Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
20371/19.4T8PRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOÃO DIOGO RODRIGUES
Descritores: HERANÇA JACENTE
INTERVENÇÃO PRINCIPAL
PEDIDO GENÉRICO
CONVITE AO APERFEIÇOAMENTO
Nº do Documento: RP2023101020371/19.4T8PRT.P1
Data do Acordão: 10/10/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: RECURSO PARCIALMENTE PROCEDENTE; DECISÃO ALTERADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A herança, a partir do momento em que é aceite, isto é, a partir do momento em que o sucessor manifesta (expressa ou tacitamente) a sua vontade no sentido de tornar seus os direitos e obrigações que foram transmitidos por lei ou por testamento, deixa de estar jacente e de ter personalidade judiciária, não podendo, enquanto tal, demandar ou ser demandada em juízo.
II - Se nenhum dos herdeiros foi demandado em nome próprio, não pode ser admitida a intervenção principal de todos eles, no sentido de substituir a herança jacente que foi absolvida da instância.
III - A formulação de um pedido genérico fora do condicionalismo legal deve dar origem ao convite para o aperfeiçoamento desse pedido, no sentido de o concretizar, e não à absolvição da instância, na parte referente a esse pedido.
IV - Igual convite ao aperfeiçoamento deve ser formulado quando a causa de pedir também careça de concretização.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 20371/19.4T8PRT.P1
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Sumário:
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Relator: João Diogo Rodrigues;
Adjuntos: Márcia Portela e Fernando Vilares Ferreira.
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Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I- Relatório
1- AA intentou a presente ação declarativa, sob a forma de processo comum, contra, entre outros[1], BB, Herança de CC, DD, EE, FF, GG, HH, II e JJ, pedindo, entre o mais[2], o seguinte:
“A) Serem declarados nulos os actos praticados pelo 1º Réu BB e seu então colega de escritório, Dr. CC (aqui representado pela 2ª Ré herança aberta por óbito de CC), nos autos de inventário sob nº 3402/08.0TBVLG, tramitados pelo Tribunal Judicial de Valongo, com todas as legais consequências; B) Serem condenados o 1º Réu BB e a 2ª Ré herança aberta por óbito de CC, a conhecer a ilicitude dos actos praticados no âmbito dos sobreditos autos, tudo nos termos e conforme vem alegado nos artigos 4º a 63º supra; C) Serem condenados os 3º, 4º, 5º e 6º Réus, DD e marido EE, FF, GG e mulher HH, II e marido JJ, a conhecer a ilicitude dos actos praticados pelos demandados BB e seu então colega de escritório, Dr. CC, no âmbito dos sobreditos autos , tudo nos termos e conforme vem alegado nos artigos 4º a 63º supra; E) Seja ordenado – face à ilicitude dos sobreditos actos praticados pelo 1º Réu BB e seu então colega de escritório, Dr. CC, enquanto advogados, nos termos e conforme vem alegado nos artigos 4º a 63º supra todas as legais consequências –, o cancelamento dos registos de propriedade efectuados pelos, ou em nome destes Réus DD e marido EE, FF, GG e mulher HH, II e marido JJ”.
Baseia estes pedidos, essencialmente, na circunstância da sua avó materna, KK, já falecida, através de procuração que lhe outorgou, ter constituído o 1.º R. como seu mandatário judicial, para que o mesmo a representasse no âmbito do inventário judicial que então corria termos no 3.º Juízo do Tribunal Judicial de Valongo, sob o n.° 3402/08.0TBVLG, mas aquele R., não obstante ter a sua inscrição suspensa na Ordem dos Advogados desde 01/09/2011, continuou a praticar atos nesse processo e a receber notificações.
Para além disso, munido de uma procuração, com poderes especiais, que aquela KK, lhe conferiu no dia 12/06/2013 e de um “acordo de transação”, em conluio com outros RR. e com a colaboração do Autor da Herança que figura como 2ª Ré (que não era mandatário da dita KK), praticou atos naquele processo contra a vontade e as instruções que a mesma lhe tinha dado, atos esses que lhe causaram grave prejuízo e, reflexamente, também a si, enquanto herdeira testamenteira daquela.
Daí os pedidos que formula.
2- Contestaram os referidos RR., arguindo, entre o mais sem interesse para este recurso, a ineptidão da petição inicial (contestações dos RR., FF, BB e LL, como cabeça de casal da herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de CC) e a ilegitimidade passiva desta herança (contestação referida em último lugar).
3- Facultado o contraditório à A. sobre as exceções deduzidas (cfr. despacho de 31/05/2021), a mesma refutou-as e, em simultâneo, suscitou o incidente de Intervenção Provocada dos herdeiros do Autor da Herança que figura como 2ª Ré, para intervirem no presente processo do lado passivo.
4- Por despacho proferido no dia 06/09/2021, foi determinada, entre o mais, a notificação da A. para se pronunciar, querendo, sobre o “eventual conhecimento da falta de personalidade judiciária da herança demandada”, o que a mesma fez, alegando que “já tomou posição aquando da sua resposta às excepções deduzidas pelos Réus (sob ref.ª 39220466 do Sist. Citius), tendo para o efeito deduzido Incidente de Intervenção Provocada de todos os herdeiros da herança demanda”.
5- Subsequentemente, em resposta ao convite efetuado à A., no despacho de 25/10/2021, para alegar os factos fundamento da arguida qualidade de herdeiros das pessoas cuja intervenção requer e juntar prova documental dos mesmos, alegou aquela que as pessoas cuja intervenção requer são herdeiros da herança aberta por óbito de CC em procedimento simplificado de habilitação de herdeiros que junta.
6- LL, como cabeça de casal da herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de CC, pronunciou-se pelo indeferimento do incidente de intervenção principal provocada passiva por tal pressupor a preterição de litisconsórcio necessário, e não ocorre litisconsórcio necessário entre a herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de CC e os seus herdeiros.
7- Entretanto, depois de outras vicissitudes processuais sem interesse para este recurso, foi proferida sentença na qual se decidiu o seguinte:
“1) Conhecendo da falta de personalidade judiciária da herança aberta por óbito de CC, que é demandada como ré (uma das rés) na presente ação, exceção dilatória (insuprível) de conhecimento oficioso, absolvo a referida 2.ª ré demandada – herança aberta por óbito de CC, representada pelo cabeça-de-casal – da instância (arts. 11.º, 12.º, 576.º, n.º 1 e n.º 2, 577.º, al. c) e 578.º, todos do Cód. Proc. Civil).
2) Nos termos do disposto no art. 318.º, n.º 2, do CPC, julgo inadmissível o incidente de intervenção principal provocada passiva de MM, NN e LL (respetivamente, cônjuge e filhos do falecido CC).
3) Julgo procedente a exceção de ineptidão da petição inicial, geradora da nulidade de todo o processo e, em consequência, absolvo os réus BB, DD, EE, FF, GG, HH, II e JJ da instância relativamente aos pedidos deduzidos nas als. A) a C) e E) da petição inicial (arts. 186.º, n.º 1 e n.º 2, al. c), 576.º, n.º 1 e n.º 2, 577.º, al. b) e art. 278.º, nº 1, al. b), todos do Cód. Processo Civil)”.
8- Inconformada com esta sentença, dela interpõe recurso a A., que termina a sua motivação com as seguintes conclusões:
“A) A Recorrente não se conforma com a decisão recorrida, porquanto, como já resulta até da própria motivação da mesma, o Tribunal a quo comete um erro na apreciação crítica da prova fáctica e, para além disso, erro crasso na aplicação do Direito;
B) A Decisão ora em crise apresenta-se NULA, constituindo manifestamente uma “decisão surpresa”, porquanto, além do mais, viola os princípios, nomeadamente, o da igualdade das partes (art. 4º, do CPC), do contraditório (art. 3º, nº 3, CPC) da prevalência da decisão de mérito (art. 6º, nº 2, CPC), ademais, do direito à tutela jurisdicional (art. 20º, nº 1, da CRP), do direito de acesso à justiça (art. 2º, do CPC), pois tal decisão desconsidera em absoluto a aquisição processual dos factos;
C) A sentença ora em crise, sem que para tanto desse cumprimento ao preceituado no artigo 3º, nº 3, do CPC, decide de mérito nos autos, desconsiderando toda a tramitação ocorrida nos mesmos autos os quais estiveram a tramitar ao longo de mais de 4 (quatro) ANOS;
D) A decisão do Tribunal de 1ª instância não era, não podia, nem devia ser previsível para qualquer dos pleiteantes, atento a decorrência de TODOS os actos, despachos/decisões que ao longo de toda a ocorrida tramitação foram praticados nos autos;
E) O Tribunal a quo no seu despacho de 15-10-2021 (ref.ª 428346428), uma vez terminada a fase dos articulados veio a sanear o processo tendo decidido e (apenas) apreciado sobre: a) a excepção de incompetência material; b) sobre o incidente de intervenção provocada da companhia de seguros A... SE, Sucursal em Espanha; c) excepção de ilegitimidade passiva da herança aberta por óbito de CC;
F) O Tribunal de 1ª instância tendo em conta todas as questões suscitadas pelas partes nos seus articulados - Autora (causas de pedir e pedidos) e dos Réus (excepções), no seu despacho de 15-10-2021 (ref.ª 428346428), veio a decidir que a acção devia prosseguir para apreciação da causa de pedir e pedidos das alíneas A) a C) e E) da petição inicial;
G) A Mt.ª Juiz de 1ª instância apesar de os Réus FF (Ref. 34495261, fls. 614), BB (Ref. 34738959, fls. 1010) e LL, como cabeça de casal da herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de CC (Ref. 35848215, fls. 1027), todos terem invocada nas suas contestações a ineptidão da petição inicial, o Tribunal, nesse caso, não entendeu que tal ineptidão ocorresse, pois que, veio a decidir pelo prosseguimento dos autos para apreciação dos pedidos das alíneas A) a C) e E) da petição inicial;
H) O actual Código Processo Civil (artigo 590º), veio a estipular que findos os articulados, o juiz profere, despacho pré-saneador destinado a: a) providenciar pelo suprimento de excepções dilatórias, nos termos do nº 2 do artigo 6º; b) providenciar pelo aperfeiçoamento dos articulados; c) determinar a junção de documentos com vista a permitir a apreciação de excepções dilatórias ou o conhecimento, no todo ou em parte, do mérito da causa no despacho saneador;
I) E quanto ao aperfeiçoamento dos articulados apresenta-se determinado que o juiz convida as partes a suprir as irregularidades dos articulados, fixando prazo para o suprimento ou correção do vício, designadamente quando careçam de requisitos legais ou a parte não haja apresentado documento essencial ou de que a lei faça depender o prosseguimento da causa;
J) Da análise ao despacho proferido em 15-10-2021 (refª 428346428) constata-se que o Tribunal a quo percebeu a causa de pedir e os pedidos da acção, pois que, no sobredito despacho, após apreciação quer da acção (causa pedir e pedidos) quer das excepções invocadas pelos Réus, veio a decidir pelo prosseguimento da acção para apreciação dos pedidos das alíneas A) a C) e E) da petição inicial (pedidos principais) decidindo pela absolvição dos mesmos Réus quanto aos pedidos subsidiários;
K) Apesar dos Réus terem invocado a ineptidão da petição inicial, nos termos do artigo 186º, nº 2, al. a) do CPC, o certo é que todos esses mesmos Réus contestaram a acção, tendo assim os mesmos, sem qualquer mínima dúvida, interpretado convenientemente a petição inicial, ou seja, os mesmos compreenderam a pretensão processualizada integrada pelo pedido e causa de pedir;
L) Não se entende de todo como é que o Tribunal a quo, depois de ter procedido à prolação do despacho de 15-10-2021, vem em 13-03-2023, passados que foram cerca de 2 (dois) anos, e sem qualquer outra tramitação nos autos, a proferir a sentença, fundamentando que a petição inicial é inepta, geradora da nulidade de todo o processo, por entender que: cit. “(…) É manifesta, assim, a ininteligibilidade dos pedidos deduzidos, sendo que tal ininteligibilidade nem sequer permite ao tribunal apreender quais são os efeitos jurídicos que a autora, através da presente ação, pretende obter. Acresce ainda a falta de causa de pedir como suporte do pedido de declaração de nulidade substantiva (de atos que não se sabe quais são), e uma verdadeira inconcludência entre os factos alegados e os ininteligíveis pedidos deduzidos (…)”, pois que, o Tribunal a quo, desde o inicio do processo, teve completo e total conhecimento da alegada ininteligibilidade, mesmo porque o processo lhe foi concluso 19 (dezanove) vezes antes da prolação da sentença em crise, como, seja em 21-11-2019; 25-11-2019; 26-11-2019; 26-02-2020; 11-09-2020;12-10-2020; 31-05-2021; 27-01-2022; 16-11-2020; 07-09-2021; 03-02-2022; 09-12-2020; 18-10-2021; 03-03-2022; 14-04-2021; 16-12-2021; 19-12-2022; 08-02-2023; 13-02-2023; 13-03-2023, não se entendendo como é que o mesmo Tribunal a quo permitiu o prosseguimento dos autos, sem sequer ter convidado a parte, a Autora/aqui Recorrente, a esclarecer o alcance das causas de pedir ou a aperfeiçoar a petição inicial, e/ou convidar a mesma a clarificar as existentes eventuais dúvidas sobre a causa de pedir e dos pedidos, sobre os quais queria ver apreciados de modo a não invalidar todo o processado com a sanção da nulidade, como o fez;
M) No presente caso, constituindo a “causa de pedir” condutas de 2 (dois) advogados, em frontal afronta à lei, praticando actos jurídicos, um praticando procuradoria ilícita e outro exercendo sem mandato, ambos mancomunados, a subverter o Direito e a justiça, com benefícios a terceiros e prejuízos para a Autora, não parece que tal questão no seu todo se apresente a preencher o referido e sobredito conceito de ininteligibilidade;
N) Tanto mais que, quer o teor da aludida causa de pedir, quer a dificuldade quanto ao seu discernimento/inteligibilidade, sempre seria bom caso de resolução a ser aplicado nas nossas escolas de ensino jurídico;
O) E mesmo a existir tal apontada falha, a referida “ininteligibilidade”, o que não se concebe, nem se consente, quanto aos pedidos deduzidos na petição inicial, sempre seria susceptível de ser corrigida pela via do convite a esclarecer o alcance das causas de pedir ou a aperfeiçoar a petição inicial, e/ou convidar a autora a suprir as insuficiências apontadas (art. 590, nº 3, do CPC);
P) No contexto, o não verificado (omissão) despacho a convidar a Autora/aqui Recorrente, a esclarecer o alcance da sua causa de pedir e pedidos, ou a aperfeiçoar a petição inicial, e /ou convidar a mesma a esclarecer quais os efeitos jurídicos que pretendia obter através da instauração da sua referida acção - este com vista a /permitir a apreciação do mérito da causa -, baseia-se no princípio da cooperação, no dever de gestão processual e adequação processual que, hoje, é basilar no processo civil, com escopo de alcançar a justa composição do litígio, de forma eficaz e célere – artigos 3º, 6º, 7º, 411º, 417º, 436º, 590º, nº 2, alínea b) e nº 3, 608º, todos, do CPC;
Q) A actual redacção do Código Processo Civil, admite, e incentiva, o dever de gestão processual do juiz, no sentido, inclusive, de promover oficiosamente as diligências necessárias ao normal prosseguimento da acção e de aperfeiçoamento de articulados que garantam a justa composição do litígio (sem qualquer “distinguo” entre o corpo e a parte conclusiva, que sempre existe, até para formular o pedido), sendo que, os art.s 6º e 411º do CPC contêm uma regra geral que conduz à consagração do convite ao aperfeiçoamento e à justa composição do litígio;
R) A omissão de prolação de despacho destinado a determinar o convite à autora/aqui Recorrente a esclarecer o alcance da causa de pedir e os pedidos ou aperfeiçoar a sua petição inicial, põe em crise o dever da gestão inicial do processo, o dever de gestão processual e adequação processual dos art.s 3º, 6º, 411º e 590º, nº 2, alínea c) e nº 3 e 608º, todos, do CPC, que, hoje, é basilar no processo civil – bem como ainda do princípio da cooperação artigos 7º, 417º e 436º do CPC;
S) A omissão de tal despacho a convidar a Autora a esclarecer o alcance da causa de pedir e dos pedidos e a aperfeiçoar a sua petição inicial, constitui uma irregularidade susceptível de influir no exame crítico e decisão da causa, constituindo, por isso, uma omissão do dever de gestão processual e adequação processual, assim constituindo, por isso mesmo, uma nulidade tal como dispõe os art.s 195º e 615º, nº 1, al. d) do CPC, nulidade que vicia a douta sentença exarada pelo tribunal “a quo”;
T) A omissão do convite às partes para tomarem posição sobre as questões SOMENTE levantadas na sentença ora recorrida, gera NULIDADE da mesma, nos termos do art. 615º, nº 1, al d), do Cód. Proc. Civil, por excesso e/ ou omissão de pronúncia, que aqui se invoca para todos efeitos legais;
U) A decisão ora em crise, da forma desconcertante e expedita como veio a ser proferida – aqui se desconhecendo, por ora, as verdadeiras causas e motivações subjacentes à mesma -, sem conhecimento prévio das partes, constitui uma decisão surpresa com violação do princípio do contraditório (artº 3, nº 3, do CPC);
V) O princípio do contraditório constitui pedra angular do processo civil, visando permitir que nenhuma decisão seja tomada sem que a parte/entidade por ela afectada possa pronunciar-se sobre a mesma;
W) Sendo tal princípio fundamental consagrado na lei adjectiva, o contraditório, encontra raízes em princípios constitucionais como o direito de acesso ao direito e à justiça, o direito a um processo equitativo e justo, ainda, tutela jurisdicional efectiva, estes que proíbem as situações de indefesa ou violações de princípios da igualdade ou proporcionalidade na lide;
X) Exemplo típico disso mesmo são as denominadas “decisões surpresa”, conceito que se tem vindo a densificar na nossa Jurisprudência, em termos de enquadrar no seu âmbito apenas aquelas com que as partes se confrontam e que não poderiam antecipar face ao conjunto do sistema jurídico, na parte aplicável ou do regime processual na sua tramitação legalmente estabelecida ou objecto de adequação formal nos termos legalmente previstos;
Y) In casu, o Tribunal “a quo” de forma desconcertante, em total violação do princípio do contraditório, proferiu uma decisão surpresa, que é ilegal, e cometeu uma nulidade, pois omitiu a prática de um ato a que lei obriga, com enorme impacto na decisão desta mesma causa. Neste sentido vide Acórdão do STJ de 13-10-2020, proc. 392/14.4T8CHV.G1.S1, in www.dgsi.pt , cit – “ 1. A violação do princípio do contraditório do art. 3º, nº 3 do CPC dá origem não a uma nulidade processual nos termos do art. 195º do CPC, que origina a anulação do acórdão, mas a uma nulidade do próprio acórdão, por excesso de pronúncia, nos termos arts. 615º, nº 1, al. d), 666º, n.º 1, e 685º do mesmo diploma”;
Z) O Tribunal a quo não só violou a norma do n.º 3, do artigo 3.º do Código de Processo Civil, como ainda incorreu numa nulidade, nos termos do disposto no art. 615º, nº 1, al. d), do Código de Processo Civil, nulidade que, igualmente, aqui expressamente se invoca;
AA) A Mtª Juiz do Tribunal a quo, ao decidir como decidiu, fez uma errónea (má) interpretação do Direito, violando, nomeadamente os art.s 3.º, n.º 3, 6º, 7º, 411º, 417º, 590º, nº 3, 608º, nº 2 e 615º, nº 1, al. d), todos, do Código Processo Civil, ainda, o artigo 20º da Constituição da República Portuguesa, pelo que, nos termos expostos, deve julgar-se procedente a presente Apelação e, consequentemente, revogar-se a doutra sentença recorrida;
BB) Sendo que, ainda sem prescindir, se deverá entender que a petição inicial não é inepta nem os pedidos ali formulados são ininteligíveis, pelo que, mal andou tribunal a quo ao decidir-se nesse sentido;
CC) Dos factos expostos ao longo da petição inicial (art.s de 5º a 60º) não deixam, a nosso ver, qualquer mínima dúvida sobre quais os concretos actos praticados pelo réu Dr. BB e/ou pelo seu colega Dr. CC, no processo de inventário que se pretende serem declarados nulos;
DD) Sendo que os concretos actos então praticados pelo réu Dr. BB e/ou pelo seu colega Dr. CC, no referido processo de inventário, que se pretende serem declarados nulos, são todos aqueles que se encontram expressamente elencados nos artigos 9º, 10º, 11º, 12º, 13º, 24º, 25º, 28º e 51º, da Petição inicial;
EE) Como resulta do artigo 28º da Petição inicial, foi expressamente peticionado que fossem considerados sem efeito todos os actos praticados pelo 1º Réu (Dr. BB), desde o dia 01 de Setembro de 2011, atendendo o mesmo ter exercido o patrocínio nos autos de inventário em usurpações de funções e, ainda, todos os actos praticados desde essa mesma data pelo 2º Réu (Dr. CC), este por ter exercido o mandato sem representação;
FF) Em consequência da nulidade dos actos praticados pelo Dr. BB (1º Réu) e/ou pelo seu colega Dr. CC, deduziu o pedido de cancelamento de todos os registos de propriedades efectuados/concretizados pelos 3º, 4º, 5º e 6º Réus na sequência da partilha que foi formalizada na conferência de interessados realizada no dia 09-07-2003 nos autos de inventário (Proc. 3402/08.0TBVLG), registos esses que deveriam ser cancelados em consequência da nulidade de todos os actos praticados nos autos a partir do dia 01 de Setembro de 2011;
GG) Mesmo que se entendesse pela eventual insuficiência quanto à expressa identificação dos actos a pretender-se incidir a respectiva nulidade, o Tribunal a quo – e reitera-se -, no exercício das suas funções de dever de gestão processual e dever de cooperação, podia/devia ordenar um convite à Autora para sua correcção, ou aperfeiçoamento, e não decidir, nos termos como o fez, decidindo pela ineptidão da petição inicial;
HH) Em nosso entender, INEXISTE qualquer ininteligibilidade, tanto mais que não se denotou qualquer dificuldade de todos, os Réus contestarem a acção e alcançarem o seu verdadeiro objecto, pois que, nem o próprio Tribunal a quo teve qualquer dificuldade quando proferiu o Douto despacho de 15-10-2021, sendo que é a mesma Mtª Juiz que profere ambas as decisões, em 15-10-2021 e 13-03-2023;
II) A fundamentação constante da sentença recorrida apresentam-se manifestamente despropositadas e extemporâneas, tendo em conta os princípios conformadores do nosso sistema jurídico, como seja, nomeadamente, o da prevalência da decisão de mérito (art. 6º, nº 2, CPC), do direito à tutela jurisdicional (art. 20º, nº 1, da CRP), do direito de acesso à justiça (art. 2º, CPC), da oficiosidade e da cooperação (art.s 6º, 7º e 411º, do CPC), os quais privilegiam a decisão de fundo em detrimento das questões formais, e o princípio da economia processual que impõe que o resultado processual deve ser atingido com a maior economia de meios, aos quais acresce o princípio interpretativo do efeito útil - “Ut res magis valeat quam pereat”;
JJ) Por todas as sobreditas razões - no entendimento da aqui Recorrente -, a Mtª. Juiz do Tribunal a quo não terá feito a melhor interpretação da lei processual civil tendo, na sua decisão e desta forma, violado as normas jurídicas dos artigos 2º, 6º, nº 2, 7º, 186º, nº 2, al. c), 278.º, nº 1, alínea b), 411º, 417º, 576.º, n.º 2 e 577.º, al. b), todos do Código de Processo Civil e ainda, os princípios da adequação processual, gestão processual, da verdade material, do contraditório, prevalência da decisão de mérito, do direito à tutela jurisdicional (art. 20, nº 1, da CRP), do direito de acesso à justiça (art. 2º, CPC), da oficiosidade e da cooperação (art. 7º e 417º, CPC);
KK) A aqui apelante/autora não aceita, nem tão pouco concebe qual o alcance e a razão de tal decisão produzida nos presentes autos volvidos que foram 4 (anos) anos após a instauração da presente acção, vir a decidir pela absolvição da 2ª Ré (herança aberta por óbito de CC) por falta de personalidade judiciária, considerando, ainda, que mesma é uma excepção dilatória insuprível;
LL) Como resulta dos autos a Autora aquando da instauração da presente acção apenas conhecia do decesso relativamente a Dr. CC;
MM) Tão só conhecia da existência de cônjuge sobrevivo e descendentes, desconhecendo a concreta situação da referida herança, pelo que em função disso demandou a referida herança aberta por óbito de CC, enquanto parte a responder pelo direito reclamado pela Autora;
NN) Ao tempo da propositura da acção, a Autora não conhecia, nem tinha que conhecer, quem, no caso, haveria que responder na mesma acção, pois que, a apenas conhecia da existência de uma herança, desconhecendo, de todo, qual a situação da mesma, ou seja, se se encontrava jacente por falta da aceitação, ou numa situação de indivisão;
OO) Por requerimento datado de 22-11-2019, sob registo nº 24312733 veio a viúva de CC dar conhecimento que a mesma não era cabeça-de-casal da herança aberta por óbito de CC, pois que “esse cargo foi assumido pelo seu filho LL, conforme habilitação de herdeiros nº 1507/2017 de 31/03/2017 e documento de registo central de contribuintes juntos”;
PP) Tanto mais que, atento essa mesma informação nos autos, a Autora/aqui Recorrente ainda hoje continua a desconhecer a tal herança se mantinha e/ou, ainda, se mantem jacente;
QQ) A 2ª Ré, herança por óbito de CC na sua contestação apresentada pelo cabeça-de-casal, em 22-06-2020, sob ref. 35848215, nos seus artigos 32º e 33º veio, além do mais, invocar a ilegitimidade passiva da mesma herança nos termos do artigo 2091º, nº 1, do Código Civil e 577º, nº 1, al. e) do CPC;
RR) Nessa sobredita contestação apesar de invocar a referida ilegitimidade passiva da sobredita herança, nunca em lado algum esclarece/invoca expressamente que herança foi aceite por todos seus herdeiros, ou seja, que a mesma se não encontra na situação de jacente;
SS) Como bem é referido no citado Acórdão da Relação do Porto de 30-10-2007, nº convencional JTRP00040748, para que a herança por óbito de CC deixasse de ter personalidade judiciária, necessariamente, deveria encontrar-se apurado que a sobredita herança foi aceite por todos os seus herdeiros, o que no presente caso nunca aconteceu;
TT) Face à sobredita invocada ilegitimidade passiva da herança em causa, aquando da sua resposta às excepções invocadas pelos Réus (refª 39220466.), a Autora, como se impunha e à cautela, veio a suscitar o incidente de intervenção provocada dos herdeiros do de cujus CC, identificados na habilitação junta pela viúva (MM);
UU) Contrariamente ao que se encontra decidido, a 2ª Ré nos autos (herança por óbito de CC) tem personalidade judiciária, consequentemente é parte legítima para o prosseguimento da presente demanda, pois que não existe nos autos prova da aceitação da referida herança por de todos seus herdeiros, nos termos do preceituado nos artigos 2050º a 2058º do Código Civil;
VV) Relativamente a esta mesma questão, retém-se da Jurisprudência expressamente referida na sentença em crise que a mesma tem como pressupostos, relativamente às partes, posição inversa da dos presentes autos, pois que, nos ali aludidos autos trata-se de situações em que é apreciada e decidida a ilegitimidade ACTIVA de heranças, inversamente à situação dos aqui presentes autos, nos quais se apresenta tratada e decidida, de modo errado, quanto à ilegitimidade PASSIVA;
WW) Mas mesmo que assim não fosse entendido, o que não concebe nem se consente, sempre se dirá que nesta parte, contrariamente ao decidido pelo tribunal a quo, haveria que ser considerado a existência de excepção de ilegitimidade passiva (art. 577º, nº 1, al e), do CPC), que não, como se encontra decidido, uma dita “excepção dilatória insuprível”;
XX) Nos termos do estatuído nos artigos 316º, nº 1 e 318º, ambos do CPC, a excepção de ilegitimidade é passível de sanação através do incidente de intervenção provocada, o que, in casu, veio tempestivamente a ser requerido pela Autora, por seu requerimento de 21-06-2021 (refª 39220466);
YY) Mal andou tribunal de 1º Instância ao considerar que a 2ª Ré não goza de personalidade judiciária, quando dos autos nada consta e resulta que a sobredita herança não seja jacente por falta de aceitação de todos seus herdeiros;
ZZ) A decisão de 1ª Instância, veio a decidir que “Nos termos do disposto no art. 318.°, n.° 2, do CPC, julgo inadmissível o incidente de intervenção principal provocada passiva de MM, NN e LL (respetivamente, cônjuge e filhos do falecido CC)”, pelas razões já supra explicitadas, a decisão aqui recorrida, nesta parte, igualmente apresenta-se de todo sem qualquer fundamento, pois que os argumentos que a sustentam apresentam-se manifestamente despropositados, atento os princípios conformadores do nosso sistema jurídico, como seja, e nomeadamente, o da prevalência da decisão de mérito (art. 6º, nº 2, CPC), do direito à tutela jurisdicional (art. 20º, nº 1, da CRP), do direito de acesso à justiça (art. 2º, do CPC), da oficiosidade e da cooperação (art.s 6º, 7º e 411º, do CPC), os quais privilegiam a decisão de fundo em detrimento das questões formais, ainda, o princípio da economia processual que impõe que o resultado processual deve ser atingido com a maior economia de meios, aos quais acresce o princípio interpretativo do efeito útil;
AAA) O Tribunal a quo, tendo em conta que a Autora/ora recorrente, tempestivamente, veio deduzir o incidente de intervenção provocada dos herdeiros do de cujus CC, atento que foi a invocada excepção de ilegitimidade passiva da herança por óbito de CC, ainda caso aí se entendesse que a mesma era procedente - o que nunca se conceberia nem se consentiria -, necessariamente, - e aqui com todo o devido respeito -, em consideração ao dever de gestão processual (art.s 6º, nº 2 e 560º, nº 1, do CPC), deveria ter sido admitido o incidente intervenção provocada dos herdeiros da sobredita herança;
BBB) Atendendo à filosofia subjacente ao nosso CPC – a qual visa, sempre que possível, a prevalência do fundo sobre a forma, bem como a sanação das irregularidades processuais e dos obstáculos ao normal prosseguimento da instância, tendo em vista o máximo aproveitamento dos actos processuais – nos presentes autos, não se apresenta conforme à lei, a absolvição da instância, porquanto as pessoas (partes chamadas) que estão em juízo têm efectivamente legitimidade, tanto mais que foram tempestivamente chamadas para intervir no processo;
CCC) Sempre se dirá que, a não ser assim entendido, o espírito que se encontra subjacente ao CPC aponta igualmente para a conveniência de interpretar a petição inicial de modo a que a acção possa ser aproveitada, evitando a “absolvição da instância” por razões meramente formais e sem que tal justificação se vislumbre como efectivamente necessária;
DDD) O Tribunal a quo violou o princípio da justiça material, bem como os artigos 6°, n° 2 e 590°, nº 3, do CPC, ainda a filosofia subjacente ao nosso CPC – este que visa, sempre que possível, a prevalência do fundo sobre a forma -, neste mesmo sentido, atente-se ao Douto Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 10-01-2023, processo nº 11273/20.2T8LSB.L1-7 (acessível, na integra, na base do ITIJ, in http://www.gde.mj.pt/jtrlmf/.);
EEE) A decisão em crise, mais uma vez, nesta parte apresenta-se igualmente nula, por violação do princípio do contraditório, na vertente da proibição do contraditório;
FFF) No caso sub judice, em pleno respeito pelos sobreditos princípios, sobretudo o do contraditório, estatuído no art° 3°, n° 3, do CPC, impunha-se que a Senhora Juíz a quo, antes de decidir como decidiu, indicasse às partes, de forma expressa, clara e fundamentada, as razões pelas quais, em seu entender, a 2ª Ré (herança por óbito CC) carecia de legitimidade para os termos da causa;
GGG) Só assim a Senhora Juiz do tribunal a quo teria observado e feito cumprir, plenamente, os princípios estruturantes do processo civil, como os acima enunciados - o que ainda se reitera -, assegurando o contraditório, evitando uma decisão-surpresa que a sentença recorrida manifestamente configura;
HHH) O contraditório a conceder pela Senhora Juiz do tribunal a quo, para ser efectivo e condizente à lei – que não segundo o interesse de qualquer das partes -, nunca poderia, obviamente, ter-se limitado à singelíssima prolação do despacho de 15 de Outubro de 2021 (Refª 428346428), sendo que para o ser, tornava-se necessário que nele tivessem ficado claras e expressamente indicadas, sem margem para quaisquer mínimas dúvidas, as razões pelas quais a 2º Ré não podia ser demandada por falta de personalidade judiciária e, ainda, em que termos deviam os herdeiros ser chamados ao processo no âmbito do referido “incidente de intervenção provocada”;
III) Só assim e deste modo, a Julgadora em questão teria assegurado às partes a previsibilidade da decisão que se pretendia tomar, facultando-lhes a possibilidade de esgrimirem todos os argumentos que tivessem como válidos para rebaterem o entendimento da mesma Senhora Juiz a quo quanto a tal questão, o mesmo é dizer, só assim lhes teria assegurado o pleno exercício do direito ao contraditório e as pouparia ao confronto de uma decisão-surpresa;
JJJ) A decisão ora em crise, também nesta parte, é nula por excesso de pronúncia, nos termos do artigo 615º, nº 1, al. d), do Cód. Proc. Civil;
KKK) Atento todo o supra invocado/explicitado, deverá a decisão recorrida ser revogada, porquanto a mesma não fez o adequado enquadramento jurídico/factual do caso sub judice, assim, em frontal desrespeito à lei, à Doutrina e à Jurisprudência dominante;
LLL) O Tribunal a quo, tendo decidido como decidiu, por erro de interpretação, de aplicação do Direito e de determinação das normas aplicáveis, violou os artigos 2º, 3º, nº 3, 4º, 6º, nº 2, 7º, 411º, 417º, 590º, nº 3, 608º, nº 2, 615º, nº 1, al. d), todos, do CPC e, ainda, artigo 20º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa”.
Termina pedindo que o presente recurso seja julgado procedente e, consequentemente, alterada a sentença recorrida.
9- Os RR., BB, DD, EE e a Herança de CC, representada pelo respetivo cabeça de casal, LL, responderam, pugnando os três primeiros pela inadmissibilidade deste recurso, por a A. ter reproduzido nas conclusões supra transcritas a correspondente motivação e, em qualquer caso, todos eles, pela improcedência de tal recurso, por não serem de acolher as razões nele esgrimidas.
10- Recebido o recurso nesta instância, importa dizer, antes de mais, que nem as conclusões supra transcritas reproduzem integralmente a motivação que as antecede, nem mesmo que assim fosse isso implicaria, a nosso ver, a rejeição de tal recurso. Apenas daria lugar ao convite à sintetização de tais conclusões – artigo 639.º, n.º 3, do Código de Processo Civil (CPC) – o que no caso não se justifica, pois que são facilmente apreensíveis as questões a solucionar e o referido convite só serviria para o protelamento inútil do andamento do processo.
Deste modo, não se considera haver, neste aspeto, qualquer obstáculo à apreciação do mérito deste recurso. Nem noutro aspeto qualquer.
11- Assim, preparada que está a deliberação, importa tomá-la.
*
II- Mérito do recurso
1- Definição do seu objeto
Como é sabido, esse objeto é delimitado, em regra e salvo, designadamente, as questões de conhecimento oficioso, pelas conclusões das alegações do recorrente [artigos 608º, nº 2, “in fine”, 635º, nº 4, e 639º, nº1, do Código de Processo Civil (CPC)].
Assim, tendo em consideração este critério, importa decidir, neste caso concreto, se:
a) A sentença recorrida é nula por violação do princípio do contraditório, na vertente da proibição de decisões-surpresa;
b) A herança aberta por óbito de CC tem personalidade judiciária e deve ser admitida a intervenção provocada de todos os herdeiros do autor dessa herança;
c) A petição inicial não é inepta e, padecendo de alguma insuficiência, deve a A. ser convidada a aperfeiçoá-la.
*
2- Tendo presentes as ocorrências descritas no relatório que antecede – que são as únicas relevantes para a resolução destas questões – vejamos, então, como soluciona-las:
Comecemos pela dita violação do princípio do contraditório.
Neste campo, queixa-se a A., ora Apelante de não ter sido previamente ouvida sobre as exceções conhecidas na sentença recorrida e de, nessa medida, essa sentença constituir para si uma decisão surpresa, o que a tornaria nula.
Ora, é manifesto que a A. não tem razão.
Na verdade, como já demos conta no relatório supra exarado, em resultado do despacho proferido no dia 31/05/2021, foi facultado à A. o exercício do contraditório sobre as exceções deduzidas pelos RR. (entre as quais a ineptidão da petição inicial e a ilegitimidade de alguns deles) e por despacho subsequente, datado de 06/09/2021, foi determinada, entre o mais, a notificação da A. para se pronunciar, querendo, sobre o “eventual conhecimento da falta de personalidade judiciária da herança demandada”, o que a mesma fez, embora só alegando que “já tomou posição aquando da sua resposta às excepções deduzidas pelos Réus”.
Assim, não podem restar quaisquer dúvidas de que não foi violado o dito princípio. Nem, consequentemente, há razões para julgar nula a sentença recorrida, por esse motivo.
Daí que, sem necessidade de maiores desenvolvimentos, se julgue improcedente este fundamento do recurso.
Passemos ao seguinte; isto é, saber se a herança aberta por óbito de CC, tem personalidade judiciária.
Na sentença recorrida, entendeu-se que não. Isto porque, em resumo, aquela já tinha sido aceite pelos respetivos herdeiros.
A Apelante, no entanto, não concorda com este ponto de vista, uma vez que – alega - “não existe nos autos prova da aceitação da herança por de todos seus herdeiros”.
Ora, não é assim. A habilitação de herdeiros junta aos autos no dia 02/11/2021– de que a A. teve oportuno conhecimento – demonstra, a nosso ver, a referida aceitação. Pelo menos, da parte da cabeça de casal, que a outorgou.
É que a aceitação não tem de ser necessariamente expressa. Pode ser tácita, ou seja, pode-se deduzir de factos que com toda a probabilidade a revelem (artigo 217.º, n.º 1, do Código Civil). E isso pode suceder com a habilitação de herdeiros promovida por algum deles, como foi o caso presente.
Assim, a partir dessa aceitação, a referida herança deixou de ser jacente. O que tem naturais implicações para a sua presença em juízo, como parte.
Com efeito, enquanto a herança não for aceite nem declarada vaga para o Estado, a mesma é qualificada como jacente (artigo 2046.º, do Código Civil). E nesse estado tem personalidade judiciária; ou seja, pode ser parte em juízo, o que lhe confere a possibilidade de demandar ou ser demandada (artigos 5.º, n.º1, e 6.º, al. a), 1.ª parte, do CPC)[3].
Todavia, a partir do momento em que é aceite, isto é, a partir do momento em que o sucessor manifesta (expressa ou tacitamente) a sua vontade no sentido de tornar seus os direitos e obrigações que foram transmitidos por lei ou por testamento, a herança deixa de estar jacente. Deixa de estar jacente, portanto, a partir do momento em que “nalgum documento escrito o sucessível chamado à herança declara aceitá-la ou assume o título de herdeiro com intenção de a adquirir” (artigo 2056.º, n.ºs 1 e 2, do Código Civil) ou quando a referida vontade se deduz de factos que, com toda a probabilidade, a revelam[4]. Pode não estar partilhada, que é como quem diz, indivisa, mas essa circunstância não lhe permite estar, só por si, em juízo. “[N]a verdade, se já ocorreu aceitação da herança, o contraditório deve estabelecer-se necessariamente com os herdeiros que já a aceitaram, apesar de ainda se não ter procedido à respectiva liquidação e partilha, sem prejuízo dos casos excepcionais em que a lei substantiva atribui poderes de administração e, portanto, de representação em juízo ao cabeça-de-casal (arts. 2088.º e 2089.º do CC)”[5].
De modo que se pode concluir que, no caso presente, a herança do referido, CC, tendo já sido aceite, não tem personalidade judiciária (aliás, já não tinha à data em foi instaurada esta ação (13/10/2019), pois que a habilitação de herdeiros é anterior – está datada de 31/03/2017), nem, consequentemente, pode manter-se como parte nesta ação.
Surge, então, a questão de saber se, em lugar dela, podem passar a figurar os seus titulares, ou seja, os herdeiros do já referido, CC, provocando a intervenção dos mesmos, como a A. pretende.
E a resposta não pode deixar de ser também negativa: A falta de personalidade judiciária é insuscetível de ser suprida, por essa via. Como refere Abrantes Geraldes[6], citando o Aresto do STJ de 14/11/1986, (BMJ 361, pág. 478): “a falta de personalidade judiciária não tem remédio”, sendo em princípio insanável, salvo em situações muito especiais, nomeadamente a que vem prevista no artigo 8.º do CPC[7]/[8].
Não sendo caso, pois, de verificação destas últimas hipóteses nos autos, a absolvição da referida Ré, com tal fundamento, tem pleno apoio legal.
Questão diversa seria a de algum dos seus herdeiros já figurar nos autos como parte, em nome próprio. Nessa hipótese, a questão já não seria apenas de ausência de personalidade judiciária da herança, mas, sim, de ilegitimidade daquele herdeiro para prosseguir sozinho na qualidade de demandado, que poderia ser suprida mediante intervenção provocada dos demais herdeiros[9].
Mas não é esse o caso dos autos. Nenhum dos titulares dessa Ré foi demandado em nome próprio, na qualidade de herdeiro da mesma, e, consequentemente, absolvida aquela da presente instância, mais ninguém resta do lado passivo para os ditos titulares se associarem.
Como tal, também nesta parte, não pode deixar de ser confirmada solução adotada na sentença recorrida.
E não se diga, como alega a A., que ignorava a referida habilitação de herdeiros. Aliás, diz continuar a desconhecer se a aceitação da dita herança teve lugar.
Ora, nem este último argumento colhe face àquela habilitação, nem a ignorância anterior pode servir de pretexto para contornar as consequências e dispositivos legais já indicados. Até porque era ónus da A., antes de propor esta ação, recolher os elementos necessários para a completa identificação das partes e qualidade em que devem intervir.
Por conseguinte, face a tudo o já exposto, a sentença recorrida, na parte em que absolveu a herança do já referido, CC, da presente instância e em que recusou a intervenção principal dos seus herdeiros, não pode deixar de ser confirmada.
Resta a questão da ineptidão da petição inicial.
Neste âmbito, a sentença recorrida começou por analisar separadamente os pedidos enunciados sob as alíneas A), B), C) e E) [que são os que ainda restam, depois do despacho proferido no dia 15/10/2021].
E concluiu que o pedido deduzido na al. A) é ininteligível, por indeterminado.
“Os pedidos deduzidos nas als. B) e C), além de padecerem da mesma ininteligibilidade decorrente da indeterminabilidade dos atos a que se referem, mostram-se ainda ininteligíveis por não se alcançar qual é o efeito jurídico pretendido com o pedido de condenação dos réus a “conhecer a ilicitude dos actos praticados pelos demandados BB e seu então colega de escritório Dr. CC””.
E o pedido enunciado na al. E) é igualmente ininteligível, uma vez que “não há qualquer concreta identificação dos registos de propriedade cujo cancelamento é peticionado como decorrência da nulidade de atos (que atos? Que registos? E de que maneira a nulidade dos atos (que atos) determina a nulidade dos registos de propriedade (que registos de que propriedade?)”.
Resumindo: de acordo com a referida sentença, é manifesta “a ininteligibilidade dos pedidos deduzidos, sendo que tal ininteligibilidade nem sequer permite ao tribunal apreender quais são os efeitos jurídicos que a autora, através da presente ação, pretende obter.
Acresce ainda a falta de causa de pedir como suporte do pedido de declaração de nulidade substantiva (de atos que não se sabe quais são), e uma verdadeira inconcludência entre os factos alegados e os ininteligíveis pedidos deduzidos”.
Será assim?
Vejamos.
Recordemos, para melhor compreensão, os pedidos em apreço.
Na al. A), pede a A. para “serem declarados nulos os actos praticados pelo 1º Réu BB e seu então colega de escritório, Dr. CC (aqui representado pela 2ª Ré herança aberta por óbito de CC), nos autos de inventário sob nº 3402/08.0TBVLG, tramitados pelo Tribunal Judicial de Valongo, com todas as legais consequências”;
Na al. B), pede para “serem condenados o 1º Réu BB e a 2ª Ré herança aberta por óbito de CC, a conhecer a ilicitude dos actos praticados no âmbito dos sobreditos autos, tudo nos termos e conforme vem alegado nos artigos 4º a 63º” da petição inicial;
Na al. C) pede ainda para “serem condenados os 3º, 4º, 5º e 6º Réus, DD e marido EE, FF, GG e mulher HH, II e marido JJ, a conhecer a ilicitude dos actos praticados pelos demandados BB e seu então colega de escritório, Dr. CC, no âmbito dos sobreditos autos, tudo nos termos e conforme vem alegado nos artigos 4º a 63º”, da petição inicial;
E, na al. E), pede que “seja ordenado – face à ilicitude dos sobreditos actos praticados pelo 1º Réu BB e seu então colega de escritório, Dr. CC, enquanto advogados, nos termos e conforme vem alegado nos artigos 4º a 63º supra todas as legais consequências-, o cancelamento dos registos de propriedade efectuados pelos, ou em nome destes Réus DD e marido EE, FF, GG e mulher HH, II e marido JJ”.
O principal argumento usado na sentença recorrida para julgar inepta a petição inicial é, como vimos, que estes pedidos são ininteligíveis. Ininteligíveis por serem indeterminados os atos concretos que a A. reputa de ilícitos e pretende ver declarados nulos; e ininteligível ainda a pretensão de cancelamento de registos sem estarem concretizados quais sejam eles. Aliás, prossegue a mesma sentença, também há falta de causa de pedir por não terem sido concretizados os atos que servem de suporte ao pedido de declaração de nulidade substantiva.
Ora, nenhuma destas faltas de concretização, a nosso ver, implica a ineptidão da petição inicial. Isto porque, em bom rigor, não há falta de causa de pedir, nem de pedidos. O que há é uma causa de pedir e pedidos deficientemente formulados. E, quando assim é, o remédio é o convite ao seu aperfeiçoamento (artigo 7.º, n.º 2, e 590.º, n.º 4, do CPC).
A causa de pedir, na verdade, corresponde ao facto jurídico, simples ou complexo, mas sempre concreto, que serve de fundamento ao efeito jurídico pretendido; é, no fundo, o facto ou conjunto de factos que desencadeiam as consequências jurídicas peticionadas.
Por isso mesmo, um dos seus principais requisitos é a sua inteligibilidade.
Diz-se ininteligível a causa de pedir quando, de todo, não seja possível perceber quais os factos que a constituem. Ou, dito por outras palavras, quando não seja possível apreender o fundamento fáctico da ação ou de um concreto pedido. E isso, porque a exposição desse fundamento é de tal modo obscura, confusa ou ambígua que não é possível compreender, no todo ou em parte, o seu sentido[10].
Equivale, assim, à falta absoluta de causa de pedir; ou seja, acarretam, ambas, a ineptidão da petição inicial (artigo 186.º, n.º 2, al. a), do CPC).
“Importa, porém, não confundir a petição inepta com a petição simplesmente deficiente. Claro que a deficiência pode implicar a ineptidão: é o caso de a petição ser omissa quanto ao pedido ou causa de pedir; mas aparte esta espécie, daí para cima são figuras diferentes a ineptidão e a insuficiência da petição. Quando a petição, sendo clara e suficiente quanto ao pedido e à causa de pedir, omite factos ou circunstâncias necessários para o reconhecimento do direito do autor, não pode taxar-se de inepta; o que então sucede é que a acção naufraga”[11].
E o mesmo se diga do pedido. A falta de pedido também determina a ineptidão da petição inicial (artigo 186.º, n.º 2, al. a), do CPC). Mas já não a determina o pedido deficiente. Ou mesmo um pedido genérico formulado fora do condicionalismo legal (artigos 556.º, do CPC). Quando assim é, “tratando-se de um vício suscetível de sanação, o efeito de absolvição da instância (art. 278, n.º 1, al. e)) deve ficar reservado para os casos em que o autor não proceda à reformulação do pedido, na sequência de convite para tal (arts. 6, n.º 2, e 590, n.2, al. a))[12].
Ora, no caso, como se reconhece na sentença recorrida, a A. limitou-se a formular pedidos genéricos. Seja no que diz respeito à declaração de nulidade dos atos “praticados pelo 1º Réu BB e seu então colega de escritório, Dr. CC (…), nos autos de inventário sob nº 3402/08.0TBVLG, tramitados pelo Tribunal Judicial de Valongo” e de reconhecimento da ilicitude dos mesmos por parte dos outros RR., seja quanto ao “cancelamento dos registos de propriedade efectuados pelos, ou em nome destes Réus DD e marido EE, FF, GG e mulher HH, II e marido JJ”.
Em nenhuma destas hipóteses, concretiza a A. de que atos ou registos se trata. Mas devia fazê-lo.
De modo que, em razão de tudo o já exposto, a consequência deve ser o convite à A. para proceder a essa concretização e não a absolvição da instância dos RR. quanto a tais pedidos, devido à ineptidão da petição inicial, como se decidiu na sentença recorrida.
E o mesmo se diga quanto ao alegado conluio entre todos os RR. no sentido de, alegadamente, promoverem os seus ilegítimos interesses. Também nesta parte, embora a A. alegue esse conluio (cfr. v.g. artigos 40.º, 55.º e 81.º da petição inicial), não o concretiza factualmente, circunstanciando-o no tempo e no espaço. Ora essa concretização é indispensável para se poder concluir não só pela alegada ilicitude dos atos praticados em nome da avó materna da A. (KK), mas também pela alegada distorção que houve em relação à vontade da mesma, nos termos em que pretensamente a havia manifestado ao seu mandatário, o 1.º R, BB.
Assim, pois, o aperfeiçoamento da petição inicial é inevitável, quer quanto aos pedidos, quer quanto à causa de pedir.
Já quanto à alegada ininteligibilidade dos pedidos por pretensamente não se alcançarem “quais são os efeitos jurídicos que a autora, através da presente ação, pretende obter”, entendemos que esse vício não ocorre. A A. refere esses efeitos expressamente: pretende que os atos já referenciados sejam declarados nulos, bem como, no fundo, que sejam cancelados os registos do direito de propriedade neles apoiados. Se estes pedidos são ou não de julgar procedentes, é uma questão de mérito. Mas que são compreensíveis no seu significado, não temos dúvidas. Como tal, não colhe este argumento.
Em resumo: improcede este recurso quanto à nulidade imputada à sentença recorrida e quanto à absolvição da herança aberta por óbito de CC, da presente instância, mas já procede no que diz respeito à ineptidão da petição inicial decretada, com a consequente necessidade de endereçar à A. um convite de aperfeiçoamento da petição inicial, quanto à causa de pedir e pedidos formulados, nos termos supra exarados.
*
III- Dispositivo
Assim, pelas razões expostas, acorda-se em:
1- Conceder parcial provimento ao presente recurso e, revogando parcialmente a sentença recorrida, na parte em que absolveu os RR. da instância, por ineptidão da petição inicial, determina-se que se convide a A. a aperfeiçoar a petição inicial, quanto aos pedidos e causa de pedir, nos termos supra indicados.
2- Quanto ao mais, nega-se provimento a este recurso e confirma-se a sentença recorrida em tudo o mais impugnado.
*
- Em função deste resultado, as custas deste recurso serão pagas pela A. e pelos RR./Apelados, na proporção de ½ para cada uma das partes-artigo 527.º, n.ºs 1 e 2, do CPC.

Porto, 10/10/2023
João Diogo Rodrigues;
Márcia Portela
Fernando Vilares Ferreira
___________________
[1] Absolvidos da instância por despacho proferido no dia 06/09/2021.
[2] De que estes RR. foram absolvidos, na parte correspondente à respetiva instância, pelo despacho antes indicado.
[3] Cfr. Ac. STJ de 12/09/2013, Processo n.º 1300/05.9TBTMR.C1.S1, consultável em dgsi.pt.
Esta extensão da personalidade a uma entidade desprovida de personalidade jurídica é justificada por um critério de separação patrimonial – Neste sentido, Rita Lobo Xavier, Inês Folhadela e Gonçalo Andrade e Castro, Elementos de Direito Processual Civil, Teoria, princípios e Pressupostos, 2ª Edição, UCP, pág.177.
[4] Neste sentido Rabindranath Capelo de Sousa, Lições de Direito das Sucessões, II, Coimbra Editora, 1980/1982, pág. 29.
[5] Lopes do Rego, Comentários ao Código de Processo Civil, 2.ª ed, pág. 41.
[6] Temas da Reforma do Processo Civil, 2.º Volume, Almedina, 1997, pág. 68.
[7] No mesmo sentido, cfr. Antunes Varela e Outros, Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, 1985, pág. 116.
[8] Cfr. no mesmo sentido, o Ac. RC de 28/05/2013, Processo n.º 325/09.0TBCTB.C2, consultável em www.dgsi.pt
[9] Cfr. neste sentido, Acs. RC de 16/11/2010, Processo n.º 51/10.7TBPNC.C1 e de 28/05/2013, Processo n.º 325/09.0TBCTB.C2, ambos consultáveis em www.dgsi.pt.
[10] Cfr. neste sentido, Ac RG de 24/04/2012, Processo n.º 2281/11.5TBGMR.G1, consultável em www.dgsi.pt, bem como a doutrina aí referida.
[11] Neste sentido se pronuncia, por exemplo, Alberto dos Reis, Comentário ao Código de Processo Civil, Vol. 2.º, Coimbra Editora, pág. 372.
[12] António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Almedina, pág. 618.
No mesmo sentido, João de Castro Mendes e Miguel Teixeira de Sousa, Manual de Processo Civil, Vol. II, AAFDL, pág. 83.