Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0510372
Nº Convencional: JTRP00038252
Relator: MARQUES SALGUEIRO
Descritores: LICENÇA DE USO E PORTE DE ARMA
Nº do Documento: RP200506290510372
Data do Acordão: 06/29/2005
Votação: MAIORIA COM 1 VOT VENC
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Área Temática: .
Sumário: Não tendo ainda sido (e enquanto não for) publicado o Regulamento a que se refere o art. 2º da Lei 22/97, de 7 de Junho, que manda submeter a exame médico e a testes psicotécnicos os requerentes de licença de uso e porte de arma de caça, de precisão e de recreio, a falta dessa licença não integra a prática do crime p. e p. pelo art. 6º, n.º 1 da referida Lei.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam na Relação do Porto:

Na Comarca da....., o Mº Pº requereu o julgamento, em processo comum e por tribunal singular, do arguido B....., com os sinais dos autos, imputando-lhe a prática de um crime p. e p. pelo artº 6º, nº 1, da Lei nº 22/97,de 27 de Junho, na redacção conferida pelo artº 2º da Lei nº 98/2001, de 25 de Agosto, porquanto detinha em sua casa uma espingarda de caça que se encontrava devidamente manifestada e registada, mas relativamente à qual o arguido não renovara a respectiva licença de uso e porte, no período de 1/1/2002 a 20/11/2003, nem possuía licença para deter tal arma no seu domicílio nesse período de tempo.
Porém, o Mmº Juiz a quem os autos foram distribuídos, pronunciando-se nos termos do artº 311º do C. P. Penal, rejeitou a acusação, considerando-a manifestamente infundada, já que, em seu entender, a conduta imputada ao arguido não constituía crime.

É desta decisão que, inconformado, o Mº Pº trouxe o presente recurso, encerrando a respectiva motivação nos termos seguintes:
1. Ao não receber a acusação por a considerar manifestamente infundada a decisão recorrida violou os artº 311º do C. P. Penal e 6° da Lei n° 22/97, de 27 de Junho, com a redacção que lhe foi dada pelo artº 2º da Lei n° 98/01, de 25 de Agosto.
2. Ao rejeitar a acusação fez uma interpretação restritiva desse art. 6°, decidindo que este tipo legal apenas se aplica aos casos em que o agente não era detentor de licença de uso e porte de arma porque nunca a tinha obtido e não já aos casos em que a licença havia caducado sem que o agente procedesse à sua renovação.
3. A perigosidade inerente a uma e outra situação é idêntica;
4. O bem jurídico em causa no tipo legal em apreço e que consiste no controle por parte do Estado do contingente de armas em circulação e de quem as detém em seu poder, por forma a que se saiba que armas existem e que pessoas as detêm, está igualmente violado num e noutro caso;
5. Os elementos lógico e gramatical da Lei n° 22/97 não permitem a distinção feita na decisão recorrida;
6. Ao exigir o preenchimento de certos requisitos para a renovação da licença de uso e porte de arma e ao estabelecer um prazo de duração de tal licença, o legislador procurou o controle por parte do Estado das pessoas que detêm armas, equivalendo a situação de falta de licença à situação de caducidade da mesma por falta da sua renovação.
7. Entende-se, por isso, que os factos que constam da acusação integram a prática do crime de detenção ilegal de arma, p. p. pelo artº 6º, n° 1, da Lei n° 22/97, de 27.6, com a redacção que lhe foi dada pela Lei n° 98/01, de 25.8, pelo que a decisão em causa deve ser revogada e substituída por outra que receba a acusação.

Não houve resposta e, nesta Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido do provimento do recurso, parecer a que, notificado nos termos do artº 417º, nº 2, do C. P. Penal, o arguido não respondeu.
Cumpridos os vistos, cabe decidir.
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A questão que se coloca consiste em saber se comete o crime de detenção ilegal de arma, p. e p. pelo artº 6º, nº 1, da Lei nº 22/97, de 27 de Junho, aquele que na sua residência detém uma arma de fogo de caça sem ter renovado a respectiva licença de uso e porte de que era titular, deixando transcorrer o período de tempo para o qual essa licença tinha validade.

Sob a epígrafe “Detenção ilegal de arma”, o artº 6º da Lei nº 22/97, de 7 de Junho, dispõe no seu nº 1 (redacção dada pela Lei nº 98/2001, de 25 de Agosto) que “quem detiver, usar ou trouxer consigo arma de defesa ou de fogo de caça não manifestada ou registada, ou sem a necessária licença nos termos da presente lei, é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias”.
Traduziu-se a alteração conferida por essa Lei nº 98/2001 em dois pontos: a) a introdução de um nº 2, tipificando também as situações de transmissão de arma a quem não tenha para ela a licença prevista na Lei nº 22/97; b) o alargamento da previsão do nº 1 às “armas de fogo de caça”, sendo que, na sua redacção anterior e originária, o artº 6º apenas contemplava a detenção ilegal de armas de defesa.
No que concerne à concessão e renovação de licenças de uso e porte de armas de caça, o artº 2º - sob a epígrafe “Armas de caça, precisão e recreio” – da Lei nº 22/97 (preceito que foi sucessivamente alterado pelas Leis nº 93-A/97, de 22 de Agosto, e 29/98, de 26 de Junho), no que ora mais importa quanto à concessão e renovação das licenças de uso e porte de arma de caça, tem agora a redacção seguinte, decorrente daquela Lei nº 29/98:
“1. As licenças de uso e porte de arma de caça, bem como de precisão e de recreio, podem ser concedidas aos interessados que preencham, cumulativamente, as seguintes condições:
a) Se encontrem em pleno uso de todos os direitos civis e políticos;
b) Não tenham sido alvo de medidas de segurança ou condenados judicialmente pelos crimes previstos no nº 3 do artigo 1º;
c) Se submetam a exame médico e a testes psicotécnico e de perícia adequados e cumpram as suas exigências, nos termos a definir em regulamento.
2. …………………………….
3. …………………………….
4. A renovação das licenças de uso e porte de arma fica condicionada à verificação das condições referidas no nº 1 deste artigo.
5. Constitui ainda fundamento de recusa de renovação das licenças de uso e porte de arma a condenação pelos crimes referidos no nº 5 do artigo anterior.
6. …………………………….”.

Assim, nos termos do preceito, é, nomeadamente, condição para a obtenção, seja originária, seja por renovação, das licenças de uso e porte de armas de caça, a sujeição do interessado a exame médico e a testes psicotécnico e de perícias adequados e o cumprimento das suas exigências, nos termos a definir em regulamento – al. c) do nº 1.
E, conforme o nº 1 do citado artº 6º, o tipo legal aí definido, na parte que ora nos interessa, requer que a detenção, uso ou porte da arma de defesa ou de fogo de caça se verifique “sem a necessária licença nos termos da presente lei”.
Ora, essa “necessária licença nos termos da presente lei” não prescinde da verificação cumulativa das condições referidas no nº 1 do artº 2º, entre elas a da al. c), ou seja, a sujeição a exame médico e testes psicotécnico e de perícia e cumprimento das suas exigências.
Mas que exame e testes e quais as exigências a satisfazer não o diz a lei, já que, nessa parte, remete para oportuno regulamento a definição dos respectivos termos.
Regulamento que, até ao presente, que saibamos, não foi elaborado e publicado.
O que, a nosso ver, é aqui fulcral, pois que, para se poder ter como preenchido o tipo legal de crime em questão, nos falta, assim, esse elemento essencial que é o de saber que licença se exige, que pressupostos ou condições é, afinal, preciso satisfazer.
Tudo vale por dizer que, logo na vertente do princípio da tipicidade, não temos especificados na lei, em termos claros e suficientes, os factos ou segmentos em que o tipo legal de crime em causa se há-de desdobrar; sem o que, logo à luz do nº 1 do artº 1º do C. Penal, o facto, consoante consta daquele nº 1 do artº 6º da Lei nº 22/97, de 27 de Junho, não pode ser criminalmente punido.
Assim sendo e seguro que, à luz da legislação anterior a esta Lei nº 22/97, o facto em apreço não constituía crime, logo por aquele fundamento se conclui que o recurso do Mº Pº não merece provimento, devendo a decisão recorrida ser confirmada.
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Acorda-se, pois, em negar provimento ao recurso do Mº Pº, confirmando-se a decisão recorrida que rejeitou, por manifestamente infundada, a acusação pública deduzida contra B......
Sem tributação.
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Porto, 29 de Junho de 2005
José Henriques Marques Salgueiro
Manuel Joaquim Braz
Élia Costa de Mendonça São Pedro (Vencida conforme declaração que se junta:
Votei vencida. Por concordar inteiramente com o Ex.mo Procurador - Geral Adjunto, nesta Relação, daria provimento ao recurso, pelos fundamentos constantes do projecto de acórdão, e que são os seguintes:
(…) não obstante a longa argumentação do despacho recorrido, julgamos que o mesmo não está certo, precisamente por não querer ver o óbvio. Como disse o Ex.º Sr. Procurador-geral adjunto nesta Relação (e muito bem), “Parece-me óbvio que ter uma licença caducada é o mesmo que não ter licença”.
A caducidade traduz-se, juridicamente, na cessação de produção de efeitos. A licença é o título jurídico de onde emergem determinados efeitos. Logo, uma licença caducada deixa de ser licença, pois deixa de titular a produção dos respectivos efeitos jurídicos – a questão é elementar.
Acresce que a leitura que o despacho recorrido faz do art. 65º do Dec.Lei 37313, de 21-02-1949, é manifestamente desconforme à sua letra e espírito. Na verdade, onde a lei refere o uso das armas pelos indivíduos autorizados ao uso e porte de arma “fora das condições estabelecidas neste regulamento”, o despacho recorrido lê (ou melhor subsume) o uso de armas, depois de caducada a licença. Ora, quando a lei refere “os indivíduos autorizados ao uso e porte de arma que delas usarem…”, está a referir-se aos indivíduos com licença de uso e porte de arma eficaz.
A licença é um acto administrativo incluído na categoria dos actos permissivos, tradicionalmente definido como o acto pelo qual um órgão da Administração atribui a alguém o direito de exercer uma actividade privada que é por lei relativamente proibida (FREITAS DO AMARAL, Curso de Direito Administrativo, Vol II, pág. 257). Daí que, quando a lei se refere aos indivíduos autorizados ao uso e porte de arma, está a referir-se aos titulares de licença eficaz.
A infracção tipificada no citado art. 65º do referido Dec. Lei 37313, de 21/2/49, compreendia apenas a prática de uma actividade licenciada “fora das condições estabelecidas no regulamento”. O erro do despacho recorrido foi, assim, o de confundir condições de exercício de um direito, com condições de aquisição desse direito. Como parece evidente, uma coisa é exercício de uma actividade, sem licenciamento e outra, muito diferente, é o exercício da actividade licenciada, em desconformidade com o âmbito do licenciamento – e daí toda a confusão subsequente que culminou com o despacho a rejeitar a acusação.
Os argumentos sobre a harmonia do sistema, expendidos na decisão recorrida, são completamente inócuos, uma vez que para a questão da tipicidade penal só interessa saber se os factos da acusação cabem na descrição do tipo.
É, assim, manifesto que o despacho recorrido não pode manter-se: a detenção de uma das armas previstas no art. 6º da Lei 22/97, de 27 de Junho, com a licença caducada, cabe claramente no tipo, designadamente no conceito “sem a necessária licença”.
No mesmo sentido decidiu esta Relação, no Acórdão de 20/10/2004, Proc. 0442806 (proferido em recurso de idêntico despacho, da mesma comarca).
Impõe-se, assim, conceder provimento ao recurso interposto pelo MP (…)”.

Resta acrescentar que a tese que logrou vencimento reconduzindo ao preenchimento do tipo legal a questão de saber “que licença se exige, que condições ou pressupostos é, afinal, preciso satisfazer”, não me parece (salvo o devido respeito) a melhor.
É certo, como se diz na posição que fez vencimento, que o tipo legal exige, além do mais, a falta da “necessária licença nos termos da presente lei” (art. 6º da Lei 22/97, de 7 de Junho). O art. 2º da mesma Lei diz-nos além do mais, como requisito da concessão da licença de uso e porte de arma, o interessado se submeta a exame … “nos termos a definir em regulamento”. E, até hoje, não foi proferido tal regulamento.
Contudo, a falta da publicação do regulamento é apenas a falta de uma condição para se poder exigir o exame médico e testes psicotécnicos. Isto é, em termos técnico-jurídicos, a falta da verificação da condição suspensiva impede a verificação dos efeitos jurídicos que se pretendiam fazer valer, isto é a exigência do referido requisito. Enquanto não for publicado o regulamento não é, assim, exigível o requisito da alínea c) do art. 1º, do n.º 2 da lei 29/98. E, deste modo, uma licença “nos termos da presente lei” é uma licença concedida sem prévio exame médico ou testes psicotécnicos.

Esta interpretação decorre ainda do disposto no art. Artigo 8.º da Lei 22/97, na redacção que lhe foi dada pela Lei 93/A/97, de 22 de Agosto, e que foi a seguinte:
“[...]
1 - A presente lei entra em vigor no prazo de 10 dias, produzindo plenamente os seus efeitos com a publicação da regulamentação nela prevista”.

Deste especial regime de aplicação no tempo decorre a meu ver que a falta de publicação do Regulamento não inviabiliza a aplicação da lei na sua totalidade. Antes da publicação do Regulamento a Lei não produz todos os efeitos, ou seja, não produz os efeitos, cuja Regulamentação seja uma condição de eficácia.)