Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2760/22.9T8PNF.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MANUELA MACHADO
Descritores: NULIDADES DE SENTENÇA
DOCUMENTOS
MEIOS DE PROVA
Nº do Documento: RP202402222760/22.9T8PNF.P1
Data do Acordão: 02/22/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - As nulidades da sentença encontram-se taxativamente previstas no artigo 615.º do CPC e reportam-se a vícios estruturais ou intrínsecos da decisão, também, designados por erros de atividade ou de construção da própria sentença, que não se confundem com eventual erro de julgamento de facto e/ou de direito.
II - Os documentos não são factos, mas meios de prova de factos, pelo que o juiz deve enunciar os factos que com base nos documentos considera provados, em vez da mera remissão para os documentos incorporados nos autos, dando por reproduzido o seu teor.
III - Se o tribunal deu como provada apenas a existência dos documentos, mas levou à matéria de facto não provada os factos que resultam do teor dos mesmos, não existe contradição entre factos provados e não provados.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Apelação 2760/22.9T8PNF.P1

Acordam na 3.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto:

I - RELATÓRIO
AA e marido BB, residentes na Rua ..., ..., Penafiel, intentaram ação declarativa de condenação, sob a forma do processo comum, contra CC, residente na Rua ..., ..., Penafiel, pedindo a condenação da Ré:
a) A pagar aos Autores a título de danos, a quantia de €10.498,12 (dez mil, quatrocentos e noventa e oito euros e doze cêntimos), acrescida de juros de mora até integral e definitivo pagamento;
b) A pagar aos Autores a quantia de €3.150 (três mil, cento e cinquenta euros), acrescida de juros de mora, a título de lucros cessantes (privação de rendas);
c) A pagar aos Autores, a quantia que se vier a apurar a título de lucros cessantes (pela privação de rendas futuras).
A ré contestou, concluindo pela total improcedência da ação.
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Realizada a audiência de julgamento, foi proferida sentença que decidiu julgar a ação improcedente e, em consequência, absolver a ré dos pedidos.
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Não se conformando com o assim decidido, vieram os autores interpor o presente recurso, que foi admitido como apelação, a subir nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo, formulando as seguintes conclusões:
“A. Está a sentença ferida dos vícios descritos na motivação para a qual expressamente remete.
B. Impugnando formalmente a matéria de facto nos pontos 6, 8 e 9, dado que antes de mais, a fundamentação desses factos provados não os discriminou, limitando-se a remeter para os documentos 4 e 5 juntos com a petição inicial.
C. Impossibilitando desse modo quem lê a sentença de compreender o sentido lógico dedutivo, pois impediu a real análise crítica da prova.
D. Sendo que teria sido de suma importância para a decisão, ter procedido à discriminação em detalhe de todos os factos provados, vertidos nos referidos documentos.
E. Uma vez que deles constam, de forma discriminada e pormenorizada os danos existentes no locado e recheio, decorrentes do mau uso e falta de manutenção por parte da ré.
F. Tal omissão de discriminação, deu origem a uma decisão obscura e ambígua, tornando-a ininteligível.
G. E, por tal motivo, a sentença deve ser considerada nula, por falta evidente de elementos para a sua compreensão.
H. Errou ainda na apreciação dos fundamentos de facto não provados nas alíneas b), c), d) e e), em oposição com os factos provados nos pontos 6, 9, 16 e a decisão.
I. O tribunal julgou assim não provada a existência dos danos e deteriorações constantes dos documentos 4 e 5, juntos com a PI, apesar de ter dado como provado os mesmos factos nos pontos 6 e 9 (o que corroborou em §4º da motivação).
J. Incorrendo em nulidade por contradição insanável da fundamentação.
K. Errou ainda, ao dar como não provados os factos constantes da alínea d) quando já tinha decidido e julgado como provados os mesmos factos no ponto 9 (e ainda em §4 da motivação).
L. Incorreu ainda, em erro de julgamento, ao não dar como provado na al. e) que os autores não ficaram impossibilitados desde dezembro de 2021 de arrendar o locado e de auferirem o valor mensal de €350,00 (trezentos e cinquenta euros), tendo em conta que o tribunal, tinha dado como provado no ponto 16 – que os autores não tinham arrendado o locado, em virtude de o mesmo não reunir condições para o efeito, por não se encontrar em bom estado.
M. Pelo que, julgou e decidiu em contradição insanável entre a fundamentação dos factos provados e a fundamentação dos factos não provados e entre os factos provados e a decisão.
N. Foram julgados como provados os factos, nos pontos 5, 6, 7, 8, 9, e 16, factos estes com relevância para a decisão da causa.
O. Ora, os referidos factos conduzem a uma decisão contrária e mesmo oposta à que foi tomada.
P. Nos pontos 5 e 6, o tribunal julgou como provado que os autores enviaram uma carta à ré, constante nos autos como documento 4 (junto com a PI), a solicitarem no §4, a reparação dos danos e deteriorações dos equipamentos e locado.
Ficando também provado todo o teor do referido documento, onde constam parte dos danos, que os autores puderam percecionar no dia 14 de agosto aquando da visita ao locado.
Q. No §5º do mesmo documento 4, ficou provado, que os autores solicitaram à ré, que a mesma indicasse uma data próxima do termo do contrato, para que fosse realizado exame ao espaço locado e a todo o recheio (máquinas, equipamentos).
R. Ficou também provado no ponto 5 em conjugação com o depoimento da testemunha DD, realizado no dia 24.04.2022 constante no sistema de gravação do minuto 05:15 ao minuto 05:45, que a ré não respondeu à carta, nem agendou data por forma a facultar o exame do locado e recheio.
S. Ficou ainda, provado no ponto 7 em conjugação com §5º da motivação, que o estabelecimento comercial encerrou em meados de outubro e não dias antes do termo do contrato em 16.12.2021.
T. O tribunal, julgou provado nos pontos 8 e 9 que os autores remeteram em 17.03.2022 nova carta à ré, identificada nos autos como documento 5 junto com a PI, dando também como provado todo o seu conteúdo.
U. E do seu conteúdo, consta desde logo no §3 de forma discriminada os bens móveis, máquinas, equipamentos, locado que se encontram danificados em virtude de a ré, lhes ter dado mau uso ou de não ter feito a manutenção devida.
Todos estes danos foram dados como provados no ponto 9.
V. Tal como foi julgado provado no ponto 9, que os valores dos danos causados foram calculados em €10.498,12 (dez mil, quatrocentos e noventa e oito euros e doze cêntimos), conforme consta do teor do referido documento 5, 2fls no §9º.
W. Bem como julgou provado no ponto 16, que os autores, não voltaram a arrendar o locado, em virtude de não reunir condições para o efeito, devido ao seu estado.
X. Ao dar como provados todos estes factos acabados de elencar, o tribunal julgou e decidiu erradamente a presente ação improcedente, por não provada e ao absolver a ré dos pedidos. Como tal, é patente que há contradição insanável entre o que o tribunal deu como provado e o que decidiu.
Y. Sendo assim imprescindível sindicar formalmente a matéria de facto por forma a obter a única decisão coerente com os factos dados como provados, o que conduz inevitavelmente à procedência da ação.
Z. Consideramos assim, ter existido erro de julgamento, derivado da omissão de análise crítica das provas e demais vícios supra discriminados.
AA. Porque, se o tribunal tivesse realizado a análise critica das provas, que indicou e aquelas outras que existem nos autos, como os documentos nº 5 a 13 juntos aos autos com a PI e, depoimento da testemunha DD, realizado em 24.04.2022, constante do sistema de gravação do minuto 04:57 ao minuto 06:59, teria julgado tais factos “os danos” como provados.
BB. No que respeita à data de encerramento do estabelecimento comercial – ficou provado que ocorreu em (meados) de outubro no ponto 7 em conjugação com §5 da motivação e, não ficou provado na al. f), que dias anteriores à entrega do locado, a ré tinha o estabelecimento comercial a funcionar.
CC. Contudo, o tribunal não retirou a ilação que resultou da conjugação destes factos provados e não provados, com o documento 4, §5, com o depoimento da testemunha DD, realizado no dia 24.04.23 constante do sistema de gravação do minuto 05:15 ao minuto 05:45, que seria julgar provado que a ré não facultou aos autores (e técnico habilitado), o locado e todo o recheio (máquinas, equipamento e utensílios) para exame por forma a aferirem o seu o estado de conservação do imóvel e bens móveis.
DD. Podendo ainda, presumir pelas regras de experiência, que a ré, pretendia omitir e desresponsabilizar-se dos danos e deteriorações que havia provocado, no locado e recheio. Por isso incorreu neste ponto em erro notório na apreciação da prova.
EE. No que tange à matéria dada como provada no ponto 10, relativa à existência de humidades no locado, o tribunal, julgou, erradamente.
FF. O tribunal, diz (§ 6 e 7 da motivação) que os factos dados como provados no ponto 10, resultaram da inspeção ao local e, do depoimento das testemunhas, DD e EE, referindo ainda que estas testemunhas confirmaram a existência de humidades.
GG. Ora, desde logo, da ata de julgamento com inspeção ao local de 19.05.2023, não se retira, qualquer elemento útil, que permitisse ao tribunal, dar como provado a existência das referidas humidades.
HH. A referida ata com inspeção ao local, é completamente desprovida de qualquer informação relativa às características do local, sobre a existência de humidades, sobre a origem das alegadas humidades, sobre o estado dos bens móveis. Bem como é desprovida de qualquer registo fotográfico das alegadas humidades.
Existindo um único registo fotográfico sem qualquer alusão e, sem qualquer relevância para a matéria que o tribunal julgou provada no ponto 10.
II. No que respeita ao depoimento da testemunha DD realizado em 24.04.2023, tivemos o cuidado de ouvir todo o depoimento, no suporte de gravação do minuto 01:13 até ao minuto 06:59.
JJ. E a única vez, que a testemunha se pronunciou relativamente à humidade, foi quando a mandatária dos autores, a questionou a respeito e, a testemunha respondeu, negando a existência de humidade, no talho – pode ouvir-se do minuto 06:27 ao minuto 06:42.
KK. Pelo que não se consegue vislumbrar de que parte do depoimento da testemunha DD, o tribunal, se serviu para dar como provados os factos do ponto 10.
LL. Esta testemunha, revelou ter conhecimento direto sobre os factos, o seu depoimento foi assertivo, sério e credível.
MM. Já no que concerne ao depoimento da testemunha EE, realizado em 24.04.23 é revelador de falta de conhecimento direto sobre os factos, foi um depoimento contraditório, revelador de desorientação e perturbação.
NN. O depoimento desta testemunha na parte relativa aos factos provados no ponto 10 é revelador do que acabou de se expor e encontra-se registado no suporte de gravação do minuto 01:03 ao minuto 04:20.
OO. Prestou um depoimento do princípio ao fim claramente desorientado, por falta de conhecimento direto dos factos, procurava as respostas às perguntas com base em muitas reticências como se estivesse à procura que a resposta lhe fosse dada através de uma palavra solta ou de um olhar, respondia muito a receio, com muitos risos descabidos.
PP. Às perguntas que lhe eram feitas (a respeito das humidades) respondia utilizando vocábulos como: “estaria”, “concretamente não sei”, “não sei precisar” (…), ou seja, esta testemunha não tem conhecimento de nada com relevância, para que o tribunal tivesse dado como provados os factos do ponto 10. Não podia ser valorada na sentença.
QQ. Face ao exposto, constata-se que o tribunal não podia dar como provados os factos do ponto 10 com base no que resultou da inspeção ao local, pois que do auto de inspeção ao local não existe qualquer registo com elementos úteis para o exame e decisão da causa, nem do que resultou do depoimento das duas testemunhas. A testemunha DD, negou a existência de humidade e, o depoimento da testemunha EE por não merecer credibilidade.
RR. O tribunal, face à factualidade dada como provada devia ter decidido pela procedência da ação, por provada e, em consequência ter condenado a ré nos pedidos deduzidos por incumprimento contratual e legal.
SS. À luz do princípio da força vinculativa dos contratos, consagrado no nº 1 do artigo 406º do C. Civil, os contratos celebrados de forma válida e eficaz constituem lei imperativa entre as partes.
TT. A ré, como resulta do contrato de arrendamento (clausulas 12º e 14º) estava obrigada a cuidar, zelar, reparar, e de substituir se necessário os bens que viessem a avariar para manter o locado e móveis em bom estado de conservação.
E, de restituir aos autores, no estado em que recebeu, conforme previsto nos termos do artigo 1043º, nº 1, 1ª parte do C.Civil.
UU. Todos os danos, avarias e deteriorações verificados no locado e recheio, foram originados por uma utilização imprudente da ré, quer por não ter mantido o bom estado de conservação, quer também porque durante todo o tempo do contrato (6 anos) nunca deu a conhecer aos autores, as avarias do recheio, à medida que iam sucedendo, verificando-se assim violação da lei nos termos dos artigos 1038º, alíneas d), h) do C. Civil.
VV. Acresce que a ré, também violou a lei - nos termos do artigo 1038º, al. b) do C. Civil - ao não facultar aos autores o locado e recheio para exame por um técnico habilitado de todas as máquinas e espaço.
WW. Verifica-se assim a falta culposa da ré, por incumprimento contratual e violação legal, devendo ser condenada a pagar aos autores as quantias deduzidas na ação, nos termos dos artigos 798º e 1044º, 1ª parte.
XX. Fazendo-se assim, uma correta aplicação do direito à factualidade dada como provada.
YY. Feriu desse modo os arts. 493º; 607º nºs 3 e 4; 615º nº 1, als. a), b) 1ª parte, c) 1ª parte, c) 2ª parte e d), do CPC; 406º; 798º; 1038º als. b), d), e h); 1043º nº 1, 1ª parte e 1044º 1ª parte, todos do C. Civil.
ZZ. Por tais motivos aduzidos, deve a decisão proferida ser revogada e anulada ou caso assim não se entenda, ser alterada sobre toda a matéria de facto e de direito aqui sindicada e que ora se impugna.”.

A recorrida CC apresentou contra-alegações, concluindo pela improcedência da apelação e pela manutenção da sentença recorrida.
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Após os vistos legais, cumpre decidir.
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II - DO MÉRITO DO RECURSO
1. Objeto do recurso
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso – cfr. arts. 635º, nº 4, 637º, nº 2, 1ª parte e 639º, nºs 1 e 2, todos do Código de Processo Civil.
Atendendo às conclusões das alegações apresentadas pelos apelantes, são as seguintes as questões a apreciar:
- Se ocorre algum motivo de nulidade da sentença, nomeadamente obscuridade, ambiguidade, ininteligibilidade da decisão, ou contradição insanável entre a fundamentação dos factos provados e a decisão;
- Se ocorre erro de julgamento, por errada apreciação das provas, e consequente alteração da decisão da matéria de facto;
- Decidir se em conformidade, face à alteração, ou não, da matéria de facto e subsunção dos factos ao direito, deve ser alterada a decisão de direito.
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2. Sentença recorrida
2.1. O Tribunal de 1ª Instância considerou provada a seguinte matéria de facto:
1. A Autora é dona, legitima proprietária e possuidora da fração autónoma composta por um espaço amplo para comércio ou serviços, com galeria na parte posterior, sendo a terceira no sentido nascente – poente, quando de frente para o edifício, denominada pela letra “C” do prédio constituído em regime de propriedade horizontal, sito no lugar ..., freguesia ..., concelho de Penafiel, descrito na Conservatória do Registo Predial de Penafiel, sob o n.º ...-C e inscrita na matriz sob o artigo ..., ..., Penafiel.
2. A mencionada fração autónoma foi objeto, em 15.2.1015, de um contrato de arrendamento comercial celebrado entre os Autores, na qualidade de senhorios e a Ré, na qualidade de arrendatária, de duração limitada pelo prazo de cinco anos, renováveis por períodos iguais e sucessivos para comércio a retalho de carnes (talho), fazendo parte dele todo o recheio devidamente descriminado no 4§ ponto 1 a 20 do referido contrato, com a renda mensal no valor de €350 (trezentos e cinquenta euros), conforme teor do documento n.º 2 junto com a petição inicial que aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
3. No dia 14 de agosto de 2021, a Ré solicitou aos Autores, a realização de obras no locado.
4. Por carta registada com aviso de receção datada de 31.8.2021, a Ré denunciou o contrato de arrendamento.
5. Em 16.09.2021, os Autores remeteram à Ré carta registada e não obtiveram nenhuma resposta.
6. Existe um documento constante como n.º 4 junto com a petição inicial cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
7. Em finais de outubro de 2021, o estabelecimento comercial encontrava-se encerrado.
8. Os Autores remeteram à Ré carta registada com aviso de receção datada de 17 de março de 2022.
9. Existe um documento constante como n.º 5 junto com apetição inicial cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
10. Existem humidades nas paredes interiores do locado com origem nas fachadas do imóvel.
11. A fachada do imóvel onde se encontra instalado o talho, em 14 de agosto de 2021, apresentava queda do tijolo burro.
12. No momento em que a Ré procedeu à entrega da chave do locado, no dia 16 de dezembro de 2021, foi pela Dra. FF, Solicitadora, portadora da cédula profissional n.º ... e na qualidade de representante da sua constituinte AA, lavrada uma declaração na qual a mesma declara que recebeu a chave do locado e constatou que os bens móveis constantes nas verbas do contrato de arrendamento, com exceção da verba 7 e 17, estavam presentes no locado.
13. Nessa data, a mencionada solicitadora autora da declaração, fotografou os bens relativamente aos quais atestou a entrega da Ré aos Autores, conforme documento n.º 5 junto com a contestação e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
14. No que toca à verba 17 do recheio do contrato de arrendamento é referido na declaração que a senhoria declarou por telefone que tinha levado a referida verba, daí a mesma não constar no local.
15. A Ré procedeu à reparação/substituição do vidro da vitrine e trocou a tábua da frente da mesma, bem como a pinga de água da câmara frigorifica, identificados no documento 4 junto com a petição inicial.
16. Os Autores não diligenciaram de arrendar o locado por entenderem que o mesmo não tem condições para o efeito no estado em que está.

2.2. E deu como não provados, os factos seguintes:
a) No dia 14 de agosto de 2021, a Ré solicitou aos Autores a reparação e substituição de utensílios e equipamentos existentes no locado, caso contrário denunciaria o contrato;
b) O locado apresentava aquando da cessação do contrato tijoleira partida em vários sítios, a câmara frigorifica, da marca Dagard Ibérica encontrava-se a pingar água, a vitrine do balcão, da marca Guifrio tem o vidro partido e a tabua descolada com alguma ferrugem e a arca congeladora, tipo ilha da marca Cofri, não está a funcionar de forma regular;
c) Apresentava ainda os danos identificados no documento junto sob o n.º 5 junto com a petição inicial e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais;
d) Os danos referidos foram calculados no valor de €10.498,12 (dez mil, quatrocentos e noventa e oito euros e doze cêntimos);
e) Desde dezembro de 2021 que os Autores estão impossibilitados de auferir o valor mensal de uma renda no valor de €350 (trezentos e cinquenta euros);
f) Nos dias anteriores à entrega do locada pela Ré aos Autores, esta tinha o seu estabelecimento comercial a funcionar.

2.3. Tendo fundamentado a matéria de facto, nos seguintes termos:
O Tribunal deu como provado a factualidade enunciada tendo em conta a prova produzida em sede de julgamento conjugada com as regras da experiência e do normal acontecer.
Os pontos 1, 2, 3, 4, 5 e 8 dos factos provados resultaram da aceitação expressa dos mesmos por parte da Ré em conjugação com o teor dos documentos juntos como n.º 1, 2 e 3 com a petição inicial.
Os pontos 11, 12, 13, 14, 15 e 16 dos factos provados resultaram da confissão dos Autores em sede de depoimento de parte – cfr. assentada.
Os pontos 6 e 9 dos factos provados nos documentos juntos como n.º 4 e 5 juntos com a petição inicial.
Quanto à data de encerramento do locado pela Ré (ponto 7 dos factos provados) o Tribunal fundou a sua convicção nos depoimentos das testemunhas GG, marido da Ré que ajudava aquela no talho e de HH, cliente da Ré no referido estabelecimento, sendo que ambos confirmaram que a Ré fechou o talho em meados de outubro e cujos depoimentos se mostraram sérios e sustentados e não foram contrariados pela demais prova produzida em sede de audiência de julgamento, pelo que lograram convencer o Tribunal.
A factualidade constante do ponto 10, da existência de humidades, resultou a mesma não só da inspeção ao local, onde o Tribunal pode não só aquilatar das caraterísticas do local bem como da existência das mencionadas humidades com origem na fachada do imóvel, bem como do estado em que o locado e bens móveis se encontravam, mas também do depoimento das testemunhas DD, filha dos Autores que acompanhou estes numa visita ao local após a Ré ter entregue o mesmo e EE, contabilista da Ré.
Ambas as testemunhas confirmaram a existência de humidades e que as mesmas tinham origem na fachada do imóvel, sendo que a segunda das identificadas testemunhas esclareceu ainda que visitava a Ré diversas vezes e verificava que a Ré estava sempre a limpar as humidades e que estas estavam sempre a reaparecer.
Quanto aos factos não provados, os mesmos resultaram da ausência de prova direta, circunstanciada e sustentada quanto aos mesmos, sendo que da inspeção ao local, com a exceção das humidades, o Tribunal não constatou nenhuma outra deterioração.
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3. Da nulidade da sentença
Nas conclusões das suas alegações vieram os recorrentes arguir alegados vícios da decisão recorrida que identificam como nulidades, a saber:
Obscuridade e ambiguidade da decisão, tornando-a ininteligível;
Contradição insanável entre os fundamentos dos factos não provados e dos factos provados;
Contradição insanável entre os factos provados e a decisão.
Apreciando:
O artigo 615.º do CPC prevê as causas de nulidade da sentença, dispondo que:
“1 - É nula a sentença quando:
a) Não contenha a assinatura do juiz;
b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;
d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;
e) O juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido.
2 - A omissão prevista na alínea a) do número anterior é suprida oficiosamente, ou a requerimento de qualquer das partes, enquanto for possível colher a assinatura do juiz que proferiu a sentença, devendo este declarar no processo a data em que apôs a assinatura.
3 - Quando a assinatura seja aposta por meios eletrónicos, não há lugar à declaração prevista no número anterior.
4 - As nulidades mencionadas nas alíneas b) a e) do n.º 1 só podem ser arguidas perante o tribunal que proferiu a sentença se esta não admitir recurso ordinário, podendo o recurso, no caso contrário, ter como fundamento qualquer dessas nulidades.”.
Posto isto, é unânime considerar-se que “as nulidades da sentença são vícios intrínsecos da formação desta peça processual, taxativamente consagrados no nº 1, do art. 615º, do CPC, sendo vícios formais do silogismo judiciário relativos à harmonia formal entre premissas e conclusão, não podendo ser confundidas com hipotéticos erros de julgamento, de facto ou de direito, nem com vícios da vontade que possam estar na base de acordos a por termo ao processo por transação” (vide Ac. do TRG de 04.10.2018, disponível em dgsi.pt).
Ou seja, as nulidades da sentença encontram-se taxativamente previstas no artigo 615.º do CPC e reportam-se a vícios estruturais ou intrínsecos da decisão, também, designados por erros de atividade ou de construção da própria sentença, que não se confundem com eventual erro de julgamento de facto e/ou de direito.

3.1. A ambiguidade ou a obscuridade que torna a decisão ininteligível e a contradição entre os fundamentos e a decisão (alínea c) do n.º 1 do art. 615.º do CPC)
Invocando uma errada apreciação da prova produzida, com o consequente erro de julgamento, e uma desadequada subsunção jurídica dos factos e aplicação do direito, e após impugnarem a decisão sobre a matéria de facto provada e não provada, referindo, nomeadamente, a falta de especificação dos factos que dizem constar dos documentos juntos como documentos número 4 e número 5, com a petição inicial, entendem os recorrentes que tal omissão de discriminação dos factos, deu origem a uma decisão obscura e ambígua, tornando-a ininteligível, para além de existir contradição insanável entre os factos dados como provados e não provados e entre aqueles e a decisão.
Ora, a ambiguidade ou a obscuridade prevista na alínea c) do n.º 1 do art. 615.º do CPC, para gerar a nulidade da decisão, tem de tornar a decisão ininteligível, o que implica que, seja na decisão, seja na fundamentação, se chegue a um resultado que possa traduzir dois ou mais sentidos distintos e porventura opostos, que permita hesitar sobre a interpretação adotada, ou não possa ser apreensível o raciocínio do julgador, quanto à interpretação e aplicação de determinado regime jurídico (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, Processo 4258/18.0T8SNT.L1.S1, de 12-01-2021, disponível em dgsi.pt).
Quando a matéria de facto seja deficiente, obscura ou contraditória sobre pontos determinados, ou quando se mostre indispensável a sua ampliação quanto a determinados factos ou quando não esteja tal decisão devidamente fundamentada sobre factos essenciais para o julgamento da causa, não é caso para arguição da nulidade da sentença, antes para a impugnação da decisão da matéria de facto e sua modificação, como, aliás, os recorrentes fizeram, nos termos previstos nos artigos 640.º e 662.º do CPC.
Citando o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, proferido no Processo 2759/17.7T8VNG.P2.S1, de 31-01-2023, “Não se verifica a nulidade da al. c) do nº 1, do art. 615º, do CPC, quando o reclamante manifesta discordância com a decisão, pois que, se o reclamante manifesta discordância é porque entendeu o conteúdo dessa mesma decisão, logo, esta não é ambígua.”.
E, ainda, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, Processo 309/20.7T8PDL.L1.S1, de 30-05-2023, que refere: “I - A ambiguidade ou obscuridade prevista na al. c) do n.º 1 do art. 615.º do CPC só releva quando torne a parte decisória ininteligível e, por outro lado, só torna a parte decisória ininteligível “quando um declaratário normal, nos termos dos arts. 236.º, n.º 1, e 238.º, n.º 1, do CC, não possa retirar da decisão um sentido unívoco, mesmo depois de recorrer à fundamentação para a interpretar”. II - A invocação de nulidade do acórdão recorrido só pode ter sucesso quando existe um vício formal ou estrutural da decisão, mas não quando constitui somente um modo de o recorrente exprimir a sua discordância com o decidido e de invocar erro de julgamento.”.
No caso, os recorrentes impugnam precisamente os factos dados como provados sob os números 6, 8 e 9, por consistirem na remissão para documentos juntos com a petição inicial, sem terem sido discriminados os factos que dos mesmos documentos constam e que os autores dizem terem sido dados como provados, por via da dita remissão para os documentos.
A propósito da reprodução de documentos, vejamos o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, Processo 2663/10.0TTLSB.L1.S1, de 22-04-2015 (disponível me dgsi.pt), onde se diz:
“I - Os documentos não são factos, mas meios de prova de factos.
II - Em lugar da mera remissão para os documentos incorporados nos autos, o juiz deve enunciar os factos que com base nos documentos (e outros meios de prova) considera provados, explicitando suficientemente o seu conteúdo fundamental.”.
Sucede que, ao contrário do que parece resultar das alegações e conclusões dos apelantes, o tribunal a quo não se limitou a indicar os documentos em causa e dar como provado o respetivo conteúdo, por remissão para o seu teor. Diversamente do que os recorrentes pretendem, o tribunal recorrido deu como provada apenas a existência desses documentos, mas levou à matéria de facto não provada os factos que resultam do teor/conteúdo dos mesmos. Daí, aliás, os recorrentes virem invocar também a contradição entre factos provados e não provados, que será analisada infra.
Não ocorre, pois, a invocada nulidade por ambiguidade ou obscuridade.

No que diz respeito à alegada nulidade decorrente da primeira parte da alínea c) do n.º 1 do artigo 615.º, os fundamentos estarem em oposição com a decisão, é pacífico na doutrina e jurisprudência o entendimento segundo o qual a nulidade por contradição entre os fundamentos e a decisão pressupõe um erro de raciocínio lógico consistente em a decisão emitida ser contrária à que seria imposta pelos fundamentos de facto ou de direito de que o juiz se serviu ao proferi-la: a contradição geradora de nulidade ocorre quando os fundamentos invocados pelo juiz conduziriam logicamente não ao resultado expresso na decisão, mas a resultado oposto ou, pelo menos, de sentido diferente (cf. nesse sentido, na doutrina Professor Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Vol. V, pág. 141, Coimbra Editora, 1981, e Lebre de Freitas e Isabel Alexandra, Código de Processo Civil Anotado, Vol. 2º, 3ª edição, pág. 736-737, e na jurisprudência, entre outros, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, Processo 3167/17.5T8LSB.L1.S1, de 14-04-2021).
É igualmente pacífico o entendimento de que a divergência entre os factos provados e a decisão, ou a contradição entre factos provados e factos não provados, não integra tal nulidade reconduzindo-se a erro de julgamento.
No caso, pelos próprios fundamentos alegados pelos recorrentes, se percebe que os mesmos impugnam a matéria de facto dada como provada e não provada, afirmando existir erro de julgamento e contradição entre factos provados e factos não provados.
Assim, sem necessidade de outras considerações, conclui-se que não ocorre a invocada nulidade por oposição entre os fundamentos e a decisão.
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4. Do erro de julgamento
Nas conclusões de recurso vieram os apelantes invocar erro de julgamento, por contradição entre os factos provados e os factos não provados, bem como falta de prova de facto considerado provado.
O art. 640º do CPC estabelece os ónus a cargo do recorrente que impugna a decisão da matéria de facto, nos seguintes termos:
“1. Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2. No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
3. […]”
O mencionado regime veio concretizar a forma como se processa a impugnação da decisão de facto, reforçando o ónus de alegação imposto ao recorrente, o qual terá que apresentar a solução alternativa que, em seu entender, deve ser proferida pela Relação em sede de reapreciação dos meios de prova.
Recai, assim, sobre o recorrente, o ónus, sob pena de rejeição do recurso, de determinar os concretos pontos da decisão que pretende questionar, ou seja, delimitar o objeto do recurso, motivar o seu recurso através da transcrição das passagens da gravação que reproduzem os meios de prova, ou a indicação das passagens da gravação que, no seu entendimento, impunham decisão diversa sobre a matéria de facto, a fundamentação, e ainda, indicar a solução alternativa que, em seu entender, deve ser proferida pelo Tribunal da Relação.
No caso concreto, o julgamento foi realizado com gravação dos depoimentos prestados em audiência, sendo que os apelantes impugnam a decisão da matéria de facto com indicação dos pontos de facto alvo de impugnação.
Indicam também a prova a reapreciar.
Já quanto à decisão que sugerem, as alegações mostram-se confusas, não sendo referidas expressamente as alterações pretendidas. Contudo, considerando que os recorrentes, no essencial, baseiam a impugnação na alegada contradição entre factos provados e não provados, é possível determinar qual o sentido de decisão pretendido, pelo que se considera que se mostram, minimamente, reunidos os pressupostos de ordem formal para proceder à reapreciação da decisão sobre a matéria de facto.
Posto isto, tal como dispõe o nº 1 do art. 662º do CPC, a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto “(…) se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”, o que significa que os poderes para alteração da matéria de facto conferidos ao tribunal de recurso constituem um meio a utilizar apenas nos casos em que os elementos constantes dos autos imponham inequivocamente uma decisão diversa da que foi dada pela 1ª instância.
No presente processo, como referido, a audiência final processou-se com gravação da prova produzida.
Segundo ABRANTES GERALDES, in Recursos no Novo Código de Processo Civil, pág. 225, e a respeito da gravação da prova e sua reapreciação, haverá que ter em consideração que funcionando o Tribunal da Relação como órgão jurisdicional com competência própria em matéria de facto, nessa reapreciação tem autonomia decisória, devendo consequentemente fazer uma apreciação crítica das provas, formulando, nesse julgamento, com inteira autonomia, uma nova convicção, com renovação do princípio da livre apreciação da prova.
Assim, compete ao Tribunal da Relação reapreciar as provas em que assentou a parte impugnada da decisão, face ao teor das alegações do recorrente e do recorrido, sem prejuízo de oficiosamente atender a quaisquer outros elementos probatórios que hajam servido de fundamento à decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados.
Cabe, ainda, referir que neste âmbito da reapreciação da prova vigora o princípio da livre apreciação, conforme decorre do disposto no art. 396º do Código Civil.
E é por isso que o art. 607º, nº 4 do CPC impõe ao julgador o dever de fundamentação da factualidade provada e não provada, especificando os fundamentos que levaram à convicção quanto a toda a matéria de facto, fundamentação essencial para o Tribunal de Recurso, nos casos em que há recurso sobre a decisão da matéria de facto, com vista a verificar se ocorreu, ou não, erro de apreciação da prova.

Cabe, então, analisar se assiste razão aos apelantes, na parte da impugnação da matéria de facto.
Resulta das respetivas conclusões do recurso, que os apelantes entendem que deve ser alterada a matéria de facto dada como não provada sob as alíneas b), c), d) e e), por estar em contradição com os factos dados como provados nos números 6, 9 e 16.
Na sua ótica, os factos que constam sob os números 6 e 9 dos factos assentes, dão como provados, de forma discriminada e pormenorizada, os danos existentes no locado e recheio, decorrentes do mau uso e falta de manutenção por parte da ré.
E estando tal factualidade provada, entendem os recorrentes que errou o Tribunal recorrido na apreciação dos fundamentos de facto não provados, nomeadamente das alíneas b), c) e d) dos factos não provados, por contradição com os ditos factos provados.
Não lhes assiste razão.
Como já se disse supra, efetivamente, os documentos não são factos, mas meios de prova de factos, pelo que, em lugar da mera remissão para os documentos incorporados nos autos, o juiz deve enunciar os factos que com base nos documentos (e outros meios de prova) considera provados, explicitando suficientemente o seu conteúdo fundamental.
No entanto, ao contrário do que os recorrentes alegam, o tribunal a quo não se limitou a indicar os documentos em causa (docs. 4 e 5 juntos com a petição inicial) e dar como provado o respetivo conteúdo, por remissão para o seu teor.
O tribunal recorrido, sob os pontos 6 e 9 dos factos provados, apenas deu como provada a existência desses documentos, como facilmente resulta do teor dessa matéria fáctica, não dando como provado o respetivo teor ou conteúdo.
Quanto ao que consta desses documentos, pelo contrário, o tribunal recorrido deu a matéria respetiva como não provada, precisamente nas alíneas, b), c) e d) dos factos não provados.
Não ocorre, pois, qualquer contradição entre os referidos factos provados e os não provados, pelo que deve manter-se a matéria de facto respetiva.

Entendem os recorrentes também que o tribunal a quo incorreu em erro de julgamento, ao não dar como provado na al. e) que os autores não ficaram impossibilitados desde dezembro de 2021 de arrendar o locado e de auferirem o valor mensal de €350,00 (trezentos e cinquenta euros), tendo em conta que o tribunal, tinha dado como provado no ponto 16 – que os autores não tinham arrendado o locado, em virtude de o mesmo não reunir condições para o efeito, por não se encontrar em bom estado.
Mais uma vez, os recorrentes confundem totalmente, ou, melhor, distorcem o sentido do que consta dos factos provados e não provados.
A alínea e) dos factos não provados, refere que não se provou que “Desde dezembro de 2021 que os autores estão impossibilitados de auferir o valor mensal de uma renda no valor de €350 (trezentos e cinquenta euros)”.
O ponto 16 dos factos provados, por sua vez, dá como assente que “Os autores não diligenciaram de arrendar o locado por entenderem que o mesmo não tem condições para o efeito no estado em que está”.
Ou seja, em parte alguma da sentença consta, como os recorrentes erradamente alegam, que o tribunal tenha dado como provado, designadamente no ponto 16 – que os autores não tinham arrendado o locado, em virtude de o mesmo não reunir condições para o efeito, por não se encontrar em bom estado. Uma coisa é dar como provado que o locado não reúne condições para ser arrendado, outra coisa é dar como provado que os autores entendem que o locado não reúne condições.
Não se mostrando dado como provado que o locado não reúne condições para ser arrendado, como não mostra, não existe qualquer contradição com o facto que considerou como não provado que os autores estão impossibilitados de auferir o valor da renda.
Mantém-se, deste modo, também esta matéria fáctica provada e não provada, tal como consta da sentença recorrida.

Parece resultar também das alegações dos recorrentes que os mesmos entendem existir uma contradição entre o facto provado número 7 e o facto não provada da alínea f), e que se provou que o estabelecimento comercial encerrou em meados de outubro.
Ora, mais uma vez, não se entende a posição dos recorrentes. Ainda que seja certo que o estabelecimento encerrou em meados de outubro, como os apelantes alegam, não existe qualquer contradição com o facto dado como provado em 7, que refere que “Em finais de outubro de 2021, o estabelecimento comercial encontrava-se encerrado”. Estar encerrado em finais de outubro, não invalida que tivesse sido encerrado em meados desse mês.
Por sua vez, quando na alínea f) dos factos não provados se diz que não se provou que “Nos dias anteriores à entrega do locado pela Ré aos Autores, esta tinha o seu estabelecimento comercial a funcionar”, também não se vê que a não prova desse facto contrarie de alguma forma o alegado no sentido de que o estabelecimento encerrou em meados de outubro.

Continuam os recorrentes, invocando que se o tribunal tivesse realizado a análise crítica das provas que indicou e aquelas outras que existem nos autos, como os documentos nºs 5 a 13 juntos aos autos com a PI e o depoimento da testemunha DD, teria julgado os factos relativos aos danos, como provados.
Mas, também quanto a este aspeto, não assiste razão aos recorrentes.
Efetivamente, ouvido o depoimento da testemunha DD, filha dos autores, e consultados os documentos juntos com a petição inicial, apenas a testemunha referiu alguns danos na maquinaria do estabelecimento, tal como alegado pelos autores, mas sem qualquer outra prova que os confirme, já que os documentos juntos aos autos, não se mostram com força probatória para convencerem o tribunal da verificação dos danos alegados.
De facto, os documentos 4 e 5, como já mencionado, apenas contêm a versão dos autores, nenhuma prova fazendo da verificação do que aí é referido, sendo até certo que se mostra provado que alguns dos danos aí referidos foram, entretanto, reparados pela ré.
Os demais documentos consistem em orçamentos para as reparações ou substituições que alegadamente se mostram necessárias, sem que, contudo, comprovem que efetivamente os bens se mostram danificados ou avariados.
Na falta de prova dos danos, que aos autores cabia fazer, bem andou o tribunal recorrido ao dar a factualidade respetiva como não provada.

Referem os recorrentes, ainda, que o tribunal deveria ter julgado como provado que a ré não facultou aos autores (e técnico habilitado), o locado e todo o recheio (máquinas, equipamento e utensílios) para exame por forma a aferirem o estado de conservação do imóvel e bens móveis.
Ainda que assim fosse, no entanto, trata-se de facto sem relevância para a decisão, já que com a entrega do estabelecimento, os autores puderam proceder a essas verificações, sem qualquer obstáculo, pelo que nenhum facto há a acrescentar, em obediência ao princípio de que não devem ser praticados atos inúteis.

Finalmente, entendem os recorrentes que a matéria dada como provada no ponto 10, relativa à existência de humidades no locado, foi, pelo tribunal, julgada erradamente, quando refere que os factos dados como provados no ponto 10, resultaram da inspeção ao local e, do depoimento das testemunhas DD e EE, referindo ainda que estas testemunhas confirmaram a existência de humidades.
Ora, concorda-se que da ata de julgamento com inspeção ao local de 19.05.2023, não se retira qualquer elemento útil, que permitisse ao tribunal, dar como provada a existência das referidas humidades, uma vez que na mesma não se refere o que foi visualizado no local, embora não se ponha e causa o que a senhora juíza a quo refere na fundamentação de facto a esse respeito.
Contudo, ouvida a prova, entende-se que o depoimento da testemunha EE não deixou dúvidas sobre a verificação de tal facto. Esta testemunha disse expressamente que esteve presente na entrega do talho à autora que estava acompanhada por uma solicitadora e uma testemunha, e que sendo a contabilista da ré, visitou várias vezes o talho, tendo visto que existiam humidades, devido ao estado da fachada do imóvel, que se encontrava deteriorada. O depoimento mostrou-se isento e credível e revelou conhecimento direto do facto, ao contrário do que os recorrentes alegam.
Mantém-se, pois, o facto tal como foi dado como provado.
Improcede, deste modo, a impugnação da matéria de facto, na totalidade.
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5. Decisão de Direito
Os apelantes discordam da sentença proferida em 1ª Instância, concluindo que se o tribunal tivesse fundamentado os factos provados e não provados de forma clara, precisa e realizado uma análise critica das provas juntas aos autos e da prova produzida em audiência de julgamento, a aplicação do direito à factualidade dada como provada, culminaria na procedência da ação, por provada, e em consequência na condenação da ré nos pedidos deduzidos na ação.
Atenta a sua clareza, vamos transcrever o que na sentença recorrida se diz em termos de fundamentação de direito, que é o seguinte:
“Cabe agora aplicar o direito à factualidade dada como provada para aferir do preenchimento, ou não, dos pressupostos de que depende a procedência da presente ação.
É indiscutível que Autores e Ré celebraram um contrato de arrendamento – ponto 2 dos factos provados – cfr. artigo 1022.º do Código Civil.
Mais ficou demonstrado que os Autores, por via de tal contrato, derem de arrendamento o locado onde se encontrava instalado um talho, para aí a Ré exercer tal comércio e do qual o seu recheio era composto pelos 20 (vinte) bens móveis que se encontram discriminados no dito contrato de arrendamento.
Por via de tal contrato a Ré declarou que “confere as condições em que o local se encontra e aceitando como aptas a responder ao fim a que se destinam” – cláusula 6 do dito contrato, e obrigou-se aquando do fim do contrato a entregar o local arrendado “em bom estado de conservação e o recheio que nele contém, em bom estado de conservação e demais elementos que o integram, incluindo a instalação elétrica, canalizações de água, esgotos e instalações sanitárias, devolvendo ao imóvel as características originais.” – cláusula 12 do dito contrato.
Ora, no fim do contrato e na data em que a Ré procedeu à entrega do locado foi verificado que todos os bens existiam com exceção do bem descrito como verba n.º 7 do contrato de arrendamento – cfr. pontos 12 a 14 dos factos provados, sendo que quanto à referida verba 7 resultou demonstrado também que a Ré procedeu à sua reparação/substituição – cfr. ponto 15 dos factos provados.
Assim, da prova produzida resulta que os bens existentes à data da celebração do contrato de arrendamento existiam à data da cessação do mesmo.
Dos autos não resultou que tais bens ou alguns deles não estivessem a funcionar, pelo que a questão que agora se coloca é se tais bens estavam em boas condições de conservação quando foram entregues pela Ré.
Neste particular, o artigo 1038.º, alínea d) do Código Civil estabelece que é obrigação do arrendatário não fazer da coisa locada uma utilização imprudente e o artigo 1043.º, n.º 1 do Código Civil dispõe que o arrendatário é obrigado a manter e a restituir a coisa no estado que a recebeu, ressalvadas as deteriorações inerentes a uma prudente utilização, em conformidade com os fins do contrato.
Do exposto, resulta que os arrendatários só não são responsáveis pelas deteriorações resultantes do desgaste do tempo e as inerentes a uma prudente utilização.
Ora, da factualidade dada como provada não resulta demonstrado nenhum facto pelo qual resulte que a Ré deu uma utilização imprudente ao locado e aos bens que constituem o seu recheio, constantes do contrato de arrendamento.
Com efeito, da inspeção ao local pode-se verificar que o locado e os bens em causa apresentavam o aspeto de terem sido usados por mais de seis anos na atividade para a qual estavam adstritos, a de talho, não denunciando qualquer utilização menos correta por parte da Ré, ou seja, apresentavam algum desgaste compatível com o tempo em que estavam a uso, mais de seis anos, sendo de referir que a inspeção ao local é efetuada cerca de mais de um ano em que o talho está encerrado.
Quanto às humidades existentes no locado, resultou que as mesmas têm origem na fachada do imóvel onde o estabelecimento comercial se encontra instalado e não resultaram do exercício da atividade comercial que a Ré exercia no local.
Assim, não tendo resultado o incumprimento por parte da Ré da obrigação a que se encontrava obrigada por via do contrato de arrendamento que celebrou com os Autores, de entregar o locado e os bens móveis em bom estado de conservação, nenhuma responsabilidade lhe pode ser assacada.
Por último, não resultou demonstrado que os Autores estivessem impedidos de colocar o estabelecimento comercial no mercado de arrendamento, resultou demonstrado que os mesmos não o colocaram porque não quiseram, pelo que nenhuma responsabilidade quanto a esta circunstância pode ser assacada à Ré.”.

Concordamos com esta fundamentação e consequente decisão de direito.
Os apelantes impugnam a decisão de direito, fazendo-o, contudo, no seguimento da impugnação da matéria de facto, provada e não provada.
Mantendo-se a decisão da matéria de facto, manter-se-á igualmente a decisão de direito, afigurando-se correta a subsunção dos factos ao direto que foi feita na 1.ª Instância, a qual não nos merece qualquer reparo.
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III- DISPOSITIVO
Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação improcedente, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas a cargo dos apelantes (art. 527.º, nºs 1 e 2 do CPC).

Porto, 2024-02-22
Manuela Machado
Ernesto Nascimento
Carlos Portela