Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0524260
Nº Convencional: JTRP00038440
Relator: HENRIQUE ARAÚJO
Descritores: SOCIEDADE COMERCIAL
PERSONALIDADE JURÍDICA
SÓCIO
Nº do Documento: RP200510250524260
Data do Acordão: 10/25/2005
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Área Temática: .
Sumário: I- Quando a personalidade colectiva seja usada de modo ilicito ou abusivo para prejudicar terceiros, é possivel proceder ao levantamento da personalidade colectiva.
II- Esta abrange o abuso da personalidade e o abuso da responsabilidade limitada.
III- A desconsideração da personalidade jurídica só deverá ser invocado quando inexistir outro fundamento legal que invalide a conduta do sócio ou da sociedade que se pretende atacar.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO:

RELATÓRIO

B............, Réu no processo n.º ..../03.8, que corre termos pela ...ª Vara de Competência Mista do Tribunal Judicial de Vila Nova de Gaia, interpôs recurso do despacho que indeferiu liminarmente o pedido de intervenção principal provocada de C....... e mulher, D......, como associados do Autor E........ .
O recurso foi admitido como de agravo, com subida imediata e em separado, com efeito meramente devolutivo – v. fls. 140.
Nas alegações de recurso, o recorrente pede a revogação do despacho impugnado, com base nas seguintes conclusões:
A. Foi suscitado nesta acção o incidente de intervenção principal provocada de várias pessoas singulares e bem assim de uma sociedade comercial que gira sob a designação de “F........, Lda.”.
B. Entre as pessoas singulares relativamente às quais foi suscitado o mencionado incidente contam-se o recorrido C........ e a sua mulher, D......., sendo certo que a razão pela qual se suscitou a intervenção daquele e, inerentemente, a intervenção desta, foi a circunstância de ambos serem detentores de uma posição societária na identificada sociedade.
C. Lançou-se mão, por conseguinte, da figura da desconsideração da personalidade colectiva.
D. Isso mesmo foi explicitado na fundamentação do pedido formulado, sendo certo que essa fundamentação foi considerada curial e adequada quanto ao referido ente societário.
E. (…)
F. Foi entendimento do Tribunal a quo que, emergentemente do princípio de Direito Societário que consagra a separação de patrimónios dos sócios e das sociedades, não havia fundamento para assegurar a intervenção do sócio da sociedade em causa e da sua mulher.
G. O argumento em apreço foi logo suscitado ex ante no articulado em que se contém o incidente, sendo certo que o foi exactamente para demonstrar-se a impossibilidade da sua invocação, isto com base na ideia nuclear, de Direito Societário também, de que a ficção jurídica que é a atribuição de personalidade colectiva visa exclusivamente a prossecução de fins lícitos.
H. A personalidade colectiva, ficção jurídica que é, não é em si um valor absoluto e especialmente não pode ter uma finalidade redutora, ou seja, quando, como é o caso, estejam em causa práticas contrárias à Ordem Jurídica – práticas ilícitas –, a personalidade colectiva não pode ter a natureza de um manto ou véu de protecção dessas mesmas práticas.
I. Quando estejam em causa situações desse tipo, deve funcionar de pleno a desconsideração da personalidade colectiva, que deve ser superada para se atingirem os efectivos agentes de tais práticas ilícitas.
J. Está assim em causa o respeito pelo princípio da licitude do objecto societário, que tem de o ser na sua formulação abstracta que esteja inscrita no contrato social e bem assim também deve ser exercido em obediência a critérios de licitude.
K. E, porque a atribuição da personalidade jurídica aos entes colectivos deve também obedecer a estritos critérios de licitude, critérios que devem merecer também valoração na própria prática societária, consumada esta pela via dos seus sócios, quando isso não se verifique, como foi o caso dirimido nestes autos, impõe-se superar por completo o véu da personalidade colectiva, ultrapassando-o – ultrapassando a ficção jurídica em causa –, isto para atingir por completo a realidade subjacente.
L. Ao não ter sido sufragado o entendimento referido, consumou-se uma frontal agressão ao disposto nos arts. 5º e 11º, n.º 2, ambos do CSC, que estabelecem exactamente a parametrização da personalidade colectiva e do objecto societário, em termos de obediência ao princípio da licitude plena.
M. Os próprios princípios gerais do Ordenamento Jurídico impõem uma solução em que a lei seja interpretada de acordo com uma sua conformação dotada de efectiva licitude, sendo certo que a visão redutora da personalidade jurídica cooptada no douto despacho em apreço é completamente agressora desses princípios gerais.

Não houve contra-alegações.

A Mmª Juiz proferiu despacho tabelar de sustentação.

Foram colhidos os vistos legais.
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Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente – arts. 684º, n.º 3 e 690º do CPC – a única questão a debater é a de saber se deve ser admitida a intervenção principal de C......... e mulher, D......, com base na figura da “desconsideração da personalidade colectiva do ente societário”.
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FUNDAMENTAÇÃO

OS FACTOS

Consta dos autos que:
1. E.......... propôs contra o agravante e mulher, G......., uma acção declarativa de condenação, sob a forma ordinária, em que, alegando ter adquirido por compra e registado em seu nome a fracção identificada no art. 1º da respectiva petição inicial, pede que se condenem os Réus a:
reconhecer que a referida fracção é propriedade do Autor;
deixá-la e entregá-la ao Autor livre de pessoas e coisas;
pagar a importância de € 300,00 por cada mês de ocupação da referida fracção, com início a partir da citação e até à restituição da mesma livre de pessoas e coisas – cfr. fls. 41 a 44.
2. O agravante contestou a acção, nos termos que constam de fls. 46 a 82, dizendo, para o que agora interessa, que:
- por contrato-promessa de compra e venda outorgado em 10 de Fevereiro de 1989, a fracção predial em causa foi-lhe prometida vender pelo arquitecto H......... e mulher, I..........., e J......... e mulher, L.........;
- na altura da celebração desse contrato-promessa operou-se a efectiva traditio da identificada fracção a favor do agravante e este, a partir de então, passou ininterruptamente a fazer a sua vida nesse lugar;
- na tentativa de lesarem o agravante, o J........ e um seu filho, de nome C........, constituíram entre si uma sociedade comercial por quotas, que gira sob a denominação “F........, Lda.”, que ‘adquiriu’ a fracção prometida vender aos seus formais proprietários, o arquitecto H........ e sua mulher;
- de seguida, essa sociedade comercial “vendeu” a dita fracção ao Autor da presente acção, o E........;
- estes dois negócios simulados são nulos na medida em que apenas visaram intencionalmente – com dolo – prejudicar o agravante.
3. O agravante, no mesmo articulado, para além de deduzir pedido reconvencional, requereu a intervenção principal de H........ e sua ex-mulher, I........., e J........ e mulher, L........., de C...... e mulher, D........., e da “F.........., Lda.”.
4. O Autor opôs-se à requerida intervenção.
5. Por despacho datado de 25.03.2004, a Mmª Juiz admitiu a intervenção principal provocada de todos os chamados, com excepção de C......... e mulher – v. fls. 84 a 87.

O DIREITO

Como já se disse, o agravante requereu o chamamento à lide, como associados do Autor, de:
H........ e sua ex-mulher, I.........;
J......... e mulher, L.........;
C......... e mulher, D..........; e
“F..........., Lda”.
Também já se disse que o requerido chamamento foi admitido em relação aos chamados indicados em 1., 2. e 4, tendo o tribunal a quo indeferido o incidente no tocante aos chamados identificados em 3.
Foi esse indeferimento que provocou o presente recurso de agravo.

Vejamos, antes de mais, qual a razão de ser do requerimento de intervenção principal provocada de todos chamados, na versão apresentada pelo Réu/Reconvinte (aqui agravante).
O agravante terá prometido comprar aos chamados referidos em 1. e 2., que lhe prometeram vender, a fracção predial que o Autor reivindica como sua.
Com o objectivo de lesarem o agravante promitente-comprador, o J......... (2º chamado) e um seu filho, C......... (3º chamado), formaram entre si uma sociedade comercial por quotas que é a “F.........., Lda.” (4ª chamada), de que são únicos sócios e gerentes.
Esta sociedade “adquiriu” a fracção ao H........... e ex-mulher (1ºs chamados) e, posteriormente, em 29.01.2003, “vendeu-a” ao Autor desta acção por cerca de 1/3 do valor que havia sido estipulado no contrato-promessa de 10.02.1989.
No seu articulado, o agravante defendeu o chamamento de C......... e mulher, com base prática de actos ilícitos e obscuros praticados pela sociedade de que o primeiro é sócio com seu pai (4ª chamada), apelando para a figura da “desconsideração da personalidade jurídica da sociedade comercial” – cfr. arts. 82º e 83º da contestação/reconvenção. Mais à frente (arts. 112º a 119º) clarificou que esses actos ilícitos se traduziam, afinal, na prática de dois contratos contrários à lei e simulados, feridos de nulidade: os contratos de compra e venda celebrados entre os 1ºs chamados e a 4ª chamada e entre esta e o Autor.
O agravante pede, assim, que o tribunal decrete a nulidade desses contratos de compra e venda, e, bem assim, a execução específica do contrato-promessa firmado entre o agravante e os 1ºs e 2ºs chamados para obstar a entrega da fracção predial reivindicada pelo Autor.
No despacho impugnado, o indeferimento do chamamento de C......... e mulher foi justificado pelo facto de a sociedade em causa gozar de personalidade jurídica, “o que tem reflexos, desde logo, no que se refere à sua autonomia patrimonial, ou seja, ao facto de a sociedade ter um património próprio e, por isso, diferente e independente dos patrimónios dos respectivos sócios”. Não foi abordada, porém, a questão da “desconsideração da pessoa colectiva” como causa justificativa do chamamento de C......... e mulher.
Deve, todavia, adiantar-se que esse instituto não se afigura aplicável à situação vertente.

Como é sabido, as pessoas colectivas são centros autónomos de relações jurídicas, autónomos mesmo em relação aos seus membros ou às pessoas que actuam como seus órgãos. Por isso, o art. 5º do Código das Sociedades Comerciais explicita que as sociedades gozam de personalidade jurídica.
O princípio da separação de patrimónios e de atribuição da personalidade jurídica às sociedades constitui uma solução de compromisso, um ponto de equilíbrio entre interesses, pelo menos aparentemente opostos:
- o interesse do sócio que, visando prevenir-se contra os riscos inerentes ao exercício de uma actividade comercial, pretende afectar a esta apenas uma parte delimitada do seu património, salvaguardando a restante;
- o interesse de terceiros, futuros e potenciais parceiros comerciais da sociedade, e portanto, a necessidade de incutir no comércio em geral um sentimento de confiança, credibilidade e de segurança nas transacções comerciais – v. Amílcar Brito de Pinho Fernandes, “Responsabilidade dos Sócios por Actos da Sociedade”, Textos do CEJ “Sociedades Comerciais”, 1994/1995, pág. 62.
Quando a personalidade colectiva seja usada de modo ilícito ou abusivo, para prejudicar terceiros, existindo uma utilização contrária a normas ou princípios gerais, incluindo a ética dos negócios, é possível proceder ao levantamento da personalidade colectiva: é o que a doutrina designa pela desconsideração ou superação da personalidade jurídica colectiva – cfr. Menezes Cordeiro, “O Levantamento da Personalidade Colectiva”, Almedina, 2000, pág. 122 e segs; Pedro Cordeiro, “A Desconsideração da Personalidade Jurídica das Sociedades Comerciais”, pág. 77.
Em tese geral, pode dizer-se que a desconsideração da personalidade jurídica da pessoa colectiva, imposta pelos ditames da boa fé, se traduz no desrespeito pela separação pelo princípio da separação entre a pessoa colectiva e os seus membros.
Nos casos de desconsideração o que se passa é que a própria sociedade (pessoa colectiva) se desvia da rota que o ordenamento jurídico lhe traçou, optando por um comportamento abusivo e fraudulento que não pode ser tolerado na utilização funcional da sociedade ou de que aquela conduta não é substancialmente da sociedade mas do ou dos seus sócios (ou ao invés).
A sociedade é, assim, utilizada para mascarar uma situação; ela serve de véu para encobrir uma realidade – cfr. Pedro Cordeiro, ob. cit., pág. 73, nota 75.

A desconsideração da personalidade jurídica engloba o abuso da personalidade e o abuso da responsabilidade limitada.
Tradicionalmente a desconsideração da pessoa colectiva é construída como técnica que permite subtrair o património (pessoal ou social) dos sócios ao benefício da responsabilidade limitada – v. Ricardo Costa, “Boletim da Ordem dos Advogados”, n.º 30, pág. 10 e ss. É neste domínio do abuso da responsabilidade limitada que o instituto da desconsideração da personalidade adquire toda a sua dimensão.
Hoje, estão mais ou menos sistematizadas as condutas societárias reprováveis que, nessa vertente, podem conduzir à aplicação do referido instituto.
De entre elas, avultam: a confusão ou promiscuidade entre as esferas jurídicas da sociedade e dos sócios; a subcapitalização, originária ou superveniente, da sociedade por insuficiência de recursos patrimoniais necessários para concretizar o objecto social e prosseguir a sua actividade; as relações de domínio grupal – v. Ricardo Costa, loc. cit., págs. 13/14.
Mas, também na vertente do abuso da personalidade se podem perfilar algumas situações em que a sociedade comercial é utilizada pelo(s) sócio(s) para contornar uma obrigação legal ou contratual que ele, individualmente assumiu, ou para encobrir um negócio contrário à lei, funcionando como interposta pessoa. Nessas hipóteses, desde que seja patente um comportamento abusivo e fraudulento por parte de determinado sócio, em prejuízo de terceiros, supera-se a capa da sociedade e passa a ver-se esse sócio, que responderá individualmente perante o lesado, após ser chamado a juízo.
A desconsideração da personalidade jurídica só deverá, porém, ser invocado quando inexistir outro fundamento legal que invalide a conduta do sócio ou da sociedade que se pretende atacar. Por isso se diz que a aplicação desse instituto tem carácter subsidiário – v. Amílcar Brito de Pinho Fernandes, loc. cit., pág. 65.
Não estranha, por isso, que a maioria das situações de abuso da personalidade jurídica da sociedade comercial, correspondam a violações de normas contratuais ou legais que se dirimem com base nas mesmas.
E, no caso concreto dos autos, é evidente que a pretensão do agravante se basta com a aplicação das normas que podem conduzir à declaração de nulidade dos negócios em causa, de acordo com a alegação do agravante/réu/reconvinte. Falamos, designadamente, dos arts. 280º, n.º 2 e 240º, n.º 2, do CC, que declaram ser nulos, respectivamente, o negócio contrário à ordem pública ou ofensivo dos bons costumes e o negócio simulado – v. arts. 114º a 119º da contestação/reconvenção do agravante.
Deste modo, e à luz do âmbito em que pode ocorrer a intervenção principal provocada – art. 325º do CPC –, não se justifica o chamamento de C........ e de sua mulher.
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DECISÃO

Nos termos expostos, nega-se provimento ao agravo, mantendo-se o despacho recorrido.

Custas pelo agravante.
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Porto, 25 de Outubro de 2005
Henrique Luís de Brito Araújo
Afonso Henrique Cabral Ferreira
Albino de Lemos Jorge