Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0714106
Nº Convencional: JTRP00041220
Relator: MARIA LEONOR ESTEVES
Descritores: NEGLIGÊNCIA
ANIMAIS
Nº do Documento: RP200804090714106
Data do Acordão: 04/09/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC. PENAL.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Indicações Eventuais: LIVRO 523 - FLS. 20.
Área Temática: .
Sumário: I. No caso de detenção de animais de companhia, impende sobre o respectivo detentor um especial dever de vigilância de forma a evitar que do comportamento daqueles animais advenha risco para a vida ou a integridade física de outras pessoas (e animais).
II. Na eventualidade de o animal causar danos na integridade física de uma pessoa, o detentor só será penalmente responsabilizado se não tiver exercido devidamente o seu dever de vigilância, não tendo previsto o evento ou, tendo-o previsto, confiado que ele se não viesse a verificar, quando o podia e devia ter previsto e, consequentemente, evitado o evento.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:

1. Relatório
No termo do inquérito que, com o nº ……./05.4PQPRT, correu termos nos serviços do Ministério Público de Vila Nova de Gaia, …ª secção, o MºPº proferiu despacho de arquivamento, ao abrigo do disposto no nº 2 do art. 277º do C.P.P., quanto ao crime de ofensa à integridade física negligente imputado ao arguido B…………………., devidamente identificado nos autos, por não terem sido reunidos indícios suficientes da prática de tal ilícito criminal por parte daquele arguido.
Tendo sido requerida a abertura da instrução pela ofendida C………………., que para tal se constituiu assistente, e deferido que foi tal requerimento, foram efectuadas diligências, após o que veio a ser realizado debate instrutório, o qual culminou com a prolação de decisão instrutória que não pronunciou o arguido pela prática daquele crime.
Inconformada com tal decisão, dela interpôs recurso a assistente, pretendendo a sua revogação e substituição por outra que, face à prova produzida, pronuncie o arguido pela prática daquele ilícito criminal ou, assim se não entendendo, que seja proferido um convite de aperfeiçoamento do requerimento de abertura da instrução, nos termos do nº 2 do art. 123º do C.P.P., formulando para tanto as seguintes conclusões:

1 O douto despacho recorrido fundamenta-se exclusivamente na inexistência de “indícios suficientes".
2 - A Recorrente entende que os factos provados, quer no inquérito, quer em sede de instrução, indiciam suficientemente a verificação do crime denunciado, pelo menos, a título de negligência.
3 – Violou, pois, o douto despacho recorrido, o disposto nos arts. 15º e 148º do C. P.

O recurso foi admitido.
Na resposta, o MºPº pugnou pela manutenção da decisão recorrida e consequente improcedência do recurso.
O Exmº Procurador-Geral Adjunto junto deste Tribunal emitiu parecer, no qual também se manifestou no sentido da improcedência do recurso.
Foi cumprido o disposto no art. 417º nº 2 do C.P.P., sem que tivesse havido resposta.
Colhidos os vistos legais, foi o processo submetido à conferência.
Cumpre decidir.

2. Fundamentação
É o seguinte o teor do requerimento que o assistente apresentou para abertura da instrução, na parte que ora nos interessa:

A) RAZÕES DA DISCORDÂNCIA DO DESPACHO DE ARQUIVAMENTO
o presente inquérito foi arquivado com os fundamentos constantes do despacho de fls ... r dele constando, designadamente que, "está afastada a prática, pelo arguido do crime de ofensas à integridade física por negligência, antes se indiciando a verificação de mero ilícito de natureza cível ... ".
Ora, salvo o devido respeito, tal conclusão contraria o estipulado no artigo 15° do Código Penal.
De facto, resulta dos autos que:
1 - O Arguido levava o canídeo pela trela, sem qualquer açaime.
2 - O local em que os factos ocorreram era, à data dos factos, muito frequentado.
3 - Perante tal situação o Arguido não cuidou de encurtar a trela do canídeo, a fim de evitar o resultado verificado.
4 - Do relatório do exame médico-legal resulta suficientemente provado que as lesões resultaram de mordidela canídea.
5 - O Arguido não tinha as vacinas do canídeo e apesar de assumir o pagamento de todas as despesas deu à Ofendida um contacto errado.
Do exposto resulta que o Arguido não procedeu com o cuidado devido, segundo as circunstâncias.
E, verificando-se tal falta de cuidado, está necessariamente preenchido o conceito de negligência que o douto despacho pretende afastar.
Na realidade, salvo o devido respeito, face ao estipulado na alínea b) do artigo 15° do C. Penal, será indiferente a questão de saber qual a raça do canídeo.
Tal dispositivo legal, expressamente refere que: “age com negligência quem, por não proceder com o cuidado que as circunstâncias exigem, está obrigado e de que é capaz:
a) (…)
b) Não chegar sequer a representar a possibilidade de realização do facto".
Do exposto resulta, assim, que, o Arguido não agiu com o cuidado a que estava obrigado naquelas circunstâncias.
E, salvo o devido respeito, tanto basta para se verificar a negligência.
Não há, pois, qualquer dúvida que se encontram verificados os pressupostos previstos nos artigos 15° e 148° do C.P.
B) CONCLUSÕES:
Indiciam suficientemente os autos que:
1º) No dia 26/05/2005, no passadiço da praia da Aguda junto ao “……………”,
a Ofendida foi mordida por um canídeo, cuja guarda estava entregue ao Arguido.
2º) Este, apesar de levar o canídeo pela trela, não tomou as devidas precauções para evitar que o animal atacasse as pessoas com que se cruzavam, o que se veio a verificar.
3°) Na circunstância, a referida passadeira era frequentada por várias pessoas.
4º) Por força de tal mordidela, a Ofendida recebeu tratamento hospitalar, e dela resultaram as lesões constantes do exame médico-legal de fls ... designadamente escoriações e equimoses localizadas na região lombar e direita da linha média.
5°) Do exposto resulta que o Arguido não procedeu com a diligência devida, no sentido de evitar o resultado verificado, bem sabendo que tal facto é punido por Lei.
6°) Pelo que, com tal actuação cometeu o crime de ofensas à integridade física p. e p. pelo artigo 148º do Código Penal.
Termos em que nos mais de direito, cujo douto suprimento de V. Exª se pede, deve, em sede de instrução, ser revogado o douto despacho de arquivamento e, em consequência, ser o Arguido pronunciado como A. do crime de ofensas à integridade física p. e p. pelo artigo 148º do Código Penal.

Por seu turno, a decisão recorrida é do seguinte teor:

O Tribunal é o competente.-
Não há nulidades, excepções, ou questões prévias a decidir.-
Inconformada com o arquivamento veio a assistente requerer a abertura de instrução, alegando em síntese que os factos descritos no inquérito integram a prática de ilícito criminal.
Arrolou prova que foi produzida.-
Procedeu-se a debate instrutório com a observância do legal formalismo.-
*
Cumpre decidir:
Analisado o despacho de arquivamento sindicado, verifica-se que o mesmo está escrupulosamente fundamentado, tendo sido cuidadosamente analisadas as questões de direito levantadas.
Da prova produzida em instrução, constante dos autos a fls.180ss, não resultam infirmados os pressupostos de facto e de direito ali referidos.
Não estão pois demonstrados os factos constantes do requerimento de instrução.
- * -
Importa agora concluir se a prova dos autos, integra, ou não, o conceito de "indícios suficientes" que rege esta fase.
De acordo com a jurisprudência corrente e doutrina dominante do STJ e outros tribunais superiores, tem-se vindo a entender que os indícios são suficientes quando permitam a formação de um juízo de probabilidade sobre a responsabilidade e culpabilidade do arguido, com a convicção de que ele poderá vir a ser condenado, sendo esta uma possibilidade positiva e não negativa. Como refere Luís Osório in “COMENTÁRIO AO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL PORTUGUÊS”, vol. 4, pág. 441, “devem considerar-se indícios suficientes aquele que fazem nascer em quem os aprecia a convicção de que o réu poderá vir a ser condenado”
No mesmo sentido e acrescentando que este conceito tem uma extensão precisa e incontornável, o AC do TR de Guimarães, datado de 7/7 de 2004, proc.139/04 - in www.dgsi.pt e também AC da RL de 6/11 de 2001, onde se refere “... os indícios ... são suficientes e prova bastante quando em face deles seja de considerar altamente provável a futura condenação do acusado, baseando-se a análise em um juízo objectivo da prova” e também o AC da RP, datado de 21/4/1993, que diz ser “... jurisprudência pacífica e uniforme o entendimento de que indícios suficientes ou prova bastante são aqueles elementos de facto recolhidos no processo, devidamente analisados e conjugados entre si e com as presunções judiciais ou naturais, ligadas ao princípio da normalidade e ás regras da experiência comum, que, a manterem-se em sede de julgamento, criam a convicção de que o arguido será condenado ou de que a condenação será mais provável do que a absolvição”.
Ainda a propósito deste conceito, refere Carlos Adérito Teixeira, in Revista do SEJ, 2° semestre, 2004, nº1, pág.189, “o juízo de indiciação suficiente deve, assim, ter por equivalente o juízo de condenação em julgamento. Difere, todavia, o contexto probatório em que a convicção se afirma: dada a ordem natural das coisas na fase posterior de julgamento, com a adição do imprescindível contraditório, da imediação da prova e do principio da investigação, bem pode reger o epistolado epistemológico segundo o qual uma anterioridade cronológica revela-se uma inferioridade lógica, a sobrepor-se, paradoxalmente, ao postulado de que só da prova concomitante ao facto se pode dizer que é genuína (por não ter sofrido a corrosão do tempo sobre a memória, sobre o suporte físico e sobre a redesistência do juízo)”.
Para além do crivo dos indícios suficientes, os factos têm também que ser vistos na perspectiva do art. 127° do CPP, segundo o qual, a prova é apreciada livremente, segundo as regras experiência comum.
Como se extrai das lições de Cavaleiro Ferreira, CURSO OE PROCESSO PENAL, II pág.27, a livre convicção não significa apreciação segundo impressões ou inexistência de pressupostos valorativos, objectivos, determinados pela experiências comum das coisas sentidas pelo homem médio; significa que o tribunal deve apreciar os factos com distanciamento, ponderação e capacidade critica, afastando subjectivismos injustificáveis ou conclusões arbitrárias; significa fundamentar o que se dá como provado.
Como se refere no AC do Tribunal Constitucional nº 464/94 de 1/7/1997 “... este principio da prova livre ou da livre convicção não é contrário ás garantias de defesa constitucionalmente consagradas. Em oposição a um sistema segundo o qual o valor da prova é dado por critérios legais-abstractos que o predeterminaram, dotados de um carácter de generalidade (que é o sistema da prova legal), o principio da prova livre evidencia a dimensão concreta da justiça e reconhece que a procura da verdade material não pode prescindir da consideração das circunstâncias do caso concreto em que essa verdade se reporta ...”.
Existindo dúvidas sobre a actuação do arguido, não devem nunca tais dúvidas ser valoradas contra os mesmos, sendo certo que a alta probabilidade contida nos indícios recolhidos, a que atrás se fez referência, deve aferir-se no plano táctico e não jurídico. E neste plano, “a falta de provas não pode, de modo algum, desfavorecer a posição do arguido: um “non liquet” na questão da prova ... tem de ser sempre valorado a favor do arguido. É com este sentido e conteúdo que se afirme o princípio “in dubio pro reo.” - -Figueiredo Dias, “Direito Processual Penal”, 1°, 1974, pag. 214.
Não se pode pois, como já se disse, afirmar de modo pleno, com o nível de segurança mínimo exigido nesta fase processual, que o arguido tivesse cometido o crime em causa.
Assim, pelas razões enunciadas, e porque não estão demonstrados os requisitos do crime referido no requerimento de abertura da instrução, concordando inteiramente com as razões enunciadas no douto despacho de arquivamento, que nos termos legais aqui dou como integralmente reproduzido, determino o oportuno arquivamento dos autos.
- * -
Pela realização da instrução são devidas duas UC's de taxa de justiça, a cargo da assistente.
Fixo em €125 os honorários a pagar a defensora oficiosa do arguido.
Notifique e oportunamente arquive.-

3.O Direito
Sendo o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões da recorrente, a questão que suscitou consiste em determinar se se mostra suficientemente indiciada nos autos a prática pelo recorrido do crime de ofensa à integridade física por negligência que por ela lhe foi imputado.

Comecemos por perspectivar a questão em termos de facto, tal como resulta da recolha de indícios levada a cabo nos autos.
A queixa apresentada pela ora recorrente fundou-se na imputação ao ora recorrido de este “não ter tomado as medidas necessárias para que o animal de espécie canina, tamanho normal, cuja raça não sabe definir, com o pelo normal, de cor preta, a tivesse mordido na zona lombar, causando-lhe fortes dores e um grande hematoma”.
Ouvida a fls. 27-28, a recorrente afirmou, nomeadamente, que, quando percorria o passadiço que liga dois bares existentes na praia da Aguda, “ao passar por um casal, os quais levavam um canídeo, foi mordida por este, sem que tivesse tempo para reagir ou se aperceber da intenção daquele. A depoente recorda-se ainda que o canídeo ia pela trela e que o passadiço onde todos circulavam tinha a largura suficiente para que, se os donos do canídeo tomassem as devidas precauções este não pudesse morder a depoente.”
No interrogatório a que foi sujeito (cfr. fls. 30-31 ), o recorrido declarou não pretender prestar declarações naquele momento. Ouvido posteriormente pela GNR a fim de apurar se era dono de algum cão e, em caso afirmativo, qual a respectiva raça e nome, declarou ( cfr. fls. 97 ) que “neste momento não possui qualquer canídeo, contudo já possuiu tendo o cão falecido há cerca de um ano. (…) o cão era de porte médio”.
A testemunha D…………….., ouvida a fls. 69, declarou que se encontrava com a recorrente, mas que esta se ausentou momentaneamente e que só alguns minutos depois se apercebeu de que alguma coisa se tinha passado por ter sido chamada pela proprietária de outro café, verificando então “que a sua amiga C……………… estava ferida na zona da perna junto à cintura (…) Que junto do local encontrava-se ainda um animal canídeo, de cor preta, com estatura média, sabendo ainda dizer que era do sexo feminino, a qual estava acompanhada dos seus donos”.
A testemunha E……………., no depoimento prestado a fls. 79-80, afirmou que acompanhava a recorrente quando foram tomar café a uma esplanada junto à orla marítima e que aquela “necessitou de usar uma casa de banho e para tal teve que se deslocar através do passadiço ali existente até um outro bar, onde existia casas de banho. No percurso até à casa de banho, a queixosa foi mordida por um canídeo pertencente a um casal que por ali passava. A depoente não viu a sua amiga C……………… a ser mordida (…) O canídeo era de grande porte e aparentava estar bem tratado”.
A testemunha F…………….., no depoimento prestado a fls. 82-83, afirmou não ter visto o que se passou, referindo que, quando a queixosa entrou no bar “reparou que, no exterior, se encontrava um jovem (…) com um cão” e que “não se recorda das características do canídeo”.
Por seu turno, a testemunha G………………, a quem havia pertencido o veículo em que o recorrido se fazia transportar, afirmou ( cfr. fls. 106 ) ter levado a queixosa a casa do comprador do veículo, referindo que “no local encontrava-se uma cadela de cor preta e castanha e que o depoente identificou como sendo da raça Rottweiler” e que “a denunciante ficou um pouco indecisa sobre se teria sido aquele o canídeo que a teria mordido”.
Finalmente, a testemunha H…………….., inquirida já em sede de instrução, afirmou (cfr. fls. 180-181) que tinha combinado ir ter com a assistente à praia da Aguda e que lhe foi dito pela E………… “que a assistente teria sido mordida por um cão”. Viu, então, que “ a assistente apresentava uma mordida de um canídeo na zona lombar do lado direito. Junto à assistente encontrava-se um rapaz que a depoente identifica como sendo o arguido e que este se fazia acompanhar por uma cadela que a depoente refere pensar tratar-se de um lavrador. (…) Refere que o cão se encontrava preso por uma trela e que terá ouvido dizer que quando o cão mordeu a ofendida, o arguido levava-o preso pela trela”.
Solicitado à GNR que se deslocasse à residência do arguido para averiguar se este era proprietário de algum canídeo de grande porte e, em caso afirmativo, qual a respectiva raça, foi obtida a seguinte informação ( a fls. 109 ): “foi verificado que (…) do interior de um barracão sito nas traseiras desta residência [ do arguido ] um animal de raça canídeo ladrou e pelo ladrar parecia um animal de grande porte”; não tendo sido possível localizar o arguido, foi contactado um indivíduo que se identificou como tio dele e que informou “que o animal que ladra nas traseiras do prédio é propriedade deste sobrinho, sendo de grande porte, de sexo masculino e arraçado do Doberman”.
Em sede de instrução, a ora recorrente juntou aos autos três fotografias, duas das quais retratando cartazes proibindo a circulação de animais domésticos e, em concreto, de cães na praia, referindo que os mesmos dizem respeito ao local onde os factos ocorreram.

Em ordem a determinarmos se estes indícios são suficientes para fundamentar a pronúncia do recorrido, vejamos como se coloca a questão em termos legais.
Inexistindo qualquer referência nos autos a que o recorrido tenha instigado o canídeo por que se fazia acompanhar a atacar a recorrente, afastada fica uma actuação de natureza dolosa, pelo que o único ilícito criminal que lhe pode ser imputado é o crime de ofensa à integridade física por negligência p. e p. pelo nº 1 do art. 148º do C. Penal. Esta norma contém a punição do agente que “por negligência, ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa”. Tratando-se de um crime de resultado, “o facto abrange não só a acção adequada a produzi-lo como a omissão adequada a evitá-lo”, de acordo com o disposto no nº 1 do art. 10º do C. Penal, sendo certo que no caso não é “outra a intenção da lei”, pois à norma interessam tanto as actividades que produzem o resultado que visa evitar, como as omissões que permitem a sua produção. Sendo inquestionável que a ofensa à integridade física da recorrente não resultou de uma acção do recorrido, mas sim do comportamento de um animal de raça canina que o acompanhava, o nexo de imputação do resultado típico ao recorrido só pode ocorrer por omissão. E, para que a comissão de um resultado por omissão seja punível, é necessário que sobre o omitente recaia um dever jurídico que pessoalmente o obrigue a evitar esse resultado ( cfr. nº 2 daquele art. 10º ). Assim, a imputação objectiva da conduta omissiva ao agente supõe a violação de um dever que especificamente sobre ele impende, derivando essa posição de garante e a inerente obrigação de evitar o resultado de “uma relação fáctica de proximidade – digamos existencial – entre o omitente e determinados bens jurídicos que ele tem o dever pessoal de proteger, ou entre o omitente e determinadas fontes de perigo por cujo controlo é pessoalmente responsável”[1].
Os cães vêm sendo utilizados pelo homem desde tempos imemoriais como animais de companhia e auxiliares de determinadas tarefas, sendo inegáveis os benefícios que se colhem do seu convívio. No entanto, tratando-se de animais irracionais, podem ter reacções susceptíveis de pôr em perigo a integridade física e até a vida dos seres humanos. Daí que a detenção dos mesmos por parte dos seus donos deva obedecer a determinadas regras destinadas a minimizar os perigos de eventuais ataques que possam protagonizar.
Ciente desta realidade, feita presente com especial acuidade nos tempos mais recentes devido à proliferação de episódios com consequências funestas que mereceram ampla divulgação nos meios de comunicação social, o legislador preocupou-se em estabelecer normas destinadas a regulamentar a detenção de animais de companhia.
Embora as primeiras restrições se encontrem já no DL nº 317/85 de 2/8 (nomeadamente a proibição, estabelecida no nº 1 do art. 12º, de presença “na via ou em quaisquer outros lugares públicos de cães sem açamo funcional, excepto quando conduzidos à trela ou, tratando-se de animais utilizados na caça, durante os actos venatórios ou em provas e treinos” ), à época o objectivo da lei restringia-se à implementação de medidas sanitárias destinadas a manter o país indemne de doenças de animais transmissíveis ao homem (zoonoses). Este diploma foi, entretanto, revogado pelo art. 9º do DL nº 91/2001 de 23/3 (cujo art. 6º continuou a prever e punir, no seu nº 5, como contra-ordenação “a falta de açaime ou trela, no caso dos cães”) que, por sua vez, veio a ser revogado pelo art. 19º do DL nº 314/2003 de 17/12 ( que manteve, no nº 2 do art. 7º e em idênticos termos, a proibição estabelecida no nº 1 do art. 12º do DL nº 317/85, continuando a puni-la como contra-ordenação na al. a) do nº 1 do art. 14º ).
Só com a entrada em vigor do DL nº 276/2001 de 17/10, que se destinou a complementar as normas da Convenção Europeia para a Protecção dos Animais de Companhia com vista à sua aplicação no território nacional, foi instituído o dever especial de cuidado do detentor de animais abrangidos por tal diploma (entre eles, obviamente, os cães, espécie que se enquadra na definição de “animal de companhia” contida na al. a) do art. 2º e em relação à qual também vêm estabelecidas condições particulares para a sua manutenção no art. 27º, ambos preceitos daquele diploma ). Assim, o art. 6º do referido DL estabeleceu que “incumbe ao detentor do animal o dever especial de o vigiar, de forma a evitar que este ponha em risco a vida ou integridade física de outras pessoas”, dever esse cuja violação foi prevista e punida como contra-ordenação na al. a) do nº 3 do art. 68º. Este diploma, logo no seu art. 2º, fornece diversas definições para efeitos do que nele se dispõe, destacando-se aqui a de “animal de companhia” ( qualquer animal detido ou destinado a ser detido pelo homem, designadamente, no seu lar, para seu entretenimento e companhia), “animal potencialmente perigoso (qualquer animal que, devido à sua especificidade fisiológica, tipologia racial, comportamento agressivo, tamanho ou potência de mandíbula, possa causar lesão ou morte a pessoas ou outros animais e danos a bens ) e “detentor” (qualquer pessoa, singular ou colectiva, responsável pelos animais de companhia para efeitos de reprodução, criação, manutenção, acomodação ou utilização, com ou sem fins comerciais). E, no seu capítulo VIII, contêm-se diversas normas específicas para a detenção e alojamento de animais selvagens ou de animais potencialmente perigosos, impondo-se, no que toca à sua circulação, que “Sempre que o detentor necessite de circular na via pública ou nos lugares públicos com os animais a que diz respeito este capitulo, deve fazê-lo com meios de contenção adequados à espécie e à raça ou cruzamento de raças, nomeadamente, usando contentores adequados (caixas, jaulas, gaiolas ou outros) ou açaimo funcional que não permita comer nem morder e, neste caso, seguro com trela curta (até 1 m de comprimento) que deve estar fixa a coleira ou a peitoral, tudo de material resistente” ( cfr. nº 3 do art. 61º ).
O art. 1º do DL nº 315/2003 de 17/12 veio introduzir algumas alterações a este diploma, entre as quais uma alteração na redacção do art. 6º acima transcrito, de modo a alargar o dever nele previsto à salvaguarda da vida e integridade física de outros animais (“Incumbe ao detentor do animal o dever especial de o cuidar, de forma a não pôr em causa os parâmetros de bem-estar, bem como de o vigiar, de forma a evitar que este ponha em risco a vida ou a integridade física de outras pessoas e animais” ), mantendo o sancionamento como contra-ordenação da violação do dito dever “que crie perigo para a vida ou integridade física de outrem”.
A detenção de animais perigosos e potencialmente perigosos, enquanto animais de companhia, veio, entretanto, a ser objecto de regulamentação autónoma com a entrada em vigor do DL nº 312/2003. Mais uma vez se enunciam, no nº 2 do seu art. 2º, diversas definições legais para efeitos desse diploma, interessando-nos aqui as de “animal perigoso” (qualquer animal que tenha mordido, atacado ou ofendido o corpo ou a saúde de uma pessoa; tenha ferido gravemente ou morto um outro animal fora da propriedade do detentor; tenha sido declarado, voluntariamente, pelo seu detentor, à junta de freguesia da sua área de residência, que tem um carácter e comportamento agressivos; ou tenha sido considerado pela autoridade competente como um risco para a segurança de pessoas ou animais, devido ao seu comportamento agressivo ou especificidade fisiológica), “animal potencialmente perigoso” (qualquer animal que, devido às características da espécie, comportamento agressivo, tamanho ou potência de mandíbula, possa causar lesão ou morte a pessoas ou outros animais, nomeadamente os cães pertencentes às raças que venham a ser incluídas em portaria do Ministro da Agricultura, Desenvolvimento Rural e Pescas[ A Portaria em causa é a nº 422/2004 de 24/4 que veio definir “que as raças de cães e os cruzamentos de raças potencialmente perigosos sejam os que constam do anexo à presente portaria, que dela faz parte integrante”, constando desse anexo as seguintes raças: I) Cão de fila brasileiro. II) Dogue argentino. III) Pit bull terrier. IV) Rottweiller. V) Staffordshire terrier americano. VI ) Staffordshire bull terrier. VII) Tosa inu. ], bem como os cruzamentos de primeira geração destas, os cruzamentos destas entre si ou cruzamentos destas com outras raças, obtendo assim uma tipologia semelhante a algumas das raças ali referidas) e “detentor” (qualquer pessoa, individual ou colectiva, que mantenha sob a sua responsabilidade, mesmo que a título temporário, um animal perigoso ou potencialmente perigoso ).
No art. 6º estabelece-se o dever especial de vigilância que impende sobre o detentor dos animais abrangidos por este diploma, para além de medidas de segurança especiais nos alojamentos ( art. 7º ) e na circulação ( art. 8º ), estas em termos idênticos aos que já constavam do nº 3 do art. 61º do DL nº 276/2001: assim, tais animais ( excepção feita aos que são usados nos termos previstos no nº 3 deste preceito ) “não podem circular sozinhos na via pública ou em lugares públicos, devendo ser conduzidos por detentor maior de 16 anos” e que “sempre que o detentor necessite de circular na via pública ou em lugares públicos com os animais a que se refere este diploma, deve fazê-lo com meios de contenção adequados à espécie e à raça ou cruzamento de raças, nomeadamente caixas, jaulas ou gaiolas, ou açaimo funcional que não permita comer nem morder e, neste caso, devidamente seguro com trela curta até 1 m de comprimento, que deve estar fixa a coleira ou peitoral”. A violação das regras de circulação destes animais é punível como contra-ordenação, nos termos do art. 17º.
Vistos, no essencial e para o que aqui nos importa, os termos em que a lei regulamenta a detenção de animais de companhia ( entre eles os cães ) e estabelece o dever especial de cuidado que impende sobre o respectivo detentor, há que chamar agora à colação a norma do art. 15º do C. Penal, pois não basta a mera imputação objectiva da conduta omissiva ao agente para estabelecer a sua responsabilização jurídico-penal, que terá também de assentar numa forma de culpa ( cfr. art. 13º do C. Penal) que permita a formulação de um juízo de reprovação pelo que fez, ou pelo que deixou de fazer quando podia e devia ter feito.
De acordo com a norma daquele art. 15º, “age com negligência quem, por não proceder com o cuidado a que, segundo as circunstâncias está obrigado e de que é capaz: a) representar como possível a realização de um facto correspondente a um tipo de crime, mas actua sem se conformar com essa realização; ou b) não chegar sequer a representar a possibilidade de realização do facto.”
Para que a conduta do agente se possa considerar negligente, não basta a mera inobservância de um dever jurídico, sendo ainda necessário que esse dever seja adequado a evitar a produção do evento. Por outro lado, não basta que o agente não tenha usado da diligência que lhe era exigida de acordo com as circunstâncias concretas, tendo em conta os seus conhecimentos e capacidades pessoais, sendo ainda necessário que a produção do evento seja previsível e que ele só a não haja previsto, ou previsto em toda a sua extensão, porque não actuou com a diligência que o dever de cuidado (geral ou específico) que sobre impendia lhe impunha.
No caso da detenção de animais de companhia, já acima vimos que sobre o respectivo detentor impende um dever jurídico que lhe impõe particulares cuidados de vigilância de forma a evitar que do comportamento daqueles animais advenha risco para a vida ou a integridade física de outras pessoas (e animais). Na eventualidade de se produzir o evento que a norma que impõe tal dever visa evitar, o detentor poderá ser responsabilizado criminalmente desde que, encontrando-se em condições de o fazer e tendo capacidade para o fazer, não tenha exercido devidamente o seu dever de vigilância, dessa forma não obstando a que o respectivo animal atacasse e causasse ofensa à integridade física ou à vida de terceiros, não tendo previsto que esse ataque pudesse ocorrer ou, tendo-o previsto, confiando que ele se não viesse a verificar, quando o podia e devia ter previsto, e consequentemente evitado o evento, caso tivesse vigiado e controlado devidamente o dito animal.

Traçado o quadro de facto e de direito, é chegada a altura de dele extrairmos as pertinentes conclusões.
Desde logo, perante os elementos constantes dos autos, apenas podemos concluir, com alguma segurança, que o canídeo que mordeu a recorrente e que era detido pelo recorrido era um animal do sexo feminino, de cor preta e com um porte entre o médio e o grande. Nada se apurou que permita afirmar, ainda que apenas a nível indiciário, qual a raça do mesmo: a recorrente não a conseguiu discriminar (não conseguiu mesmo dizer se a cadela que a testemunha G…………….. identificou como sendo de raça Rottweiler e que se encontrava na habitação do recorrido quando, tempos depois, ali se deslocou na companhia daquela testemunha era a mesma que a tinha mordido ), das testemunhas que estiveram no local e viram o canídeo, só a H…………… afirmou pensar tratar-se de um animal da raça Labrador, e a referência a um canídeo arraçado de Doberman que estava nas traseiras da habitação do recorrido quando a GNR ali se deslocou é irrelevante, além do mais porque se trata de um animal do sexo masculino.
Sendo tais elementos manifestamente insuficientes para considerar indiciariamente determinada a raça do animal em causa, e inexistindo quaisquer outros elementos que permitissem enquadrá-lo, antes da ocorrência, na definição legal de animal perigoso ou potencialmente perigoso, não lhe eram aplicáveis as regras de circulação estabelecidas no art. 8º do DL nº 312/2003 e às quais acima aludimos. Assim, o recorrido, enquanto seu detentor, apenas estava obrigado a trazê-lo na via pública ( ou em quaisquer outros lugares públicos) com um destes dois meios de contenção: açaime funcional ou trela. E, obviamente também, a vigiá-lo de forma a evitar que pusesse em risco a vida ou a integridade física de outras pessoas ( ou animais ).
Ora, se por um lado não sofre contestação que o recorrido trazia o canídeo pela trela (a própria recorrente afirmou-o expressamente sem que tal facto se mostre contrariado por qualquer outro meio de prova, antes encontrando confirmação no depoimento da única testemunha que se pronunciou acerca desse particular, H……………., que o viu preso pela trela e ouviu dizer que ia contido da mesma forma quando mordeu aquela), por outro não há quaisquer elementos que permitam concluir não se ter tratado de um ataque perfeitamente ocasional, devido a uma mudança súbita de humor provocada por causas que não foram referidas e nem foi possível apurar, e completamente inesperado, mesmo para o recorrido. Aliás, no sentido de que se tratou de um ataque súbito apontam as próprias declarações da recorrente, quando afirma que foi mordida pelo canídeo “sem que tivesse tempo para reagir ou se aperceber da intenção daquele”. Assim, não se vê como se possa afirmar, mesmo em termos indiciários, que o recorrido podia e devia ter previsto o comportamento do animal e a possibilidade de atacar e molestar fisicamente a recorrente, e devia ter tomado medidas reforçadas de cautela, para além de trazer o animal atrelado, para o evitar.
Nesta medida ( e, evidentemente, sem prejuízo da responsabilidade civil pelos danos causados pelo canídeo que possa recair sobre o recorrido, e que eventualmente venha a ser discutida em acção cível ), não é possível afirmar o nexo de imputação subjectiva do resultado ao recorrido em termos de se prever como mais provável a sua condenação do que a sua absolvição, caso fosse submetido a julgamento.
Refira-se, por último, que não releva para o caso a ( alegada ) proibição da circulação de animais pelo local onde ocorreu o ataque. Mesmo dando de barato que ela abranja aquele específico local, a ratio da proibição de permanência e circulação de animais em determinadas zonas das praias vocacionadas para utilização balnear encontra-se primordialmente em exigências de protecção ambiental e de higiene e saúde pública (com vista a evitar a conspurcação de zonas balneárias pela urina, pelas fezes e pelos parasitas dos animais), particularmente prementes tendo em conta que nesses locais os respectivos frequentadores andam usualmente menos protegidos por peças de vestuário e calçado, e não tanto na prevenção de ataques naquelas zonas específicas, sendo certo que inexiste qualquer indicador de que a incidência de tais episódios em zonas balneares seja maior do que em qualquer outro local. Assim, e ainda que a circulação do canídeo naquele local fosse feita em violação de uma proibição legal que não questionamos poder ali existir, o resultado típico verificado está claramente fora do âmbito de protecção da correspondente norma. As circunstâncias de lugar são, no caso, perfeitamente irrelevantes, inexistindo qualquer ligação entre as características do mesmo e a ocorrência do ataque que podia ter sucedido ali como em qualquer outra parte.
Donde se conclui, sem necessidade de outras considerações, que não merece censura o despacho recorrido, devendo por isso manter-se.

4. Decisão
Pelo exposto, julgam improcedente o recurso e mantêm o despacho recorrido.
Vai a recorrente condenada em taxa de justiça que se fixa em 4 ( quatro ) UC.

Porto, 9 de Abril de 2008
Maria Leonor de C. Vasconcelos Esteves
Maria do Carmo S. de Menezes da Silva Dias
Jaime Paulo Tavares Valério
___________
[1] cfr. Figueiredo Dias, Jornadas de Direito Criminal do CEJ, 1983, pág. 56.