, que se arrogou representante da empresa; numa daquelas reuniões, DD, sem nada o prever, abriu uma pasta e, para quem quisesse ver, disse, à frente de funcionários da R., “vejam o que o AA roubou, vejam”; o que deixou o A. envergonhado, deixando-o num estado de ansiedade, tristeza e nervosismo, cujos sentimentos ainda hoje o deixam com dificuldades em dormir quando tais palavras lhe vêm à cabeça; a R. instaurou ao A. processo disciplinar.
Analisando a facticidade ora transcrita, não vislumbramos, salvo melhor opinião, que o A. tenha sido vítima de assédio laboral perpetrado pela R. Na verdade e desde logo, não se provou que esta tenha tido a intenção de, com a sua atuação, intimidar o A., perturbá-lo na sua dignidade, causando instabilidade emocional (cfr., designadamente, o ponto 29) da matéria de facto não provada).
De notar também que a assunção de determinadas funções, por banda de DD e a partir de certo momento, não põem em causa aquelas para as quais o A. foi contratado, quais sejam, as relativas a motorista de táxi. Por outro lado, as reuniões havidas com os trabalhadores do R. e sem a presença do A., bem como a não associação deste no grupo de WhatsApp criado para os funcionários da entidade empregadora, caiem no âmbito do poder de direção a que alude o art. 97º do C. do Trabalho.
Do exposto se conclui que os factos dados como provados são manifestamente insuficientes para se concluir que o A. foi, realmente, vítima de mobbing e/ou de pressão perpetrada pela R., com o intuito de o perturbar, constranger e afetar a sua dignidade. Dito de outra forma, o assédio moral é um comportamento que não se deve confundir com as decisões legítimas relativas à organização do trabalho, desde que conformes com o contrato de trabalho, nem pode consubstanciar situações meramente incómodas para o trabalhador, com as quais este não concorda e que lhe possam causar ou causem desagrado, mal-estar, aborrecimento.”
Discordando, alega o recorrente/autor:
“97. De facto, nós olhando o que foi dado como provado retiramos que o autor foi excluído de todas as reuniões, não foi integrado no grupo de whattsapp e ainda acabou por ter sido enxovalhado em frente aos seus colegas, destes que era seu superior hierárquico, foi também esvaziado das suas funções e isso tudo o que aconteceu deixou-o envergonhado, ansioso e triste;
98. Portanto, olhando nós a jurisprudência, nomeadamente, Acórdão de 01.10.2014 -- Recurso nº 420/06.7TTLSB.L1.S1 – 4ª Secção (...)
100. Ora, vendo esta doutrina vemos ainda na sentença que a ré instaurou, apesar de ter excluído o autor de todas as suas reuniões e de todo o seu trabalho, um processo disciplinar com vista a que fosse despedido com a tal justa causa;
101. Portanto, o sentido dos comportamentos da ré, que vinham desde maio de 2020, era para despedir o autor, por efeito, nós consideramos que a ré praticou assédio moral sobre o autor;
102. E por causa disso o autor sofreu danos, o que provados, aquilo e estes, entendemos que o autor deve ser indemnizado por ter sofrido Assédio Moral;”
Não nos merece censura a decisão.
Referiu-se no acórdão deste mesmo colectivo de 22 de Junho de 2020, processo 432/19.0T8PNF.P1, ao que se supõe não publicado:
“Nos termos do art. 29º, nº 2, do Código do Trabalho, entende-se por assédio o comportamento indesejado, nomeadamente o baseado em factor de discriminação, praticado aquando do acesso ao emprego ou no próprio emprego, trabalho ou formação profissional, com o objectivo ou o efeito de perturbar ou constranger a pessoa, afectar a sua dignidade, ou de lhe criar um ambiente intimidativo, hostil, degradante, humilhante ou desestabilizador.
Prescrevendo o art. 15º, que o empregador, incluindo as pessoas singulares que o representam, e o trabalhador gozam do direito à respectiva integridade física e moral.
Segundo Mago Graciano de Rocha Pacheco, em O assédio moral no trabalho “O elo mais fraco”, 2007, pág. 272, “O art. [29º] do Código do Trabalho, por si só, não regula o assédio moral no trabalho. Apesar da ausência de um conceito de assédio moral expressamente consagrado no ordenamento nacional, o apoio normativo basilar, conferido a este fenómeno, encontra-se no art. 25º da Constituição Portuguesa, mais especificamente no reconhecimento do direito à integridade moral, que por consequência, proscreve todos aqueles tratos comissivos ou omissivos degradantes, humilhantes, vexatórios em salvaguarda do respeito devido a toda a pessoa humana. O art. [15º], do Código do Trabalho, consagra a integridade moral no domínio do direito do trabalho e, nesse sentido, assume-se como preceito basilar na regulamentação do assédio moral. Com a consagração do direito à integridade moral postulado no art. [15º], do C.T., fica incontornável a protecção que lhe é conferida no domínio do direito do trabalho. A conjunção dos arts. [15º e 29º] do Código do Trabalho permite a regulamentação do assédio moral no trabalho.”
O mobbing laboral foi definido por Heinz Leymann como uma atitude hostil e antiética, que é dirigida de uma forma sistemática por um ou alguns indivíduos contra um indivíduo que, em virtude do mobbing, é levado a uma situação de desamparo e indefesa, em que ali é mantido devido a uma actividade contínua de mobbing (em The Content and Development of Mobbing at Work, European Journal of Work and Organizational Psychology, 1996, 5 (2), págs.165-184, na pág. 168).
Com este comportamento pretende-se ostracizar, isolar, desprezar e eliminar a pessoa visada (Lacey M. Sloan, Tom Matyók, Cathryne L. Schmitz e Glenda F. Lester Short, A Story to Tell: Bullying and Mobbing in the Workplace, International Journal of Business and Social Science, vol. 1, nº 3, Dezembro de 2010, pág. 87).
Daí que o assédio moral não se baste com um acto único, antes impondo um comportamento mais ou menos duradouro, tendo como “objetivo intimidar, diminuir, humilhar, amedrontar e consumir emocional e intelectualmente a vítima” (Liliana Andolpho Magalhães Guimarães e Adriana Odalia Rimoli, “Mobbing” (Assédio Psicológico) no Trabalho: Uma Síndrome Psicossocial Multidimensional, na Revista Psicologia: Teoria e Pesquisa, Universidade Católica, Maio-Agosto de 2006, Vol. 22, nº 2, págs. 183-192, na pág. 186, citando Piñuel y Zabala, Como sobrevivir al acoso psicológico en el trabajo, Santander: Sal Terrae, 2001).
A este propósito refere António Monteiro Fernandes, ob. cit., mas na 16ª edição, pág. 160, citado no acórdão do STJ de 3 de Dezembro de 2014, processo 712/12.6TTPRT.P1.S1, acessível em www.dgsi.pt: “Entrando em conta com o texto da lei e os contributos da jurisprudência, parece possível identificar os seguintes traços estruturais da noção de assédio no trabalho: a) Um comportamento (não um ato isolado) indesejado, por representar incómodo injusto ou mesmo prejuízo para a vítima (…); b) Uma intenção imediata de, com esse comportamento, exercer pressão moral sobre o outro (…); c) Um objetivo final ilícito ou, no mínimo, eticamente reprovável, consistente na obtenção de um efeito psicológico na vítima, desejado pelo assediante (…). A definição do art. 29.º parece, por exemplo, prescindir do elemento intencional que parece essencial à diferenciação da hipótese de assédio, face a outros tipos de comportamento incorreto, abusivo ou prepotente do empregador ou dos superiores hierárquicos do trabalhador. A interpretação do preceito deve, pois, ser feita no sentido indicado.” Veja-se igualmente Messias Carvalho, Assédio Moral/mobbing, na Revista TOC, nº 77, Agosto de 2006, pág. 41, citando Mario Meucci, Danni da Mobbing e loro risarcibilità.
No mesmo sentido refere Júlio Manuel Vieira Gomes, em Direito do Trabalho, I, 2007, págs. 410 e 412. Ainda citado no referido acórdão do STJ de 3 de Dezembro de 2014, “importa (…) advertir que nem todos os conflitos no local de trabalho são, obviamente, um “mobbing”, sendo (…) importante evitar que a expressão assédio se banalize. Nem sequer todas as modalidades de exercício arbitrário do poder de direção são necessariamente um “mobbing”, quer porque lhes pode faltar um carácter repetitivo e assediante, quer porque não são realizados com tal intenção”.”
Invoca o recorrente os seguintes factos para a procedência da sua pretensão: “nós olhando o que foi dado como provado retiramos que o autor foi excluído de todas as reuniões, não foi integrado no grupo de whattsapp e ainda acabou por ter sido enxovalhado em frente aos seus colegas, destes que era seu superior hierárquico, foi também esvaziado das suas funções e isso tudo o que aconteceu deixou-o envergonhado, ansioso e triste”.
Provou-se que:
dd) A R. criou um grupo de WhatsApp para os seus funcionários, do qual excluiu o A.;
ee) Todos os motoristas, desde pelo menos maio de 2020 e com exceção do A., foram convocados para reuniões com DD, que se arrogou representante da empresa;
ff) Numa daquelas reuniões, DD, sem nada o prever, abriu uma pasta e, para quem quisesse ver, disse, à frente de funcionários da R., “vejam o que o AA roubou, vejam”;
Provou-se ainda que:
w) Mediante carta remetida ao A. e com data de 7 de abril de 2020, assinada por DD, esta escreveu: “Caro Colega, Venho desta forma apresentar me como nova Gestora da empresa A... (...). Assumi a gestão da TMR, dia 05/04/2020, pelo que a partir dessa data todos os assuntos relacionados com a empresa, devem passar por mim (...).”;
bb) No mês de março de 2020 DD dirigiu-se a casa do A. e exigiu a este a entrega de todas as chaves, de todos os documentos e de todos os elementos referentes aos carros, nomeadamente TPAS, agendas dos motoristas, etc.;
Quanto às primeiras, importa lembrar que apenas um comportamento e não um acto isolado podem integrar o conceito de assédio. Por outro lado, importa ter presente que o recorrente nunca aceitou que a aludida DD passasse a gerir a actividade dos táxis que o próprio geria anteriormente, não se tendo apurado porque motivo o recorrente foi excluído do grupo de WhatsApp, ou não foi convocado para as reuniões. Em relação ao referido sob a al. ff), para além de um facto isolado, que não foi praticado pelo gerente da recorrida, mas por uma trabalhadora que não se pode qualificar como superior hierárquica do recorrente, o mesmo terá sido motivado pela circunstância de o recorrente ter ficado com apuros da actividade da recorrida, conforme facto provado sob a al. a).
Quanto aos últimos factos, atento o decidido acima a propósito da categoria profissional do recorrente/autor e considerando o provado sob a al. a). afigura-se que se trata de uma medida de gestão natural da recorrida, não se afigurando que, sem mais, se possa por si considerar como acto de assédio do recorrente.
Conforme se refere no recente acórdão desta Secção Social do Tribunal da Relação do Porto 17 de Abril de 2013, processo 3728/21.8T8MTS.P1, acessível em www.dgsi.pt:
“Tendo-se embora presente a dificuldade da sua prova, é preciso, no entanto, usar da cautela necessária na apreciação do concreto circunstancialismo de cada caso, sendo certo que nem todas as situações de exercício arbitrário do poder de direção se reconduzem a tal figura.
(...)
O referido quadro factual não permite concluir-se que estejamos perante um comportamento assediante por parte da Ré. Com efeito, dele, visto na sua globalidade, não resulta que estejamos perante uma prática reiterada e/ou intensa suscetível de criar à A. um ambiente hostil, degradante, intimidativo ou stressante, nem essa intencionalidade decorre da matéria de facto provada, não sendo de esquecer que não é, nem poderá ser, um qualquer comportamento, ainda que violador de algum direito ou garantia do trabalhador, ou um comportamento que “desautorize” alguma decisão do trabalhador, que poderá ser configurado como assédio, sob pena de, assim não sendo, tudo o poder ser, afigurando-se-nos ser exigível, numa apreciação global e conjunta, uma gravidade, intensidade e/ou reiteração tais que permita concluir-se no sentido da existência de um comportamento “assediante”, direcionado ao trabalhador, reprovável, ainda que não intencional.”
Assim, improcede mais este fundamento da apelação do recorrente/autor.

8. Da (i)licitude da resolução do contrato (recurso da ré)
8.1. Consta da nomeadamente da sentença:
“Concluindo: a presunção, ilidível, constante do art. 799º nº 1 do C. Civil aplica-se ao caso de atraso no pagamento da retribuição inferior a sessenta dias. Por sua vez, a ficção legal ou presunção, esta inilidível, constante do art. 394º nº 5 do C. do Trabalho aplicar-se-á aos casos de atraso que se prolongue por sessenta dias ou mais, no pagamento da retribuição.
Resta referir que ao trabalhador incumbirá o ónus de alegação e prova do não pagamento pontual da retribuição e que essa conduta do empregador torna imediata e praticamente impossível a manutenção da relação laboral.
No caso em análise, relembre-se, o trabalhador, ora A., estriba o fundamento de resolução do contrato de trabalho, comunicada à entidade empregadora em 29 de setembro de 2020, na falta de pagamento, na respetiva data de vencimento, das retribuições de junho a setembro de 2020, e, quanto ao ano de 2015 e seguintes, da retribuição por isenção de horário de trabalho, pelo trabalho noturno prestado, da retribuição de férias, e dos subsídios de férias e de Natal (o tribunal opta por não fazer aqui referência aos restantes fundamentos invocados pelo A. para a resolução do seu contrato de trabalho com a R., porquanto, conforme atrás já deixamos explanado, os mesmos não se provaram). Diga-se de passagem que, com vista à apreciação da licitude da resolução contratual operada, o tribunal apenas poderá considerar os factos ora elencados, e não outros (art. 398º nº 3 do C. do Trabalho).
Cumprirá então questionar se ocorreu, na data da resolução do contrato de trabalho, atraso de pagamento de retribuição superior a sessenta dias, tornando assim culposa a falta de pagamento da mesma (presunção inilidível). Ora, está bem de ver que tal atraso é realmente superior àquele prazo. Estamos, assim e repete-se, perante uma presunção de culpa da R. que é insuscetível de ser afastada e que conferirá ao A. o direito à reparação a que se refere o art. 396º do C. do Trabalho.
Resta então apurar se o incumprimento culposo da R., pela sua gravidade e consequências, tornou imediata e praticamente impossível a subsistência da relação de trabalho. Neste concernente, relembre-se uma vez mais que o que esteve na base da resolução do contrato de trabalho operada foi o não pagamento atempado da retribuição dos meses de junho a setembro de 2020, bem como de prestações vencidas desde o ano de 2015 até ao ano de 2020.
Posto isto, estando em causa, como fundamento da resolução, o não pagamento daquelas retribuições, consideramos que tal torna imediata e praticamente impossível a subsistência da relação laboral. E tal, porquanto, ponderado o valor mensal da retribuição auferida pelo A., se provou que: o A. teve de recorrer aos filhos, maiores e casados, para que o socorrem-se, a ele à esposa, pagando as suas contas, nomeadamente a renda da casa; a mãe daqueles filhos é pessoa diabética em grau IV, que necessita de ter alimentos todos os dias de acordo com a sua doença.
Ainda que se entendesse que a presunção legal a que acima se aludiu podia ser afastada, consideramos que a prova produzida pela R. não teve a virtualidade de o fazer.
À laia de conclusão, dir-se-á que o atraso verificado no pagamento ao A. das aludidas retribuições é suficiente para estribar uma justa causa subjetiva, a única que confere direito a recorrer à indemnização prevista no art. 396º do C. do Trabalho.
Face ao que se acaba de concluir, assiste ao A. o direito à indemnização prevista no art. 396º nº 1 do C. do Trabalho, a determinar entre 15 a 45 dias de retribuição base e diuturnidades por cada ano completo de antiguidade, não podendo ser inferior a três meses de retribuição base e diuturnidades. Por outro lado, por força do nº 2 dessa mesma norma, no caso de fração de ano de antiguidade, o valor da indemnização será calculado proporcionalmente.
Na situação sub judice, a relação laboral entre as partes teve início em 1 de agosto de 2015 e durou cerca de cinco anos.
Tudo ponderado, afigura-se-nos adequado fixar uma indemnização tendo por referência trinta dias de retribuição base, o que perfaz € 5166,67 (€ 1000 x 5 + € 1000 : 12 x 2).”
Insurge-se a recorrente/ré, alegando:
“Desde já se diga, que o despedimento levado a cabo pelo aqui apelado, nunca poderia ter sido dado como lícito e pelas razões afloradas na Douta Sentença (salários em atraso) uma vez que sendo o então autor condenado no pedido reconvencional a pagar os apuros que se encontram na sua posse à aqui apelante, não poderá ser razão de despedimentos a falta de pagamento de salário, durante um processo disciplinar que é interrompido pela carta referida.
Em resumo, provado que o trabalhador se locupletou com valores da entidade empregadora (se não provado, consta uma condenação nessa conformidade), obviamente tudo levava a crer o inevitável despedimento com justa causa, e o Autor em desespero de causa e de forma ardilosa remete carta a despedir-se, com o fundamento de salários não pagos.
A forma que foi usada pelo Autor não obedece ao prescrito no artigo 395º do Código de Trabalho, até porque era do conhecimento do mesmo que tinha na sua posse valores que pertenciam à sua entidade patronal.
Admitindo, que se faz por mero exercício de patrocínio, que a forma tinha sido obedecida, a justa causa do despedimento comunicada pelo trabalhador é apreciada nos termos do nº 3 do artigo 351º, ou seja, atendeu-se no quadro de gestão da empresa, o grau de lesão dos interesses do empregador, carácter das relações entre as partes e demais circunstâncias relevantes para o caso.
O tribunal “a quo” faz tábua rasa do facto de que deu condenação ao Autor, se ter locupletado com valores da empresa, em valores consideravelmente superiores aos alegados salários em atraso, e estando em curso um processo disciplinar, no qual já tinha havido resposta à nota de culpa.
O despedimento levado a cabo pelo trabalhador, aqui apelado, é ilícito, quer porque foi comunicado no decurso de processo disciplinar e na sua fase final, quer porque a Apelante era credora de valores que o Autor ilicitamente se apropriou, a carta de despedimento foi um acto premeditado para evitar o despedimento como processo disciplinar e poder accionar a empresa/Apelante.
O despedimento levado a cabo pelo aqui apelado é ilícito.
É legitimo a entidade patronal proceder à compensação de créditos seus, decorrente diretamente da relação laboral.
Sendo declarado ilícito o despedimento levado a cabo pelo Apelado, por inexistir justa causa, não terá lugar a indemnização, cabendo lugar a acerto de contas entre valores apropriados e créditos devidos decorrentes do despedimento sem justa causa, do trabalhador.
Não colhem os argumentos da recorrente.
Argumenta a recorrente: “A forma que foi usada pelo Autor não obedece ao prescrito no artigo 395º do Código de Trabalho” e “É legitimo a entidade patronal proceder à compensação de créditos seus, decorrente diretamente da relação laboral.” Sintetizando nos seguintes termos: “O despedimento levado a cabo pelo trabalhador, aqui apelado, é ilícito, quer porque foi comunicado no decurso de processo disciplinar e na sua fase final, quer porque a Apelante era credora de valores que o Autor ilicitamente se apropriou, a carta de despedimento foi um acto premeditado para evitar o despedimento como processo disciplinar e poder accionar a empresa/Apelante.”
Começando pela questão da compensação, estipula expressamente o art. 279º, nº 1, do Código do Trabalho que, na pendência de contrato de trabalho, o empregador não pode compensar a retribuição em dívida com crédito que tenha sobre o trabalhador, nem fazer desconto ou dedução no montante daquela.”
Conforme se refere no sumário do acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 26 de Junho de 2020, processo 1582/18.6T8LRA.C1, acessível em www.dgsi.pt, “O empregador, de forma unilateral, durante a vigência do contrato não pode compensar a retribuição em dívida com crédito que tenha sobre o trabalhador, conforme se encontra estabelecido no artigo 279º, nº 1, do C.T.. Este artigo 279º é uma norma imperativa (...) quando estabelece que ao empregador está vedado, de forma unilateral, durante a vigência do contrato, compensar a retribuição em dívida com crédito que tenha sobre o trabalhador.”
Assim, independentemente da origem e natureza do crédito da recorrente, estava-lhe vedado proceder à invocada compensação, pelo que a falta de pagamento da remuneração é ilegítima e pode fundamentar a resolução do contrato, com justa causa, por parte do trabalhador.
Nos termos do nº 1 do art. 395º do Código do Trabalho, o trabalhador deve comunicar a resolução do contrato ao empregador, por escrito, com indicação sucinta dos factos que a justificam, nos 30 dias subsequentes ao conhecimento dos factos.
Ora, analisadas as cartas de resolução referidas sob as als. nn) a pp) dos factos provados, nenhum vício de forma ou de sustância se assinala nas mesma, susceptível de invalidar a resolução do contrato de trabalho.
Conforme se refere no acórdão desta Secção Social do Tribunal da Relação do Porto de 4 de Abril de 2022, processo 3191/20.0T8MTS-A.P1, acessível em www.dgsi.pt, “nos termos dos arts. 395º, nº 1, e 398º, nº 3, do CT/2009, o trabalhador, na comunicação da resolução do contrato, deve proceder à indicação sucinta dos factos que a justificam, sendo que, na acção judicial em que for apreciada a licitude dessa resolução apenas são atendíveis, para a justificar, os factos constantes dessa comunicação; ainda que, a nosso ver, não seja exigível um grau de circunstanciação fáctica tão rigoroso como o que é exigível na nota de culpa para o despedimento com invocação de justa causa, é, ainda assim, exigível um grau mínimo de indicação fáctica que permita ajuizar da concreta factualidade que consubstancia a invocada justa causa de resolução, sendo certo que apenas os factos (essenciais) constantes dessa comunicação poderão relevar para a sua apreciação; tal exigência não é compatível com meras afirmações de direito, conclusivas, genéricas ou opinativas.”
Ora, no recurso, a recorrente não indica qualquer vício da comunicação que a torne inválida, com a consequente ilicitude da resolução. A única referencia que é feita é a de que a resolução é ilícita, “porque foi comunicado no decurso de processo disciplinar e na sua fase final”.
Não se nos afigura que assista razão à recorrente. O processo disciplinar com vista ao despedimento do trabalhador tem como escopo precisamente esse despedimento, sem direito a indemnização do trabalhador.
Ora, a resolução do contrato, por parte do trabalhador, alcança o mesmo desiderato, a cessação da relação contratual de trabalho entre a entidade patronal e o trabalhador, tornando-se assim inútil a prossecução do processo disciplinar. A única questão é que, se o trabalhador tem direito a uma indemnização, por ser justa, ou ter justa causa, a resolução.
No caso, independentemente da justa causa para o despedimento do recorrido, que não resulta da prova consagrada nos autos, uma vez que da al. a) do facto provado apenas resulta que o recorrido tem em seu poder apuros resultantes da actividade da recorrente e a esta devidos, havendo justa causa para a resolução por parte do recorrido, como se julgou haver, aquele processo disciplinar não obsta a que o trabalhador possa resolver o contrato com justa causa. Justa causa a que a recorrente deu causa.
Ora, quanto à justa causa de resolução, nenhuma censura merece o explanado na sentença sob recurso, que aliás não é nesta medida posta em causa, nomeadamente quando se refere: “Compete ao trabalhador provar a existência do comportamento do empregador (art. 342º nº 1 do C. Civil) e à entidade empregadora demonstrar que esse comportamento não procede de culpa sua, pois, uma vez que estamos no âmbito da responsabilidade contratual, tem aplicação a regra geral do art. 799º nº 1 do C. Civil. Desta presunção decorre uma inversão do ónus da prova, cabendo ao empregador demonstrar que a situação subjetiva de justa causa alegada pelo trabalhador não procedeu de um comportamento culposo. Além da aplicação daquela regra geral, há ainda que ter presente a presunção de culpa específica prevista no nº 5 do art. 394º do C. do Trabalho, no que se refere à mora do empregador, relativa à falta de pagamento da retribuição que se prolongue por mais de sessenta dias. Neste tipo de casos, provando-se que a mora do empregador excede o apontado marco temporal, mais do que uma mera presunção juris tantum – ilidível mediante prova em contrário (cf. o nº 2 do art. 350º do C. Civil), como a prevista no art. 799º do C. Civil –, estabelece-se uma ficção legal de culpa patronal na falta de pagamento de retribuição, ou seja, uma presunção juris et de jure, a qual não admite prova em contrário (cfr. o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 21 de fevereiro de 2011 e o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 9 de junho de 2016, ambos em www.dgsi.pt.). Concluindo: a presunção, ilidível, constante do art. 799º nº 1 do C. Civil aplica-se ao caso de atraso no pagamento da retribuição inferior a sessenta dias. Por sua vez, a ficção legal ou presunção, esta inilidível, constante do art. 394º nº 5 do C. do Trabalho aplicar-se-á aos casos de atraso que se prolongue por sessenta dias ou mais, no pagamento da retribuição.” E ainda que “Posto isto, estando em causa, como fundamento da resolução, o não pagamento daquelas retribuições, consideramos que tal torna imediata e praticamente impossível a subsistência da relação laboral. E tal, porquanto, ponderado o valor mensal da retribuição auferida pelo A., se provou que: o A. teve de recorrer aos filhos, maiores e casados, para que o socorrem-se, a ele à esposa, pagando as suas contas, nomeadamente a renda da casa; a mãe daqueles filhos é pessoa diabética em grau IV, que necessita de ter alimentos todos os dias de acordo com a sua doença.”

8.2. Mais alega a recorrente/ré:
“O Apelado, como já se referiu, endereçou carta de despedimento à Apelante, estando em curso processo disciplinar cujo fundamento era essencialmente o facto do trabalhador se ter apropriado ilicitamente de valores que lhe foram confiados pelos colegas motoristas para serem entregues à entidade patronal que não chegou a acontecer, o ora apelado sabia da veracidade dos factos constantes do processo disciplinar, e no decurso do mesmo, de forma a evitar o seu certo despedimento com justa causa, endereçou carta à Apelante resolvendo o contrato de trabalho de motorista existente, argumentando falta de pagamento de retribuições de quatro meses, embora tenha reclamado outros valores que entenderá também devidos.
A referida apropriação foi confirmada com uma condenação do trabalhador a entregar os valores de que se apropriou.
O direito que o trabalhador exerceu é manifestamente ilegítimo, uma vez que o mesmo excedeu manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes e pelo fim social ou económico desse direito (artigo 334º do Código Civil).
É manifesto o abuso de direito pelo Apelado.
Se atendermos no procedimento cautelar apenso aos autos, os créditos aí reclamados pelo Autor foram dados como liquidados em função do contra crédito detido pela Ré, aqui Apelante, ou seja, desde esse acordo, os créditos do trabalhador reclamados pelo Autor na providência cautelar foram dados como liquidados.”
A propósito refere-se no acórdão do STJ de 17 de Novembro de 2004, processo 04S2603, acessível em www.dgsi.pt:
“Para aferir da legitimidade ou ilegitimidade do exercício de um direito, fornece a lei três conceitos: boa fé, bons costumes e o fim social e económico do direito (art. 334º do CC).
A boa fé pode ser encarada objectivamente (como norma de conduta) ou subjectivamente (como estado de espírito). Exprimem-se estas duas dimensões, falando numa actuação segundo a boa fé ou de boa fé.
É a face objectiva deste conceito que está contemplada no art. 334º do CC.
Neste sentido, o conceito traduz, ele próprio, um princípio geral do direito.
Enunciando-o, o legislador apela à ética jurídica que exige que cada um proceda de modo honesto e leal, mantendo nas relações com os outros a palavra dada e a confiança. Será de acordo com esta normatividade exterior - conteúdo do princípio da boa fé objectivado pela convivência social – que o julgador irá preencher valorativamente o correspondente conceito jurídico (boa fé, enquanto conceito indeterminado).
Quanto aos bons costumes, há que entendê-los como um conjunto de regras de convivência que num dado tempo e lugar as pessoas honestas e correctas aceitam partilhar. Esse conjunto de normas constitui a ordem pública moral. Será, assim, contrário aos bons costumes o exercício de um direito que viole normas elementares impostas pelo decoro social. Só aqueles (boni mores) podem servir de critério para efeitos do citado art. 334º.
Sabido que cada direito possui uma função instrumental própria, que justifica a sua atribuição ao titular e define o seu exercício, deve tal exercício respeitar a finalidade social ou económica tida em vista pelo legislador na regulamentação do respectivo instituto.
Se os limites em que a lei encerra o exercício do direito forem ultrapassados (de forma manifesta), há abuso de direito.
Como sublinha Pessoa Jorge, a sanção contra o abuso de direito tem uma finalidade diferente do recurso à equidade; com esta pretende evitar-se a injustiça a que conduz, em certos casos a aplicação concreta da norma; aquela pretende impedir que a norma seja desvirtuada no seu real sentido e alcance. Num caso afasta-se a norma; no outro quer-se aplicar a norma, mas com plena fidelidade ao seu espírito. [“Ensaios sobre os Pressupostos da Responsabilidade Civil”, 1968, nota 166]
Resumindo:
Para determinar os limites impostos pela boa fé e pelos bons costumes, há que atender de modo especial às concepções ético-jurídicas dominantes na colectividade; quando esses limites decorrem do fim económico e social do direito impõe-se apelar para os juízos de valor positivo consagrados na própria lei. [Antunes Varela, “Das Obrigações em Geral”, 10ª ed, pgs 544 e sgs, e M.J. Almeida e Costa, “Direito das Obrigações”, 10ª ed., pg 70 e sgs, entre outros]
Sem esquecer, porém, que, traduzindo-se a atribuição de um direito no reconhecimento da supremacia de certos interesses sobre outros com eles conflituantes, só o exercício que exceda manifestamente aqueles limites pode ser considerado ilegítimo.
A manifestação mais clara do abuso do direito é a chamada conduta contraditória (venire contra factum proprium) em combinação com o princípio da tutela da confiança (exercício dum direito em contradição com uma conduta anterior em que a outra parte tenha confiado, vindo esta com base na confiança gerada, e de boa fé, a programar a sua vida e a tomar decisões). Como figuras próximas, temos a renúncia e a neutralização do direito. Segundo Baptista Machado, esta última figura é considerada, em geral, como uma modalidade especial da proibição do venire contra factum proprium e ocorre quando se verificam cumulativamente as seguintes circunstâncias: o titular dum direito deixa passar longo tempo sem o exercer; com base neste decurso do tempo e com base ainda numa particular conduta do dito titular ou noutras circunstâncias, a contraparte chega à convicção justificada de que o direito já não será exercido; movida por esta confiança e com base nela, essa contraparte orienta em conformidade a sua vida, tomando medidas ou adoptando programas, de sorte que o exercício tardio e inesperado do direito lhe acarretará uma desvantagem maior do que o seu exercício atempado (RLJ 118/228).”
Concluindo-se no sumário do mesmo acórdão: “Não constitui abuso de direito a rescisão do contrato de trabalho por parte do trabalhador/motorista, com fundamento no não pagamento de parte do subsídio de agente único – situação que já não era inédita -, estando esse trabalhador ao serviço da entidade patronal há cerca de 27 anos e a 3 anos e três meses da reforma e ainda que haja manifesta desproporção entre o valor da indemnização (por antiguidade) e o montante em dívida e aquele subsídio tenha sido acordado por valor superior ao que resultaria da aplicação da respectiva CCT.”
Efectivamente, não se pode considerar abusivo o exercício do direito de resolução do contrato de trabalho, com fundamento na falta de pagamento de salários, ainda que na pendência de processo disciplinar para despedimento do trabalhador, dada a especial relevância e especial protecção de que beneficia a obrigação de pagamento do salário.

8.3. Finalmente, alega a recorrente/ré: “Como resulta da Douta Sentença o pedido reconvencional foi reconhecido, não no que respeita aos valores, mas à existência do mesmo, ou seja, houve para o Tribunal “a quo” apropriação ilícita pelo Autor/ Apelado de apuros pertencentes à sua entidade patronal, aqui Apelante. Este reconhecimento, salvo melhor opinião, terá obrigatoriamente que alterar toda a decisão restante, incluindo sobretudo a ilicitude do despedimento levado a cabo pelo trabalhador, carecendo esta de qualquer fundamento.”
Trata-se de questão já analisada nos dois pontos anteriores, concluindo-se pela improcedência de mais este fundamento do recurso da ré.
Improcedem, pois, ambas as apelações.

IV. Decisão
Pelo exposto, acorda-se em rejeitar a impugnação da decisão relativa à matéria de facto por parte do apelante autor e julgar parcialmente procedente o recurso quanto à impugnação da decisão relativa à matéria de facto do recurso da apelante ré, mas sem influência na decisão, e julgar improcedentes ambas as apelações (de autor e ré), confirmando-se a sentença recorrida.
Custas dos recursos pelos respectivos recorrentes.

Porto, 5 de Junho de 2023
Rui Penha
Jerónimo Freitas
Nelson Fernandes