Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0110232
Nº Convencional: JTRP00033417
Relator: MARQUES SALGUEIRO
Descritores: DOENÇA
DOENÇA GRAVE
SAÚDE PÚBLICA
PERIGOSIDADE
MEDIDA DE SEGURANÇA
INTERNAMENTO HOSPITALAR
COMPETÊNCIA DOS TRIBUNAIS DE INSTÂNCIA
Nº do Documento: RP200202060110232
Data do Acordão: 02/06/2002
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recorrido: 2 J CR GUIMARÃES
Processo no Tribunal Recorrido: 635/00
Data Dec. Recorrida: 07/14/2000
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: PROVIDO. REVOGADA A DECISÃO.
Área Temática: DIR CRIM - TEORIA GERAL.
Legislação Nacional: CP95 ART1 N3.
L 36/98 DE 1998/07/24.
CONST97 ART27 N1 N2 N3 ART64 N1.
L 2036 DE 1949/08/09 BI BIII D BV N1 N3.
L 48/90 DE 1990/08/24 BXIX N3.
Sumário: Impõe-se o internamento compulsivo, da competência do juiz e não da autoridade administrativa, do doente que sofre de tuberculose pulmonar e se recusa a tratar-se, havendo perigo de contagiar terceiros, conviventes directos, e risco iminente para a saúde pública.
Trata-se de uma situação de perigosidade decorrente não de um facto objectivamente criminoso mas da própria natureza da doença que, pela sua reconhecida gravidade e sendo altamente contagiosa, justifica, por si só, a aplicação de medidas de defesa da sociedade (e também do próprio doente).
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam na Relação do Porto:

No Tribunal Judicial da comarca de....., o Ministério Público instaurou contra TOMÁS....., melhor identificado nos autos, acção para aplicação ao requerido de medida de segurança de internamento compulsivo, alegando essencialmente que o requerido sofre de tuberculose pulmonar e se recusa a tratar-se, havendo assim perigo concreto de contagiar terceiros, conviventes directos, e risco iminente para a saúde pública, dado o elevado potencial de infecciosidade da doença em causa.
Fundou essa pretensão no disposto nas Bases I, nº 2, III-d, V e VI da Lei nº 2036, de 9/8/1949, no artº 5º, nº 2, al. d), da Lei nº 336/93, de 29 de Setembro, no Dec.Lei nº 547/76, de 10 de Julho, e nos artº 6º, 7º, 8º, 9º, 12º e 13º e segs. da Lei nº 36/98, de 24 de Julho, 8º, nº 1 a 3, e 10º, nº 1 e 2, do C.Civil, 1º e 3º, al. e) e g), da Lei nº 60/98, de 27 de Agosto, 34º do C.Penal, 27º, nº 1, 2 e 3, al. h), 29º, nº 3, e 30º, nº 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa.
Distribuído o processo ao -º Juízo Criminal, o Mmº Juiz foi esse requerimento liminarmente indeferido, porque a Lei de Saúde Mental - Lei nº 36/98 -, que prevê o internamento de portadores de anomalia psíquica, sendo uma lei especial, não pode, nos termos do nº 3 do artº 1º do C. Penal, ser aplicada por analogia à situação em apreço, sendo que, de resto, uma tal medida de internamento seria restritiva dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos que só por lei anterior podem ser limitados.
A par disto, as medidas de segurança previstas no Código Penal são apenas aplicáveis aos casos aí expressamente previstos, de perigosidade criminal, não abarcando a situação concreta que ora se coloca e que é caracterizada por uma mera perigosidade social.
Inconformado com esta decisão, interpôs recurso o Exmº Procurador Adjunto, traduzindo nas numerosas conclusões que alinha a seguinte ordem de argumentos:
- A decisão impugnada apenas argumenta com a impossibilidade de recurso pela analogia à Lei da Saúde Mental - Lei nº 36/98, de 24 de Julho -, não se pronunciando quanto à aplicação por analogia do Dec.Lei nº 547/76, de 10 de Julho, que, quanto à doença de Hansen, contempla caso paralelo;
- Não atendeu também ao disposto no nº 2 da Base I, Base III, al. d), e Bases V, VI e VII da Lei nº 2036, de 9/8/1949 - Lei genérica da luta contra as doenças contagiosas -, lei não revogada, nem declarada inconstitucional;
- O artº 27º, nº 2, da Constituição da República Portuguesa permite a aplicação judicial de medida de segurança privativa da liberdade.
Assim:
- Das bases citadas daquela Lei nº 2036 decorre a obrigatoriedade de internamento dos doentes e suspeitos que ofereçam perigo imediato e grave de contágio e não possam ser tratados na sua residência ou recusem iniciar ou prosseguir o tratamento ou a abster-se da prática de actos de que possa resultar a transmissão da doença, atribuindo à Direcção-Geral de Saúde a competência para determinar esse internamento;
- E, embora o nº 2 da Base I preveja que a luta contra a tuberculose será regulada por diploma especial, os diplomas depois publicados nada prevêem quanto a internamentos compulsivos, pelo que se lhes continuou a aplicar a Lei nº 2036;
- Porém, já quanto à lepra, o Dec.Lei nº 547/76 prevê o internamento compulsivo determinado pelo juiz a requerimento do Mº Pº ou da autoridade de saúde, pelo tempo necessário à resolução da situação, diploma que, publicado já na vigência da Constituição da República, inculca que o legislador acolheu um conceito de medida de segurança, no âmbito do artº 27º da Constituição, que abrange as medidas de polícia sanitária em casos de perigo para a saúde pública, independentemente da prática de qualquer infracção criminal por parte da pessoa a ser sujeita à medida a aplicar pelo tribunal;
- Tal como sucede com o internamento de doentes mentais, não é hoje possível que o internamento compulsivo seja determinado pela autoridade administrativa, devendo ser decretado pelo Tribunal, nos termos do artº 27º da Constituição, seja qual for a doença infecciosa que o fundamente.
- A protecção penal decorrente do artº 283º do C.Penal não é suficiente nestes casos para prevenir o dano, pois que a prova da propagação da doença torna-se difícil (as pessoas infectadas só passado algum tempo tomam conhecimento do contágio e desconhecem a sua origem) e a aplicação da norma, no âmbito da tentativa, pressupondo o dolo, torna-se de eficácia muito problemática.
- O internamento proposto não tem natureza administrativa, antes sendo uma medida de segurança fundada em decisão judicial com base legal, contemplada, ainda que não na totalidade, na Lei nº 2036, sendo necessário o recurso à analogia para complementar a omissão legislativa em presença, aplicando-se aqui analogicamente os artº 6º, 7º, 8º 9º, 12º e 13º e segs. da Lei nº 36/98, por força dos artº 8º, nº 1 a 3, e 10º, nº 1 e 2, do C.Civil, ou o artº 5º, nº 3, do Dec.Lei nº 547/76, que possibilita ao Mº Pº ou à autoridade de saúde requerer ao juiz o internamento compulsivo em estabelecimento hospitalar dos portadores da doença de Hansen (lepra) que, por negligência ou recusa, não cumpram as prescrições terapêuticas ou as indicações necessárias para a defesa da saúde pública.
Respondeu o requerido, contrariando a argumentação explanada no recurso e concluindo pela confirmação do decidido.
Nesta Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto, em douto parecer, pronuncia-se pelo provimento do recurso, essencialmente sustentando ser aplicável a Lei nº 2.036 que prevê a imposição do internamento aos doentes contagiosos, sempre que haja grave perigo de contágio e não seja possível o tratamento ambulatório ou domiciliário, ainda que, por imperativo constitucional, a competência para determinar esse internamento não possa agora caber às autoridades administrativas, mas ao juiz.
O requerido não respondeu.
Cumpridos os vistos, cabe decidir.
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A questão que se coloca cinge-se a saber se há fundamento legal para o internamento compulsivo de quem, padecendo de tuberculose pulmonar, recusa tratar-se e deambula pelas vias públicas, podendo assim afectar outras pessoas.
Antecipando, diremos que se crê que a resposta não pode deixar de ser afirmativa.
Debatem-se aqui dois interesses que se dirão opostos, ambos constitucionalmente protegidos: por um lado, o direito do requerido à liberdade (artº 27º, nº 1, da Constituição), pelo outro, o direito dos cidadãos em geral à protecção da sua saúde, direito este a que, em complemento, corresponde o dever de todos de a defender e promover (artº 64º, nº 1).
Mas, é patente que o direito dos cidadãos à liberdade não é absoluto, como se alcança logo do nº 2 desse artº 27, onde se dispõe que “ninguém pode ser total ou parcialmente privado da liberdade, a não ser em consequência de sentença judicial condenatória ... ou de aplicação judicial de medida de segurança” (sublinhado nosso).
Assim, à luz do diploma fundamental, uma das situações de lícita privação da liberdade é precisamente a que se traduz na aplicação, por decisão judicial, de uma medida de segurança, assim, de uma medida que, à partida, é dirigida a proteger a sociedade contra a perigosidade do indivíduo a quem é aplicada, mas que, do mesmo passo, também não perde de vista a protecção do próprio indivíduo.
E, com o Exmº Procurador-Geral Adjunto, também pensamos que essas medidas de segurança não serão apenas medidas de natureza penal, isto é, que tenham na sua base uma perigosidade justificada num crime, abarcando ainda as medidas que visem prevenir outras situações de perigosidade que não tenham essa etiologia, como logo se intui do nº 3 do preceito - que, excepcionando ao princípio definido no nº 2, prevê situações de possível limitação da liberdade sem prévia decisão judicial -, ao incluir na al. h) o “internamento de portador de anomalia psíquica”; situação em que a perigosidade, justificativa do internamento, decorre da anomalia psíquica em si mesma, não tendo, necessariamente, como suporte o cometimento pelo agente de um facto “objectivamente criminoso”.
Similarmente, também quanto à tuberculose ou quanto à doença de Hansen (lepra), não se trata de situações de perigosidade fundada em crime (ou em facto objectivamente criminoso), mas de perigosidade decorrente da própria natureza dessas doenças que, pela sua reconhecida gravidade e sendo altamente contagiosas, justificam, por si sós, a aplicação de medidas de defesa da sociedade (e também do próprio doente), que o mesmo é dizer, medidas de segurança de natureza não criminal, designadamente a de internamento para tratamento do portador de tais doenças. Nos exactos termos consentidos pelo supra aludido nº 2 do artº 27º da Constituição que, assim, a nosso ver, não é obstáculo ao pretendido internamento do requerido.
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Ancorada assim a questão na lei fundamental, vejamos a lei ordinária.
Liminarmente, dir-se-á que, não tendo essas medidas natureza penal, se crê correcto o entendimento do Exmº Procurador-Geral Adjunto, recusando o obstáculo da proibição da analogia que o nº 3 do artº 1º do C. Penal estabelece e a que, como vimos, o despacho recorrido se arrimou para justificar a decisão aí acolhida.
Porém, essa via apenas será de seguir se não houver lei directamente aplicável.
O que não será o caso, pois se tem como certo que não pode deixar de relevar aqui a Lei nº 2.036, de 9/8/1949 - Lei de Bases da Luta contra as Doenças Contagiosas -, cuja Base I logo enquadra a tuberculose e a lepra nessa categoria das “doenças contagiosas”; e com tal relevo as considerou o legislador - certamente, pela difusão que então haviam alcançado e facilidade da sua propagação, a exigir específicas medidas de combate - que houve por bem remeter para diplomas especiais a regulamentação dessa luta.
Mas isso não significa que aquela Lei, como lei-quadro da luta contra as doenças contagiosas, não lhes seja desde logo aplicável e deva de ser ignorada.
Ora, dispondo em termos genéricos para as doenças contagiosas, englobando, pois, a tuberculose, a Base III, onde se definem as competências da Direcção-Geral de Saúde, estabelece, na al. d), que compete àquela entidade “determinar o internamento, que será obrigatório, dos doentes contagiosos sempre que haja grave perigo de contágio ...”, prosseguindo no nº 1 da Base V que “os indivíduos afectados ou suspeitos de doença contagiosa serão objecto de vigilância sanitária e submetidos, conforme os casos, a um dos regimes seguintes: a) Observação e tratamento ambulatório ou domiciliário; b) Internamento em estabelecimento adequado” e reiterando, no nº 3, a obrigatoriedade de internamento dos doentes e suspeitos que, oferecendo perigo imediato e grave de contágio, não possam ser tratados na residência ou os que recusem iniciar ou prosseguir o tratamento.
Na mesma linha e já no domínio do actual quadro constitucional, se posicionou a Lei nº 48/90, de 24 de Agosto - Lei de Bases da Saúde -, em cuja Base XIX, sob a epígrafe “Autoridades de Saúde”, se dispõe no nº 3 que “cabe ainda especialmente às autoridades de saúde: ... c) Desencadear, de acordo com a Constituição e a lei, o internamento ou a prestação compulsiva de cuidados de saúde a indivíduos em situação de prejudicarem a saúde pública”.
Ora, não oferecendo dúvida que os que sofrem de tuberculose, doença altamente contagiosa, e recusam tratamento se colocam em situação de prejudicar a saúde pública, aliás gravemente, dada a exponencial propagação da doença que propiciam, pensa-se, em conclusão, que a legislação apontada confere base bastante para que, a uma situação como a que a petição desenha, se possa fazer corresponder a pedida medida de segurança de internamento compulsivo.
Deste modo, resta apenas o aspecto formal do procedimento a seguir, sendo seguro que, nesse particular, a Lei nº 2.036 não pode valer, por isso que atribuía à Direcção-Geral de Saúde a competência para determinar o internamento compulsivo, o que, significando necessariamente uma privação da liberdade, colidiria com a Constituição que, como se viu, ressalvadas as situações excepcionais nela consignadas, só por decisão judicial admite a possibilidade de limitação desse direito fundamental; competência que, de resto, a também acima referida Lei de Bases da Saúde (Lei nº 48/90) claramente rejeitou - como não podia deixar de ser -, apenas conferindo às autoridades de saúde o poder/dever de, de acordo com a Constituição e a lei, desencadear esse internamento e já não o poder de o determinar.
Mas, como também se julga seguro, exigindo-se uma decisão judicial e estando em causa o interesse público da preservação e defesa da saúde pública, cabe naturalmente nos poderes do Ministério Público promover o necessário para atingir tal fim, nada obstando a que, para tanto, no desenho do iter a seguir e dos limites em que a medida se deva confinar, se lance mão das normas pertinentes do Dec.Lei nº 547/76, de 10 de Julho, relativo à Doença de Hansen (lepra) ou da Lei nº 36/98, de 24 de Julho (Lei de Saúde Mental).
Porque assim, o recurso merece provimento.
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Nesta conformidade, acorda-se em conceder provimento ao recurso do Mº Pº, pelo que se revoga o despacho recorrido que deverá ser substituído por outro que, acolhendo o requerimento do Mº Pº, faça prosseguir o processo como no caso couber.
Sem tributação.
Porto, 06 de Fevereiro de 2002
José Henriques Marques Salgueiro
António Joaquim da Costa Mortágua
Manuel Joaquim Braz