Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0222011
Nº Convencional: JTRP00037149
Relator: MARQUES DE CASTILHO
Descritores: FIEL DEPOSITÁRIO
DEPOSITÁRIO
NULIDADE
Nº do Documento: RP200409210222011
Data do Acordão: 09/21/2004
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: PROVIDO.
Área Temática: .
Sumário: I - O depositário judicial é um auxiliar da justiça, ao qual incumbe, para determinados fins processuais, a guarda e administração de certos bens, à ordem e sob a superintendência do tribunal.
II - Cessada a causa que deu razão à sua nomeação, impõe-se ao tribunal as diligências necessárias da notificação da cessação do seu vínculo independentemente da notificação às partes.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto

Relatório

Nos autos de providência cautelar não especificada, inicialmente instaurada perante a -ª Vara Cível da comarca.... em que é requerente
B....., Ldª
e requeridos
C..... e
D..... Ldª,
cuja pretensão se traduziu na apreensão de bens constantes e melhor identificados na p.i., das marcas nacional H... e H..J... foi, na sequência da inquirição de testemunhas arroladas pela requerente, sem audiência prévia da parte contrária, ordenada a requerida apreensão dos bens da ora agravante, conforme despacho de 11 de Junho de 2001, de fls. 53 a 59.
Tal despacho foi cumprido pelo Serviço Externo do qual resultou a apreensão dos bens como se lê do respectivo auto de f1s. 174, lavrado em 19/06/01, onde se verifica que além do mais foi consignado o seguinte que se passa a reproduzir:
“Os bens apreendidos as verbas nºs 2 e 3, ficam neste acto entregues à representante da requerente, já trás indicada E....., a qual nomeei depositaria tendo-lhe declarado que ficam à sua guarda e que deve apresentá-los quando lhe for exigido. Faço constar também que a depositária reside na Rua....., Edifício....., .....”.

Sucede que, posteriormente, foi decidido pelo Tribunal “a quo”, conforme despacho de fls. 282, que o mesmo era materialmente incompetente para conhecer dos autos e em consequência se absolveram as requeridas da instância tendo decretado "o levantamento da providência" após o trânsito do referido despacho.
Esta sentença de que a requerente da providência recorreu, foi todavia confirmada por Acórdão desta Relação do Porto inserto nos autos de fls. 372 a 377 proferido em 4/4/2002.
Tal decisão conforme se extrai dos autos apenas foi notificada às partes e não em concreto à pessoa da depositária supra indicada.
Na sequência desta decisão veio a requerida D....., Ldª peticionar a entrega dos bens que haviam sido anteriormente apreendidos requerendo no Tribunal a quo que:
“…. se digne ordenar a E....., depositária dos bens referidos (verba 2 do auto de apreensão), a entrega dos bens apreendidos neste Tribunal no prazo de 10 dias, sob o efeito e cominações legais”
A fls. 398 dos autos aludidos e na sequência do referido requerimento foi proferido o despacho do seguinte teor:
“A presente providência cautelar foi levantada por decisão transitada em julgado.
Tal significa que a depositária dos bens apreendidos deixou de possuir título legítimo que lhe permita manter-se na posse dos bens apreendidos.
Porém a diligência requerida excede o âmbito dos presentes autos, posto que se aquela depositária não fizer a entrega dos bens apreendidos voluntariamente a quem de direito (a pessoa que os possuía antes destes serem apreendidos) então caberá à última mover-lhe acção competente com vista a obter a satisfação do seu direito, não sendo estes autos os idóneos à realização dessa finalidade.
Nessa sequência indefiro o requerido a fls. 391 e 392.”

Inconformada com o seu teor veio a requerida D..... Ldª interpor o presente recurso admitido como de agravo a subir imediatamente nos próprios autos e com efeito suspensivo tendo nas alegações oportunamente apresentadas aduzido a seguinte matéria conclusiva que se passa a transcrever:

Conclusões:
1ª A figura do depositário na providência com fim à apreensão de bens tem as mesmas características do depositário no processo executivo;

2ª Pelo que, por analogia deve ser aplicável as obrigações gerais previstas no CC. como se prevê no artigo 843°, por remissão do artigo 855°, e as especiais mencionadas no disposto no artigo 854° todos do CPC.

3ª Competindo por via disso ao tribunal notificar o depositário do levantamento da providência e consequente obrigação de entrega dos bens a sua guarda, a quem o tribunal designar, no local que o mesmo julgar adequados.

4ª Em caso de incumprimento do ordenado competirá ao tribunal proceder nos termos do disposto no n°2 do artigo 854°.
5ª Pelo que o tribunal "a quo" não notificando a depositária, nem ordenando a entrega dos bens, omite uma formalidade prescrita na lei que impede a decisão da causa.
6ª Devendo o tribunal "ad quem" julgar tal decisão nula nos termos do artigo 201° do CPC, e em consequência ser a depositária notificada do levantamento da providência com a obrigação de entregar os bens apreendidos à agravante, no prazo e local indicados pelo mesmo.
7ª Deverá por último ser ordenada a devolução dos documentos apreendidos conforme foi requerido para cumprimento da decisão de fls...., sob pena de omissão de um acto que deve ser praticado pelo Tribunal, que impede a acção da justiça.”
Não foram apresentadas contra alegações.
O Exmº Magistrado do Tribunal a quo proferiu despacho tabelar de sustentação do decidido.
Colhidos que se mostram os vistos legais dos Exmºs Juízes Adjuntos, após se terem desenvolvido diversas diligências perante a renúncia ao mandato do Exmº Mandatário da requerida cumpre decidir.

THEMA DECIDENDUM
A delimitação objectiva do recurso é feita pelas conclusões das alegações dos recorrentes, não podendo este Tribunal decidir sobre matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam do conhecimento oficioso, art. 684 nº3 e 690 nº1 e 3 do Código Processo Civil como serão todas as outras disposições legais infra citadas de que se não faça menção especial.

A questão que está subjacente e em apreciação no âmbito do presente recurso traduz-se em apreciar se foram pelo Tribunal a quo violados os referidos preceitos legais omitindo uma formalidade que a lei prescreve ao não ordenar à depositária nomeada a devolução e entrega dos bens bem como dos documentos na oportunidade apreendidos.

DOS FACTOS E DO DIREITO
A factualidade de relevância para a decisão encontra-se supra transcrita no relatório pelo que importa apreciar a questão à luz de tais pressupostos.
Assim o que se verifica é que depois de se haver procedido à apreensão de bens melhor identificados por ordem judicial, no âmbito do mencionado processo de providência cautelar com entrega à pessoa da depositária nomeada, após vicissitudes processuais já supra elencadas, o Tribunal que proferiu a decisão de apreensão dos bens, julgou-se incompetente em razão da matéria, tendo decidido posteriormente em consonância a absolvição da instância dos requeridos, e consequentemente, ordenado, após o trânsito da mesma, o levantamento de tal apreensão.
Tal facto ocorreu apenas após a prolação do Acórdão deste Tribunal sendo certo que tal aresto não foi notificado pessoalmente à pessoa da referida depositária nomeada mas apenas e tão só às partes.
Vejamos.
A figura do depositário surge em diversos institutos e situações judiciárias sendo a grande maioria das vezes um particular que colabora temporariamente com o tribunal assumindo o papel de um verdadeiro auxiliar da Justiça [Vide A. dos Reis in Processo de execução pág. 136 e segs.]
O ilustre processualista refere mesmo a seu tempo que perante a omissão da lei designadamente no que concerne às providências cautelares relativamente a tal figura de depositário “… e em quaisquer outros em que haja depositário judicial deve entender-se que os direitos, poderes, obrigações e responsabilidades do depositário são os que, a propósito da penhora, o Código fixa nos artigos apontados.”
E mais refere ainda que o legislador aproveitou o ensejo da penhora para caracterizar a figura jurídica do depositário devendo a esse modelo recorrer-se, salvas disposições especiais, todas as vezes que se depare com e entidade depositário judicial referindo que os trabalhos preparatórios mostram que foi esse o pensamento do legislador.

O depositário apresenta-se hoje, fruto das mais recentes alterações legislativas, designadamente a nível do processo executivo, ainda como uma entidade parajudicial, compartilhando características próprias de um oficial público como no caso do solicitador de execução, todavia não é essa a situação dos autos nem tão pouco a sua possível equiparação.
A figura do depositário é um auxiliar da justiça, ao qual incumbe, para determinados fins processuais, a guarda e administração do certos bens, à ordem e sob a superintendência do tribunal, distinguindo-se a figura do que é igualmente caracterizado na lei civil como resultante do contrato de depósito.
Em primeiro lugar, na origem deste depositário está um contrato, ao passo que na origem do depositário judicial está uma investidura feita pelo juiz ou indicação da secretaria (cfr. art. 839.°); em segundo lugar, os poderes e deveres do depositário judicial são, em grande parte, diversos dos do depositário convencional dado que este é essencialmente um guarda e aquele além de guarda é administrador e, porque o é, está sujeito ao regime geral dos administradores de bens alheios, regime que tem a sua expressão mais característica na obrigação de prestação de contas (cfr. artigo 843º)
Dispõe o artigo 843º nº 1 que incumbe ao depositário para além dos deveres gerais de depositário [Cfr. artigo 1187º do Código Civil.] o dever de administrar os bens com a diligência de um bom pai de família e com a obrigação de prestar contas traduzindo-se como é bom de ver na falta de caracterização legal como “actos de mera administração” referindo a doutrina que nele se incluem actos de conservação e de frutificação normal, mas não os que alterem a própria substância do património administrado ou que importem a substituição duns bens por outros.
Dentre os deveres do depositário relativamente aos bens móveis figura entre outros o de apresentar os bens quando tal lhe for ordenado ( cfr. artigo 854º nº 1) designadamente, no caso do processo executivo, para serem mostrados aos eventuais compradores interessados na sua aquisição submetendo-se, caso o não faça no prazo que lhe for estipulado e não justifique a respectiva falta, ao arresto nos seus próprios bens que garantam o valor do depósito e das custas sendo movida, no próprio processo, execução bem como igualmente se sujeitando a um eventual procedimento criminal pela prática de abuso de confiança ou pela pratica do crime de descaminho ou destruição de objectos colocados sob o poder público.

A diferenciação deste regime é igualmente evidenciada por A. dos Reis in ob. cit. quando refere a natureza de regime legal mantida entre nós relativamente ao facto de o depositário não poder, ou melhor, não ter a faculdade de aceitar ou recusar o cargo, mas sim de ser obrigado a assumir tal função, sem prejuízo é claro do direito de pedir escusa, o que se verifica apenas em determinadas condições e que tem de ser aceite e apreciado sempre pelo tribunal bem como igualmente de sujeitar ao eventual regime de remoção do cargo por incumprimento ou falta aos deveres especiais de que está incumbido definindo tal regime na esteira de Liebman [Processo de execução pág. 200 nota 10] dizendo: “Parece preferível considerar a aceitação simples condição de eficácia do acto de nomeação, que é acto executivo e cria, só por si, a relação jurídica de depósito; se assim não fosse, não se entenderia a possibilidade de revogação ou substituição do depositário por parte do juiz” por contrária à defendida por Carnelutti e termina apelando para o princípio geral da colaboração que se encontrava plasmado no artigo 524º hoje 266º.
Note-se que, mesmo na circunstância de o depositário poder ser o próprio executado, ou no caso, por exemplo, o requerente ou o requerido da providência, os deveres que lhe são inerentes não se confundem com a sua qualificação ou titularidade dos bens sobre os quais é encarregado do exercício de tal munus ou encargo, porque fica sempre sujeito ao regime próprio e especifico dos depositários, perdendo a livre fruição e a livre disposição desses bens; se os detém a título de depositário, há-de guardá-los e administrá-los à ordem do tribunal, como faria qualquer outro depositário e a final há-de prestar contas da sua administração tendo de apresentar os bens quando forem exigidos, sob pena de incorrer nas sanções próprias que a lei comina.
Em harmonia com o que fica exposto, a figura do depositário desenha-se assim: é um auxiliar da justiça, ao qual incumbe, para determinados fins processuais, a guarda e administração do certos bens, à ordem e sob a superintendência do tribunal.
Ora, foi no cumprimento da decisão do Tribunal desta Relação que confirmou a decisão do Tribunal "a quo", "levantamento da providência decretada" que a agravante se defrontou com a impossibilidade de poder obter o cumprimento do que foi ordenado na medida em que, cessando os efeitos e verificada a incompetência material do Tribunal, o que é facto é que a relação processual estabelecida relativamente à figura do depositário nomeado manteve-se, concretamente porque lhe não comunicada por qualquer meio a sua cessação, e, assim sendo também e forçosamente o vinculo constituído perante o tribunal, sendo certo que apenas esta entidade tem competência para pôr termo a tal vínculo processual.
Igualmente, sendo certo que foi ordenado o levantamento da providência, ou seja, a apreensão dos bens e documentos decretada, o que é facto é que se torna necessário repor a situação criada como se não houvesse sido a mesma ordenada, dado que se interferiu por via judicial na esfera jurídica das partes na pretensão da resolução do diferendo judiciário gerado represtinando os seus efeitos, e assim o significado da expressão levantamento da providência não pode ter outro significado que não esse mesmo ainda que não seja essa a questão que nestes autos nos ocupa mas apenas e tão só a relativa à pessoa da depositária judicialmente nomeada.
No âmbito das suas funções e deveres, pelo que supra foi exposto, é, salvo o devido respeito pela opinião contrária emitida, de se lhe exigir que apresente os bens que lhe foram confiados na referida qualidade de depositária e de que foi incumbida pelo poder judicial do mesmo aquela se não podendo eximir por outra forma que não seja pelos já referidos e que nos dispensamos de reproduzir.
O contrário ou seja, não exigir o Tribunal no âmbito dos poderes que lhe assistem como órgão de soberania o cumprimento das obrigações que lhe são inerentes e independentemente das responsabilidades que lhe são próprias e eventualmente exigíveis noutra sede seria demitir-se enquanto tal do referido poder.
Foi perante o Tribunal que se constituiu enquanto tal na obrigação de depositária com os direitos e deveres que lhe são inerentes e assim sendo necessariamente que tem de ser este mesmo órgão a repor a situação gerada como se não tivesse sido ordenada verificado que se mostra o citado vício que foi declarado devendo para o efeito e na prossecução de tal escopo ordenar a notificação da depositária para proceder à entrega dos bens no local que considere próprio e na exequibilidade completa da decisão proferida, dando satisfação eventualmente aos direitos que possam ser exigidos por aquela em termos de prestação de contas.
Cessada como cessou a razão da providência ou melhor ordenado o seu levantamento necessariamente que se impunha e impõe a notificação da depositária da cessação do seu vínculo independentemente da notificação às partes porque só através desse acto judicial se operam os respectivos efeitos que lhe são inerentes sendo certo que como se referiu o depositário desconhece, porque não lhe foi comunicado pelo Tribunal, que a providência foi levantada e por consequência que deveria proceder à entrega dos bens à agravante.

Essa decisão foi transmitida coo se evidencia dos autos apenas à requerente da providência, na pessoa do seu mandatário, e não à depositária que é uma pessoa diversa daquela.
Finalmente e no que concerne à questão da entrega dos documentos apreendidos e que constituem a verba nº 1 que ficaram juntos em anexo ao processo é linear que não se constatando processualmente a existência de despacho que haja tido incidência sobre tal pretensão na conformidade aliás do decidido se omitiu um acto que a lei não permite e que atempadamente se mostra invocado pela requerente.

DELIBERAÇÃO
Nestes termos em face do que vem de ser exposto concede-se provimento ao interposto recurso de agravo revogando o despacho proferido pelo Tribunal a quo devendo proceder à sua substituição por outro em deferimento do requerido e consequentemente ordenando à depositária nomeada, sob as cominações legais, que proceda à entrega dos bens que lhe foram confiados conforme auto de apreensão bem como igualmente a restituição dos pretendidos documentos juntos aos autos em consonância e obediência à decisão proferida.
Sem custas.

Porto, 21 de Setembro de 2004
Augusto José Baptista Marques de Castilho
Maria Teresa Montenegro V C Teixeira Lopes
Emídio José da Costa