Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
183/14.2PFPRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOÃO PEDRO NUNES MALDONADO
Descritores: RECURSO
MINISTÉRIO PÚBLICO
INTERESSE EM AGIR
VISTA
LEGITIMIDADE
Nº do Documento: RP20161215183/14.2PFPRT,P1
Data do Acordão: 12/15/2016
Votação: DECISÃO SUMÁRIA
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: REJEIÇÃO DO RECURSO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º 702, FLS.106-109)
Área Temática: .
Sumário: Se o MºPº manifesta em acto processual facultativo ulterior ao recurso que interpôs (a vista do art.º 416.º CPP), que não tem razão no seu pedido de revogação da decisão judicial ao recorrer, manifesta uma pretensão processual contraditória manifestando que não tem interesse em agir em pedir aquela revogação, o que gera a sua ilegitimidade para recorrer.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº183/14.2PFPRT.P1
Decisão sumária.
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I. O MºPº junto do tribunal da 1ª instância veio interpor recurso da sentença proferida no processo abreviado nº183/14.2PFPRT, do J3 da secção de pequena criminalidade da instância local - Porto, Tribunal da Comarca do Porto, que condenou B… na pena de 50 dias de multa e na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 3 meses pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelos artigos 292º, nº1, e 69º, nº1, alínea a), e nº2, do Código Penal, na parte em que determinou o desconto, na pena acessória, do período de 3 meses referente à injunção que o arguido cumpriu no âmbito da suspensão provisória do processo que lhe foi aplicada e que declarou extinta, dessa forma, a aludida pena acessória pelo seu cumprimento.
No seu recurso, motivado, o MºPº pede que seja revogada tal segmento da sentença e que seja proferido despacho a determinar a entrega da carta de condução para cumprimento da pena acessória.
O arguido respondeu ao recurso pedindo a improcedência do recurso.
O MºPº junto deste tribunal de recurso, na sua vista, emitiu parecer onde entende que o recurso não merece provimento.
Tais posições do recorrente, de natureza antitética, terão reflexo na questão de inadmissibilidade do recurso? Creio, categoricamente, que a resposta é afirmativa nos termos argumentativos infra expostos.
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II. A propósito da inflexão do entendimento adoptado pelo MºPº em sede de recurso e face à sua actuação em sede de julgamento em primeira instância surgiu o Acórdão de fixação de jurisprudência do STJ nº2/2011 - DR, 1ª Série, nº19, de 27 de Janeiro de 2011 – que procedeu ao reexame da jurisprudência constante do Acórdão de fixação de jurisprudência nº5/94, de 27 de Outubro. No mesmo entendeu-se que “Em face das disposições conjugadas dos artigos 48º a 53º e 401º do Código de Processo Penal, o Ministério Público não tem interesse em agir para recorrer de decisões concordantes com a sua posição anteriormente assumida no processo”.
Não versando tal jurisprudência fixada sobre a concreta questão ora apreciada, os seus fundamentos são válidos na parte em que define os princípios da actuação processual do Ministério Público instituição jurídico-constitucionalmente autónoma, monocrática, una e indivisível, hierarquicamente estruturada. Com efeito “(…) importa considerar que o vínculo existente entre a exigência de legalidade, e objectividade, da actuação do Ministério Público e a natureza monocrática, una e indivisível desta magistratura, obriga a considerar a posição de cada representante do Ministério Público em processo Penal – feita na sede e nos termos legais e no exercício de competência própria – como a posição definitiva (e, enquanto tal, sem alternativa) do Ministério Público. Efectivamente, numa magistratura hierárquica, dotada daquelas características, impõe-se que a divergência de posições seja resolvida no interior da organização com recurso aos mecanismos próprios, entre os quais a disciplina hierárquica, e não numa inadmissível, e equivoca, dissonância de opiniões voltada para o exterior que, traduzindo a falta de coerência, contribuem para minar a credibilidade institucional (…)”
Da objectividade (cfr. artigo 219º, nº1, da Constituição da República Portuguesa) a que obedece a actuação do Ministério Público “(…) decorre, de forma inexorável, a inadmissibilidade de pretensões processuais contraditórias que não são uma exigência da procura da verdade material e da justiça mas derivam unicamente da necessidade de afirmação de perspectivas subjectivas (…)”.
O entendimento exposto na referida jurisprudência fixada (reforçado, entretanto, nos fundamentos expressos no Acórdão do Tribunal Constitucional nº361/2016, de 08 de junho, que não julgou inconstitucional a interpretação dos artigos 48º, 53º, nº2, alínea d), e 401º, nºs 1, alínea a), e 2, todos do Código de Processo Penal, segundo a qual, por falta de interesse em agir, o Ministério Público não tem legitimidade para recorrer de decisão absolutória, quando nas alegações orais produzidas na audiência de julgamento se haja pronunciado no sentido da absolvição) encontra a sua fundamentação no princípio da lealdade ou do fair play no procedimento processual penal: a confiança, num processo onde participam vários sujeitos, desempenha um papel essencial, devendo ser objecto de tutela a confiança legítima baseada no comportamento processual dos órgãos a quem incumbe administrar a justiça.
A situação conctreta que aprecio não fere, porém, tal princípio de lealdade, pelo menos no que ao grau de confiança legítima que o arguido/recorrido criou do comportamento processual do Ministério Público diz respeito e que foi objecto, em concreto, da referida jurisprudência (também, neste sentido, com fundamento diverso, Helena Morão – O fundamento constitucional do poder funcional de recurso e a legitimidade para recorrer do Ministério Público em Processo Penal – Revista do Ministério Público, 147 – referindo-se expressamente à possibilidade de formulação de pretensões processuais contraditórias do Ministério Público em sede de desistência do recurso ou de vista: artigos 415º e 416º do Código de Processo Penal)
A vista estabelecida no artigo 416º do Código de Processo Penal tem como finalidade essencial dar conhecimento do processo ao Ministério Público (cfr. Acórdão do STJ de 11.12.2003, relatado por Simas Santos, em que se define que a vista como instrumento destinado a transmitir os autos ao Magistrado que assegura a representação do Ministério Público no tribunal ad quem e) .
Facultativamente, pode o Ministério Público tomar posição sobre o recurso, emitindo o seu parecer.
Naturalmente que, como defende Pereira Madeira (Código de Processo Penal Comentado, 2016, Almedina, pág.1327), se na vista do artigo 416º do Código de Processo Penal o Ministério Público assumir uma posição de divergência total em relação ao recurso movido pelo mesmo sujeito processual, impunha-se a formalização da desistência do recurso por uma questão de economia. Também Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, Vol.3, 2015, pág.344, entende que a vista, tendo a natureza de parecer, não alterando o objecto do recurso, deve ser o momento para a desistência do mesmo quando tiver sido interposto pelo MºPº.
No caso concreto não foi essa a via percorrida, não podendo extrair-se da posição assumida no parecer pelo Ministério Público (dos significantes utilizados no seu parecer), de acordo com o princípio ou teoria do declaratório (a impressão causada no destinatário), a desistência do recurso.
No seu parecer, o recorrente pugna pela apreciação judicial da pretensão formulada e pela improcedência dessa pretensão. Este verdadeiro oxímoro terá de ser apreciado em sede de interpretação da natureza jurídica do parecer emitido pelo Ministério Público.
O acto processual – requerimento de interposição - de recurso da sentença do Ministério Público é apto para vincular este tribunal a decidir sobre o mérito da solicitação expressa no mesmo. Constitui um acto processual, jurídico, onde o sujeito processual manifesta uma declaração de vontade (discordância com a decisão), visa determinado efeito jurídico (a revogação da decisão).
Já o parecer do Ministério Público, se for entendido como a expressão do conhecimento sobre determinada questão sem visar efeito algum (como declaração de ciência), limitar-se-ia a uma actividade consulente (neste sentido, Germano Marques Da Silva, Direito Processual Penal Português, Vol.3, 2015, pág.343).
Discordo absolutamente de tal entendimento, mesmo nas situações em que o recurso não é interposto pelo sujeito processual – Ministério Público – que emite o parecer.
Três motivos para isso concorrem, com consagração legal (e que estão na origem da crítica, pertinente, da opção legislativa de não permitir o MºPº, no caso de ter sido requerida audiência, de se pronunciar- artigo 416º, nº2, do Código de Processo Penal):
1º os pareceres de terceiros (advogados, jurisconsultos ou de técnicos) só podem ser juntos até ao encerramento da audiência (artigo 165º, nº3, do Código de Processo Penal) – terceiro, para este efeito, é aquele que não é sujeito processual ou interveniente – e o seu parecer é susceptível de resposta pelo Mistério Público em caso de recurso:
2º o parecer do MºP, mesmo versando acto de recurso do mesmo é susceptível de resposta pelos visados (artigo 417º, nº2, do Código de Processo Penal)
3º o Ministério Público pode/deve pronunciar-se quanto a questões formais que podem impedir o julgamento, ou mesmo de fundo, no caso de uma possível rejeição por manifesta improcedência em relação a recursos interpostos por sujeitos processuais distintos.
A natureza de tal actividade (que se não resume a mera consulta, uma vez que a lei contempla a resposta à mesma) é patente e incontestável nos pareceres emitidos pelo MºPº em relação aos recursos interpostos pelos restantes sujeitos processuais no âmbito do exercício de direitos em relação aos quais o Ministério Público não tem disponibilidade alguma.
Porém, em relação ao exercício do seu direito de recurso, tem o Ministério Público ampla disponibilidade sobre o mesmo até ao exame preliminar efectuado no tribunal superior (desde logo porque do mesmo pode abdicar pela desistência- artigo 415º do Código de Processo Penal).
Nestes casos, o parecer, se antagónico, contrário ou antitético em relação ao seu acto processual de interposição de recurso representa, claramente, uma pretensão processual que, pela sua natureza contraditória, legitima um juízo sobre a admissibilidade daquele acto processual. E outra solução não seria exigível uma vez que o tribunal superior, ao apreciar o mérito do recurso, estaria tão só a permitir a instrumentalização do processo penal para dirimir um conflito de visões subjectivas de dois magistrados do Ministério Público sobre uma questão concreta. A comunidade em geral e o cidadão, mesmo aquele sem esclarecimento, não compreende, entende, interioriza, este comportamento.
Idêntica situação pode ocorrer na sequência do requerimento de resposta ao parece não do Ministério Público efectuada pelo assistente ou pelo arguido, na qualidade de recorrentes (caso em que têm a disponibilidade do direito de recurso), em que, não querendo desistir, declaram que os seus próprios argumentos não têm valimento e pugnam pela improcedência dos seus recursos.
O interesse em agir para efeito de recurso penal (cfr. artigo 401º, nº2, do Código de Processo Penal) pode ser aferido até ao exame preliminar efectuado pelo relator do tribunal superior (artigo 417º, nº6, do Código de Processo Penal).
No caso particular do Ministério Público, de acordo com a sua natureza de órgão constitucional e princípios que regem a sua actuação (supra expostos), entendo que o parecer onde pugna pela improcedência do seu recurso ( com referência aos interesses prosseguidos e princípios constitucionais que dirigem a sua actuação) permite a absoluta desvinculação do juiz para decidir do mérito da solicitação anteriormente expressa.
Se o sujeito processual recorrente – Ministério Público - manifesta, em acto processual facultativo ulterior ao recurso que interpôs, que não tem razão no seu pedido de revogação da decisão judicial, não tem absolutamente qualquer interesse em agir, em pedir aquela revogação, manifesta uma pretensão processual contraditória.
A ilegitimidade do recorrente constitui pressuposto processual para efeitos de recurso da sentença e a sua ausência determina a inadmissibilidade do recurso, o que se declara nos termos conjugados dos artigos 401º, nº2, 420º, nº1, alínea b), 417º, nº6, alínea b), do Código de Processo Penal.
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III. Pelo exposto rejeito liminarmente o recurso interposto pelo Ministério Público.
Sem custas.
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Porto, 15 de Dezembro de 2016
João Pedro Nunes Maldonado