Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
168/22.5T8PVZ-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ANABELA MORAIS
Descritores: RELATÓRIO PERICIAL
RECLAMAÇÃO
Nº do Documento: RP20240205168/22.5T8PVZ-A.P1
Data do Acordão: 02/05/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMAÇÃO
Indicações Eventuais: 5. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - O relatório pericial pode ser objecto de reclamação por deficiência, obscuridade ou contradição ou, ainda, por ausência/deficiente fundamentação das posições tomadas pelos Peritos.
II - Não está vedada a apresentação de segunda reclamação/pedido de esclarecimentos sobre o relatório pericial, desde que motivado pela permanência da “deficiência, obscuridade ou contradição no relatório pericial” ou pela ausência/insuficiência de fundamentação, anteriormente invocada no primeiro pedido de esclarecimentos ou, então, pela “deficiência, obscuridade ou contradição” do esclarecimento prestado pelo Senhor Perito.
III - A discordância quanto às observações e respostas aos quesitos, apresentadas pelo Senhor Perito, não constitui fundamento para reclamação/pedido de esclarecimentos, nos termos do artigo 485º do Código de Processo Civil.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 168/22.5T8PVZ-A.P1


Acordam os Juízes da 5.ª Secção (3ª Secção Cível) do Tribunal da Relação do Porto, sendo

Relatora: Anabela Morais;

Primeira Adjunta: Teresa Maria Sena Fonseca e

Segundo Adjunto: José Eusébio Almeida


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I - Relatório

AA intentou a presente acção declarativa contra BB da costa e CC, pedindo que sejam os Réus condenados a:

“- Reconhecer que a A. é dona e legítima proprietária do prédio descrito no artigo 1º [da petição], com a área de 6.100,11m2 e a configuração constante da planta junta como documento nº3.

- Demolir o muro por si edificado na parte em que ofende a propriedade da A. e restituir a esta a parcela de terreno descrita nos artigos 21º, 22º e 23º [da petição], removendo à sua custa todos os escombros que resultarem da demolição e, ainda, colocar marcos em pedra, enterrados, de 10 em 10 metros, na extrema das propriedades.

- A pagar à A., a título de sanção pecuniária compulsória, um montante diário de 50 euros, desde a citação e até integral e completa reposição da extrema, tudo de acordo com o supra alegado.

-Abster-se da prática de qualquer acto que perturbe ou ponha em causa o direito de propriedade da A. sobre o prédio referido na alínea a).

- Pagar à A. a quantia de 5.000euros, a título de indemnização”.


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Citados, os Réus apresentaram contestação.

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I.1_Foi dispensada a realização de audiência prévia.

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I.2_ Proferido despacho saneador, além foram fixados o objecto do litígio e os temas da prova, sendo estes:

“Área, confrontações e configuração do prédio da Autora;

Área, confrontações e configuração do prédio dos Réus;

Delimitação entre os prédios: marcos, fios e valado;

Construção do muro: localização;

Ocupação do prédio da Autora: área ocupada;

Danos não patrimoniais: sofrimento causado”.


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I.3_ Em 17/1/2023, foi proferido o seguinte despacho:

Considerando que as datas sugeridas têm uma dilação superior ao nosso agendamento que é de um mês a dois meses, no sentido de aproveitar o tempo e considerando que foi requerida pela  Autora e Réu a inspeção judicial ao local, não obstante ter sido relegada (em sede do despacho que admitiu as provas apresentas pelas partes nos seus articulados) a decisão da inspeção judicial ao local para audiência de julgamento, o tribunal aproveitando este tempo de dilação, face à natureza da matéria, e entendendo não se justificar, a perceção direta dos factos pelo tribunal, decide, nos termos do artigo 494º, nº1 ex vi 495º 496º do C. P. Civil, incumbir pessoa qualificada para proceder à inspeção aos prédios dos Autores (identificado em 1º da petição inicial) e dos Réus (identificado em 14º da contestação), no confronto do que vem alegado pelos Autores nos artigos 14º a 23º da petição inicial e do alegado na contestação pelo Réu, e tendo em vista o Perito responder/confirmar/esclarecer a veracidade do alegado pelas partes e especificadamente, indicar quanto ao muro de confrontação ora construído pelos Réus, a localização desse muro atendendo aos limites do prédio dos Autores, o alinhamento do prédio dos Autores e dos Réus antes e depois da construção do referido muro, a ocupação ou não de área do prédio dos Autores com o edificação do respetivo muro, a existência de marcos ou outros sinais visíveis de demarcação e área real do prédio do Autor.

Nomeie a secção pessoa idónea para a referida inspeção/verificação não qualificada, que desde já se nomeia…”.


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I.4_  Em 21 de Abril de 2023, foi junto aos autos o relatório pericial.

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I.5_ A Autora/Recorrente apresentou requerimento, em 8 de Maio de 2023 – referência 35563111 -, com o seguinte teor:

“…notificada do relatório pericial, vem reclamar do mesmo, do modo que se segue:

1 - O levantamento topográfico que integra o relatório pericial não se mostra conforme com a realidade existente.

2 - Com efeito, refere o Sr. Perito que os limites actualmente existentes entre os prédios de A. e R. apresentam a configuração de acordo com o levantamento topográfico constante do Anexo A.

3 - Ora, desse mesmo levantamento topográfico parece resultar que o limite entre os prédios, com excepção de uma pequena inflexão a sul, segue sempre praticamente em linha recta.

4 - No entanto, na realidade, o muro que delimita ambos os prédios apresenta uma configuração totalmente distinta, conforme fotografia que se junta — doc. 1.

5 - Comparando o levantamento com a fotografia ora junta, conclui-se que aquele não se mostra rigoroso, nomeadamente quanto aos limites entre os próprios.

6 - Deve assim o Sr. Perito ser confrontado com a fotografia que ora se junta e esclarecer se a mesma retrata a situação existente no local.

7 - Deve ainda esclarecer por que razão a delimitação entre os prédios constante do levantamento topográfico não evidência o traçado exacto do muro reflectido na fotografia ora junta.

8 - É essencial para a discussão da causa que o levantamento topográfico reflicta de forma rigorosa a realidade existente no local.

9 - Pelo que confirmada a discrepância entre o levantamento efectuado e a delimitação existente, deverá ser realizado novo levantamento topográfico, o que se requer.

10 - Face ao exposto, não aceita a A. o teor da perícia apresentada, por não espelhar a realidade no terreno e requer que a mesma seja repetida nos termos supra referidos”.


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I.6 - Sobre esse requerimento, em 10/5/2023, foi proferido o seguinte despacho:

Notifique o Exm.º Senhor Perito do requerimento em referência e fotografia anexa, para, no prazo de 10 dias, vir responder ao pedido de esclarecimentos da Autora, juntando novo aditamento caso entenda necessário no confronto com a referida fotografia e levantamento topográfico elaborado em complemento do seu relatório pericial”.

I.7 - O Senhor Perito respondeu, por email de 25 de Maio de 2023, esclarecendo o seguinte:

“1) O levantamento topográfico que integra o Relatório Pericial, constante do Anexo A, reflete os limites atualmente existentes entre os prédios dos Autores e dos Réus;

2) A confrontação do levantamento topográfico com uma mera fotografia, tirada sobre um determinado plano, que induz por ilusão de ótica uma acentuada distorção dos segmentos do muro, não pode ser considerada para elemento de análise;

3) Um levantamento topográfico só poderá ser confrontado por um elemento de idêntico rigor;

4) No entanto, numa abordagem preceptiva, se analisarmos a fotográfica aérea abaixo apresentada, extraída do Google Earth, sobre o mesmo plano do levantamento topográfico, facilmente se intui não existirem as diferenças assinaladas e que o levantamento topográfico reflete a realidade das delimitações no local;

5) O levantamento topográfico foi realizado por topógrafo credenciado e com recurso a equipamento de elevada precisão;

6) Contactado o topógrafo, Sr. DD, este reafirma o trabalho realizado;

7) O Perito corrobora o levantamento topográfico realizado e reitera o teor do Relatório Pericial”.


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I.8 - Notificada, a Autora/Recorrente apresentou novo requerimento, em 12 de Junho de 2023, com o seguinte teor:

1 - O Senhor Perito, apesar da "mera" fotografia ter sido obtida na deslocação ao local deste último com as partes, refere que a mesma induz, por ilusão de ótica, uma acentuada distorção dos segmentos do muro e daí não poder ser considerada,

2 - Tentando justificar o injustificável - já que as curvas do muro visíveis na foto são claríssimas -,

3 - Ora no sentido de ultrapassar tal desconfiança incompreensível, junta a A. foto, esta obtida do lado oposto, através da qual ficam igualmente patentes os evidentes e acentuados desalinhamentos do muro,

4 - Solicitando-se que o Senhor Perito e o Senhor Topógrafo com ela sejam confrontados.

5 - Entende ainda a A., para cabal esclarecimento, que se deve voltar ao local para se proceder a novo levantamento topográfico que assinale as várias inflexões do muro,

6 - Requerendo-se para o efeito que o Senhor Topógrafo realize planta com uma escala menor, de forma a apreender o verdadeiro traçado do muro percetível nas fotos e no local e compare tal levantamento com as plantas já existentes nos autos.

7 -0 levantamento topográfico que integra o relatório pericial contínua a não se mostrar conforme com a realidade existente.

8 - Com efeito, refere o Sr. Perito que os limites actualmente existentes entre os prédios de A. e R. apresentam a configuração de acordo com o levantamento topográfico constante do Anexo A.

9 - Ora, desse mesmo levantamento topográfico parece resultar que o limite entre os prédios, com excepção de uma pequena inflexão a sul, segue sempre praticamente em linha recta.

10 - No entanto, insiste-se que na realidade, o muro que delimita ambos os prédios apresenta uma configuração totalmente distinta, conforme fotografia que se juntou e outra que agora se junta.

11 - Comparando o levantamento com a fotografia ora junta, conclui-se que aquele não se mostra rigoroso, nomeadamente quanto aos limites entre os prédios.

12 - Deve assim o Sr. Perito ser confrontado com a fotografia junta.

13 - E esclarecer por que razão a delimitação entre os prédios constante do levantamento topográfico não evidencia o traçado exacto do muro reflectido nas fotografias.

14 - É essencial para a discussão da causa que o levantamento topográfico reflicta de forma rigorosa a realidade existente no local.

15 - Face ao exposto, não aceita a A. o teor das explicações que justificam a perícia apresentada, por não espelhar a realidade no terreno e requer que a mesma seja repetida nos termos supra referidos”.

Com o requerimento, a Autora juntou uma fotografia.


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I.9 - Sobre esse requerimento, o Tribunal a quo, em 11/7/2023, proferiu o seguinte despacho:

“Pretendeu a Autora que o Senhor Perito fosse confrontado o levantamento topográfico com uma fotografia por si junta com a petição inicial, pondo em causa o alinhamento desenhado no levantamento topográfico na confrontação dos prédios, agora delimitados por um muro.

Não obstante a credibilidade que merece um levantamento topográfico em contraponto com uma fotografia junta pela parte, o tribunal admitiu tal pedido de confrontação no sentido dos esclarecimentos da Autora.

Tendo o Senhor Perito vindo esclarecer que a fotografia junta pelo Autor foi tirada sobre um determinado plano, que induz por ilusão de ótica uma acentuada distorção dos segmentos do muro, o que tal afirmação, não constitui deficiência, obscuridade ou contradição que importe novo pedido de esclarecimentos.

Veio ainda o Senhor Perito reafirmar não só a validade do levantamento topográfico por topógrafo credenciado e com recurso equipamento de elevada precisão como contrapor à referida foto a fotográfica aérea abaixo apresentada, extraída do Google Earth sobre o mesmo plano do levantamento topográfico, concluindo como no primeiro relatório que o levantamento topográfico reflete a realidade das delimitações no local.

Na verdade, o que pretende a Autora é que o Senhor Perito lhe dê razão e em função disso pretende através da perícia dos autos, ordenada pelo Tribunal, com um objeto determinado, realizar o ónus da prova que lhe compete, juntando e requerendo, neste âmbito, novos meios de prova – junção fotografia para o Senhor Perito ser novamente confrontado e requerimento de novas diligências de prova como a realização de um novo levantamento topográfico, a realização de uma planta com uma escala menor e a comparação do senhor Perito com as plantas existentes nos autos, o que não é legalmente admissível.

Para além do exposto, não é também legalmente admissível um segundo pedido de esclarecimentos – cfr. artigo 485º do CPC e apenas a comparência do senhor perito, nos termos do artigo 486º do CPC, pelo que se indefere este segundo pedido de esclarecimentos da Autora.


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Admite-se porém a fotografia junta aos autos com o requerimento em referência, não se condenando a Autora em multa pela sua junção nos termos do nº 2 do artigo 423º do CPC atendendo à razão da sua junção.

Notifique”.


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I.10- Não se conformando com o despacho, a Autora/Recorrente interpôs recurso do mesmo, formulando as seguintes conclusões:

a)- Dispõe o artigo 485°, n.° 2 do Código de Processo Civil que as partes podem reclamar contra o relatório pericial se houver no mesmo qualquer deficiência, obscuridade ou contradição ou se as conclusões não se mostrarem devidamente fundamentadas.

b)- O relatório pericial padece de deficiência, dado que o levantamento topográfico que integra o mesmo não se mostra conforme com a realidade existente.

c)- Tendo sido notificado para esclarecer tal facto, o Senhor Perito referiu somente que a fotografia junta criava uma ilusão de óptica e distorcia os segmentos do muro, o que não corresponde à verdade.

d)- Estando em discussão nos autos os reais limites dos prédios das partes, é fundamental que o levantamento topográfico reflicta com exactidão a delimitação resultante do muro implantado no local.

e)- Se a A. entendia que os limites apostos no levantamento topográfico não correspondem à delimitação efectivamente existente entre os prédios, a mesma teria de apresentar prova da sua alegação, o que fez através da junção de fotografias, justificando-se plenamente que o Sr. Perito fosse confrontado com as mesmas.

f)- Se os esclarecimentos ao relatório pericial não se revelarem satisfatórios, nada impede que as partes apresentem nova reclamação.

g)- Perante a resposta do Sr. Perito, justificava-se plenamente a nova reclamação apresentada, designadamente com a junção de outra fotografia, tirada de um ponto diferente.

h)- Ao não ser admitida esta reclamação, mantém-se a deficiência do relatório pericial, para além de não se permitir que o Senhor Perito, de modo fundamentado, justifique as evidentes diferenças do traçado do muro entre o que consta, por um lado, do levantamento topográfico e, por outro, das imagens juntas aos autos.

i)- A decisão do Tribunal a quo violou o disposto no artigo 485°, n.° 2 do Código de Processo Civil.

TERMOS em que,

 Deverá ser dado provimento ao presente recurso, alterando-se o despacho recorrido, no sentido proposto e defendido nas presentes alegações, e deste modo ser admitida a reclamação contra o relatório pericial…”.


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I.11- Os Réus/Recorridos apresentaram resposta, formulando as seguintes conclusões:

1.º - Não assiste qualquer razão à recorrente, bem decidiu o douto tribunal ao determinar “não é qualquer legalmente admissível um segundo pedido de esclarecimentos  – cfr. art. 485.º do CPC - e apenas a comparência do senhor perito, nos termos do artigo 486.ºdo CPC, pelo que se indefere este segundo pedido de esclarecimentos da Autora”.

2.º - Embora entenda a Recorrente que ao não ser admitida a segunda reclamação, mantém-se a deficiência, obscuridade do relatório alegando que “para além de não se permitir que o senhor perito, de modo fundamentado, justifique as evidentes diferenças do traçado do muro, entre o que consta, por um lado, do levantamento topográfico e, por outro, das imagens juntas aos autos.”

3.º - A mesma não alegou novos fundamentos ou factos que permitam sustentar a sua posição quanto aos esclarecimentos do Senhor Perito, bem como, do levantamento topográfico junto com o relatório pericial.

4.º - Perante o pedido de esclarecimentos da Recorrente o Senhor Perito esclareceu que o levantamento topográfico reflete os limites atualmente existentes entre os prédios dos Autores e dos Réus, tendo ainda esclarecido que a junção, pelos Autores, de um “mera fotografia, tirada sobre um determinado plano, que induz por ilusão de ótica uma acentuada distorção dos segmentos do muro, não pode ser considerada para elemento de análise”.

5.º - E, perante este novo pedido de esclarecimentos por parte da Recorrente bem decidiu o douto tribunal que o relatório pericial se encontra devidamente fundamentado e que o mesmo não apresenta qualquer deficiência, obscuridade ou contradição que comporte um novo pedido de esclarecimentos.

6.º - Nos termos do artigo 486.º n.º 1 do CPC, podem as partes requerer ou o juiz ordenar, que o Senhor Perito comparece em audiência final, para prestarem os esclarecimentos que lhe sejam pedidos.

7.º - Isto posto, tal relatório pericial e respetivo levantamento topográfico foi elaborado por pessoas dotadas de especiais conhecimentos no domínio científico, técnico, artístico, experimental e profissional e tem por objecto, à luz desse tipo de conhecimento, a perceção, apreciação e valoração de factos determinados.

8.º- E, prestados esclarecimentos escritos pelos peritos sobre a perícia - artº sobre 485º do CPC – a parte, em princípio, não pode solicitar novo esclarecimento escrito sobre a mesma matéria, apenas podendo fazer contra prova ou prova em contrário sobre a posição dos mesmos.

9.º - O que tal não sucedeu.

10.º - A previsão do artº 485º nº2 do CPC não prejudica nem coincide com a do artº 486º nº1, pelo que mesmo tendo sido prestados esclarecimentos escritos pelos peritos sobre a perícia, pode a parte requerer orais pode em audiência, a parte requerer, e ser-lhe concedida, a prestação de esclarecimentos orais em audiência, quer sobre a perícia, quer sobre outra factualidade pertinente ao objeto da lide, conforme decidido no douto despacho.

11.º - Bem decidiu o douto tribunal ao indeferir o segundo pedido de esclarecimentos, podendo o mesmo ser confrontado em sede de audiência pedido final, não se violando o artigo 485.º n.º 2 do CPC…”.


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Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

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II - Objecto do recurso

Nos termos do disposto nos artigos 635º, nº 4, e 639º, nº1, do Código de Processo Civil, são as conclusões das alegações de recurso que estabelecem o thema decidendum do mesmo, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso que resultem dos autos.

Assim, perante as conclusões da alegação da Recorrente há que apreciar a seguinte questão:
i. Da admissibilidade do pedido de esclarecimentos sobre os esclarecimentos prestados, pelo Senhor Perito.


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III. Fundamentação de facto

Os factos a considerar são, essencialmente, os mencionados no relatório supra, sem prejuízo dos mais que se ponderarão na apreciação do objecto do recurso.


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IV. Fundamentação de direito

A questão a decidir consiste em saber se o Tribunal “a quo” ao proferir o despacho que indeferiu o pedido de esclarecimentos apresentado pela Autora/Recorrente, uma vez notificada dos esclarecimentos anteriormente prestados pelo Senhor Perito, no âmbito da prova pericial determinada oficiosamente, não decidiu em conformidade com o disposto no artigo 485º, nº2, do Código de Processo Civil.

Cumpre apreciar e decidir.

Previamente à apreciação e decisão da questão suscitada, pela Recorrente, importa salientar que o Tribunal “a quo” indeferiu o pedido de esclarecimentos, apresentado pela Autora, ora Recorrente, por requerimento de 12 de Junho de 2023, por três ordens de razões:
(i) por considerar que o Senhor Perito prestou os esclarecimentos solicitados, em 8 de Maio de 2023, pela Autora;
(ii) por considerar que não é legalmente admissível a Autora, através da perícia, ordenada pelo Tribunal e com o objecto já fixado, juntar nova fotografia para o Senhor Perito ser confrontado com a mesma e requerer novas diligências de prova, tais como a realização de um novo levantamento topográfico e a realização de uma planta com uma escala menor, com vista a posterior análise comparativa, a efectuar pelo Senhor Perito, de tais elementos com os existentes nos autos;
(iii) por considerar que não é legalmente admissível um segundo pedido de esclarecimentos.

Dispõe o artigo 388º do Código Civil que “A prova pericial tem por fim a percepção ou apreciação de factos por meio de peritos, quando sejam necessários conhecimentos especiais que os julgadores não possuam, ou quando os factos, relativos a pessoas, não devam ser objecto de inspecção judicial”.

A perícia é um meio de prova a que as partes ou/e o tribunal podem lançar mão quando se revele necessário recorrer ao conhecimento técnico de outrem, os peritos, os quais pronunciando-se sobre a questão solicitada expõem as suas observações e as suas impressões pessoais sobre os factos presenciados, retirando conclusões objectivas dos factos observados e daqueles que se lhes ofereçam como existentes.

A prova pericial – conceptualizada no artigo 388.º do Código Civil – é realizada por pessoas idóneas conhecedoras de factos que exigem conhecimentos especiais estranhos ao tribunal ou quando os factos relativos a pessoas não devam ser objecto de inspecção judicial.

Os peritos farão uma percepção, ou apreciação técnica, em áreas onde são especializados.

Como escreveu o Prof. Manuel de Andrade (in “Noções Elementares de Processo Civil”, 135) esta prova “traduz-se na percepção por meio de pessoas idóneas para tal efeito designadas, de quaisquer factos presentes, quando não possa ser directa e exclusivamente realizada pelo juiz, por necessitar de conhecimentos científicos ou técnicos especiais, ou por motivos de decoro ou de respeito pela sensibilidade (legitima susceptibilidade) das pessoas em que se verificam tais factos.”[1]

Dispõe o artigo 485º do Código de Processo Civil que:

1 - A apresentação do relatório pericial é notificada às partes.

2 - Se as partes entenderem que há qualquer deficiência, obscuridade ou contradição no relatório pericial, ou que as conclusões não se mostram devidamente fundamentadas, podem formular as suas reclamações”.

Decorre do nº2 do artigo 485º do Código de Processo Civil que o relatório pericial, previsto no artigo 484º desse diploma, pode ser objecto de reclamação por deficiência, obscuridade ou contradição ou, ainda, por ausência/deficiente fundamentação das posições tomadas pelos Peritos.

Ocorre deficiência do relatório quando o mesmo não considera todos os pontos que devia ou não os considera tão completamente como devia; ocorre obscuridade quando não se vislumbra o sentido de alguma passagem ou esta pode ter mais de um sentido; ocorre contradição quando há colisão entre os vários pontos focados ou entre as posições tomadas pelos peritos, sendo a perícia colegial. [2]

Se o juiz julgar fundada a reclamação, ordenará aos peritos, no caso de deficiência, que completem a resposta, no caso de obscuridade, que a esclareçam, no caso de contradição, que a façam cessar, harmonizando as respostas apontadas como contraditórias.

Deve o juiz indeferir o pedido de esclarecimentos se as questões colocadas na formulação do pedido forem inadmissíveis ou impertinentes para o apuramento da verdade, em função da matéria de facto relevante para a decisão da causa, segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito.

Do regime legal enunciado não consta a possibilidade de uma segunda reclamação. Poder-se-ia sustentar a impossibilidade de formulação de uma segunda reclamação contra o relatório pericial, com fundamento numa estrita interpretação literal do disposto no artigo 485º do Código de Processo Civil.

Ensinava o Professor Alberto dos Reis, “Pode dar-se o caso de as segundas respostas não serem satisfatórias (…); em tal caso não pode negar-se às partes o direito de insistir na sua reclamação e ao juiz o poder de ordenar que os peritos deem satisfação cabal aos reparos feitos».[3]

No mesmo sentido, referem José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre que “não está excluído que, não completando, esclarecendo ou fundamentando integralmente o relatório, os peritos sejam confrontados com a insistência das partes para que seja totalmente satisfeita a sua reclamação.”[4]

Assim, não está vedada a apresentação de segunda reclamação/pedido de esclarecimentos sobre o relatório pericial, pelo que, nesta parte, não se concorda com o segmento que consta do despacho recorrido, “…não é também legalmente admissível um segundo pedido de esclarecimentos - cfr. artigo 485° do CPC…”.

 Todavia, o segundo pedido de esclarecimentos tem de ser motivado pela permanência da “deficiência, obscuridade ou contradição no relatório pericial” ou pela ausência/insuficiência de fundamentação, anteriormente invocados no primeiro pedido de esclarecimentos ou, então, pela “deficiência, obscuridade ou contradição” do próprio esclarecimento que tiver sido prestado pelo Senhor Perito, o que não sucede, nos presentes autos.

Vejamos.

Por email de 25 de Maio de 2023, o  Senhor Perito, “em resposta à notificação do despacho”, após referir que “[a] confrontação do levantamento topográfico com uma mera fotografia, tirada sobre um determinado plano, que induz por ilusão de ótica uma acentuada distorção dos segmentos do muro, não pode ser considerada para elemento de análise” e que [u]m levantamento topográfico só poderá ser confrontado por um elemento de idêntico rigor”, esclareceu que:

“No entanto, numa abordagem preceptiva, se analisarmos a fotográfica aérea abaixo apresentada, extraída do Google Earth, sobre o mesmo plano do levantamento topográfico, facilmente se intui não existirem as diferenças assinaladas e que o levantamento topográfico reflete a realidade das delimitações no local”.

Por último, esclareceu o Senhor Perito queO levantamento topográfico foi realizado por topógrafo credenciado e com recurso a equipamento de elevada precisão; contactado o topógrafo, Sr. DD, este reafirma o trabalho realizado”; e que “[c]orrobora o levantamento topográfico realizado e reitera o teor do Relatório Pericial”.

Da análise dos esclarecimentos prestados pelo Senhor Perito, facilmente se constata  que o mesmo respondeu ao solicitado e esclareceu as questões suscitadas pela Autora/Recorrente. Assim foi entendido, também, pelo Tribunal a quo, constando do despacho recorrido que “[n]ão obstante a credibilidade que merece um levantamento topográfico em contraponto com uma fotografia junta pela parte, (…) admitiu tal pedido de confrontação no sentido dos esclarecimentos da Autora, [t]endo o Senhor Perito vindo esclarecer que a fotografia junta (…) foi tirada sobre um determinado plano, que induz por ilusão de ótica uma acentuada distorção dos segmentos do muro, o que tal afirmação, não constitui deficiência, obscuridade ou contradição que importe novo pedido de esclarecimentos”.

Sobre a segunda questão suscitada, no primeiro requerimento apresentado pela Autora, entendeu o Tribunal a quo que na resposta, “veio o Senhor Perito reafirmar não só a validade do levantamento topográfico por topógrafo credenciado e com recurso equipamento de elevada precisão como contrapor à referida foto a fotográfica aérea abaixo apresentada, extraída do Google Earth sobre o mesmo plano do levantamento topográfico, concluindo como no primeiro relatório que o levantamento topográfico reflete a realidade das delimitações no local”.

Analisado o requerimento apresentado, em 12 de Junho de 2023, facilmente se constata que pela Recorrente não é invocada qualquer “deficiência, obscuridade ou contradição” na resposta apresentada pelo Senhor Perito, aos esclarecimentos por si solicitados, ou falta de fundamentação. Existe, sim, discordância da Autora (“…não aceita a Autora o teor das explicações…”) relativamente às respostas apresentadas pelo Senhor Perito por entender que “não espelha[m] a realidade no terreno”, discordância que a Recorrente já havia expressado no requerimento de 8 de Maio de 2023 (“O levantamento topográfico que integra o relatório pericial não se mostra conforme com a realidade existente…Deve, assim, o Sr. Perito ser confrontado com a fotografia que ora se junta e esclarecer se a mesma retrata a situação existente no local) e que reitera no Requerimento de 12 de Junho de 2023, sustentando que “O levantamento topográfico que integra o relatório pericial contínua a não se mostrar conforme com a realidade existente” e que “desse mesmo levantamento topográfico parece resultar que o limite entre os prédios, com excepção de uma pequena inflexão a sul, segue sempre praticamente em linha recta. No entanto, insiste-se que na realidade, o muro que delimita ambos os prédios apresenta uma configuração totalmente distinta, conforme fotografia que se juntou e outra que agora se junta”.

Como refere o Tribunal a quo,o que pretende a Autora é que o Senhor Perito lhe dê razão”.  Isso resulta, de forma evidente, do ponto B das conclusões onde refere “O relatório pericial padece de deficiência, dado que o levantamento topográfico que integra o mesmo não se mostra conforme com a realidade existente”. A deficiência apontada pela Recorrente, encontra-se vertida nos pontos D e E das suas conclusões: “Estando em discussão nos autos os reais limites dos prédios das partes, é fundamental que o levantamento topográfico reflicta com exactidão a delimitação resultante do muro implantado no local.  Se a A. entendia que os limites apostos no levantamento topográfico não correspondem à delimitação efectivamente existente entre os prédios, a mesma teria de apresentar prova da sua alegação, o que fez através da junção de fotografias…”.

Ora, a discordância quanto às observações e respostas aos quesitos, apresentadas pelo Senhor Perito, não constitui fundamento para apresentar reclamação/pedido de esclarecimentos, nos termos do artigo 485º do Código de Processo Civil.

Refere a Recorrente que “Ao não ser admitida esta reclamação, mantém-se a deficiência do relatório pericial, para além de não se permitir que o Senhor Perito, de modo fundamentado, justifique as evidentes diferenças do traçado do muro entre o que consta, por um lado, do levantamento topográfico e, por outro, das imagens juntas aos autos”.

Conforme se referiu, os peritos expõem as suas observações e as suas impressões pessoais sobre os factos presenciados” e não sobre uma realidade retratada numa fotografia.

Por último, o fundamento invocado pela Autora/Recorrente para a realização de “novo levantamento topográfico com uma escala menor, de forma a apreender o real traçado do muro” assenta na sua discordância quanto às observações vertidas pelo Senhor Perito no relatório pericial e não em “qualquer deficiência, obscuridade ou contradição”.

Em conclusão, no requerimento apresentado pela Recorrente, em 12 de Junho de 2023, não é mencionada qualquer “deficiência, obscuridade ou contradição no relatório pericial” na resposta apresentada pelo Senhor Perito, aos esclarecimentos por si solicitados, pelo que o mesmo carece de fundamento legal.

Acolher a pretensão da Autora/Recorrente traduzir-se-ia, no limite, na possibilidade de a mesma, na sequência da resposta que viesse a ser apresentada pelo Senhor Perito, requerer, de novo, esclarecimentos com a junção de uma terceira fotografia e assim sucessivamente.

Prescreve o artigo 486º, nº1, do Código de Processo Civil que “Quando alguma das partes o requeira ou o juiz o ordene, os peritos comparecem na audiência final, a fim de prestarem, sob juramento, os esclarecimentos que lhes sejam pedidos”.

Por despacho de 10 de Maio de 2023, foi decidido que “Sem prejuízo dos esclarecimentos requeridos pela Autora, ao abrigo do artigo 486º, nº 1 do CPC, defiro a comparência do Senhor Perito na audiência de julgamento que vier a ser designada, a fim de prestar esclarecimentos”.

Assim, pese embora os esclarecimentos já prestados por escrito, a Autora/Recorrente pode requerer a prestação de esclarecimentos, em audiência, que se mostrem pertinentes para a descoberta da verdade.

Pelo exposto, improcede a apelação.


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Custas

Atento o disposto no art. 527º, n.º 1, do CPC, a decisão que julgue a acção ou algum dos seus incidentes ou recursos condena em custas a parte que a elas houver dado causa ou, não havendo vencimento da acção, quem do processo tirou proveito. O n.º 2 acrescenta que dá causa às custas do processo a parte vencida, na proporção em que o for.

Assim, as custas da apelação são da responsabilidade da Recorrente, face à improcedência do recurso.


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V - Decisão

Pelos fundamentos acima expostos, acorda-se em julgar improcedente a apelação, confirmando a decisão recorrida.

Custas da apelação pela Recorrente (artº 527 do C.P.C.).


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Sumário:
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Porto, 5/2/2024
Anabela Morais;
Teresa Fonseca
José Eusébio Almeida
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[1] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 22 de Setembro de 2009, proferido no Processo 161/05.2TBVLG.S1, acessível em www.dgsi.pt/jstj.
[2] José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Almedina, vol. 2º, 4ª edição, pág. 339.
[3] Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, vol. IV, reimpressão, Coimbra Editora, 1981, pág. 256.
[4] José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Almedina, vol. 2º, 4ª edição, pág. 339.