Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0818031
Nº Convencional: JTRP00042324
Relator: VASCO FREITAS
Descritores: USO
FALSIFICAÇÃO
NOTAÇÃO TÉCNICA
Nº do Documento: RP200903180818031
Data do Acordão: 03/18/2009
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: PROVIDO.
Indicações Eventuais: LIVRO 573 - FLS 49.
Área Temática: .
Sumário: I - A noção de notação técnica relevante para o preenchimento do crime previsto no art. 258, n.º 1, al. d) do C. Penal encontra-se no art. 255º, b), do mesmo Código.
II - A notação permite reconhecer ao seu destinatário um facto juridicamente relevante, sendo que para efeitos do crime de falsificação o que constitui “documento” não é a notação, mas o valor, peso, medida ou decurso de um acontecimento que aquela representa.
III - A quilometragem constante do conta-quilómetros de um veículo automóvel usado, por si só, não tem nenhuma relevância para o direito, sendo que o seu não funcionamento, ou mesmo a sua ausência não tem qualquer cominação legal.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Recurso Penal nº 8031/08-1


Acordam, em conferência, na 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:

I RELATÓRIO
No .º Juízo Criminal de Santa Maria da Feira, em processo comum e com intervenção de tribunal singular, foi submetido a julgamento o arguido B………., devidamente identificado nos autos, tendo no final sido proferida sentença, no qual se decidiu condená-lo pela prática de um crime de uso de notação técnica falsificada p. e p. pelo artº 258º nº 1 al.s b) e d) e nº 2 do Cod. Penal na pena de 100 dias de multa à taxa diária de € 7,50, perfazendo o montante global de € 750,00.
O arguido foi ainda absolvido do pedido de indemnização civil que contra ele fora deduzida por C……….
Inconformado com a sentença, dela interpôs recurso o arguido, pugnando pela sua revogação, e requerendo a sua absolvição para o que formulou as seguintes conclusões:
“1ª. - O art°. 255°. al. b) do Código Penal, define o conceito de "notação técnica", para os efeitos penais que agora interessam: "a notação de um valor, de um peso ou de uma medida, de um estado ou do decurso de um acontecimento, feita através de aparelho técnico que actua, total ou parcialmente, de forma automática, que permite reconhecer à generalidade das pessoas ou a um certo círculo de pessoas os seus resultados e se destina à prova de facto juridicamente relevante, quer tal destino lhe seja dado no momento da sua realização quer posteriormente".
2ª. - No caso sub júdice, de uso de um automóvel com alteração do totalizador de quilómetros por um terceiro, de entre todos os requisitos indicados nesta norma, falta o de o conta-quilómetros de um automóvel se destinar à prova de "facto juridicamente relevante".
3ª. - Efectivamente, "facto juridicamente relevante" é aquele que, por si só, tem relevância para o direito, por a lei lhe atribuir efeitos ou utilidades. É o caso, no veículo automóvel, dos números de matrícula, da carroçaria ou do motor. A todos estes elementos a lei atribui a virtualidade de permitirem a identificação do veículo.
4ª. - Na falsificação de notação técnica, o que está em causa é a função probatória relativamente a facto juridicamente relevante, considerando-se que, o número de quilómetros já percorridos por um automóvel nenhuma relevância tem para o direito.
5ª. - Não há norma que puna o facto de um veículo automóvel circular com o conta-quilómetros avariado ou indicando um número diferente dos quilómetros efectivamente percorridos.
6ª. - Se em abstracto, nada impedia que o legislador desse relevância jurídica às indicações deste aparelho, por exemplo, fixando o chamado "imposto de circulação" em função dos quilómetros percorridos em vez de, como faz, do ano de registo e da cilindrada, seria evidente a relevância jurídica da notação técnica em causa. Aliás, que se saiba, não é sequer obrigatório que os automóveis estejam equipados com conta-quilómetros.
7ª - Assim sendo, a alteração do totalizador do conta-quilómetros de um veículo não integra a prática de um crime de falsificação de notação técnica, nem o uso de um veículo cujo conta-quilómetros foi alterado integra o crime de uso de notação técnica falsificada, p. e p. pelo art°. 258°. als. b) e d) do Código Penal.
8ª. - Os factos não integram o crime por que foi o recorrente condenado, tendo o arguido/recorrente de ser absolvido deste crime.
Nestes termos e nos melhores de Direito que Vossas Excelências doutamente suprirão, deve ser dado provimento ao presente recurso e, consequentemente, ser proferido acórdão que revogue a sentença recorrida e que absolva o arguido.
No entanto, Vossas Excelências decidindo, farão, aliás, como sempre, a mais inteira e sã JUSTIÇA!”
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Na resposta, o MºPº na 1ª instância pronunciou-se no sentido da manutenção do acórdão recorrido, concluindo como segue:
Da fundamentação do recurso apresentado pelo arguido resulta que este, no essencial, põe em causa que o totalizador de quilómetros de um veículo se destine à prova de um facto juridicamente relevante e, portanto, que preencha o mesmo o conceito de notação técnica ínsito no artigo 255.°, alínea b), do Código Penal, razão pela qual, em seu entender, a sua utilização depois de adulterado não consubstancia a prática do crime pelo qual o mesmo foi condenado.
Vejamos.
Em nosso entender, não resultarão grandes dúvidas que o totalizador de quilómetros de um veículo se destine à prova de um facto juridicamente relevante.
Pergunta-se: qual a razão de ser de virem os veículos equipados com tal mecanismo de contagem?
Desde logo, o totalizador de quilómetros servirá para que o proprietário de um veículo tenha noção do seu desgaste/nível de utilização, por forma a que possa efectuar a sua manutenção de acordo com o preconizado pelo fabricante do veículo.
Ora, tal utilidade reveste-se de relevância jurídica na medida em que o proprietário do veículo, caso pretenda fazer valer a garantia deste em casos pela mesma abrangidos, terá que fazer prova, por um lado, que a quilometragem que o veículo tem não ultrapassa o limite previsto pelo âmbito dessa garantia e, por outro, que durante os quilómetros que com ele circulou foi efectuando a devida manutenção de acordo com os intervalos recomendados pelo fabricante, sendo que estes intervalos são calculados pelo número de quilómetros percorridos com o veículo ou pelo tempo entretanto decorrido desde a última operação de manutenção. O não cumprimento de tais premissas afastará a aplicação da garantia.
Depois, enquanto mecanismo que exibe o número total de quilómetros efectuados por um veículo, o totalizador permite aferir do seu desgaste/nível de utilização, o que, como é do conhecimento geral e resulta da experiência comum, é condicionante do valor de mercado do mesmo.
Aliás, tanto assim é que a venda intencional e consciente de um veículo com os quilómetros adulterados (para menos) consubstancia, na maioria das situações, a prática de um crime de burla, na medida em que o seu autor consegue, com a prática de tais factos, iludir terceiros acerca do real estado de um dado veículo e, deste modo, transaccioná-lo por um valor superior àquele que, de outro modo, conseguiria obter, causando nesse terceiro um prejuízo por regra no valor correspondente.
Entendemos, pois, pelas razões acima expostas, que não assiste razão no alegado pelo recorrente, em consequência do que não poderá o presente recurso deixar de ser julgado improcedente, mantendo-se a douta sentença recorrida nos seus precisos termos, assim se fazendo
JUSTIÇA”
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O recurso foi admitido.
O Exmº Procurador-Geral Adjunto junto deste Tribunal emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso, formulando o seguinte parecer:
1. A única questão que o recurso suscita tem que ver como o relevo jurídico-criminal da alteração do número de quilómetros de um veículo, por efeito da manipulação do totalizador do conta-quilómetros, em termos de se saber se alteração desse registo corporiza a falsificação de uma notação técnica, tal como vem acolhida no disposto no art. 255.°.
2. Antes de mais, importa delimitar, com maior efectividade, as funções do contaquilómetros dos veículos, para se apurar do relevo jurídico-criminal da sua viciação quanto ao número de quilómetros percorridos.
3. O conta-quilómetros dos veículos desempenha, essencialmente, duas funções, a saber: por um lado - talvez na sua principal função - serve para proporcionar a quem tripula o veículo informação sobre a velocidade instantânea, em ordem a observar os limites de velocidade que vigorem; por outro, na vertente do totalizador quilométrico, visa informar sobre o número de quilómetros percorridos, quer em termos parciais, quer na perspectiva dos quilómetros totais, informação esta que serve vários objectivos, como sejam: estabelecimento de distâncias, duração de viagens, média de consumos, observância dos períodos de manutenção, etc.
Casos há em que o equipamento - com a associação de um outro - permite às autoridades de fiscalização do trânsito recolher numerosa informação, adequada a determinar a existência de infracções, como sejam as relativas a excessos de velocidade ou à inobservância dos tempos máximos de condução continuada e de descanso.
Apenas em relação aos veículos para os quais é obrigatório este equipamento -DL n.º272/89, de 19 de Agosto - se encontram previstas especiais exigências, essencialmente a propósito das inspecções técnicas periódicas -cfr. DL n.º 554/99, de 16 de Dezembro, e seus anexos.
A propósito deste tipo de equipamentos, decidiu-se no Ac. da Relação de Coimbra, de 15-10-2008, que "Integra o crime de falsificação de notação técnica, p.p. pelo nº 2 do artº 258°, por referencia à al. b) do Artº 255° todos do CP a adulteração do tacógrafo que passe a produzir registos viciados, mesmo que o veículo esteja parado",
4. Quanto à generalidade dos veículos, que não estão obrigatoriamente apetrechados com tacógrafo, o conta-quilómetros, enquanto totalizador-vertente que releva no caso do recurso - é um equipamento meramente informativo, desprovido de consagração legal nos vários diplomas que regulam os equipamentos que guarnecem os veículos.
Se é certo que a informação que presta é importante para quem lide com o veículo, visto que fornece dados importantes para a sua conservação e manutenção, não vai o seu relevo muito para além disso.
Na prática, mesmo para o estabelecimento do valor dos veículos, tem-se verificado um certo apego ao ano de fabrico e ao número de proprietários que teve, menosprezando-se, em certa medida, a quilometragem que já percorreu.
As próprias normas e usos referentes à garantia prestada pelas marcas - matéria abordada na resposta do Ministério Público - assentam mais no ano de fabrico ou de colocação em circulação do que no número de quilómetros percorridos.
Não obstante isso, o número de quilómetros percorridos por um veículo pode ser um aspecto sobre o qual incidam erros - astuciosamente ou não - provocados, de forma a que eles possam ter algum relevo na perspectiva de um adquirente; sendo possível configurar esses erros como dados a propósito dos quais se forme erroneamente a vontade de adquirir, situação em que a manipulação do totalizador de quilómetros pode envolver elementos típicos do crime de burla.
5. Contudo, passar-se desse limitado relevo para a zona do crime de falsificação de notação técnica é dar um "salto" que só se afigura possível se estiver guarnecido dessa exigência, desse requisito, que é o de se destinar à prova de um facto juridicamente relevante.
6. Procurando-se buscar ensinamentos na doutrina e na jurisprudência sobre a natureza do equipamento e da qualificação das manipulações que sobre ele incidam, não se encontra grande produção a propósito do tema.
Inventariando as decisões jurisprudenciais conhecidas, que se debruçaram sobre a matéria, temos que o Ac. da Relação de Guimarães, de 21-11-2005, recusou relevância jurídico-penal à alteração do totalizador do conta-quilómetros, para efeito do crime de falsificação de notação técnica, prevista no art. 258.°, n.o 1, aI. b).
Por sua vez, o Ac. da Relação de Coimbra, de 09-07-2008, a propósito da perda de objectos a favor do Estado, não inclui no seu elenco os que tenham o conta-quilómetros viciado.
7. Para a doutrina "não é o suporte material onde se realiza aquele registo o relevante; o que importa para efeitos do crime de falsificação de notação técnica é a interferência em qualquer processo automático de notação que acabe por dar origem a um registo de notação falsa de um valor, de um peso, de uma medida, de um decurso de um acontecimento, e por conseguinte de uma notação técnica falsa ..... e "constitui requisito básico a notação ser destinada à prova de facto juridicamente relevante .... ".
Para além disso, "a notação enquanto informação produzida automaticamente deverá assegurar a função de perpetuação exigindo, assim, que a notação apareça num suporte próprio destacável da máquina ou, no mínimo, basta que o registo seja perdurável independentemente de aparecer num suporte autónomo,,3.
Destaca-se, pois, na economia da tipificação criminal, a exigência de que a notação se destine a provar um facto juridicamente relevante.
Uma vez produzido o atraso na contabilização dos quilómetros percorridos, perpetua-se no veículo um estado de não coincidência entre a quantidade de quilómetros que o veículo efectivamente percorreu e a que o conta-quilómetros passa a evidenciar, quadro que se torna irreversível.
Face à evidência de uma falsa realidade, mesmo nos casos limitados em que a quantidade de quilómetros percorrida se revela ponderável - caso dos adquirentes que se determinam em função dos quilómetros da viatura - fica impressa no conta-quilómetros uma falsa qualidade do veículo, capaz de determinar um erro na formação da vontade do adquirente e daí que tenhamos tal facto como juridicamente relevante.
O conta-quilómetros passa a documentar um facto, uma informação errada, susceptível de produzir efeitos nas relações jurídicas a estabelecer posteriormente, criando, nomeadamente, oportunidades de venda da viatura que, de outra forma, não existiriam, pelo menos, em tão grande número. Apesar de, como se disse, as características do veículo mais relevantes para efeitos de venda serem o ano fabrico e o número de proprietários anteriores, no caso dos veículos como um número de anos já expressivo, o número de quilómetros percorridos vem a ter influência decisiva nas transacções, sobretudo nos casos, como o dos autos, em que a viatura apresenta, à custa da falsificação, um número de quilómetros menor em larga medida - do que o expectável face ao seu ano de fabrico, tornando-se mais atractivo.
A divergência em questão apresenta um redobrado interesse no nosso país, que se tem constituído grande importador de veículos usados.
Com actuações como a que vem provada põe-se em causa a segurança e credibilidade da informação fornecida exclusivamente por aparelhos técnicos, no caso, os conta-quilómetros dos veículos.
Assim se projecta no comércio jurídico um elevado nível de descrédito sobre a informação que os aparelhos prestam.
O crime de falsificação de notação técnica é um crime de perigo abstracto, bastando que exista uma probabilidade de lesão da confiança que a comunidade atribui às notações realizadas através de tais aparelhos.
Em casos como o dos autos, a probabilidade de lesão é incontornável.
Não obstante o muito respeito pelas decisões acima citadas, cremos que o conta­quilómetros, na perspectiva dos dados fornecidos pelo seu totalizador, constitui um aparelho de medida que fornece informação/prova sobre um facto juridicamente relevante referente ao veículo; na exacta medida em que, mesmo para um leque restrito de destinatários, o número de quilómetros percorridos é um dado influente na formação da vontade aquisitiva.
8. Na defluência dos considerandos exarados, parece-nos que o recurso deverá ser julgado improcedente, confirmando-se a decisão recorrida.
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Foi cumprido o art. 417º nº 2 do C.P.P., sem que tivesse havido resposta.
Colhidos os vistos, foi o processo submetido à conferência.
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Cumpre decidir.
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II FUNDAMENTAÇÃO
São os seguintes os factos que o Tribunal colectivo deu como provados:
“Em Maio de 2002, o arguido B………. adquiriu o veículo ligeiro de passageiros de marca Mercedes-Benz, modelo …, com a matrícula ..-..-HP, a D………., tendo então tal veículo percorrido já cerca de 790.000 (setecentos e noventa mil) quilómetros.
Tal automóvel havia sido utilizado como táxi pelo seu anterior proprietário, a quem fora adquirido pelo referido D………. .
O arguido B………. sabia que o automóvel tivera tal utilização como taxi.
Em data não concretamente determinada situada entre Abril de 2002 e Janeiro de 2003, por modo e por pessoa ou pessoas não concretamente determinadas, mediante interferência no equipamento automático de contagem dos quilómetros percorridos, foi diminuído em cerca de 600.000 (seiscentos mil) o número de quilómetros que o quadrante do automóvel indicava, pelo que o real desgaste do veículo não tinha correspondência com o que constava do referido contador.
Com efeito, em 30.11.2001, o veículo fora inspeccionado e havia nessa data percorrido 728.233 quilómetros.
E em 03.02.2003 apresentava uma quilometragem de 182.781 quilómetros.
O arguido B………. teve conhecimento de que ocorrera alteração do referido contador de que resultara a diminuição do número de quilómetros exibidos, decidindo aproveitar-se de tal adulteração para melhor poder transaccionar o automóvel, mais facilmente encontrando interessados na sua compra.
Assim, em data não concretamente apurada de final de 2002 ou início de 2003, o arguido B………. vendeu o referido automóvel ao arguido E………., que desconhecia a descrita situação.
O arguido B………. livre, consciente e deliberadamente, decidiu aproveitar-se da alteração do quadrante do automóvel, comercializando-o como se o mesmo tivesse percorrido apenas o número de quilómetros que exibia o quadrante, apesar de saber que tal número de quilómetros era muito inferior ao realmente percorrido pelo automóvel e que resultava de alteração do equipamento de contagem.
Sabia também que desse modo podia afectar a confiança da generalidade das pessoas na fiabilidade e veracidade da informação resultante do uso de aparelhos de funcionamento automático, designadamente dos aparelhos de contagem de quilómetros dos automóveis.
O arguido B………. sabia que a sua descrita conduta era proibida e punida por lei.
Em Janeiro de 2003, o arguido E………. vendeu a referida viatura à demandante C………. .
O quadrante do automóvel exibia então cerca de 182.000 (cento e oitenta e dois mil) quilómetros.
O arguido E………. agiu livremente.
A demandante C………. sofreu privações, angústias, desgosto, incómodos e arrelias.
Passado algum tempo de efectuada a venda do automóvel pelo arguido E………. à demandante C………., o filho desta, F………., informou o arguido E……… que tinha feito uma inspecção ao carro e que esta havia revelado que o contador de quilómetros havia sido adulterado em cerca de 600.000 quilómetros.
Nessa ocasião o arguido E………. disponibilizou-se para fornecer elementos no sentido de descobrir o responsável por tal adulteração.
A demandante C………., por intermédio do seu filho, vendeu a dita viatura a um stand de automóveis, denominado “G……….”.
O arguido E………. acompanhou e colaborou nas diligências que culminaram na retoma, pelo arguido B………., da referida viatura.
O arguido B………. é bem considerado por pessoas que com ele convivem, designadamente nas relações de trabalho.
Não se lhe conhece qualquer condenação.”
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No que se refere aos factos não provados consignou-se que:
Em data não concretamente determinada, entre Maio de 2002 e Janeiro de 2003, o arguido B………., por forma também não concretamente apurada, diminuiu o número de quilómetros apresentados no quadrante do referido veículo “HP”, passando o mesmo a ostentar o número de cerca de 100.000 (cem mil) quilómetros.
O arguido B………. agiu com o propósito concretizado de interferir no quadrante existente na referida viatura, por forma a diminuir o número de quilómetros aí marcados.
O arguido B………. teve conhecimento de que a alteração no contador dos quilómetros percorridos consistira em interferência no equipamento automático de contagem.
O arguido B………. teve conhecimento que a diminuição do número de quilómetros que o quadrante do automóvel indicava fora de cerca de 600.000 (seiscentos mil).
O arguido B………. pretendeu obter na venda do veículo preço mais elevado do que o que poderia alcançar-se se eventuais compradores conhecessem o real desgaste do veículo.
O automóvel foi vendido pelo arguido B………. ao arguido E………. em Janeiro de 2003.
Quando o arguido B………. vendeu o automóvel ao arguido E………., o quadrante do automóvel ostentava então cerca de 128.000 (cento e vinte e oito mil) quilómetros.
O arguido E………. sempre soube que ao veículo em causa, do respectivo contador, haviam sido subtraídos mais de 600.000 quilómetros, sabendo ainda que o mesmo havia sido utilizado como táxi pelo seu anterior proprietário.
O arguido E………. vendeu o automóvel à demandante C………. pelo preço de €20.000 (vinte mil euros).
Quando o arguido E……… vendeu o automóvel à demandante C………., já sabia que aquele automóvel havia servido de táxi e que haviam sido alterados, diminuídos, os valores de quilómetros percorridos que o veículo ostentava.
Quando vendeu o automóvel à demandante C………., o arguido E………. sabia bem que o número de quilómetros que o quadrante exibia não correspondia à verdade acerca dos quilómetros percorridos pelo automóvel.
O arguido E………. fez crer a demandante C………. que o automóvel tinha 182.781 (cento e oitenta e dois mil, setecentos e oitenta e um) quilómetros.
O arguido E………., deliberada e conscientemente, criou na demandante a convicção de que a viatura tinha os quilómetros visíveis no respectivo quadrante bem sabendo que tal não correspondia à verdade, pretendendo determinar a demandante a celebrar o referido negócio e, dessa forma causar-lhe um prejuízo no montante de €20.000 (vinte mil euros) e obter para si vantagem patrimonial resultante da indevida valorização da mesma viatura, o que conseguiu.
O arguido E………. sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei.
O arguido E……….era vendedor de automóveis.
Nos preliminares que antecederam a efectivação do contrato de compra e venda com a demandante, esta procurou saber junto do arguido E………. a quilometragem entretanto percorrida pelo citado veículo, tendo-lhe sido assegurado pelo mesmo que o HP havia percorrido 182.781 quilómetros, tantos quantos assinalava o respectivo contador.
Mais referiu o arguido E………. à demandante que o veículo em causa era pertença de um seu tio e que o mesmo tinha efectivamente os quilómetros que o dispositivo respectivo assinalava.
O arguido E………. inculcou na demandante a ideia de que tal veículo tinha apenas os quilómetros que referiu, induzindo deliberadamente a demandante em erro, conformando-se com tal resultado.
Ambos os arguidos procuraram através de artifícios fraudulentos enganar terceiros interessados na compra do automóvel, para, dessa forma, à custa dos compradores, auferirem um proveito económico avultado.
Num veículo Mercedes como o em causa, um número de 182.781 quilómetros percorridos não é significativo em termos de desgaste e deterioração de motor e demais elementos constitutivos de um veículo dessa marca e modelo, sendo considerado de “semi-novo”.
Um veículo, Mercedes que seja, com a quilometragem real que o HP detinha, é considerado um veículo em “fim de vida”.
O valor de mercado do automóvel em causa, com a quilometragem real que detinha, nunca seria superior a €10.000.
O veículo apresentava sinais evidentes de grande quilometragem e uso, nomeadamente falta de compressão no motor.
O arguido E………. teve conhecimento da situação no preciso momento em que o filho da demandante o informou que o contador de quilómetros havia sido adulterado em cerca de 600.000 quilómetros.
No negócio entre a demandante C………. e o arguido E………. o automóvel foi entregue como sinal por conta de um contrato promessa de compra e venda celebrado entre ambos.
A demandante e o seu filho ocultaram a situação do contador de quilómetros ao dono do stand a quem entregaram a viatura.
O valor que a demandante despendeu com a compra da referida viatura foi totalmente recuperado com a venda da mesma ao stand denominado “G……….”.
A convicção do tribunal foi explicada como segue:
“Resultou a prova e não prova dos factos enunciados da ponderação crítica e conjunta, à luz de critérios de normalidade e experiência comum, das declarações prestadas no decurso da audiência por arguidos, demandante e testemunhas, bem como do teor dos documentos juntos aos autos (à excepção daqueles que não foram admitidos como meios de prova).
De tais declarações resultou que a postura dos sucessivos intervenientes na cadeia de transmissões que o automóvel percorreu depois da alienação pelo seu utilizador originário (a testemunha H………., taxista que utilizou o automóvel – cuja propriedade está desde Dezembro de 1996 registada a favor de I………., L.da, como resulta de fls. 7; cfr. também informação de fls. 80 – até à sua entrega a D………., referido na factualidade enunciada e também inquirido como testemunha) e até pela segunda vez chegar à posse do arguido B………., não se norteou pelos objectivos de transparência e lisura que seriam desejáveis no comércio, sendo que se afigura que a mesma atitude de tais intervenientes repercutiu-se no modo como perspectivam os factos ocorridos e no modo como os quiseram (ou não quiseram) descrever em julgamento, no decurso do qual foram patentes grandes contradições (nas e/ou entre as declarações dos diversos inquiridos), hesitações e particulares interesses na afirmação de versões diversas dos factos, que não poderão justificar-se apenas com o significativo período de tempo entretanto decorrido e que não permitem o esclarecimento inequívoco de todos os factos em causa, mas apenas daqueles que se enunciaram como provados.
Com efeito, como resulta da cópia de relatório de inspecção periódica realizada em 30.11.2001, no final de 2001 o quadrante do automóvel em causa exibia 728.233 km (fls. 10 e fls. 127-8 – cfr. também informação da DGV de fls. 195, 196, 198, 201, 204 e seguintes, bem como original de tal documento, junto no decurso da audiência, que consta de fls. 988); em Abril de 2002, apresentava 790.550 km (cfr. declaração escrita da sociedade “J………., L.da” de fls. 116, 125, 165 – sendo que foi tal empresa que por ocasião da venda ao referido taxista H………. de um veículo novo recebeu, para entrega ao também já referido comerciante de automóveis D……….., o automóvel em causa, cuja manutenção ali habitualmente era realizada, como esclareceu a testemunha K………., que à data trabalhava para tal concessionária da marca Mercedes), porém, em 03.02.2003 ostentava 182.781 quilómetros (como resulta do relatório junto a fls. 9, de inspecção periódica realizada por L………. inspector de veículos – cfr. fls. 91-4 – também inquirido como testemunha em audiência).
Ocorreu portanto entre Abril de 2002 (mês em que o referido taxista trocou o automóvel por um novo) e Fevereiro de 2003 (poucos dias ou semanas depois de o arguido E………. ter entregue o automóvel à demandante C……….) alteração do quadrante do automóvel, alteração essa que – como resultou dos depoimentos das diversas testemunhas conhecedoras do funcionamento de automóveis que foram inquiridas em audiência – poderia ter resultado de substituição do próprio motor ou de interferência electrónica no quadrante (que não se confunde com o velocímetro – “conta-quilómetros”).
Não obstante ter sido referida no decurso da audiência a realização de uma grande reparação no automóvel quando este era ainda utilizado pelo taxista H………., resultou certo que tal reparação não poderá ter estado na origem da alteração do quadrante, não só atento o teor do referido documento de acordo com o qual em Abril de 2002 o automóvel apresentava mais de 790 mil quilómetros, mas sobretudo considerando os depoimentos que se afiguraram inteiramente objectivos e verdadeiros dos referidos H………. e K………. (que referiram ter o automóvel aquando da alienação pelo primeiro mais de 700 mil quilómetros e que tal grande reparação ocorrera muito tempo antes daquela alienação).
De acordo com o repetidamente mencionado D………., este terá entregue o automóvel ao arguido B………. (que o contactou na sequência da publicação do anúncio de fls. 270) no preciso estado em que o recolhera na “J………., L.da”, ostentando perto de 800 mil quilómetros e com pintura característica de táxi. Afirmou ainda que nem informara, nem por qualquer pessoa ou modo fora informado, de qualquer alteração no quadrante e que a declaração de compra subscrita pelo arguido B………. foi preenchida quando foi entregue a tal arguido o automóvel (não afirmando com certeza se tal preenchimento foi integral – dizendo “julgar” que sim) e que o mesmo arguido antes de adquirir a viatura teve acesso aos relatórios de todas as anteriores revisões do carro, com a autorização do ainda proprietário (a testemunha H.………).
O arguido B………., todavia, contraria tal versão de SD………., tendo afirmado em audiência que quando adquiriu o carro este ostentava cerca de 150 (cento e cinquenta) mil quilómetros e que o vendedor D………. lhe dissera que aquele táxi sofrera uma reparação que consistira na substituição do “conta-quilómetros” por outro usado, tendo na realidade não 150 mas antes cerca de 400 mil quilómetros (reconheceu portanto o próprio arguido B………. que sabia bem que ocorrera alteração do quadrante e que o número de quilómetros que o carro ostentava não correspondia à realidade, sendo a diferença de mais de 200 mil). Segundo o arguido E………., na conversa que teve com D………. (depois de informado da alteração pelo filho da demandante C……….), este terá apresentado a mesma versão (que o quadrante fora trocado e que o arguido B………. disso sabia). Porém, ainda segundo o arguido E………., quando inicialmente interpelou o arguido B………. acerca da alteração do quadrante este último terá dito de nada saber.
Tal omissão do arguido B………. acerca da alteração, que sabia bem que existia, nas conversas que quer depois, quer antes (como o próprio arguido B………. afirmou em audiência) de concluir o negócio com o arguido E………. (omissão essa que suscita, desde logo, reservas acerca da veracidade das suas posteriores declarações), denota bem que pretendeu aproveitar a adulteração que sabia existir para mais facilmente poder negociar o automóvel (que tal informação – que o arguido B………. convenientemente omitiu, segundo o próprio afirmou – era importante para a definição dos termos do negócio e que o arguido B………. disso bem sabia, resulta não só de considerações de experiência comum mas também da circunstância de ter sido precisamente esse um dos aspectos acerca dos quais o arguido B………. afirma ter indagado antes de ele próprio adquirir o carro a D……….).
Não obstante as referidas contradições entre as declarações de D………. e as do arguido B………., certo é que, como já referido, este último reconheceu que sabia da existência da adulteração quando vendeu o carro ao co-arguido E………. e, pelos motivos já mencionados, não pode deixar de concluir-se que decidiu aproveitar-se de tal adulteração.
Não consentem todavia as provas produzidas a conclusão segundo a qual o arguido B………. tinha conhecimento de por que exacto modo fora realizada a adulteração (se substituição, se manipulação, etc.) ou da exacta dimensão da alteração (se diminuindo em 400 mil quilómetros, se antes em 600 mil, etc.), perante as já apontadas contradições, atentos os relatórios de exame pericial de fls. 401 e seguintes e de fls. 477 (os quais não permitem afirmar se algarismos “km 785.000” que constam da declaração de compra subscrita pelo arguido B………. (junta a fls. 479) foram, ou não, da autoria do mesmo arguido e nos quais se concluiu que tais algarismos foram manuscritos com instrumento de escrita diverso do utilizado no preenchimento dos restantes elementos da declaração – pelo que possivelmente terão sido preenchidos em ocasiões diversas, eventualmente pretendendo adequar o teor de tal declaração de compra e venda ao que fora constatado na referida inspecção realizada em Fevereiro de 2003 e ignorando o registo relativo a Abril de 2002), atenta ainda a circunstância de o referido H………. não ter podido esclarecer (por não ter a certeza) se o arguido B………. chegou a analisar os relatórios relativos às inspecções do automóvel, como tal testemunha autorizara e como D………. afirmou ter sucedido, e considerando por último os depoimentos de M………. e N………. (que trabalhavam na oficina onde, por indicação do arguido B………., o D………. entregou o carro para pintura e revisão, afirmando tais testemunhas que pouco depois de o carro ter chegado à oficina constataram que o mesmo apresentava número de quilómetros de cerca de 150 mil, número esse anormalmente baixo para um táxi, sendo a matrícula do carro de 1996).
Não se demonstrou que os valores por que foram realizadas as sucessivas transacções fossem mais elevados do que os que poderiam alcançar-se se fosse evidente o real número de quilómetros percorridos pelo veículo e, também por isso e na ausência de outras provas a tal respeito, não se demonstrou que o arguido B………. tenha agido pretendendo obter preço superior ao normal preço de mercado de um veículo com as reais características do em causa.
Com efeito, o originário dono do carro (a testemunha H……….) afirmou que o alienou por cerca de €12.500 (2.500 contos), estando o adquirente inicial (a concessionária da marca Mercedes “J………., L.da) perfeitamente ciente de que o automóvel tinha perto de 800 mil quilómetros, o que é consentâneo com o valor referido pelo já mencionado então colaborador da concessionária (a testemunha K……….), que aludiu a €10.000 ou €12.500; de seguida, o arguido B………. tê-lo-á comprado ao comerciante D………. por cerca de €15.450 (3.100 contos – cfr. já referida declaração de compra, sendo que quer o arguido B……… quer D………. referiram em julgamento ter sido esse o valor aproximado do negócio); depois de realizada pintura, reparação e inspecção mecânica geral (como mencionaram o arguido B………. e os já referidos trabalhadores da oficina) e depois de (segundo disse o arguido B……….) percorridos cerca de mais 30 mil quilómetros com o veículo, este terá sido vendido pelo arguido B………. ao arguido E………. por valor que se terá situado entre os €15.000 e os €20.000 (atentos o valor estimado do veículo que foi permutado e o valor ainda pago pelo arguido B………. que foram referidos pela testemunha O………., novamente mencionada infra).
Nenhum dos dois acréscimos no preço referidos se afigura desadequado à normal e aceitável especulação comercial (como mencionou a testemunha P………. – comerciante de automóveis e sobrinho da demandante C………. – os valores dos automóveis podem ser bem diversos consoante o comprador seja um comerciante de automóveis ou um consumidor final).
Relativamente aos valores por que o automóvel foi alienado pelo arguido E………. à demandante C………. e, depois, por esta ao comerciante a quem o arguido B………. veio a final a readquiri-lo, subsistem muito sérias dúvidas, face às declarações prestadas em audiência pelo arguido E………. (que referiu o valor de cerca de €14.000 para o negócio que fez com a demandante), pela testemunha O………. (companheira do arguido E………. que acompanhou toda a situação – sendo aliás através da sua conta bancária realizados depósitos dos valores relativos a negócios com a demandante – e que referiu o valor de cerca de €17.900), pela demandante C………. e pelo filho desta, F………., estes últimos referindo o valor de €20.000, sendo todavia as declarações dos dois últimos incoerentes entre si e com o teor dos documentos que, na sequência de tais declarações, foram juntos aos autos.
Com efeito, a demandante prestou declarações confusas, designadamente aquelas a que alude o despacho de fls. 651, referindo ter entregue um cheque no valor de €20.000 ao arguido E………. na data em que recebeu o automóvel, nessa mesma data tendo recebido do mesmo arguido cheque de valor equivalente a cerca de 8.000 contos (cerca de €39.900), este emitido por terceiro e referente a venda de imóvel que o arguido E………. e a sua companheira terão intermediado (cfr. intervenção destes como abonadores como consta da cópia da escritura pública datada 10.01.2003 – fls. 656 e seguintes). Porém, tais declarações da demandante não encontram correspondência no que resulta das informações e documentos remetidos pelo Q……….., a fls. 842 e seguintes (720 e seguintes) e a fls. 1003 e seguintes relativos aos movimentos realizados na conta do filho da demandante, F………., e dessa conta para a de O………. (para a conta da qual foi realizada em 13.01.2003 uma transferência no valor de €18.206,75, valor este que poderá eventualmente respeitar ao preço do automóvel ou a tal preço e a alguma remuneração do serviço de mediação imobiliária, etc.). E não é também a descrição dos factos feita pela demandante coerente com o que foi referido pelo seu filho F………. que, como resultou do julgamento, realizou ou acompanhou todos os contactos que precederam e sucederam a compra do carro pela sua mãe ao arguido E………. .
Designadamente, terá sido o filho da demandante, F………., quem diligenciou, já depois de concretizada a compra, pela realização de inspecção do automóvel (como foi referido também pela testemunha S………., que por indicação de F………. conduziu o carro à inspecção) na sequência da qual foi verificada a adulteração do quadrante. Quando confrontado com tal situação, o arguido E………. reagiu manifestando surpresa e indignação, como o próprio F………. mencionou e foi também testemunhado pelo repetidamente mencionado K……….. . Tais observadas reacções do arguido E………. credibilizam as declarações do mesmo (e da sua companheira O……….) de acordo com as quais soube da viciação do veículo apenas quando a tal respeito foi interpelado pelo filho da demandante.
Não consentem as provas produzidas concluir que a demandante sofreu o alegado prejuízo de €10.000 já que (para além de não se ter demonstrado que valor pagou ao arguido E………. pelo automóvel) a mesma veio a alienar o Mercedes por valor que não pode determinar-se (a demandante referiu que o valor de tal alienação foi de €10.000, realizando-se o negócio mediante permuta do Mercedes por um Renault ………. com cerca de 200 mil quilómetros; já o seu filho F………., afirmou que ………. tinha apenas 50 mil quilómetros…).
A perturbação da demandante perante o sucedido foi notória no modo como a mesma prestou as suas declarações e foi também referida pelas testemunhas T……….. (filho da demandante), U………. (irmã da demandante) e V……….. (cunhado).
A testemunha W………., irmão do arguido B……….., acerca da situação em causa sabia apenas o que o irmão lhe terá transmitido, excepção feita ao facto de o irmão ter feito diligências junto do stand onde o automóvel veio a ser entregue pela demandante (tendo a testemunha acompanhado o arguido numa deslocação a tal stand).
Relativamente à consideração de que goza o arguido B………, relevou o depoimento de X………. (amigo do arguido, de quem foi superior hierárquico).
Atentou-se ainda no teor dos certificados de registo criminal juntos a fls. 71, fls. 218, fls. 518.”
O Direito
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar[1], sem prejuízo das de conhecimento oficioso, designadamente os vícios indicados no art. 410º nº 2 do C.P.P.[2].
No caso dos autos, face às conclusões da motivação do recurso, as questões essenciais que importa decidir são as seguintes
- o preenchimento do crime de uso de falsificação de notação técnica

O recorrente insurge-se contra o facto de a alteração do conta-quilómetros de um veículo ter sido considerado pelo Tribunal “ a quo” como crime de falsificação técnica, alegando que aquele não se destina a provar um facto juridicamente relevante, pelo que faltaria este requisito constitutivo do ilícito em causa.
O ilícito pelo qual o arguido foi condenado encontra-se previsto no artº 258º nº 1 al. d) e nº 2 do Cod. Penal o qual estipula que:
“1. Quem, com intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, ou de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo:
a) .......
b) Falsificar ou alterar notação t
é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.
2. É equiparável a falsificação de notação técnica a acção perturbadora sobre aparelhos técnicos ou automáticos por meio da qual se influenciem os resultados da notação.”
Por sua vez a noção de notação técnica encontra-se definida no artº 255º al. b) do Cod. Penal como sendo "a notação de um valor, de um peso ou de uma medida, de um estado ou do decurso de um acontecimento, feita através de aparelho técnico que actua, total ou parcialmente, de forma automática, que permite reconhecer à generalidade das pessoas ou a um certo círculo de pessoas os seus resultados e se destina à prova de facto juridicamente relevante, quer tal destino lhe seja dado no momento da sua realização quer posteriormente".
Assim a notação permite reconhecer ao seu destinatário um facto juridicamente relevante, sendo que para efeitos do crime de falsificação o que constitui “documento” não é a notação mas o valor, peso, medida ou decurso de um acontecimento que aquela representa.
A questão em apreço resume-se a saber se o conta-quilómetros de um automóvel se destinar à prova de "facto juridicamente relevante".
"Facto juridicamente relevante" é aquele que, por si só, tem relevância para o direito, por a lei lhe atribuir efeitos ou utilidades, ou seja a partir do qual se constituem novas relações jurídicas obrigacionais.
No caso em apreço e estando em causa um veículo automóvel, facto juridicamente relevante seriam os elementos de identificação do mesmo, tais como dos números de matrícula, da carroçaria e do motor, elementos estes que embora oriundos de entidades particulares, têm por lei uma força probatória equivalente à dos documentos públicos Ac STJ de 26/02/97 proc. nº 1072/96.
Com efeito o objectivo principal que presidiu à criação deste tipo legal de crime (falsificação de notação técnica), para além da protecção aos dados que de forma total ou parcial são automaticamente processados por parelhos, foi igualmente a segurança e credibilidade no tráfico jurídico-probatório (Helena Moniz in Comentário Conimbricense, Vol II, pag, 701).
Os dados que um conta-quilómetros regista, por si só não tem nenhuma relevância para o direito, sendo que o seu não funcionamento, ou mesmo a sua ausência não tem qualquer cominação legal.
Dir-se-á que no caso da compra de um veículo usado, o número de quilómetros percorridos pela viatura poderia ser relevante para a sua aquisição.
Sem dúvida que sim, mas não no sentido de notação técnica que acima se referiu, relevante criminalmente como artifício fraudulento, e susceptível de integrar o crime de burla.
Por outro lado o crime de falsificação de notação técnica é um crime de perigo, uma vez que o agente é perseguido criminalmente, mesmo sem a utilização daquela notação.
E sendo assim pergunta-se se a simples alteração do número de quilómetros por um proprietário de um veículo, constitui só por si, o crime em apreço.
A resposta a nosso ver não poderá de deixar de ser negativa, uma vez que a conduta do agente não veio alterar nenhum dos elementos essenciais que fazendo parte do automóvel a lei dá relevância jurídica. (No sentido de que se vem a expor Acs. do Tribunal da Relação de Guimarães de 19/01/2004 processo nº 1241/03-1 Relator Nazaré Saraiva e de 21-11-2005 relator Fernando Monterroso)
Tem, pois, o arguido de ser absolvido deste crime.
*
III DECISÃO
Por todo o exposto, os Juízes desta Relação julgam procedente o recurso e, em consequência revogam a decisão recorrida e absolvem o arguido B………. do crime de uso de notação técnica falsificada p. e p. pelo artº 258º nº 1 al.s b) e d) e nº 2 do Cod. Penal.
Sem custas
(processado por computador e revisto pelo 1º signatário- artº 94º nº 2 do Cod. Proc. Penal)

Porto, 18/03/2009
Vasco Rui Gonçalves Pinhão Martins de Freitas
Maria do Carmo Saraiva de Menezes da Silva Dias

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[1] cfr. Prof. Germano Marques da Silva, "Curso de Processo Penal" III, 2ª ed., pág. 335 e jurisprudência uniforme do STJ (cfr. Ac. STJ de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, p. 196 e jurisprudência ali citada).
[2] Ac. STJ para fixação de jurisprudência nº 7/95, de 19/10/95, publicado no DR, série I-A de 28/12/95.