Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1117/16.5T8AVR-E.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: FÁTIMA ANDRADE
Descritores: QUALIFICAÇÃO DA INSOLVÊNCIA
INSOLVÊNCIA QUALIFICADA DE CULPOSA
INSOLVÊNCIA DE PESSOA SINGULAR
VENDA DE BENS A TERCEIRO
Nº do Documento: RP20221024/1117/16.5T8AVR-E.P1
Data do Acordão: 10/24/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A venda, efetuada pelo insolvente marido com a autorização da insolvente mulher, de imóvel com valor significativo a um terceiro, com entrega direta do preço da venda (na sua quase totalidade) a uma prima a pretexto de que também esta era credora (a posição de credora vem assente), beneficiou esta familiar e credora e resultou em prejuízo dos demais credores sem justificação para tal.
Esta atuação configura para os fins da al. d) do artigo 186º nº 2 do CIRE a venda de bem em proveito pessoal de terceiros.
II - Demonstrada a atuação dos insolventes, pessoas singulares, que preenche o comportamento qualificativo previsto na al. d) do nº 2 do artigo 186º do CIRE, em período contido nos 3 anos anteriores ao início do processo de insolvência, impõe-se a qualificação da sua insolvência como culposa por estabelecida neste caso não só a presunção inilidível da culpa, mas também o nexo de causalidade entre a atuação culposa dos mesmos e a criação ou agravamento do estado de insolvência.
III - A qualificação da insolvência por aplicação do disposto no nº 2 deste artigo às insolvências de pessoas singulares tem consagração legal, atenta a mencionada remissão do nº 4 deste mesmo artigo para os nºs 2 e 3.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº. 1117/16.5T8AVR-E.P1
3ª Secção Cível
Relatora – Juíza Desembargadora M. Fátima Andrade
Adjunta – Juíza Desembargadora Eugénia Cunha
Adjunta – Juíza Desembargadora Fernanda Almeida
Tribunal de Origem do Recurso - Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro – Jz. Comércio de Aveiro
Apelantes/ AA e BB

Sumário (artigo 663º nº 7 do CPC):
………………………………
………………………………
………………………………

Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto

I- Relatório
Por apenso aos autos em que foi declarada a insolvência de AA e BB, apresentou o AI parecer a que se reporta o artigo 188º do CIRE, concluindo, na sua procedência, pela qualificação da insolvência singular “auto requerida” pelos insolventes como culposa, nos termos do artigo 186º nº 2 al. a) do CIRE.
O Ministério Público emitiu parecer concordante com o proposto pelo AI, no sentido da qualificação da insolvência como culposa.
Indicando como âmbito subjetivo da afetação: “Os insolventes”.
Ordenada a citação dos requeridos insolventes nos termos do artigo 188º nº 6 do CIRE, deduziram estes oposição.
Tendo entre o mais, impugnado as circunstâncias de qualificação da insolvência como culposa, afirmando ter revertido para uma credora o valor da venda do imóvel identificada pelo AI. Daqui concluindo:
“Pelo que se pode concluir que não houve da parte dos insolventes qualquer intenção de delapidar o seu património com a venda em causa, outrossim o interesse de resolver questões pendentes, nomeadamente o pagamento a credores.
Assim sendo nunca poderá a insolvência em causa ser considerada culposa, mas sim fortuita”.
Respondeu o MºPº, reiterando o parecer emitido anteriormente.
*
Por requerimento de 29/11/19 e na sequência do informado pela AT, vieram ainda os insolventes alegar que a venda que fizeram do quinhão que veio a caber ao insolvente marido na herança aberta por óbito (ocorrido em 12/04/2010) da mãe deste, o foi no intuito de pagar crédito perante a credora já identificada.
Dispensada a realização de tentativa de conciliação, foi proferido despacho saneador, com identificação do objeto do litígio e elencados os temas da prova.
Foi determinada a realização de perícia singular.
Realizada audiência de discussão e julgamento foi proferida sentença decidindo:
“A) Qualifico de culposa a insolvência dos requeridos, AA, titular do CC nº..., com o NIF ..., e BB, portadora do BI nº..., com o NIF ...;
B) Fixo o grau de culpa dos requeridos ao nível de dolo;
C) Decreto a inibição de ambos os requeridos para a administração de património de terceiros, para o exercício do comércio e para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de atividade económica, empresa pública ou cooperativa, por um período de 4 (quatro) anos e 6 (seis) meses; e
D) Condeno os requeridos, solidariamente, no pagamento, a título de indemnização, aos credores da insolvência, do montante dos créditos reconhecidos e não satisfeitos destes sobre a insolvência, constituídos pelo quantitativo resultante do valor dos créditos reconhecidos no apenso D, deduzido do montante que recebam em rateio, acrescido dos juros legais.”
*
Notificados do assim decidido, interpuseram os insolventes recurso de apelação, oferecendo alegações e formulando as seguintes
CONCLUSÕES
“1. O tribunal a quo mal andou ao proferir tal decisão.
2. A situação económica dos Requeridos/Recorrentes não foi criada nem agravada em consequência de qualquer atuação dos Requeridos
3. Assim, não poderáì a insolvência em causa ser considerada culposa, mas sim fortuita.
4. Mais, aÌ sentença recorrida, sempre seria exigível, pelas razões apontadas, a prova da relação ou nexo de causalidade entre essa conduta e a criação ou o agravamento da situação de insolvência do devedor.
5. No caso, porém, não estaì demonstrado – nem, aliás, uma tal exigência surge sequer individualizada na sentença recorrida – qualquer facto relativo aÌ relação de causalidade entre aquela conduta e a criação, ou o agravamento, do estado de insolvência.
6. Nestas condições, qualquer daquelas condutas dos recorrentes, ainda que lhe devessem ser assacadas, mesmo de forma presuntiva, a título de culpa grave, sempre seriam inidóneas para qualificar a insolvência como culposa.
7. E esta razão seria suficiente, por si só, para concluir pela falta de bondade da decisão recorrida e, portanto, para a revogar.
8. Todas as contas feitas, a conclusão a tirar eì a de que, realmente, não háì fundamento para a qualificação como culposa da insolvência, e, consequentemente, para julgar os recorrentes afetados por tal qualificação.
9. Tudo isto na senda de Ac. Do Tribunal da Relação de Coimbra de 10/03/2017 Acórdão, cujos argumentos aqui se acompanham na integra,
(http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/8fe0e606d8f56b22802576c0005637dc/53c50519210a487e802579ac003c53c5?OpenDocument 17/17).
10. Tendo em conta o que vai dito anteriormente continua a afirmar-se que os Requeridos/ Recorrentes, como aliás se provou em sede de audiência de discussão e julgamento nunca entenderam tal património como seu.
11. Senão vejamos, o prédio em causa, cuja resolução do negócio foi peticionada, e aguardando prolação de sentença, seria pertença de uma família, e através de pressões para pagar aquele crédito pedido a título particular a familiar, encontraram forma de ludibriar o Requerido marido, e conduzir aÌ situação que ora se discute,
12. Isto eì, que, com aquela venda, de um prédio que não era seu, mas sim pertença de duas heranças, uma das quais o Recorrente marido figurava como herdeiro, mas que manobraram como se fosse, e este terceiro, além de recuperar o empréstimo que havia feito, ainda ficava com o seu terreno jáì legalizado e valorizado, tudo a expensas do Recorrente,
13. Que nunca percebeu o enredo em que o envolveram, senão após questionado já em sede de processo de insolvência em curso,
14. Momento em que toma conhecimento da manipulação de que foi alvo.
15. E da sua inconsciência no sucedido.
16. Sendo a Recorrente mulher arrastada como autorizante, sem qualquer conhecimento do que se passava, tudo aliás como ficou sobejamente provado em sede de audiência de discussão e julgamento, esta apenas assinava o que o marido que pedia.
17. O que já havia feito em momentos anteriores para contrair créditos.
18. Pois, se alguma vez o Recorrente tivesse ideia do que estava a fazer, nunca se proporia a insolvência um par de meses depois, como aliás o fez de forma naturalíssima.
19. De igual maneira, o quinhão hereditário também o desconhecia, julgando que o apartamento sobre o qual o irmão do Recorrente marido tem usufruto, o que ora sabe, lhe havia sido deixado (propriedade total) em testamento, a seu irmão pela sua mãe.
20. Veja-se que, falamos de pessoas com muito pouca instrução, que não alcançam as intenções dos que os rodeiam,
21. Que não têm noção da realidade das coisas e muito menos dominam o mundo jurídico;
22. Pelo que, e de concluir que, efetivamente se tratou de circunstâncias da vida comum, agravadas pela doença do Requerido marido, que levaram a situação de insolvência.
23. Pelo que, e de concluir que não houve da parte dos Requeridos/Recorrentes qualquer culpa na condução a situação de insolvência.
24.A situação não foi criada nem agravada em consequência de qualquer atuação dos Requeridos.
25. Assim, não poderá a insolvência em causa ser considerada culposa, mas sim fortuita.
Termos em que, deve o presente recurso merecer provimento e a insolvência dos Requeridos, ora recorrentes, SER DECLARADA COM CARÁCTER FORTUITO, e nessa sequência desafetando-se os Requeridos das consequências daquela qualificação como culposa, mas sempre com o superior e douto critério de V.ª as Ex. ªs,
Fazendo-se assim a Costumada JUSTIÇA!”
*
Foram apresentadas contra-alegações pelo MºPº, em suma tendo concluído, face ao bem decidido pelo tribunal a quo tanto em sede de decisão de facto como de direito, pela improcedência do recurso.
*
O recurso foi admitido como de apelação, com subida imediata e nos próprios autos e efeito meramente devolutivo.
Foram colhidos os vistos legais.
***
II- Âmbito do recurso.
Delimitado como está o recurso pelas conclusões das alegações, sem prejuízo de e em relação às mesmas não estar o tribunal sujeito à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito, nem limitado ao conhecimento das questões de que cumpra oficiosamente conhecer – vide artigos 5º n.º 3, 608º n.º 2, 635º n.ºs 3 e 4 e 639º n.ºs 1 e 3 do CPC ex vi artigo 17º do CIRE – resulta das formuladas pelos apelantes serem as seguintes as questões a apreciar:
1) erro na decisão de facto.
Como questão prévia sendo apreciado se foram observados os ónus de impugnação e especificação que sobre os recorrentes recaem.
2) erro na aplicação do direito.
***
III- Fundamentação
Na sentença sob recurso foram dados como provados os seguintes factos:
1. Na sequência de própria apresentação, mediante petição inicial submetida a juízo a 4/4/2016, foi declarada a insolvência dos requeridos, por sentença proferida a 8/6/2016 e pacificamente transitada em julgado (FA/A).
2. Na referida petição inicial, foi declarado que os insolventes não dispõem de qualquer património (FA/B).
3. Foi apreendido o quinhão hereditário do insolvente na herança aberta por óbito de CC, mãe do requerido, nos termos e com a composição que emergem do requerimento junto a 11/6/2016 no apenso B e das certidões prediais ali constantes com data de 6/12/2016, cujo teor restante se dá por reproduzido (FA/C).
4. Da herança aberta por óbito de CC, ocorrido a 12/4/2010, faziam parte (a) o prédio urbano inscrito na matriz sob o art. ..., fração M, na proporção de metade, (b) o prédio rústico inscrito na matriz sob o art. ..., na proporção de ¼, e (c) o prédio urbano inscrito na matriz sob o art. ..., na proporção de metade (cfr. ofício de 29/4/2019).
5. O Sr. administrador da insolvência procedeu à apreensão do quinhão hereditário do insolvente sobre a fração autónoma inscrita na matriz da freguesia de Oliveira do Bairro sob o art. ..., acima identificada em (a) do ponto 4 (cfr. auto de apreensão junto a 11/10/2016 no apenso B).
6. A aquisição dessa fração a favor do insolvente, por sucessão hereditária, foi levada a efeito a 4/10/2016, e na mesma data foi registada a apreensão a favor da insolvência (cfr. informação do registo predial de 6/12/2016 junta no apenso B).
7. Por escritura pública outorgada a 28/1/2016, os insolventes declararam vender a DD, que declarou comprar, pelo preço de € 30.000,00, o prédio urbano sito na Rua ..., em Oliveira do Bairro, inscrito na respetiva matriz predial sob o art. ... e descrito no nº... da Conservatória do Registo Predial de Oliveira do Bairro, resultante de desanexação do imóvel acima identificado em (b) do ponto 4, nos termos constantes no doc. nº1 junto ao apenso C e cujo teor restante se dá por reproduzido (FA/D).
8. Mais foi declarado, nessa escritura, que sobre o prédio vendido incidem os registos de aquisição a favor da parte vendedora, pelas apresentações nº437 de 13/1/2016 e nº267 de 28/1/2016, e o registo de ónus de não fracionamento de 18/12/2015 (cfr. escritura pública de 28/1/2016 junta como doc. nº1 na petição inicial do apenso C).
9. Na descrição do referido imóvel na Conservatória do Registo Predial constam apenas os averbamentos do ónus de não fracionamento e da aquisição a favor de DD, registada 28/1/2016 (cfr. requerimento de 12/12/2018 no apenso B).
10. O referido negócio de compra e venda foi antecedido de um contrato promessa, celebrado a 27/3/2015, por DD e pelos herdeiros da herança aberta por óbito de CC e por óbito de EE (FA/E).
11. Esse contrato promessa foi outorgado com a intervenção do insolvente (cfr. contrato promessa constante na petição inicial do apenso C como doc. 3).
12. Constando ainda no contrato que os primeiros outorgantes (herdeiros na herança aberta por óbito de CC, por um lado, e herdeiros na herança aberta por óbito de EE, por outro) são donos e legítimos possuidores, em partes iguais, de um terreno inscrito na matriz predial rústica na freguesia de Oliveira do Bairro sob o art. ... (cfr. contrato promessa constante na petição inicial do apenso C como doc. 3).
13. Bem assim, que os primeiros outorgantes prometem vender ao segundo outorgante (DD), metade do terreno atrás identificado, destacado e com artigo próprio, pelo preço global de € 30.000,00 (cfr. contrato promessa constante na petição inicial do apenso C como doc. 3).
14. No referido contrato, finalmente, acordaram que o promitente comprador dá como sinal o pagamento das despesas com a legalização da parcela a vender/comprar, nos termos que emergem do documento nº3 junto no mesmo apenso, cujo teor restante se dá por reproduzido (FA/E).
15. Na data de celebração da escritura (28/1/2016), para pagamento do preço, DD entregou um cheque de € 25.000,00, emitido a favor de FF, prima do insolvente, e outro no valor de € 2.872,49, a favor do insolvente (TP/4).
16. O restante (€ 2.127,51) foi considerado compensado pelos outorgantes com as despesas levadas a efeito pelo comprador com a legalização da parcela a vender/comprar e já referidas no contrato promessa (TP/4).
17. O pagamento de € 25.000,00 foi feito a favor de FF, nos termos descritos, por indicação do insolvente e para pagamento de um empréstimo que aquela tinha feito ao requerido em 2014 de idêntica importância (TP/4; arts. 15 e 16 da oposição).
18. À data da compra e venda, o imóvel vendido tinha o valor de € 29.700,00 e atualmente, mercê das benfeitorias levadas a efeito por DD, vale € 38.700,00 (TP/5).
19. Dos créditos reconhecidos sobre os insolventes, constam (i) a favor de A... Limited, no montante de € 16.177,95, (ii) a favor de Banco 1..., no valor de € 1.039,34, (iii) a favor de Montepio Crédito, no montante de € 17.760,63 e (iv) a favor de Banco 2... SA, no valor de € 61.628,66 (cfr. requerimento inicial do apenso D e requerimento de 2/12/2019 junto ao apenso C; TP/1).
20. O crédito de A... Limited teve origem em contrato de crédito celebrado a 22/6/2006 e reforçado a 14/6/2007, que foi resolvido por incumprimento dos insolventes em 2/6/2010 (cfr. requerimento de 2/12/2019 junto ao apenso C; TP/1).
21. O crédito de Banco 1... deixou de ser cumprido pelos insolventes em data não posterior a 29/9/2009 (cfr. requerimento de 2/12/2019 junto ao apenso C; TP/1).
22. O crédito de Montepio Crédito resultou de contrato de mútuo destinado à aquisição de um motociclo, celebrado a 17/12/2007, que os insolventes deixaram de cumprir logo após novembro de 2009 e que, na sequência da venda do veículo promovida pela entidade financiadora, no início de 2011, depois de comunicado o novo valor em dívida, os insolventes continuaram sem cumprir (cfr. requerimento de 2/12/2019 junto ao apenso C; TP/1).
23. O crédito de Banco 2... SA é condicional e resulta de fiança prestada pelos insolventes no âmbito do contrato de compra e venda e mútuo com hipoteca, celebrado entre os insolventes como parte vendedora e fiadora e a filha dos insolventes como compradora e mutuária (cfr. requerimento inicial do apenso D e requerimento de 2/12/2019 junto ao apenso C; TP/1).
24. Foi ainda reconhecido um débito dos insolventes para com a interessada M... Lda., no valor de € 3.081,40, resultante de incumprimento do contrato de mediação imobiliária celebrado para a venda do imóvel referido em 7, que a credora havia reclamado em ação declarativa de condenação intentada a 22/3/2016 (cfr. requerimento inicial do apenso D e petição inicial dos embargos à insolvente constantes no apenso A; TP/1).
25. O Sr. administrador da insolvência apurou a existência do quinhão hereditário referido em 3. através de informação prestada por um credor (TP/2-3).
26. No entanto, não logrou proceder à alienação desse quinhão, pois a sua liquidação, mediante proposta do Sr. administrador da insolvência e ausência de oposição dos demais interessados, com base na existência de um legado do imóvel referido em 5, a favor do irmão do insolvente, foi declarada injustificada e inviável por aplicação do disposto no art. 232.º do CIRE no despacho proferido a 22/6/2021 no apenso F (cfr. requerimento de 24/3/2021 no apenso F; TP/3).”
*
Foram ainda julgados como não provados os seguintes factos:
“FACTOS NÃO PROVADOS.
Não se provou que o empréstimo feito pela prima do insolvente a este, em 2014, tenha servido para pagamento de dívida a um credor bancário (art. 16 da oposição).
Não se demonstrou a matéria alegada pelos insolventes nos arts. 12 a 14 da oposição, a qual, aliás, já se evidenciava como notoriamente vaga, genérica e conclusiva.
Não se apurou, finalmente, o valor global do quinhão hereditário referido no ponto 3 dos factos provados.”
***
*
Conhecendo.
1) Em primeiro lugar cumpre apreciar se a decisão de facto merece censura por erro de julgamento.
Como questão prévia importando determinar se foram observados os ónus de impugnação e especificação que sobre os recorrentes recaem.
A regularidade da impugnação da decisão de facto, depende da verificação dos seguintes pressupostos:
- obrigatoriamente e sob pena de rejeição deve o recorrente especificar (vide artigo 640º n.º 1 do CPC):
“a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas”.
- no caso de prova gravada, incumbindo ainda ao(s) recorrente(s) [vide n.º 2 al. a) deste artigo 640º] “sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes”.
Sendo ainda ónus do(s) mesmo(s) apresentar a sua alegação e concluir de forma sintética pela indicação dos fundamentos por que pede(m) a alteração ou anulação da decisão – artigo 639º n.º 1 do CPC - na certeza de que estas têm a função de delimitar o objeto do recurso conforme se extrai do n.º 3 do artigo 635º do CPC.
Pelo que das conclusões é exigível que conste, no mínimo, de forma clara quais os pontos de facto que o(s) recorrente(s) considera(m) incorretamente julgados, sob pena de rejeição do objeto do recurso nessa parte.
Podendo os demais requisitos serem extraídos do corpo alegatório.

Embora na jurisprudência se encontrem posições mais ou menos exigentes quanto aos elementos que das conclusões devem constar, este é um denominador mínimo comum a todas elas.

Neste sentido vide Ac. TRG de 07/04/2016, nº de processo 4247/10.3TJVNF.G1; Acs. STJ de 01/10/2015, nº de processo 824/11.3TTLRS.L1.S1; de 29/10/2015 nº de processo 233/09.4TBVNC.G1.S1; de 06/12/2016 nº de processo 437/11.0TBBGC.G1.S1; e de 27/09/2018 nº de processo 2611/12.2TBSTS.L1.S1, onde se afirma “Como decorre do artigo 640 supra citado o recorrente não satisfaz o ónus impugnatório quando omite a especificação dos pontos de facto que entende terem sido incorretamente julgados, uma vez que é essa indicação que delimita o objeto do recurso”.
Ainda:
- Ac. STJ de 21/03/2019, nº de processo 3683/16.6T8CBR.C1.S2, no qual e após se ter feito uma distinção entre ónus primários e secundários de alegação e concretização para efeitos do disposto nos artigos 640º e 662º do CPC (nos seguintes termos e tal como ali sumariado)
“I. Para efeitos do disposto nos artigos 640º e 662º, nº1, ambos do Código de Processo Civil, impõe-se distinguir, de um lado, a exigência da concretização dos pontos de facto incorretamente julgados, da especificação dos concretos meios probatórios convocados e da indicação da decisão a proferir, previstas nas alíneas a), b) e c) do nº1 do citado artigo 640º, que integram um ónus primário, na medida em que têm por função delimitar o objeto do recurso e fundamentar a impugnação da decisão da matéria de facto.
E, por outro lado, a exigência da indicação exata das passagens da gravação dos depoimentos que se pretendem ver analisados, contemplada na alínea a) do nº 2 do mesmo artigo 640º, que integra um ónus secundário, tendente a possibilitar um acesso mais ou menos facilitado aos meios de prova gravados relevantes para a apreciação da impugnação deduzida.”,
se concluiu, para o efeito convocando os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade na aferição do cumprimento dos ónus de impugnação previstos no artigo 640º no que concerne aos aspetos de ordem formal
III. (…) enquanto a falta de especificação dos requisitos enunciados no nº1, alíneas a), b) e c) do referido artigo 640º implica a imediata rejeição do recurso na parte infirmada, já, quanto à falta ou imprecisão da indicação das passagens da gravação dos depoimentos a que alude o nº 2, alínea a) do mesmo artigo, tal sanção só se justifica nos casos em que essa omissão ou inexatidão dificulte, gravemente, o exercício do contraditório pela parte contrária e/ou o exame pelo tribunal de recurso.
IV. Tendo o recorrente, indicado, nas conclusões das alegações de recurso, o início e o termo de cada um dos depoimentos das testemunhas ou indicado o ficheiro em que os mesmos se encontram gravados no suporte técnico e complementado estas indicações com a transcrição, no corpo das alegações, dos excertos dos depoimentos relevantes para o julgamento do objeto do recurso, tanto basta para se concluir que o recorrente cumpriu o núcleo essencial do ónus de indicação das passagens da gravação tidas por relevantes, nos termos prescritos no artigo 640º, nº 2, al. a) do CPC, nada obstando a que o Tribunal da Relação tome conhecimento dos fundamentos do recurso de impugnação da decisão sobre a matéria de facto.”;
- Ac. STJ de 17/11/2020, nº de processo 846/19.6T8PNF.P1.S1 in www.dgsi.pt onde se afirma, tal como consta do sumário “I - A especificação dos concretos pontos de facto [impugnados] deve constar das conclusões recursórias, posto que estas têm por função delimitar o objeto do recurso nessa parte.”;
- Ac. STJ de 09/02/2021, nº de processo 16926/04.0YYLSB-B.L1.S1 in www.dgsi.pt do qual se extrai idêntico entendimento.
Vide ponto III do sumário “III - O recorrente deve indicar sempre os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões- Abrantes Geraldes in Recursos no Novo Código de Processo Civil., pág. 165.”
Da respetiva fundamentação se extraindo o reiterado entendimento do STJ – de acordo com as múltiplas decisões no mesmo convocadas – de que a completa omissão nas conclusões dos “concretos pontos de facto que no entender dos apelantes impõem decisão diversa da recorrida” implica o entendimento da não observância dos ónus de alegação impostos pelo artigo 640º nº 1 do CPC.
- Ac. STJ de 25/03/2021, nº de processo 756/14.3TBPTM.L1.S1, in www.dgsi.pt no qual (e citando diversa jurisprudência no seu sentido decisório) se realçou recair sobre o recorrente a observância do ónus primário de impugnação que corresponde às exigências do nº 1 do artigo 640º do CPC sob pena de imediata rejeição do recurso, sem lugar a qualquer convite ao aperfeiçoamento, na medida em que delimitam o objeto do recurso e fundamentam a sua impugnação; exigências estas “decorrência dos princípios estruturantes da cooperação e da lealdade e boa-fé processuais, visando-se com elas assegurar a seriedade do próprio recurso” e não “alheias também ao princípio do contraditório, pois destinam-se a possibilitar que a parte contrária possa identificar, de forma precisa, os fundamentos do recurso, podendo assim discretear sobre eles, rebatendo-os especificadamente”; reafirmando-se ser “entendimento doutrinal e jurisprudencial uniforme que, nas conclusões das alegações, que têm como finalidade delimitar o objeto do recurso (cfr. n.° 4, do art.° 635°, do CPC) e fixar as questões a conhecer pelo tribunal ad quem, o recorrente tem de delimitar o objeto da impugnação de forma rigorosa, indicando os concretos pontos da matéria de facto que considera incorretamente julgados, sob pena de rejeição do recurso, como a lei adjetiva comina no n°1, do art.° 640°.”; [ todos in www.dgsi.pt ].

Analisadas as conclusões de recurso dos recorrentes, resulta claro que das mesmas não constam indicados os concretos pontos da decisão de facto que são alvo de impugnação.
Tão pouco consta indicada, quer das alegações quer das conclusões, a decisão que na perspetiva dos recorrentes deveria ter sido proferida.
Muito menos constam identificados os concretos meios probatórios que na perspetiva dos recorrentes implicam decisão diversa. Tão pouco a referência aos depoimentos gravados.
Em suma, nenhum dos requisitos foram observados pelos recorrentes, no que respeita à impugnação da decisão de facto, pelo que resta concluir pela rejeição do recurso da decisão de facto.
Sem prejuízo do assim decidido, por uma questão de rigor quanto ao que consta dos factos provados e extraído de documentos autênticos com força probatória plena quanto aos factos referidos como praticados pelo documentador (vide artigo 371º nº 1 do CC), impõe-se retificar a redação conferida nos pontos 6 e 7 dos factos provados, por forma a fazer constar do ponto 6 que o registo de aquisição da fração M o foi a favor do insolvente e co-herdeiro AA, em comum e sem determinação de parte ou direito por sucessão hereditária, limitada pelo usufruto a favor de AA [conforme também consta do testamento anexo à Habilitação de Herdeiros junta pelo AI aos autos principais em 28/09/2016]; e quanto ao ponto 7 por forma a clarificar que foi o insolvente marido quem outorgou na escritura pública na qualidade de vendedor e nessa qualidade declarou vender, tendo a insolvente mulher em tal documento identificada como cônjuge do vendedor, declarado “prestar a seu cônjuge o consentimento à presente venda que tem por objeto bem próprio do mesmo”.
Assim os pontos 6 e 7 dos factos provados passarão a ter a seguinte redação (clarificada/retificada):
“6. Foi registada por sucessão hereditária a aquisição da fração M mencionada em 4 a) e 5 a favor do insolvente e do co-herdeiro AA, em comum e sem determinação de parte ou direito, limitada pelo usufruto a favor de AA em 04/10/2016 e na mesma data foi registada a apreensão a favor da insolvência (cfr. informação do registo predial de 6/12/2016 junta no apenso B).
7. Por escritura pública outorgada a 28/1/2016, o insolvente AA declarou vender a DD, que declarou comprar, pelo preço de € 30.000,00, o prédio urbano sito na Rua ..., em Oliveira do Bairro, inscrito na respetiva matriz predial sob o art. ... e descrito no nº... da Conservatória do Registo Predial de Oliveira do Bairro, resultante de desanexação do imóvel acima identificado em (b) do ponto 4, nos termos constantes no doc. nº1 junto ao apenso C e cujo teor restante se dá por reproduzido (FA/D).
Tendo a insolvente BB, cônjuge do vendedor declarado “prestar a seu cônjuge o consentimento à presente venda que tem por objeto bem próprio do mesmo”.
No mais se mantendo inalterada a decisão de facto fixada pelo tribunal a quo.

2) erro na aplicação do direito.
Invocaram os recorrentes errada subsunção dos factos ao direito.
A factualidade julgada provada e não provada pelo tribunal a quo mostra-se assente.

Alegam em concreto:
- que a atuação dos recorrentes não foi criada nem agravada por qualquer atuação dos mesmos;
- que não existe prova da relação ou nexo de causalidade entre essa conduta e a criação ou agravamento da situação de insolvência;
- atenta a falta de factos que demonstrem o mencionado nexo de causalidade, mesmo que as condutas dos recorrentes possam a eles ser assacadas a título de culpa grave de forma presuntiva, mesmo assim são inidóneas para qualificar a insolvência como culposa.
Acrescentam que os recorrentes nunca entenderam o património (imóvel e quinhão hereditário) como seu, não tendo percebido o “enredo” em que envolveram o recorrente, num alegado contexto de acordos celebrados com familiares.

Analisemos.
A apreciação do objeto do recurso justifica um prévio enquadramento legal do incidente de qualificação da insolvência.
Extrai-se do preâmbulo do DL 53/04 de 18/03 que aprovou o CIRE[1], após a afirmação inicial de que “3 - O objetivo precípuo de qualquer processo de insolvência é a satisfação, pela forma mais eficiente possível, dos direitos dos credores.”, ser um objetivo da reforma introduzida uma “maior e mais eficaz responsabilização dos titulares de empresa e dos administradores de pessoas coletivas”.
E com vista a tal desiderato foi criado o novo incidente de qualificação da insolvência, o qual se destina “40- (…) a apurar (sem efeitos quanto ao processo penal ou à apreciação da responsabilidade civil) se a insolvência é fortuita ou culposa, entendendo-se que esta última se verifica quando a situação tenha sido criada ou agravada em consequência da atuação, dolosa ou com culpa grave (presumindo-se a segunda em certos casos), do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência, e indicando-se que a falência é sempre considerada culposa em caso da prática de certos atos necessariamente desvantajosos para a empresa.”
É, pois, pretendida a responsabilização do devedor ou dos seus administradores, dos titulares de empresas e administradores de pessoas coletivas sempre que se apure ser a insolvência culposa, no âmbito do referido incidente.
O apuramento de tal circunstancialismo segue a tramitação prevista nos artigos 185º e segs. do CIRE, elencando o artigo 186º as situações em que a insolvência é classificada como culposa.
O nº1 define, como regra geral – aplicável indistintamente a qualquer insolvente - os pressupostos da qualificação da insolvência como culposa: “quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da atuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência.”.
Sendo requisitos, cumulativos, da insolvência culposa:
- o facto, ou seja, a atuação/comportamento do devedor ou dos seus administradores [de direito ou de facto] nos três anos anteriores ao início do processo;
- a ilicitude de tal atuação;
- a culpa qualificada por conduta dolosa ou com culpa grave e
- o nexo causal entre a atuação e a situação de insolvência que deve ter sido criada ou pelo menos agravada por aquela[2].
O nº 2 deste artigo enumera, por sua vez, um conjunto de comportamentos que e quando verificados conduzem à qualificação da insolvência como culposa, tendo o legislador estabelecido de forma automática “o juízo normativo de culpa do administrador, sem necessidade de demonstração do nexo causal entre a omissão dos deveres constantes das diversas alíneas do n.º 2 e a situação de insolvência ou o seu agravamento.”[3]
A verificação de tais situações – entendidas quer como presunções iure et iure (presunção inilidível), quer como factos índice ou tipos secundários de insolvência culposa[4] - determinam, sem o exercício de qualquer juízo casuístico levado a cabo pelo julgador, a qualificação da insolvência como culposa.
Estabelece, portanto, este nº 2 do artigo 186º uma presunção não só da culpa, mas também do nexo de causalidade entre a atuação culposa do devedor que não seja pessoa singular, quando os seus administradores – de direito ou de facto - e a criação ou agravamento do estado de insolvência que não admite prova em contrário quando apurados os comportamentos nele descritos.
Implicando consequentemente, na sua verificação, a qualificação da insolvência como culposa[5].
Tendo por base o mesmo princípio da responsabilização, estendeu o legislador a aplicação dos pressupostos da qualificação da insolvência como culposa previstos nos nºs 2 e 3 ao devedor insolvente – pessoa singular. Assim o determina o artigo 186º nº 4 do CIRE, nos termos do qual:
“4- O disposto nos n.ºs 2 e 3 é aplicável, com as necessárias adaptações, à atuação de pessoa singular insolvente e seus administradores, onde a isso não se opuser a diversidade das situações”.
Assente a aplicação do previsto no nº 2 à insolvência dos aqui recorrentes, devedores singulares, elenca este nº2 como já mencionado, os comportamentos que conduzem à qualificação da insolvência como culposa sem o exercício de qualquer juízo casuístico do julgador atenta a presunção inilidível - logo sem admissão de prova em contrário - tanto de culpa, como também do nexo de causalidade entre a atuação culposa do insolvente e a criação ou agravamento do estado de insolvência.
Necessário é que os comportamentos elencados como conducentes de forma inelutável à qualificação da insolvência como culposa sejam demonstrados/provados pelos interessados em tal qualificação.
Nos termos dos nºs 1 e 2º alínea d) do artigo 186º do CIRE (alínea que para o caso releva):
“1 - A insolvência é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da atuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência.
2 - Considera-se sempre culposa a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham:
d) Disposto dos bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiros;”

O comportamento qualificativo a que alude a alínea d) pressupõe a disposição dos bens do devedor, em proveito pessoal ou de terceiros e assim em detrimento do devedor insolvente.
A disposição dos bens está demonstrada, atendendo ao ato de alienação descrito em 7 dos factos provados e ocorrido em 28/01/2016 [tendo o pedido de insolvência sido submetido a 04/04/2016 – vide facto provado 1]. Tal como ali consta, o insolvente, com a autorização do seu cônjuge igualmente insolvente, declarou vender a DD o imóvel descrito em 7 dos factos provados pelo preço de € 30.000,00 – menos de 3 meses antes da apresentação à insolvência.
O preço estipulado foi pago na data da celebração da escritura, na quase totalidade através de um cheque de € 25.000,00, emitido não em favor do(s) insolvente(s), mas de uma prima do insolvente, FF – vide facto provado 15.
Do restante preço tendo o insolvente recebido € 2.872,49 (facto provado 15) tendo o remanescente - € 2.127,51 sido considerado compensado pelos outorgantes com as despesas levadas a efeito pelo comprador com a legalização da parcela – vide facto provado 16.
Acresce que a entrega do cheque à mencionada prima ocorreu por indicação do insolvente e para pagamento de um empréstimo que aquela tinha feito a este em 2014 – facto provado 17.
Quando e de acordo com os factos provados, os insolventes (ambos) tinham já dívidas em incumprimento em data bem anterior à constituição deste crédito [vide factos provados 19 a 23].
O comportamento dos insolventes assim apurado, impõe a conclusão de que efetivamente beneficiaram esta credora, prima do insolvente, pois no período a que alude o nº 1 do artigo 186º - na verdade a menos de 3 meses de se terem apresentado à insolvência, venderam o ativo em questão de significativo valor – note-se a dificuldade na apreensão de outros ativos, conforme desde logo o evidencia o facto provado 26 – entregando a respetiva contrapartida a uma credora sua familiar.
Deste benefício concedido a esta credora, resultando evidente o prejuízo dos demais credores que em sede de processo de insolvência se veem confrontados com a inexistência de património suficiente para satisfação dos seus créditos.
Credores – incluindo a credora beneficiada, na pressuposição de que o seu crédito viria a ser reconhecido - que caso contrário veriam incluído no património a liquidar o bem vendido de valor relevante, com vista a posterior satisfação dos seus créditos, em situação de igualdade por força do princípio “par conditio creditorum” que estabelece a igualdade entre os credores que se encontrem em posição equivalente, nos termos e de acordo com o previsto no artigo 194º nº 1 do CIRE.
A venda, efetuada pelo insolvente marido com a autorização da insolvente mulher, de imóvel com valor significativo a um terceiro, com entrega direta do preço da venda (na sua quase totalidade) a uma prima a pretexto de que também esta era credora (a posição de credora vem assente), beneficiou esta familiar e credora e resultou em prejuízo dos demais credores sem justificação para tal.
Esta atuação configura para os fins da al. d) do artigo 186º nº 2 do CIRE a venda de bem em proveito pessoal de terceiros.
Este nosso entendimento segue a linha do decidido no Ac. do STJ de 15/02/2018, nº de processo 7353/15.4T8VNG-A.P1.S1 in www.dgsi.pt, no qual e estando em análise o enquadramento na al. d) do nº 2 do artigo 186º de contrato promessa de venda dotado de eficácia real e tradição celebrado com um credor, foi entendido configurar um proveito ilegítimo o negócio por via do qual o insolvente beneficia um credor em detrimento dos demais, subtraindo nomeadamente e em caso igualmente de insolvência pessoal o único património imobiliário à massa insolvente.
Assim se expôs em tal Ac. “o proveito do terceiro exigido na alínea d) do nº 2 do art. 186º do CIRE é compaginável com todas as situações em que os bens do insolvente são afetados (disponibilizados) ao terceiro (…)
É certo, entretanto, que para os fins em presença só há que falar em proveito quando o ato de disposição se traduz na outorga de um benefício sem uma justa ou legítima correspondência prestacional (se existe correspondência prestacional do terceiro, não há proveito deste, mas sim o recebimento do que lhe compete, justa e legitimamente, receber). Porém, é também esta falta de correspondência que se verifica no caso vertente. Pois que a promessa de venda em causa deve ser lida ou compreendida à luz da interpretação que lhe foi emprestada pelo tribunal que julgou a correspetiva matéria de facto, ou seja, o tribunal de 1ª instância. Ora, percorrendo a sentença ali proferida (motivação da decisão de facto) vê-se que se concluiu que tal negócio traduziu o propósito dos Insolventes de “subtrair ao seu património o único bem que possuíam sem que existisse qualquer contrapartida para a massa insolvente” e que, com outros atos, “foi a forma que o insolvente encontrou (…) para, no mínimo, beneficiar essa credora (KK) em relação aos demais credores e, no caso da sua insolvência pessoal, subtrair o único património imobiliário à massa insolvente”»
No mesmo sentido se tendo decidido no Ac. TRP de 28/10/2021, citado aliás pelo tribunal a quo, nº de processo 2692/19.8T8STS-A.P1 in www.dgsi.pt .
Conclui-se nestes termos pela verificação do comportamento previsto na al. d) do artigo 186º nº 2 do CIRE.
Demonstrada a atuação dos insolventes, pessoas singulares, que preenche o comportamento qualificativo previsto na al. d) do nº 2 do artigo 186º do CIRE, em período contido nos 3 anos anteriores ao início do processo de insolvência, impõe-se a qualificação da sua insolvência como culposa por estabelecida neste caso não só a presunção inilidível da culpa, mas também o nexo de causalidade entre a atuação culposa dos mesmos e a criação ou agravamento do estado de insolvência.
Dúvidas inexistem, igualmente, de que a qualificação da insolvência por aplicação do disposto no nº 2 deste artigo às insolvências de pessoas singulares tem consagração legal, atenta a já mencionada remissão do nº 4 deste mesmo artigo para os nºs 2 e 3.
Assim foi decidido no já citado Ac. do STJ de 15/02/2018:
“A circunstância dos Insolventes, pessoas singulares, não serem uma empresa nem serem comerciantes não os afasta das consequências legais da insolvência, como, de resto, não os afastou da própria declaração de insolvência. Isto porque estão legalmente sujeitos a insolvência e às suas consequências tanto os empresários e comerciantes como os não empresários e não comerciantes, sendo para o caso indiferente que sejam pessoas coletivas ou pessoas singulares.
E por isso o nº 4 do citado artigo manda aplicar a norma do nº 2, com as necessárias adaptações, à pessoa singular insolvente, onde a isso se não opuser a diversidade de situações. Ora, nada se vislumbra na letra ou no espírito da alínea d) do referido nº 2 do art. 186º que sugira a ideia de que a sua aplicação deva ser restrita a pessoas não singulares, não empresárias e não comerciantes. Como nos diz Menezes Leitão (ob. cit., p. 284) “(…) com exceção da situação referida na alínea e) (…), todos os restantes factos mencionados podem facilmente ser aplicáveis à insolvência de pessoas singulares (…)”[6].
Porque e conforme já exposto, da integração do comportamento dos insolventes na alínea d) deriva uma presunção inilidível de culpa e nexo de causalidade, entre a atuação do insolvente e a criação ou agravamento do estado de insolvência, sem admissão de prova em contrário, ao tribunal a quo não incumbia analisar as mesmas.
A questionada não propriedade dos bens [vide conclusões 11, 12 e 19] é realidade que se mostra afastada pelos factos provados e não provados.
E tendo a recorrente mulher intervindo no ato da venda do imóvel vindo de analisar, necessariamente que também a mesma é afetada pelo juízo de culpabilidade formulado.
Em suma improcedem todos os argumentos dos recorrentes relativos à qualificação da insolvência como culposa.

Uma vez qualificada como culposa a insolvência, incumbia ao tribunal a quo dar cumprimento ao disposto no artigo 189º nº 2 identificando as pessoas afetadas por tal qualificação.
O que foi feito, afetando ambos os recorrentes.
Tal como decorre das conclusões de recurso que têm como fim delimitar o respetivo objeto, nada foi suscitado neste ponto.
Não obstante e porquanto logo no início das alegações invocaram os recorrentes a inconstitucionalidade do artigo 189º nº 2 al. b) do CIRE quanto à “inabilitação” do administrador de sociedade comercial ou pessoa singular [por referência ao Ac. do T. Constit. nº 173/2009 de 04/05/2009 e Ac. TRP de 15/07/2009] sobre esta questão cumpre-nos expor o seguinte: a inconstitucionalidade da norma em questão foi efetivamente declarada tendo por referência a sua inicial redação.
E subsequentemente a esta declaração, viria a ser alterada a redação desta norma, eliminando tal previsão, no lugar da qual se passou a rever a inibição das pessoas afetadas para a administração de patrimónios de terceiros por um período de 2 a 10 anos.
A “inabilitação” não foi naturalmente nos autos sequer abordada.
A inibição, na decisão recorrida decretada, não se enquadra no juízo de inconstitucionalidade invocada pelos recorrentes que tão pouco a direcionaram para este campo.
Nada mais tendo os recorrentes suscitado quanto a este segmento decisório, nada mais há a dizer sobre o nesta parte decidido.
Consequentemente improcede na totalidade o recurso interposto.
***
IV. Decisão.
Pelo exposto, acordam os Juízes do Tribunal da Relação do Porto em julgar totalmente improcedente o recurso interposto, consequentemente mantendo a decisão recorrida.
Custas pelos recorrentes.
Notifique.

Porto, 2022-10-24.
Fátima Andrade
Eugénia Cunha
Fernanda Almeida
_____________
[1] Diploma legal a que de ora em diante faremos referência quando nada em contrário se diga.
[2] Vide Alexandre Soveral Martins, “Um Curso de Direito de Insolvência”, edição Almedina, 2016 – 2ª ed., p. 416
[3] Ac. TRP de 29/06/2017, Relator Filipe Caroço in www.dgsi.pt, no caso por referência à conduta de um gerente de sociedade.
[4] Sobre esta qualificação (a qual assume em relevo mais jurídico do que prático) se pronunciou o T. Constit. em 26/11/2008, Ac. 570/08 in www.tribunalconstitucional.pt
[5] Vide Alexandre Soveral Martins, i ob. cit. p. 416-419; Maria do Rosário Epifânio, “Manual de Direito da Insolvência”, 2016 – 2ª edição, p. 128 e segs.; José Engrácia Antunes, no estudo sobre o “Âmbito Subjetivo do Incidente de Qualificação da Insolvência”, in Revista de Direito da Insolvência, 2017, nº 1, p. 81/82. E na jurisprudência entre outros vide Ac. TRP de 07/07/2016, Relator Carlos Querido e de 01/06/2017, Relator Filipe Caroço; Ac. TRC 21/01/2014, Relator Moreira do Carmo; Ac. TRC 13/11/2012, Relator Artur Dias.
[6] No mesmo sentido se decidiu no Ac. STJ de 08/02/2022, nº de processo 807/17.0T8STS-B.P1.S1 in www.dgsi.pt