Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0345083
Nº Convencional: JTRP00035889
Relator: TORRES VOUGA
Descritores: ATESTADO FALSO
COMPARTICIPAÇÃO
ILICITUDE NA COMPARTICIPAÇÃO
Nº do Documento: RP200403170345083
Data do Acordão: 03/17/2004
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Área Temática: .
Sumário: Uma pessoa que não tenha as qualidades referidas no artigo 260 do Código Penal de 1995 pode ser co-autora do crime aí previsto.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam, em audiência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:

Os arguidos A...... e B ............ foram submetidos a julgamento, perante tribunal singular, no ..... Juízo de Competência Especializada Criminal da Comarca de ..........., sob acusação do MINISTÉRIO PÚBLICO, sendo-lhes imputada a prática, em co-autoria, de um crime de falsificação de documento p. e p. pelo artº. 256º, nº 1, alíneas a) e b), do Código Penal.
Realizado o julgamento, foi proferida sentença que, operando a convolação da qualificação jurídica nela contida, julgou a acusação procedente por provada, e, em consequência, no que ora releva, decidiu:
a) condenar o arguido A ............., pela prática de um crime de atestado falso p. e p. no art.º 260º, nº 1, do Cód. Penal, na pena de 180 (cento e oitenta ) dias de multa à taxa diária de Esc. 3.000$00 ( três mil escudos );
b) condenar o arguido B ......., pela prática de um crime de atestado falso p. e p. no art.º 260º, nº. 1 do Cód. Penal, na pena de 180 (cento e oitenta) dias de multa à taxa diária de Esc. 3.000$00 (três mil escudos);
Inconformado com esta sentença, dela recorreu o arguido B .........., tendo esta Relação, por Acórdão proferido em 5/6/2002, concedido parcial provimento ao recurso e, em consequência, anulado a sentença recorrida, não só em relação a ele como também em relação ao co-arguido A........, e ordenado a reabertura da audiência de julgamento, a fim de lhes ser dado conhecimento da possibilidade de convolação da co-autoria de um crime de falsificação de documento p. e p. pelo art. 256.º, n.º 1, als. a) e b), do Cód. Penal para o de co-autoria (ou autoria) de um crime de atestado falso p. e p. no art. 260º, n.º 1 do Cód. Penal, nos termos do artº. 358º , nºs. 1 e 3, do CPP.
Em cumprimento do deliberado nesse aresto, o processo baixou à 1ª Instância, tendo aí, depois de reaberta a audiência, sido dado cumprimento ao disposto no cit. artº 358º, nºs 1 e 3, do CPP, na sequência do que os arguidos requereram prazo para preparação da defesa (o que lhes foi concedido).
Uma vez produzida a prova posteriormente indicada pelos Arguidos (à excepção da audição das testemunhas por eles oferecidas mas depois prescindidas e do requerido exame, pelo Delegado de Saúde, da Delegação de Saúde de ......, dos indivíduos identificados nos 22 atestados médicos mencionados na acusação – pretensão que o tribunal a quo indeferiu), veio a ser proferida nova sentença que, operando a convolação da qualificação jurídica nela contida, julgou a acusação procedente, por provada, e, em consequência, decidiu:
“a) condenar os arguidos A .......... e B ..........., pela prática, em co-autoria, de um crime de atestado falso p. e p. no art. 260º, nº 1, do Cód. Penal, na pena de 180 (cento e oitenta) dias de multa à taxa diária de € 15 (quinze euros) e € 12, 50 (doze euros e cinquenta cêntimos), o que perfaz a multa de € 2700 (dois mil e setecentos euros) e € 2 250 (dois mil duzentos e cinquenta euros), respectivamente;
b) condenar cada um dos arguidos em três UCs de taxa de justiça, acrescida de 1%, nos termos do nº 3 do art. l4º do Dec.-Lei nº 423/91, de 30/10 e nas demais custas do processo, fixando-se a procuradoria em 1/4 da taxa de justiça devida”.
Ainda irresignado, o Arguido B ........... recorre novamente para esta Relação, agora da 2ª sentença condenatória, rematando a sua motivação com as seguintes conclusões:
“1 - A prova produzida nos autos atinente à pessoa do recorrente e atrás integralmente transcrita, impunha a sua absolvição porquanto:
- é inexistente a prova de um qualquer acordo entre os arguidos para a emissão de atestados médicos sem o exame dos candidatos à obtenção da carta de condução;
- é inexistente a prova de que o recorrente tivesse qualquer intervenção directa ou indirecta nos exames os contactos efectuados entre o co-arguido Dr. A ..... e os candidatos à obtenção e na enússão dos subsequentes atestados médicos;
- não é aceitável que se exigisse do recorrente que interferisse por qualquer forma nos procedimentos usados pelo co-arguido para a emissão dos aludidos atestados. Aliás, apenas o médico sabe avaliar que tipo de procedimento é suficiente e adequado à verificação que lhe é solicitada.

2 - Ainda que se verificasse a prática do crime pelo co-arguido Dr. A ...., o que não se concebe e apenas como hipótese de raciocínio se coloca, nunca o recorrente poderia ser punido como co-autor do crime p. e p. no n.º 1 do artigo 260º do C.P., enquanto "crime próprio", porquanto:
- dos autos não resulta a prova de qualquer dos requisitos da comparticipação criminosa sob a forma de co-autoria, ou seja, decisão e execução conjuntas; atenta a especificidade do tipo legal quanto à pessoa do agente, nunca o recorrente podia ser punido pelo citado crime porquanto não possuía nenhuma das profissões, nem exercia nenhuma das funções descritas no tipo legal.
3- A sentença recorrida, pelas razões atrás resumidas, violou as disposições legais constantes dos artigos 385º, ns. 1 e 3 do C.P.P., 355º, nº. 1 do C.P.P., 124º e 127º do C.P.P., e 26º do C.P.”.


O MINISTÉRIO PÚBLICO respondeu à motivação apresentada pelo Arguido B ......., pugnando pela improcedência do recurso por este interposto e extraindo da sua contra-motivação as seguintes conclusões:
“1 . A prova produzida em audiência é suficiente para sustentar a matéria vertida sob os nºs 1 a 11 da sentença em sede de factos provados ;
2. Apesar de o recorrente não possuir as qualidades funcionais exigidas pelo tipo de ilícito de "Atestado falso", é juridicamente concebível, por força do disposto no art. 28º do C. Penal, a sua co-autoria no crime em apreço ;
3. E da concreta matéria dada como provada resulta que a sua actuação se subsume a tal forma de comparticipação : decisão e execução conjuntas;
4. Em conformidade, a sentença recorrida não violou nenhuma disposição legal, designadamente o disposto nos artigos 385º, n.ºs 1 e 3; 355º, n.º 1; 124º e 127º do CPP e 26º do CP.”.


Nesta instância, o MINISTÉRIO PÚBLICO emitiu parecer igualmente no sentido da improcedência do recurso interposto pelo Arguido.
Colhidos os vistos e efectuada a audiência prevista nos arts. 421º, nºs 1 e 2, e 429º do CPP, cumpre apreciar e decidir.

FACTOS CONSIDERADOS PROVADOS NA SENTENÇA RECORRIDA

A sentença recorrida considerou provados os seguintes factos:

“1 - O arguido A ........... é médico de profissão, possuindo um consultório próprio na Rua .......... , ....., e é assistente graduado no Hospital de S. João e no Centro de Saúde da ....... .

2 - O arguido B ............ é sócio e Director Técnico da Escola de Condução ........, sita na Rua ........., .........., ...... .

3 - Por razões de amizade que une o primeiro arguido ao segundo arguido, bem como a um sócio dessa escola já falecido, C ........, aquele acordou com estes passar atestados médicos necessários à actividade dessa Escola de Condução, sem receber qualquer contrapartida monetária.

4 - No âmbito desse acordo os dois arguidos combinaram entre si que o primeiro arguido passaria os referenciados atestados sem fazer os respectivos exames médicos.

5 - Na sequência desse mesmo acordo o arguido passava com certa regularidade, pelo menos duas vezes por semana, ao fim da tarde, nas instalações da Escola de Condução.

6 - Tal acordo perdurou durante um período de tempo que não foi possível apurar com precisão, mas que remonta, pelo menos a 29/10/96 e que se prolongou, pelo menos até 31/12/97, e no âmbito do qual o 1º arguido subscreveu um número indeterminado de atestados médicos, mas seguramente não inferior a 20, para efeitos da condução de veículos.

7 - Estes atestados eram enviados à Direcção Geral de Viação, atestando que, também pelo menos 20 candidatos à condução de veículos, que eram clientes da referida Escola, não apresentavam alterações de visão e tinham aptidão física e mental para a condução de veículos automóveis ou de motociclos, consoante os casos, sem restrições .

8 - O 1º arguido subscreveu os referidos 20 atestados sem ter efectuado exame médico específico, pelo menos a 18 das pessoas cujos nomes deles constam, o que fazia com o conhecimento e o consentimento do 2º arguido .

9 - O 1º arguido ao assinar os referenciados atestados sem fazer o respectivo exame médico e o 2º arguido ao ter conhecimento e consentir tal facto, admitiram como possível que o teor de algum desses atestados não corresponderia à verdade e que, consequentemente, alguma(s ) pessoa(s) não tinha(m ) aptidão para a condução de veículos automóveis ou de motociclos ou teriam restrições (tais como óculos de correcção).

10 - Sabiam ainda ambos os arguidos que, desta forma, lesavam o interesse do Estado, pondo em causa a segurança rodoviária e a credibilidade das instituições .

11 - Os arguidos agiram livre voluntária e conscientemente, de comum acordo e em conjugação de esforços na prossecução de um plano que previamente haviam delineado, sabendo que toda a sua conduta era proibida por lei .

12 - O 1º arguido conhecia um número indeterminado de alunos da referenciada escola, em número seguramente não inferior a 13.

13 - Alguns dos alunos dessa escola, pelo menos 2, são ou foram recentemente doentes do 1º arguido no Centro de Saúde da ..... ou em consulta de medicina privada.

14 - Pelo menos relativamente a estes últimos, o arguido tem conhecimento que eles não sofrem de anomalia física ou mental que impeça ou limite o exercício da condução .

15 - O 1º arguido remeteu, pelo menos, dois candidatos que apresentavam patologias impeditivas ou limitativas ( claudicavam ostensivamente ) do exercício da condução ao Delegado de Saúde.

16 - O arguido A ........... exerceu durante cerca de 15 anos as funções de médico militar, realizando as inspecções médicas respectivas, recebendo pelos serviços prestados louvor militar.

17 - Exerceu funções no Centro de Saúde da ....... durante cerca de 30 anos, observando cerca de 1000 doentes por mês .

18 - O 1º arguido aufere o salário de € 1845, 55 (Esc. 370 000$00) - € 1 496, 39 (300.000$00) no Hospital de S. João e € 349, 16 (70 000$00) no Centro de Saúde da ...... - , a sua esposa é doméstica e tem dois filhos estudantes a seu cargo .

19 - O 2º arguido aufere o salário de Esc. 200 000$00 (€ 997, 60 ), retira de rendimentos da escola de Condução de que é sócio Esc. 500 000$00/600 000$00 (€ 2493, 99/ 2992, 79 ), anuais tem dois filhos estudantes a seu cargo e tem como habilitações literárias o 6º ano de escolaridade.

20 - Os arguidos não têm antecedentes criminais.”

FACTOS NÃO PROVADOS:

O Tribunal a quo considerou não provados os restantes factos com interesse para a decisão da causa, designadamente que:
“1. no âmbito do acordo mencionado nos nºs 3 a 5 supra, o 1º arguido tenha subscrito mais de 600 atestados médicos ;
2. o 1º arguido estivesse presente diariamente entre as 19 e 20 horas na escola de condução acima referenciada ;
3. o 1º arguido conheça todos os alunos dessa Escola;
4. e tivesse conhecimento se todos eles sofrem ou não de anomalia física que impeça ou limite o exercício da condução;
5. a grande maioria dos alunos daquela escola de condução sejam seus clientes (do 1º arguido) em consulta de medicina privada;
6. pelo menos 18 das pessoas a que se reportam os 20 atestados médicos mencionados tenham aptidão física e mental para a condução de veículos automóveis;
7. as mesmas pessoas não padeçam de alterações de visão;
8. o 1º arguido, sem proceder ao respectivo exame médico, detecte com facilidade qualquer deficiência física ou mental;
9. o 1º arguido emitisse os mencionados atestados sem receber qualquer retribuição”.

MOTIVAÇÃO DA DECISÃO DE FACTO:

O Tribunal recorrido fundamentou do seguinte modo a sua convicção:

a) Quanto aos factos que considerou provados:
“O tribunal baseou a sua convicção na apreciação crítica e conjugada das declarações dos arguidos, dos depoimentos das testemunhas D ............, E ........, F ......., G ........, H ........, I ........., J .............., L .......... , M......, N ............, O ......, P .........., Q ............, R ..........., S ..........., T .............., U .........,V ............, X ........, Z ......., A1 ......., B1 ........, C1 e D1 ..............., na informação de fls. 7 e documentos de fis. 11 a 20, 22 a 24 e 26 a 32 ( sendo que os atestados de fis. 21 e 25 são repetidos).
O primeiro arguido afirmou, no essencial, que por razões de amizade que o unia aos sócios da Escola de Condução em questão, especialmente ao sócio já falecido C ..........., acordou com eles, há cerca de 6 a 7 anos, emitir os atestados médicos necessários à actividade dessa escola. Na sequência desse acordo dirigia-se regularmente à escola em causa ao fim da tarde, pelo menos às terça e sextas-feiras, onde, por norma, ao balcão da respectiva recepção questionava os alunos se viam bem ou tinham alguma deficiência física, assinando depois o respectivo atestado .
Mais afirmou que a circunstância de conhecer os alunos, designadamente por alguns deles serem seus doentes, aliada à sua larga experiência profissional lhe permitia verificar com muita facilidade se os mesmos padeciam de alguma deficiência que impedisse ou limitasse o exercício da condução, circunstância que reafirmou após a abertura da audiência nos termos supra expostos e que lhe permite concluir que os atestados em causa são verdadeiros.
As declarações do 2º arguido foram, no essencial, coincidentes com as declarações daquele, designadamente no que conceme ao acordo referido.
Declarou, no entanto, este arguido que raramente se encontrava no interior da Escola de Condução em causa e que por tal motivo não tinha conhecimento preciso como todos os exames se processavam, afirmando que apenas ouviu algumas vezes o 1º arguido a questionar os alunos se designadamente viam bem, o que ocorria na recepção da Escola em causa.
Sucede, porém, este arguido tinha conhecimento que os alegados exames eram sempre feitos na sede da Escola de Condução em causa e que o 1º arguido não possuía ali qualquer compartimento específico para esse efeito, bem como não tinha ali instrumentos adequados, nomeadamente para realizar os respectivos exames oftalmológicos .
Quanto ao facto de o arguido não proceder aos respectivos exames médicos o tribunal atendeu também ao depoimento de todas as testemunhas ouvidas, que foram alunos da Escola de Condução em causa há cerca de 6/7 anos e que foram unânimes em afirmar que o 1º arguido nunca lhes efectuou qualquer exame médico na escola em causa.
Relativamente a essa circunstância (de o primeiro arguido não proceder aos respectivos exames médicos) e embora o lº arguido tenha referido que face à sua larga experiência profissional era suficiente para a emissão dos atestados médicos em causa as perguntas que efectuava, entendemos que tal forma de proceder nunca poderá integrar o conceito de exame médico, designadamente, no que se refere ao necessário exame oftalmológico para o qual são necessários instrumentos e objectos adequados.
Por seu turno, convém salientar que apenas as testemunhas D ........, G......, L ........., R ........, Z ............., A1 ........ e B1...... afirmaram que o 1º arguido os questionou sobre se, designadamente, viam bem e se padeciam de alguma doença, sendo que, em regra, tais perguntas eram feitas na recepção da escola em questão e, por vezes, na sala onde efectuavam os testes de código.
Importa ainda referir que, para além destas testemunhas, apenas as testemunhas I .........., V ..........., C1 .......... e D1 ............., H ...... e S ..........., admitiram conhecer o arguido, sendo que a testemunha V .............. afirmou que embora frequentasse as aulas de código sempre ao fim da tarde, por volta das 18 horas, nunca viu o primeiro arguido na referida escola.
Cumpre também anotar que a testemunha U ............ afirmou peremptoriamente que apenas teve aulas de condução e, por tal motivo, nunca teve necessidade de entrar no edifício da Escola de Condução, concluindo-se que nunca teve contacto com o lº arguido.
Relativamente aos factos descritos nos nºs 13 e 14 o tribunal atendeu aos depoimentos das testemunhas H ........ e S ........., que afirmaram que o primeiro arguido era seu médico de família e a segunda acrescentou que o consulta, em regra, duas vezes, por ano.
No que concerne aos descritos sob o nº 15, o tribunal atendeu aos depoimentos das testemunhas C1 .......... e D1 ..........., que afirmaram que o arguido, após os ter questionado e devido à circunstância de padecerem de uma deficiência física visível (claudicam ostensivamente), remeteu-os para o Delegado de Saúde competente.
Quanto à situação económica e familiar dos arguidos e demais circunstâncias pessoais, foram preponderantes as suas declarações, sendo que em relação ao primeiro arguido foi ainda considerado o documento de fls. 171 .
No que concerne aos antecedentes criminais, o tribunal teve em consideração os C.R.Cs. de fls. 117 e 118.”

b) Quanto aos factos que considerou não provados:
“Relativamente aos factos não provados o tribunal atendeu à circunstância de não se ter produzido prova convincente sobre os mesmos, sendo certo que, quanto aos descritos sob o n.º 4, consideramos que não são suficientes as meras declarações do 1º arguido e das testemunhas em causa, designadamente no que se refere às alterações de visão ( necessidades de óculos de correcção) e, em relação aos factos descritos no nº 9, na circunstância dos arguidos terem reconhecido que o primeiro recebia em contrapartida algumas prendas, nomeadamente, no Natal e Páscoa, e que os filhos daquele tiraram a carta de condução na Escola em questão sem a terem pago.”

O MÉRITO DO RECURSO DO ARGUIDO B ..........

Como se sabe, é pelas conclusões que o recorrente extrai da sua motivação que se determina o âmbito de intervenção do tribunal ad quem, sem prejuízo para a apreciação de questões de oficioso conhecimento e de que ainda se possa conhecer [Cfr., neste sentido, o Ac do STJ de 3/2/99 (in BMJ nº 484, pág 271); o Ac do STJ de 25/6/98 (in BMJ nº 478, pág 242); o Ac do STJ de 13/5/98 (in BMJ nº 477, pág 263); SIMAS SANTOS/LEAL HENRIQUES (in “Recursos em Processo Penal”, p. 48); GERMANO MARQUES DA SILVA (in “Curso de Processo Penal”, vol. III, 2ª ed., 2000, p. 335); JOSÉ NARCISO DA CUNHA RODRIGUES (in “Recursos”, “Jornadas de Direito Processual Penal/O Novo Código de Processo Penal”, 1988, p. 387); e ALBERTO DOS REIS (in “Código de Processo Civil Anotado”, vol. V, pp. 362-363).] [«São só as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões da respectiva motivação que o tribunal ad quem tem de apreciar» (GERMANO MARQUES DA SILVA, ibidem). ]
No caso sub judice, as questões essenciais suscitadas pelo ora Recorrente (nas conclusões da sua motivação) são as seguintes:
1) Se o tribunal a quo avaliou incorrectamente a prova produzida em julgamento ao considerar provado que o recorrente e o co-arguido A ............ tivessem acordado entre si que este emitisse os referidos atestados sem fazer os respectivos exames médicos e ao dar como assente que o lº arguido subscreveu os atestados médicos juntos aos autos sem ter efectuado exame médico específico às pessoas cujos nomes deles constam;
2) Se, ainda mesmo que o co-arguido A ............. tivesse cometido o crime de atestado falso por que foi condenado, nunca se verificaria no caso concreto o duplo requisito exigido para a punição do ora recorrente como co-autor desse crime, visto o tipo legal em causa exigir uma especial qualidade do agente (ser médico, dentista, parteira, dirigente ou empregado de laboratório ou de instituição de investigação que sirva fins médicos ou pessoa encarregada de fazer autópsias) que o recorrente não possui.

A) A impugnação da matéria de facto.

Como flui do disposto no artº 428º, nº1, do CPP, os Tribunais da Relação conhecem de facto e de direito, o que significa que, em regra, e quanto a estes Tribunais, a lei não restringe os respectivos poderes de cognição.
Assim sendo, e de harmonia com o preceituado no nº 1 do artº 410º do mesmo diploma, os recursos para eles interpostos podem ter como fundamento quaisquer questões de que pudesse conhecer a decisão recorrida e também, de acordo com os nºs 2 e 3 do mesmo preceito, os vícios que em tais números se arrolam (insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, erro notório na apreciação da prova e nulidade que não deva considerar-se sanada).
Dito em síntese, isto quer dizer que os Tribunais da Relação são hoje os tribunais por excelência e, em princípio, os únicos com poderes de cognição irrestritos em matéria de recursos, apenas com a ressalva de que, no âmbito da matéria de facto, o seu poder cognoscitivo pressupõe que a prova produzida em audiência de 1ª instância tenha sido gravada e constem dos autos as transcrições dos respectivos suportes técnicos (cfr. artºs 412º, nºs 3 e 4 do CPP).
Questão diferente desta é, porém, a de saber como devem os Tribunais da Relação exercer estas competências cognoscitivas em matéria de recursos. Ou dito de forma mais concreta, saber qual a latitude dos seus poderes no âmbito do conhecimento de matéria de facto.
Embora as Relações gozem, em princípio, de um amplo poder de cognição, este fica desde logo limitado pelas conclusões da motivação do recorrente, sabido como é que são estas que definem e balizam o objecto do recurso (cfr. o artº 412º, nº 1, do CPP). Ou seja: o recorrente pode condicionar o âmbito da reapreciação que pede, restringindo-o, por exemplo, a uma determinada parte da decisão, desde que com observância das regras limitativas inscritas no artº 403º daquele Código.
Isto sem prejuízo de o tribunal de recurso poder e dever conhecer oficiosamente de qualquer dos vícios indicados nos nºs 2 e 3 do artº 410º do CPP - conforme se decidiu no Acórdão de fixação de jurisprudência nº 7/95, de 19/10/1995 (publicado in Diário da República, I Série-A, de 28 de Dezembro do mesmo ano e também in BMJ nº 450, p. 72).
Outra questão bem diferente, mas conexa com esta, reside em saber se as Relações podem, por sua própria iniciativa ou sob impulso do recorrente, apoiando-se na extensibilidade do princípio da livre apreciação da prova aos tribunais de recurso, alterar a matéria de facto dada como provada pelos tribunais de 1ª instância.

Ora, nesta sede, «não se concebe como seja possível, sem outros instrumentos que não sejam as transcrições das gravações da prova produzida em audiência, formar uma convicção diferente e mais alicerçada do que aquela que é fornecida pela imediação de um julgamento oral, onde, para além dos testemunhos pessoais, há reacções, pausas, dúvidas, enfim, um sem número de atitudes que podem valorizar ou desvalorizar a prova que eles transportam» [Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 9/7/2003, proferido no Proc. nº 02P3100 e relatado pelo Conselheiro LEAL HENRIQUES, cujo texto integral pode ser consultado no site http://www.dgsi.pt. ]
Efectivamente - tal como se salientou no Ac. da Relação de Coimbra de 3 de Outubro de 2000 [in Col. de Jurispª. 2000, tomo 4º, pág. 28] -, a garantia do duplo grau de jurisdição não subverte o princípio da livre apreciação das provas que está deferido à 1ª instância, sendo que, na formação da convicção do julgador, entram necessariamente elementos que em caso algum podem ser importados para a gravação da prova, por mais fiel que ela seja. Na formação da convicção do juiz não intervêm apenas elementos racionalmente demonstráveis, mas também elementos intraduzíveis e subtis, tais como mímica e todo o aspecto exterior do depoente e mesmo as próprias reacções quase imperceptíveis do auditório, que vão agitando o espírito de quem julga.
Transcrevendo a lição de CASTRO MENDES, este aresto põe ainda em evidência que «existem aspectos comportamentais ou reacções dos depoentes que apenas podem ser percepcionados, apreendidos, interiorizados ou valorizados por quem os presencia e que jamais podem ficar gravados ou registados para aproveitamento posterior por outro tribunal que vá reapreciar o modo como no primeiro se formou a convicção do julgador».

O que é necessário e imprescindível - mais se adianta nesse acórdão (desta feita à luz da doutrina de MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA) - é que, no seu livre exercício de convicção, o tribunal indique os fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade daquela convicção sobre o julgamento do facto como provado ou não provado. Donde - remata-se no mesmo aresto - o que o tribunal de segunda jurisdição vai à procura, não é de uma nova convicção, mas de saber se a convicção expressa pelo tribunal a quo tem suporte razoável naquilo que a gravação da prova (com os demais elementos existentes nos autos) pode exibir perante si [Cfr., também no sentido de que «a garantia do duplo grau de jurisdição relativamente a matéria de facto nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida em audiência, visando apenas a detecção e correcção de pontuais, concretos e excepcionais erros de julgamento, incidindo sobre determinados pontos da matéria de facto», o Ac. da Rel. de Lisboa de 22/11/2002 proferido no Proc. nº 0020409 e relatado pela Desembargadora MARGARIDA VIEIRA DE ALMEIDA (cujo sumário está disponível no site http://www.dgsi.pt.).]

Daqui decorre que o conhecimento de factum do tribunal de 2ª instância é necessariamente limitado. E isto, à partida, impõe que a matéria de facto só possa ser alterada quando o registo da prova o permita com toda a segurança [Cfr., também no sentido de que «a apreciação das provas gravadas pelo Tribunal da Relação só pode abalar a convicção acolhida pelo tribunal de 1ª instância caso se verifique que a decisão sobre a matéria de facto não tem qualquer fundamento nos elementos de prova constantes do processo ou está profundamente desapoiada face às provas recolhidas, dado que a percepção dos depoimentos só é perfeitamente conseguida com a imediação», o Ac. da Rel. do Porto de 5/6/2002, proferido no Proc. nº 0210320 e relatado pelo então Desembargador COSTA MORTÁGUA (cujo texto integral está disponível no site http://www.dgsi.pt.)].

Por outro lado – como bem se observou no Acórdão desta Relação de 10/10/2001 [Proferido no Proc. nº 0140385 e relatado pelo Desembargador JOSÉ MANSO RAÍNHO, cujo texto integral está disponível no site http://www.dgsi.pt.], muito embora livre apreciação de provas (princípio que vigora plenamente em processo penal, salvaguardadas as excepções legais) não se possa confundir com apreciação arbitrária de provas - do que se trata é antes de uma apreciação que, liberta de um rígido sistema de prova legal, se realiza de acordo com critérios lógicos e objectivos, dessa forma determinando uma convicção racional, objectivável e motivável -, não pode nem deve olvidar-se que «dificilmente o julgador dos factos lidará com a prova cem por cento segura ou certa». «Inevitavelmente terá que conviver com a ausência de certeza absoluta e com a dúvida» [Cit. Ac. da Rel. do Porto de 10/10/2001]. «Mas nem por isso se pode demitir de, com recurso à experiência comum e à lógica das coisas, porfiar por uma certeza relativa sobre os factos (tenha-se em atenção que "certeza relativa" não equivale a "certeza dominada por incertezas"; significa antes "convicção honesta e responsável da realidade ou irrealidade do facto")» [Ibidem.]. «Se conseguir superar o umbral da dúvida razoável, de modo a sentir a necessária segurança sobre a realidade ou irrealidade de um facto, então tem que o assumir» [ Ibidem. ].

Efectivamente, «as provas têm por função a demonstração da realidade dos factos (artº 341º do Código Civil), mas esta demonstração da realidade não visa a certeza absoluta (a irrefragável exclusão da possibilidade de o facto não ter ocorrido ou ter ocorrido de modo diferente)» [Ibidem] . «Os factos que interessam ao julgamento da causa são, de ordinário, ocorrências concretas do mundo exterior ou situações do foro psíquico que pertencem ao passado e não podem ser reconstituídas nos seus atributos essenciais» [Ibidem.]. «A demonstração da realidade de factos desta natureza, com a finalidade do seu tratamento jurídico, não pode visar um estado de certeza lógica, absoluta, sob pena de o Direito falhar clamorosamente na sua função social de instrumento de paz social e de realização de justiça» [Ibidem. ]. «A prova visa apenas, de acordo com os critérios de razoabilidade essenciais à aplicação prática do Direito, criar no espírito do julgador (judici fit probatio) um estado de convicção, assente na certeza relativa do facto [V. Antunes Varela, in “Manual de Processo Civil”, pág. 434]» [Ibidem.].

De modo que «dificilmente o julgador poderá ter a certeza absoluta de que os factos aconteceram tal como eles são por si interiorizados, como são dados como provados» [Ibidem.]. «Mas isto não obsta a que o tribunal se convença da realidade dos mesmos, posto que consiga atingir o umbral da certeza relativa» [Ibidem.]. «A certeza relativa é afinal um estado psicológico (a tal convicção de que se costuma falar) que, conquanto necessariamente se tenha de basear em razões objectivas e possa ser fundamentável, não demanda que estas sejam inequivocamente conclusivas» [Ibidem.].

«Daqui decorre que não é decisivo para se concluir pela realidade da acusação movida a um qualquer arguido, que haja provas directas e cabais do seu envolvimento nos factos, maxime que alguém tenha vindo relatar em audiência que o viu a praticar os factos, ou que o arguido os assuma expressamente» [Ibidem.]. «Condição necessária, mas também suficiente é que os factos demonstrados pelas provas produzidas, na sua globalidade, inculquem a certeza relativa (a tal convicção honesta e responsável de que se falou atrás), dentro do que é lógico e normal, de que as coisas sucederam como a acusação as define» [Ibidem.].
Isto posto: Tanto quanto a matéria de facto extractada na transcrição (com as limitações supra expostas, portanto), conjugada com a prova documental constante dos autos, nos permite (re)apreciar a prova que esteve presente ao tribunal a quo, é nosso convencimento que nada, mas absolutamente nada, conduz à ideia de que o tribunal a quo fez uma incorrecta aplicação do princípio da livre apreciação da prova consagrado no artº 127º do CPP, isto é, que apreciou mal a prova.
Efectivamente, a convicção do tribunal a quo, no tocante aos factos considerados provados na sentença recorrida, alicerçou-se, nomeadamente:
a) nas declarações do 1º arguido (o qual afirmou, no essencial, que devido à amizade que o unia aos sócios da Escola de Condução em questão, especialmente ao sócio já falecido C ............., acordou com eles, há cerca de 6 a 7 anos, emitir os atestados médicos necessários à actividade dessa escola, na sequência do que passou a dirigir-se regularmente à escola em causa, ao fim da tarde, pelo menos às terças e sextas-feiras, onde, por norma, ao balcão da respectiva recepção, questionava os alunos se viam bem ou tinham alguma deficiência física, assinando depois o respectivo atestado, sendo que – segundo ele - a circunstância de conhecer os alunos, designadamente por alguns deles serem seus doentes, aliada à sua larga experiência profissional lhe permitia verificar com muita facilidade se os mesmos padeciam de alguma deficiência que impedisse ou limitasse o exercício da condução;
b) nas declarações do 2º arguido (que foram, no essencial, coincidentes com as declarações do 1º arguido, designadamente no que concerne ao referido acordo, conquanto tivesse declarado que raramente se encontrava no interior da Escola de Condução em causa e que, por tal motivo, não tinha conhecimento preciso do modo como todos os exames se processavam, afirmando que apenas ouviu algumas vezes o 1º arguido a questionar os alunos, na recepção da Escola em causa, sobre se, designadamente, viam bem);
c) na circunstância de o 2º arguido ter, porém, conhecimento que os alegados exames eram sempre feitos na sede da Escola de Condução em causa e que o 1º arguido não possuía ali qualquer compartimento específico para esse efeito, tão pouco tendo sequer ali instrumentos para tanto adequados, nomeadamente para realizar os respectivos exames oftalmológicos;
d) nos depoimentos produzidos por todas as testemunhas ouvidas, que foram alunos da Escola de Condução em causa há cerca de 6/7 anos e que foram unânimes em afirmar que o 1º arguido nunca lhes efectuou qualquer exame médico na escola em causa;
e) na regra da experiência segundo a qual, por muito larga que seja a experiência profissional dum médico, não é suficiente para a emissão dos atestados médicos em causa nos autos a simples realização de perguntas verbais aos examinandos, o que é particularmente verdadeiro para o indispensável exame oftalmológico, que só pode ser capazmente realizado com recurso a instrumentos e objectos adequados;
f) no facto de as testemunhas D ........, G ......., L ........., R ........, Z ........, A1 .... e B1 ..... terem afirmado que o 1º arguido apenas os questionou sobre se, designadamente, viam bem e se padeciam de alguma doença, sendo que, em regra, tais perguntas eram feitas na recepção da escola em questão e, por vezes, na sala onde efectuavam os testes de código;
g) na circunstância de, para além destas testemunhas, apenas as testemunhas I ....., V ............, C1 .......... e D1 ..............., H .......... e S ................, terem admitido conhecer o 1º arguido, sendo que a testemunha V ............ afirmou mesmo que, embora frequentasse as aulas de código sempre ao fim da tarde, por volta das 18 horas, nunca viu o 1º arguido na referida escola;
h) no facto de a testemunha U ........... haver afirmado peremptoriamente que apenas teve aulas de condução e, por tal motivo, nunca teve necessidade de entrar no edifício da Escola de Condução, sendo, por isso, de concluir que nunca teve sequer qualquer contacto com o lº arguido.
Donde que o Tribunal a quo não se limitou a indicar, explícita e exaustivamente, os meios de prova (isto é, as declarações e os depoimentos testemunhais) fundamentadores da convicção do julgador, antes procedeu a um rigoroso exame crítico das provas que serviram para formar essa convicção.
E fê-lo, aliás, de modo exaustivo, explicitando cristalinamente todos os critérios lógicos e racionais que conduziram a que a convicção do tribunal se formasse em determinado sentido ou valorasse de determinada forma os diversos meios de prova produzidos em audiência, dando assim escrupuloso cumprimento às exigências que, em sede de fundamentação de facto, são hoje colocadas pelo art. 374º-2 do CPP (na redacção introduzida pela Lei nº 59/98, de 25 de Agosto).
Ora, as várias razões pelas quais o tribunal a quo concluiu ter o lº arguido subscrito os 20 atestados médicos juntos aos autos sem antes ter efectuado exame médico específico às pessoas cujos nomes deles constam são, todas elas, ponderosas, lógicas, razoáveis e verosímeis.
E o mesmo se aplica aos motivos que levaram o tribunal recorrido a considerar provado que o 1º arguido e os sócios da escola de condução em causa (nomeadamente, o co-arguido ora recorrente) concluíram entre si, há cerca de 6/7 anos, um acordo nos termos do qual o co-arguido A ............... emitiria os atestados médicos necessários à actividade dessa escola sem fazer os respectivos exames médicos.
Não se evidencia, pois, que a sentença recorrida padeça de qualquer erro notório na apreciação da prova (cfr. a al. c) do nº 2 do art. 410º do CPP), nem tão pouco que o tribunal a quo tenha violado qualquer regra jurídica na apreciação da prova.
Efectivamente, a convicção expressa pelo tribunal recorrido acerca dequeles concretos pontos de facto não deixa de ter suporte razoável naquilo que de probatório contêm os autos, sobretudo no teor das declarações prestadas pelos próprios arguidos e nos depoimentos prestados por todas as testemunhas inquiridas em audiência de julgamento, conjugados com os documentos juntos aos autos.

Ora, sendo indubitável que «há casos em que, face à prova produzida, as regras da experiência permitem ou não colidem com mais do que uma solução», «se a decisão do julgador, devidamente fundamentada, for uma das soluções plausíveis segundo as regras da experiência, ela será inatacável pois foi proferida em obediência à lei que impõe que ele julgue de acordo com a sua livre convicção» [Ac. da Rel. do Porto de 19/3/2003, proferido no Proc. nº 0310070 e relatado pelo Desembargador FERNANDO MONTERROSO, cujo texto integral está disponível no site http://www.dgsi.pt.]. E «isto é assim mesmo quando tiver sido feito o registo das declarações orais prestadas no julgamento, pois, de outro modo, seriam defraudados os fins visados com a oralidade e a imediação da prova» [Ibidem.] [Cfr., também no sentido de que, «tendo o tribunal formado a sua convicção com provas não proibidas por Lei, prevalece a convicção que da prova teve o julgador sobre a formulada pelo recorrente, que é irrelevante, de acordo com o príncipio da livre apreciação da prova», o Ac. da Rel. de Lisboa de 22/11/2002, proferido no Proc. nº 0020409 e relatado pela Desembargadora MARGARIDA ALMEIDA (cujo sumário está disponível no site http://www.dgsi.pt.).] [Cfr., igualmente no sentido de que «limitado o recurso a matéria de facto, na solução da questão posta atentar-se-á nos dois princípios fundamentais que norteiam a apreciação da prova:

- o de que ela é apreciada, salvo quando a lei disponha diferentemente, segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador - principio da livre apreciação da prova;

- o de que o tribunal, ao decidir, não tem de formular um juizo de certeza, bastando-se a lei com a convicção da ocorrência», pelo que, «respeitados estes princípios pela sentença recorrida, como se extrai do contexto da prova produzida, não pode a mesma sentença deixar de ser confirmada», o Ac. da Rel. do Porto de 18/3/92 proferido no Proc. nº 9210093 e relatado pelo então Desembargador PEREIRA MADEIRA (cujo sumário está disponível no site http://www.dgsi.pt.).]
O presente recurso improcede, portanto, quanto à impugnação da matéria de facto (por violação do princípio da livre apreciação da prova) que se contém na motivação do Recorrente.

B) Se o arguido ora recorrente nunca poderia ser considerado co-autor do crime de passagem de atestado falso eventualmente cometido pelo co-arguido A ..........., visto o tipo legal em causa exigir uma especial qualidade do agente (ser médico, dentista, parteira, dirigente ou empregado de laboratório ou de instituição de investigação que sirva fins médicos ou pessoa encarregada de fazer autópsias) que o recorrente não possui.

Na tese do Arguido ora recorrente, ainda mesmo que o co-Arguido A ............. haja, porventura, cometido o crime de passagem de atestado falso por que foi condenado, nunca aquele poderia ser co-autor de tal crime, visto este tipo legal de crime só poder, pela sua especificidade, ser cometido por médico, dentista, parteira, dirigente ou empregado de laboratório ou de instituição de investigação que sirva fins médicos ou pessoa encarregada de fazer autópsias, sendo certo que o ora recorrente não exerce, nem nunca exerceu qualquer destas funções, nem para tal possui sequer habilitações.
Quid juris ?

Segundo HELENA MONIZ [In “O Crime de Falsificação de Documentos. Da Falsificação Intelectual e da Falsidade em Documento”, 1999, p. 247.], uma das razões que levou o legislador a autonomizar este tipo legal de crime actualmente descrito no art. 260º, nº 1, do Código Penal de 1995 (disposição correspondente, embora com ligeiras alterações formais e nas molduras penais, ao art. 234º, nº 1, do Cód. Penal de 1982, na sua versão originária) relativamente ao tipo base da falsificação de documentos (actualmente descrito no art. 256º do Código Penal de 1995 e originariamente previsto no art. 228º do Cód. Penal de 1982) está em que se trata «de um tipo legal de crime que deverá ser praticado por um específico agente». Estamos perante «um crime específico próprio, dado que o agente do crime não poderá ser uma qualquer pessoa, mas sim uma pessoa com especiais características – terá que ser um “médico, dentista, enfermeiro, parteira, dirigente ou empregado de laboratório ou de instituição de investigação que sirva fins médicos, ou pessoa encarregada de fazer autópsias» [HELENA MONIZ in “O Crime de Falsificação de Documentos” cit., p. 245.]. Este específico agente «tem um dever especial de dizer a verdade; além de que a sua conduta no caso em apreço não se resume a uma incorporação num escrito de um facto falso, pois, também, ele atesta ou certifica falsamente» [HELENA MONIZ in “O Crime de Falsificação de Documentos” cit., p. 247.].

«Considerando que os crimes específicos próprios são aqueles em que a qualidade do agente é que justifica a criação autónoma do tipo, e considerando que o crime específico impróprio é aquele em que a qualidade do agente apenas determinou uma agravação da pena, parece que estamos perante um crime específico próprio» [HELENA MONIZ in “Comentário Comimbricense do Código Penal”, “Parte Especial”, Tomo II, Artigos 202º A 307º, 1999, p. 728.]
Porém, a mera circunstância de o tipo legal de crime descrito no cit. art. 260º-1 do Código Penal vigente ser um crime específico próprio, isto é, um crime cujo agente não pode ser uma pessoa qualquer, antes tem de ser uma pessoa com especiais características, não consequência, necessariamente, que o co-Arguido ora Recorrente não possa ser havido como co-autor ou cúmplice de um tal crime, dado ele não ser médico, nem dentista, nem enfermeiro, nem parteira, nem dirigente ou empregado de laboratório ou de instituição de investigação que sirva fins médicos, nem pessoa encarregada de fazer autópsias.
Efectivamente, o art. 28º, nº 1, do Cód. Penal estatui precisamente que, em situações de comparticipação (ou seja, de pluralidade de agentes: co-autoria, autor(es) e cúmplice(s), autor(es) e instigador(es) e autor mediato e executor material ou autor mediato e autor imediato não plenamente responsável) em factos cuja ilicitude ou grau de ilicitude dependa de qualidades ou relações especiais do agente, basta que um deles as detenha para que a pena aplicável se estenda a todos os outros.

«As qualidades ou relações especiais fundamentadoras ou modificativas do grau da ilicitude são “elementos pessoais” (art. 12º, nº 1, a) do Cód. Penal), que ao serem exigidos pelo tipo incriminador significam que o círculo dos potenciais autores deixa de ser indeterminado, como é na generalidade dos casos em que a lei usa expressões como “quem” ou “aquele que”» [TERESA PIZARRO BELEZA in “Ilicitamente Comparticipando – O Âmbito de Aplicação do ART. 28º do Código Penal”, Estudos em Homenagem ao Prof. Eduardo Correia, III, 1984, p. 593.]. «São elementos ou requisitos de “idoneidade típica”, cuja ausência determina o carácter atípico do comportamento» [TERESA PIZARRO BELEZA, ibidem ].

De facto, «as normas incriminadoras da parte especial do Código Penal não exigem, em geral, qualquer elemento típico do agente, pelo que pode ser sujeito activo do crime qualquer pessoa» [HENRIQUE SALINAS MONTEIRO in “A Comparticipação em Crimes Especiais no Código Penal”, 1999, p. 11.]. «Noutros casos, porém, excepcionalmente, mas não raramente, verifica-se, em certas normas incriminadoras, uma restrição do círculo dos possíveis agentes» [HENRIQUE SALINAS MONTEIRO, ibidem.]. «As normas incriminadoras em que esta restrição do círculo de agentes existe são em geral designadas crimes especiais ou próprios, dando assim origem a tipos especiais» [HENRIQUE SALINAS MONTEIRO, ibidem].

Todavia, «a mera restrição do círculo de agentes não basta (…) para caracterizar devidamente os crimes especiais; se assim fosse, o conceito tornar-se-ia demasiado amplo, permitindo a inclusão no seu âmbito de realidades completamente distintas» e, «em consequência, ficaria sem qualquer utilidade prática» [HENRIQUE SALINAS MONTEIRO in “A Comparticipação…” cit., p. 13.]

Segundo HENRIQUE SALINAS MONTEIRO [In “A Comparticipação…” cit., p. 16.], «o núcleo definidor dos crimes especiais é o dever jurídico, que só vincula certas pessoas e cuja violação é sancionada penalmente no tipo respectivo». «Daqui resulta, necessariamente, uma restrição do círculo de possíveis agentes àqueles que se encontrem vinculados ao dever específico» [Ibidem.]. «A existência deste dever específico pode ser revelada por diferentes vias: pela circunstância de constituírem elementos do tipo determinadas qualidades pessoais do agente; mediante a descrição, no tipo, do dever específico; ou através da descrição típica de uma situação de facto que é a fonte desse dever» [Ibidem.]

Segundo TERESA PIZARRO BELEZA [ In loc. cit., p. 594.], casos possíveis dessas qualidades ou relações especiais exigidas pelo tipo incriminador especial são, nomeadamente:
a) Qualidades profissionais: funcionário, médico, comerciante, advogado, solicitador, médico analista ou empregado de laboratório, farmacêutico ou empregado de farmacêutico, perito, técnico, tradutor, etc.;
b) Qualidades que resultam da prática esporádica de actos que vinculam a deveres especiais: testemunha, declarante;
c) Qualidades derivadas da prática de crimes: habitualidade ou profissionalismo;
d) Relações familiares: ascendente, descendente, cônjuge, marido, parente em segundo grau, etc.;
e) Relações de trabalho, de dependência hierárquica ou de guarda, educação ou protecção;
f) Relações com certas pessoas que fundamentem um dever jurídico de pessoalmente evitar resultados danosos contidos em tipos legais de crime (art. 10º), isto é, fontes de “dever de garante” (algumas relações familiares, por exemplo, ou relações de guarda e protecção).
Ora, quando colaboram na prática do mesmo crime agentes vinculados ao mencionado dever especial e agentes não vinculados àquele dever, põe-se o problema de saber se todos eles poderão ser punidos pelo crime especial, apesar de apenas alguns deles estarem vinculados ao dever especial cuja violação é sancionada pela incriminação. É deste problema que precisamente se ocupa o cit. art. 28º, nº 1, consagrando a regra da comunicabilidade ou transmissibilidade da ilicitude na comparticipação criminosa em crimes próprios.

De notar que – como põe em evidência HENRIQUE SALINAS MONTEIRO [In “A Comparticipação…” cit., p. 69.] -, embora este artigo 28º tenha por epígrafe “Ilicitude na comparticipação”, o seu âmbito é, afinal mais restrito: «esta restrição do âmbito de aplicação do artigo 28º resulta de, nos termos da própria letra da lei, esta norma apenas regular a ilicitude na comparticipação nos casos em que esta ilicitude (ou o seu grau) está dependente da existência de certas “qualidades ou relações especiais”».

Procurando delimitar este conceito, em ordem a traçar os limites do campo de aplicação do cit. art. 28º, o mesmo Autor acaba por concluir o seguinte [In “A Comparticipação…” cit., p. 92.]:
«Em primeiro lugar, da referência expressa à pessoa do agente resulta que estão fora do âmbito de aplicação do artigo 28º do Código Penal os elementos do tipo que não se lhe refiram, correspondentes aos que o legislador do Código Penal de 1886 incluía, segundo certa doutrina, no campo de aplicação do artigo 31º, ou seja, as então denominadas “circunstâncias relativas ao facto”».

«Por outro lado, nem todos os elementos do tipo relacionados com a pessoa do agente devem ser incluídos no âmbito de aplicação do artigo 28º do Código Penal»[ HENRIQUE SALINAS MONTEIRO, ibidem.]. «Só estão aí em causa “qualidades ou relações pessoais” e portanto excluem-se os estados de espírito, intenções, fins específicos, como a “avidez”, o “prazer de matar”, o “motivo torpe ou fútil” artigo 132º, nº 2, alínea c) do Código Penal, a “ilegítima intenção de apropriação” artigo 203º; artigo 210º do Código Penal, a “intenção de obter para si ou para terceiro um enriquecimento ilegítimo” artigo 217º do Código Penal, que não podem considerar-se “qualidades ou relações especiais”».

Ainda assim, «nem todas as “qualidades ou relações especiais” atrás referidas estão submetidas ao âmbito de aplicação do artigo 28º do Código Penal»[ HENRIQUE SALINAS MONTEIRO in “A Comparticipação…” cit., p. 94.]. Por um lado, «ficam de fora do domínio do artigo 28º do Código Penal todas as “qualidades ou relações pessoais” que não influenciem a “ilicitude” ou o “grau de ilicitude” do facto, como sejam aquelas cuja relevância se traduza em causas de isenção ou dispensa de pena, ou em condições de procedibilidade»; «por outro lado, estão também fora do âmbito de aplicação do artigo 28º do Código Penal as “qualidades e relações especiais” que não respeitem à “ilicitude” ou ao “grau de ilicitude” do facto, mas antes à culpa» [HENRIQUE SALINAS MONTEIRO, ibidem.], às quais é aplicável o artigo 29º do mesmo Código [«Assim, se num determinado tipo legal existirem “qualidades ou relações pessoais” que digam respeito à culpa, será aplicável o artigo 29º do Código Penal, o que conduz a que apenas possam ser punidos por esse tipo os comparticipantes nos quais essas “qualidades ou relações” se verifiquem» (HENRIQUE SALINAS MONTEIRO in “A Comparticipação…” cit., p. 95). «Se as “qualidades ou relações especiais” fundamentarem o juízo de culpa, os comparticipantes que não as possuam ficarão impunes; se apenas revelarem uma maior ou menor culpabilidade, o tipo legal respectivo só será aplicável aos comparticipantes em relação aos quais se demonstre terem as “qualidades ou relações especiais”» (ibidem). Daí que «é sempre relevante, no Código Penal português, saber se as “qualidades ou relações pessoais” dizem respeito à ilicitude – caso em que será aplicável o artigo 28º, com a consequente aplicabilidade do tipo legal espectivo a todos os comparticipantes – ou à culpa – caso em que será aplicável o artigo 29º, pelo que o tipo legal que contenha tais qualidades só será aplicável aos comparticipantes em que estas se verifiquem» (ibidem).]

De todo o modo, dúvidas não existem que, no tipo legal de crime descrito no artigo 260º, nº 1, do Cód. Penal, médico, dentista, enfermeiro, parteira, dirigente ou empregado de laboratório ou de instituição de investigação que sirva fins médicos e pessoa encarregada de fazer autópsias constituem “qualidades ou relações pessoais”, nos termos e para os efeitos do cit. artigo 28º-1 do mesmo Código [Cfr., explicitamente neste sentido, HENRIQUE SALINAS MONTEIRO (in “A Comparticipação…” cit., p. 93).].

Finalmente, a despeito das divergências existentes na doutrina acerca da fundamentação apresentada para tal solução, todos os autores estão de acordo quanto à solução final a dar às hipóteses de comparticipação em crimes especiais de executores intranei e extranei não executores: «na verdade, as hipóteses de comparticipação em crimes especiais nas quais intervêm executores intranei e extranei não executores (…) são consensualmente resolvidas mediante a punição pelo crime especial de todos os intervenientes, intranei e extranei» [HENRIQUE SALINAS MONTEIRO in “A Comparticipação…” cit., p. 142.]. Designadamente, «todos estão de acordo em considerar que o cúmplice e o instigador extranei devem ser punidos pelo crime especial se o executor for um intaneus» [HENRIQUE SALINAS MONTEIRO in “A Comparticipação…” cit., p. 149.].

Por outro lado, inexiste qualquer divergência entre os autores quanto à aplicabilidade do cit. art. 28º, nº 1, do Cód. Penal aos casos de comparticipação em crimes especiais de executores extranei e cúmplices ou instigadores intranei [Cfr., neste sentido, HENRIQUE SALINAS MONTEIRO in “A Comparticipação…” cit., pp. 180-181.]. «Deste modo, se um cúmplice ou um instigador for intraneus também o executor extraneus responderá pelo crime especial» [HENRIQUE SALINAS MONTEIRO in “A Comparticipação…” cit., p. 184.]. O que, de resto, se afigura ser um resultado justo, se se tiver presente que «o executor imediato, apesar de ser um extraneus, adopta uma conduta que seria considerada verdadeira autoria, de acordo com os critérios gerais vigentes na matéria» [HENRIQUE SALINAS MONTEIRO in “A Comparticipação…” cit., p. 186.].

E «caem também no âmbito de aplicação do artigo 28º, nº 1, do Código Penal as situações de comparticipação em crimes especiais em que intervêm um executor extraneus, um cúmplice ou instigador intraneus e um cúmplice ou instigador extraneus, não existindo aqui divergência entre a doutrina que se tem pronunciado sobre o âmbito de aplicação desta norma» [HENRIQUE SALINAS MONTEIRO in “A Comparticipação…” cit., pp. 200-201.]. «Assim, basta para que todos os comparticipantes respondam pelo crime especial, próprio ou impróprio, que seja intraneus um cúmplice ou um intigador, ainda que o executor e os outros cúmplices ou instigadores sejam extranei» [HENRIQUE SALINAS MONTEIRO in “A Comparticipação…” cit., p. 201.]

Finalmente, «a execução conjunta de intranei e extranei em crimes especiais está também incluída no âmbito de aplicação do artigo 28º, nº 1, do Código Penal», visto que «a co-autoria é também uma modalidade de “comparticipação”, bastando, em consequência, que um dos co-autores seja intraneus para tornar aplicável a disciplina jurídica constante do artigo 28º, nº 1, do Código Penal»[ HENRIQUE SALINAS MONTEIRO in “A Comparticipação…” cit., p. 201in “A Comparticipação…” cit., p. 215.]. «Assim, nos termos deste preceito, basta que um dos co-autores seja intraneus para que todos respondam pelo crime especial» [HENRIQUE SALINAS MONTEIRO, ibidem.].
Aliás, que assim é, isto é, que o cit. art. 28º-1 é aplicável à co-autoria em crimes especiais, é algo que é defendido mesmo pelos autores – como CAVALEIRO DE FERREIRA e FIGUEIREDO DIAS - que interpretam aquele preceito no sentido de ele só ser invocável quando um executor é intraneus. «Com efeito, estas situações representariam mesmo, nesta interpretação, as únicas hipóteses de aplicação do artigo 28º, nº 1, do Código Penal, já que as restantes situações de comparticipação em crimes especiais ou seriam resolvidas por aplicação do princípio da acessoriedade, ou ficariam sem resolução legal expressa» [HENRIQUE SALINAS MONTEIRO, ibidem ].
Ora, o caso dos autos reconduz-se precisamente a uma hipótese de execução conjunta de intranei e extranei num crime especial.
Efectivamente, está provado que, devido à amizade que os unia e une, o arguido A ........ (que é médico de profissão) acordou com o co-arguido ora Recorrente (que é sócio e Director Técnico duma Escola de Condução), bem como com um sócio dessa escola já falecido (C ........), passar atestados médicos necessários à actividade dessa Escola de Condução, sem receber qualquer contrapartida monetária, tendo os dois arguidos combinado entre si que o primeiro arguido passaria os referenciados atestados sem fazer os respectivos exames médicos. Ora, tal acordo perdurou durante um período de tempo que não foi possível apurar com precisão, mas que remonta, pelo menos a 29/10/96 e que se prolongou, pelo menos até 31/12/97 e, no âmbito do mesmo, o arguido A ....... subscreveu um número indeterminado de atestados médicos, mas seguramente não inferior a 20, para efeitos da condução de veículos, os quais eram enviados à Direcção Geral de Viação, atestando que, também pelo menos 20 candidatos à condução de veículos, que eram clientes da referida Escola, não apresentavam alterações de visão e tinham aptidão física e mental para a condução de veículos automóveis ou de motociclos, consoante os casos, sem restrições, sendo que o arguido A ......... subscreveu os referidos 20 atestados sem ter efectuado exame médico específico, pelo menos a 18 das pessoas cujos nomes deles constam, o que fazia com o conhecimento e o consentimento do arguido ora Recorrente.
Assente, pois, que a passagem, pelo Arguido A ............., dos referidos 18 atestados médicos - nos quais ele atestava que os candidatos à condução de veículos neles identificados não apresentavam alterações de visão e tinham aptidão física e mental para a condução de veículos automóveis ou de motociclo, consoante os casos, sem restrições, sem que, porém, tivesse antes realizado exame médico específico às pessoas cujos nomes deles constam - teve lugar em execução duma combinação previamente estabelecida entre aquele co-Arguido e o Arguido ora Recorrente, nos termos do qual o primeiro se comprometeu a passar atestados médicos necessários à actividade dessa Escola de Condução, sem receber qualquer contrapartida monetária, mas sem fazer os respectivos exames médicos, sendo, portanto, o ora Recorrente co-autor de tal infracção, nos termos do art. 26º do Cód. Penal, a circunstância de ele não possuir a qualidade especial de médico exigida pelo tipo incriminador do art. 260º-1 do mesmo diploma não impede a aplicação a ele da pena cominada neste preceito, mercê da regra contida no cit. art. 28º-1 do mesmo Código.
É certo que a disciplina resultante deste art. 28º-1 do Cód. Penal encontra limites, um dos quais consta da parte final do mesmo preceito, onde se determina que a consequência jurídica estabelecida na sua 1ª parte (ser suficiente, nos casos de comparticipação em crimes especiais, que um dos comparticipantes seja intraneus para que a pena do crime especial seja aplicável a todos) não se desencadeia “se outra for a intenção da norma incriminadora”.

Esta ressalva da parte final do nº 1 do art. 28º do Cód. Penal à aplicabilidade da consequência jurídica estatuída na primeira parte do mesmo preceito teve a sua origem nos casos de comparticipação em crimes de mão própria, embora tivesse sido admitida a possibilidade de a ela se recorrer noutras hipóteses [Cfr., neste sentido, HENRIQUE SALINAS MONTEIRO in “A Comparticipação…” cit., pp. 243 a 245.].

«O ponto de partida para a exclusão da aplicação da consequência jurídica do artigo 28º, nº 1, 1ª parte, do Código Penal, aos casos de comparticipação em “crimes de mão própria”, parece residir na circunstância de estes crimes apenas poderem ser cometidos mediante uma execução corporal de certas pessoas» [HENRIQUE SALINAS MONTEIRO in “A Comparticipação…” cit., p. 245.]. «O tipo exige, assim, não apenas a violação de um dever especial, mas também que essa violação seja realizada corporalmente pelo intraneus» [HENRIQUE SALINAS MONTEIRO, ibidem].

Segundo FIGUEIREDO DIAS [In “Textos de Direito Penal. Doutrina geral do crime”, Lições ao 3º ano da Faculdae de Direito da Universidade de Coimbra, elaboradas com a colaboração de Nuno Brandão, Coimbra, 2001, pp. 28-29.], crimes de mão própria são «os tipos de ilícito em que o preceito legal quer abranger como autores apenas aqueles que levam a cabo a acção através da sua própria pessoa, não através de outrem; quer abranger apenas pois, em princípio, os autores imediatos, ficando excluída a possibilidade da autoria mediata; e mesmo da coautoria relativamente àqueles comparticipantes que não tenham chegado a executar por próprias mãos a conduta típica, não podendo, por isso, nestes casos, verificar-se a “comunicabilidade” a que se refere o art. 28º (cf. a parte final do nº 1: “excepto se outra for a intenção da norma incriminadora”)». «É o caso, v.g., dos arts. 165º e 166º: só quem pratica, por si mesmo, o acto sexual incriminado pode ser considerado autor; como é o caso do art. 295º relativo à auto-colocação em estado de inimputabilidade através da ingestão ou consumo de bebidas alcoólicas ou de substância tóxica» [FIGUEIREDO DIAS, ibidem.].
Ora o tipo legal de crime descrito no cit. art. 260º, nº 1, do Cód. Penal não figura, seguramente, entre os crimes de mão própria. Aquele delito é, isso sim, um crime específico próprio, isto é, um crime cujo tipo legal exige a intervenção de pessoas dum certo círculo, detentoras de certas qualidades especiais (cfr., supra). Porém, crimes próprios e crimes de mão própria são conceitos distintos, que se não confundem, nem identificam.
Como assim, não opera, in casu, a ressalva contida na parte final do cit. art. 28º-1 do Cód. Penal e, portanto, apesar de apenas um dos dois co-autores do crime de passagem de atestado falso (o co-Arguido A ..........) ser intraneus (só ele é médico de profissão), o outro (o Arguido ora Recorrente) não deixa de responder por tal crime, nos termos da regra da comunicabilidade estabelecida na 1ª parte daquele preceito.
Eis por que o presente recurso também improcede, quanto a este 2º fundamento.

DECISÃO
Nestes termos, acordam os juizes da 4ª Secção deste Tribunal da Relação em julgar improcedente o presente recurso, assim confirmando, na íntegra, a sentença do 1º Juízo de Competência Especializada Criminal de ...... que condenou o Arguido ora Recorrente, como co-autor de um crime de atestado falso p. e p. no art. 260º, nº 1, do Cód. Penal, na pena de 180 (cento e oitenta) dias de multa à taxa diária de € 12, 50 (doze euros e cinquenta cêntimos), o que perfaz a multa de € 2 250 (dois mil duzentos e cinquenta euros).
Custas do recurso a cargo do Recorrente.
Taxa de justiça: 10 (dez) UCs (art. 87º, nº 1, al. b), do Cód. das Custas Jud.)
Honorários da Tabela.
Porto, 17/3/04
Rui Manuel de Brito Torres Vouga
Arlindo Manuel Teixeira Pinto
Joaquim Rodrigues Dias Cabral