Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0828002
Nº Convencional: JTRP00042597
Relator: RODRIGUES PIRES
Descritores: IMPUGNAÇÃO PAULIANA
INEFICÁCIA
Nº do Documento: RP200905190828002
Data do Acordão: 05/19/2009
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: REVOGADA EM PARTE.
Indicações Eventuais: LIVRO 312 - FLS 115.
Área Temática: .
Sumário: I - Apesar de os autores terem pedido que se declarasse nula e de nenhum efeito a doação a 1ª Instância deveria ter declarado tal doação ineficaz relativamente aos autores na medida do valor do seu crédito.
II - Tal não significa qualquer violação do disposto no art. 661, n° 1 do Cód. do Proc. Civil, que impede a condenação em quantidade superior ou em objecto diverso do que se pedir, porque o erro na qualificação jurídica do efeito prático que o autor pretende obter com a acção de impugnação pauliana (que é a inutilização jurídica do acto, na parte em que a mesma atinge o direito do autor) deve ser corrigido pelo juiz sem a mais ligeira ofensa do princípio dispositivo, tal como o art. 664 do Cód. Proc. Civil o concebe e o define.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 8002/08 – 2
Apelação
Decisão recorrida: proc. nº 2710/03.1 TBPVZ do .º Juízo do Tribunal Judicial da Póvoa de Varzim
Recorrentes: B………. e outro
Recorridos: C………. e outro
Relator: Eduardo Rodrigues Pires
Adjuntos: Desembargadores Canelas Brás e Pinto dos Santos

Acordam na secção cível do Tribunal da Relação do Porto:
RELATÓRIO
Os autores C………. e mulher D………., residentes na Rua ………., nº …, freguesia de ………., Póvoa de Varzim, intentaram a presente acção declarativa comum ordinária contra os réus E………. e mulher F………., residentes na Rua ………., nº .., Póvoa de Varzim, G………. e mulher H………., residentes na Rua ………., nº .., ………., Entrada ., rés-do-chão, direito, Póvoa de Varzim e B………. e marido I………., residentes na Rua ……….., nº …, freguesia de ………., Póvoa de Varzim, pedindo que seja declarada nula e de nenhum efeito a doação efectuada pelos primeiros réus ao segundo e terceiros réus titulada por escritura pública celebrada em 12 de Abril de 2002, tudo com as legais consequências.
Alegam, os autores como causa de pedir que o autor marido é credor dos primeiros réus – E………. e mulher F………. - da quantia de 34.915.85€ (trinta e quatro mil novecentos e quinze euros e oitenta e cinco cêntimos), importância esta emprestada em 11 de Dezembro de 2001.
Os réus comprometeram-se a pagar-lhe esse montante no prazo de um ano contado da data do referido empréstimo, acrescida dos respectivos juros, calculados à taxa de 10% ao ano, mas não o fizeram nesse prazo, nem em data posterior.
Os réus naquela altura eram donos e possuidores de uma casa de habitação no valor aproximado de €200.000,00, de um prédio rústico sito na freguesia de ………., também no valor aproximado de 200,00€ e de uma fracção autónoma destinada a actividades económicas sita na freguesia de ………., no valor de 40.000€. Exploravam ainda, um estabelecimento comercial de recauchutagem que sofria e sofre de dificuldades financeiras na sua exploração.
Depois dos primeiros réus terem contraído o empréstimo em causa e antes da data do seu vencimento, estes através de escritura pública celebrada em 12 de Abril de 2002, no Segundo Cartório da Secretaria Notarial da Póvoa de Varzim, doaram o aludido prédio sito na freguesia de ………., em comum e em partes iguais, ao segundo réu, seu filho e aos terceiros réus, sua irmã e cunhada.
A doação feita ao filho foi por conta das suas quotas disponíveis e a feita à irmã e cunhado, também o é necessariamente por conta das suas quotas disponíveis e atribuíram à doação o valor de apenas 25.000€, quando de facto, o prédio vale seguramente 200.000€.
Depois da escritura de doação, os primeiros réus deram de hipoteca a sua casa de habitação sita nesta cidade e a indicada fracção autónoma sita em …….. ao J………., através da escritura pública de hipoteca outorgada em 9 de Julho de 2002, no Primeiro Cartório da Secretaria Notarial da Póvoa de Varzim.
Com esta escritura o J………. garantiu ser-lhe efectuado pelos primeiros réus o pagamento de um mútuo que nessa altura celebrou com os primeiros réus no valor de 285.750€.
Por outro lado, o estabelecimento comercial que os primeiros réus exploravam e exploram não conseguiu recuperar a dinâmica comercial, bem ao invés está em situação de falência.
Com a doação efectuada pelos primeiros réus aos segundos e terceiros réus feita depois do empréstimo a que acresceu a hipoteca feita ao J………. diminuiu drástica e totalmente a garantia que o autor tinha para recuperar o crédito que tem junto dos primeiros réus.
Regularmente citados, os réus B………. e marido, I………., contestaram a acção por excepção invocando que a ser verdade o suposto contrato de mútuo, o mesmo apenas seria válido se fosse celebrado por escritura pública, conforme dispõe o artigo 1143º do CC, sendo, pois, nulo por falta de forma, o aludido contrato. Impugnam, no mais, a factualidade alegada pelos autores na petição inicial.
Os autores replicaram.
Os réus G………. e mulher, H………., foram citados editalmente, sendo a sua defesa assegurada pelo Ministério Público.
Em despacho unitário saneou-se e condensou-se o processo (cfr. fls. 140 e segs).
Efectuou-se audiência de julgamento com observância do legal formalismo, tendo o tribunal respondido à matéria de facto controvertida através do despacho de fls. 321 e segs.
Foi depois proferida sentença que julgou a acção procedente, tendo declarado nula e de nenhum efeito a doação efectuada pelos primeiros réus, E………. e mulher F………., ao segundo e terceiros réus, G………. e mulher H………., B………. e marido I………., titulada por escritura pública celebrada em 12 de Abril de 2002, tudo com as legais consequências.
Inconformados, os réus B………. e marido I………., interpuseram recurso de apelação, tendo finalizado as suas alegações com as seguintes conclusões:
1ª Na sentença ora em recurso, certamente, por lapso, o Meritíssimo Senhor Juiz “a quo” não fez referência à resposta dada aos factos constantes do quesito 14º da Base Instrutória, o que constitui uma nulidade da sentença, que ora se invoca não tendo, assim, sido especificados todos os fundamentos de facto que, na óptica do Meritíssimo Senhor Juiz “a quo” justificam a decisão.
2ª O presente recurso de apelação tem também por objecto a reapreciação da prova gravada, ou seja, da matéria de facto, o que ora se alega nos termos e para os efeitos do disposto no artº 698º, nº 6 do Código de Processo Civil, impondo, por isso, impugnação da matéria de facto nos termos do disposto nas alíneas a) e b) do nº 1 do artº 712º do Código de Processo Civil, o que ora se consigna pelo que, nos termos também do disposto no artº 690-A, nº 1, al. a) e b) do mesmo diploma legal, os apelantes não se podem, de modo algum, conformar com a decisão da matéria de facto, pois, no seu entender, há erro na apreciação da prova que impugna e considera incorrectamente julgados os seguintes pontos, a saber:
3ª Na decisão sobre a matéria de facto, no que respeita aos factos constantes dos quesitos 8º da Base Instrutória foi dado como provado que “O estabelecimento de recauchutagem aludido em D), na altura do empréstimo atravessava dificuldades financeiras, não tendo conseguido recuperar a dinâmica comercial, nem pagar as suas dívidas” e, no entender dos apelantes em lado nenhum dos referidos quesitos se perguntava se essas dificuldades financeiras se reportavam ao momento do empréstimo – que, na óptica dos Apelados, foi em 11 de Dezembro de 2001 – mas antes à data em que a presente acção foi distribuída em Juízo (16/10/2003), pois o verbo está no presente e não no passado, sendo que estes factos são essenciais até porque há uma dilação temporal de cerca de dois anos entre a pergunta e a respectiva resposta!
4ª Os apelados, que eram a parte interessada, nunca manifestaram vontade de se aproveitar desses factos dados como provados no quesito 8º da Base Instrutória.
5ª Porém, o Tribunal “a quo” fundamentou-se também nesses factos para julgar a acção procedente e condenar tanto os apelantes como os demais réus no pedido pelo que, houve, assim, excesso de pronúncia uma vez que o julgador conheceu de questões de que não podia tomar conhecimento, o que constitui uma nulidade que ora se invoca com todas as legais consequências.
6ª Quando assim se não entenda, na decisão sobre a matéria de facto, no que respeita aos factos constantes do quesito 8º da Base Instrutória que foram dados como parcialmente provados, deviam ter sido dados como não provados, o que se requer.
7ª Na decisão sobre a matéria de facto, no que respeita aos factos constantes do quesito 17º da Base Instrutória que foram dados como parcialmente provados, deviam ter sido dados como não provados, o que se requer.
8ª Na decisão sobre a matéria de facto, no que respeita aos factos constantes dos quesitos 5º da Base Instrutória que foi dado como parcialmente provado quanto ao valor, devia ter sido dado como não provado quanto ao respectivo valor, o que se requer.
9ª Na decisão sobre a matéria de facto, no que respeita aos factos constantes dos quesitos 13º, 15º e 16º da Base Instrutória que foram dados como parcialmente provados, deviam ter sido dados como inteiramente provados, o que se requer.
10ª Na decisão sobre a matéria de facto, no que respeita aos factos constantes dos quesitos 1º e 2º da Base Instrutória que foram dados como provados, deviam ter sido dados como não provados, o que se requer.
11ª Há, assim, erro na apreciação da prova.
12ª Os meios probatórios constantes do processo e do registo ou gravação nele realizada que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida são, em relação ao constante da conclusão 6ª, os seguintes:
12ª Os depoimentos das testemunhas K………., cujo depoimento se encontra gravado no gravador, de rotação 0402 a 0800 do lado A da cassete nº 1, que disse que as dificuldades financeiras por que a recauchutagem atravessou reportam-se ao ano de 2005 e não ao ano do empréstimo que foi em 2001 e L………., cujo depoimento se encontra gravado no gravador, de rotação 0802 a 0863 do lado A da cassete nº 1, continuando de 0010 a 0102 do lado B da mesma cassete, que disse que os 1ºs Réus se foram embora em 2001 porque estavam a atravessar maus momentos – quando se sabe que só saíram em 2003 – e que não sabia se era derivada da recauchutagem porque não a conhecia, pois nunca lá entrara e, cujos aspectos mais importantes se encontram na transcrição integral em anexo e, foram, ainda, alguns deles supra transcritos no texto das presentes alegações e que aqui, por brevidade e para evitar a massificação do processo, se dão por reproduzidos para todos os efeitos legais.
13ª Os meios probatórios constantes do processo e do registo ou gravação nele realizada que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida são, em relação ao constante da conclusão 7ª, os seguintes:
14ª Pelos documentos juntos aos autos parece evidente que não fazem prova nenhuma sobre os factos constantes do quesito 17º da Base Instrutória e, da súmula dos depoimentos das testemunhas ouvidas em audiência que o Senhor Juiz “a quo” fez quando proferiu a decisão da matéria de facto, nada vem referido ou especificado quanto a estes factos que tivesse sido decisivo para a sua convicção. Por isso, não foi feita pelo Senhor Juiz nenhuma especificação dos fundamentos que foram decisivos para a sua convicção de responder afirmativamente à matéria factual deste quesito pelo que, houve, assim, excesso de pronúncia, o que constitui uma nulidade que ora se invoca com todas as consequências legais.
15ª Acresce que, as testemunhas arroladas pelo autor não conheciam os 1ºs réus tão bem ao ponto de estarem habilitados a responderem aos factos constantes do quesito 17º da Base Instrutória, pois a testemunha K………., cujo depoimento se encontra gravado no gravador, de rotação 0402 a 0800 do lado A da cassete nº 1 disse que os 1ºs réus só começaram a sentir dificuldades económicas em 2005 e [a] pergunta situava o factos em 2002; a testemunha L………., cujo depoimento se encontra gravado no gravador, de rotação 0802 a 0863 do lado A da cassete nº 1, continuando de 0010 a 0102 do lado B da mesma cassete, que disse que os 1ºs Réus se ausentaram do país em 2001, quando a doação ocorreu em 2002 e, disse ainda que a casa de habitação dos mesmos réus descrita em C) dos factos assentes estava penhorada em 2005, o que nem sequer foi alegado pelo autor e, a testemunha M………., cujo depoimento se encontra gravado no gravador, de rotação 0216 a 0410 do lado B da cassete nº 1, continuando do lado A da cassete nº 2, que no nosso contador deu 000 a 020, mas como não consta da acta de audiência de julgamento de 29 de Outubro de 2007, não se pode cumprir integralmente com o disposto nos artºs 522º-C, nº 2 e 690º-A, nº 2 ambos do Código de Processo Civil e que, por isso, se requer a correcção da acta no sentido ora exposto, nos termos do disposto no artº 249º do Código Civil, a estes factos referiu-se a um trespasse que mais ninguém mencionou e, acrescentou que a sociedade que explorava o estabelecimento de recauchutagem trespassou as suas dívidas ao Réu E1………., o que é um contra-senso e, depois acabou por confessar que estava a fazer suposições e que não sabia o que se passou, cujos aspectos mais importantes se encontram na transcrição integral em anexo e, foram, ainda, alguns deles supra transcritos no texto das presentes alegações e que aqui, por brevidade e para evitar, mais uma vez, a massificação do processo, se dão por reproduzidos para todos os efeitos legais.
16ª Já as testemunhas arroladas pelos apelantes sabiam dos aspectos particulares da vida dos 1ºs réus, pois: a testemunha N………., cujo depoimento se encontra gravado no gravador, de rotação 0010 a 1826 do lado A da cassete nº 3 – só pode ser da cassete nº 3, mas o certo é que na acta de audiência de julgamento de 13/11/07 nada consta pelo que, nos termos do disposto no artº 249º do Código Civil, requer-se a sua correcção no sentido ora exposto – que é economista de profissão e, fez um estudo económico onde incluiu a fracção arrendada para padaria e apresentou um projecto para reestruturação da recauchutagem referida em E) dos factos assentes e era seu consultor; a testemunha O………., cujo depoimento se encontra gravado no gravador, de rotação 1828 a 2470 do lado A da cassete nº 3 – só pode ser da cassete nº 3, mas o certo é que na acta de audiência de julgamento de 13/11/07 nada consta pelo que, nos termos do disposto no artº 249º do Código Civil, requer-se a sua correcção no sentido ora exposto –, vizinha da frente da casa do 3º Réu e que a conhecia por dentro, bem como conhecia muito bem os 1ºs réus e respectiva família; a testemunha P………., cujo depoimento se encontra gravado no gravador, de rotação 2472 a 2512 do lado A da cassete nº 2 – tem de ser 3 e não 2 como erradamente vem referido na acta de audiência de julgamento de 13/11/07 nada vem referido, pelo que, nos termos do disposto no artº 249º do Código Civil, ora se requer a sua rectificação no sentido acima exposto –, continuando do lado B da mesma cassete, de rotação 0010 a 0831, que em 2001 e 2002 fazia limpezas na casa de habitação dos 1ºs Réus referida em C) dos factos assentes e a testemunha Q………., cujo depoimento se encontra gravado no gravador, de rotação 0833 a 1704 do lado B da cassete nº 1 – será, certamente, a nº 3 e, a referência à cassete nº 1 na acta de discussão e julgamento de 13 de Novembro de 2007, é um lapso, que a nosso ver, é ostensivo pelo que, nos termos do disposto no artº 249º do Código Civil, ora se requer a sua rectificação no sentido acima exposto –, na mesma altura, foi empregado da recauchutagem da sociedade de que o 1º Réu era sócio e gerente.
17ª E sobre o que se perguntava neste quesito 17º da Base Instrutória, a primeira das testemunhas citadas na conclusão anterior depôs de forma concludente de forma a concluir-se claramente que, na altura do alegado empréstimo feito pelo apelado aos 1ºs réus e da doação destes aos ora apelantes os 1ºs réus não passavam por quaisquer dificuldade[s], nomeadamente, financeiras; a segunda das testemunhas citadas na conclusão anterior também não se pode concluir que os 1ºs réus, nessas alturas, passavam por quaisquer dificuldades, pois disse que levavam uma vida normal, como qualquer vizinho; a terceira das testemunhas citadas na conclusão anterior, disse que sempre os 1ºs réus lhe pagaram a horas e nunca teve complicações e, a quarta das testemunhas citadas na conclusão anterior disse que, a recauchutagem referida em E) dos factos assentes em Abril de 2002 andava bem, que não conseguiam dar vazão ao serviço, que o patrão fez investimentos, pois meteu lá máquinas e, cujos aspectos mais importantes se encontram na transcrição integral em anexo e, foram, ainda, alguns deles supra transcritos no texto das presentes alegações e que aqui, por brevidade e para evitar, mais uma vez, a massificação do processo, se dão por reproduzidos para todos os efeitos legais.
18ª Os meios probatórios constantes do processo e do registo ou gravação nele realizada que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida são, em relação ao constante da conclusão 8ª, os seguintes:
19ª O depoimento da testemunha L………., cujo depoimento se encontra gravado no gravador, de rotação 0802 a 0863 do lado A da cassete nº 1, continuando de 0010 a 0102 do lado B da mesma cassete, que disse que nunca se dedicou à compra e venda de imóveis; nunca entrou no prédio rústico em causa neste quesito e, nunca o mediu e, para o avaliar, segundo a sua linguagem, “bota os olhos e fica a saber” (!!!) e, cujos aspectos mais importantes se encontram na transcrição integral em anexo e, foram, ainda, alguns deles supra transcritos no texto das presentes alegações e que aqui, por brevidade e para evitar, mais uma vez, a massificação do processo, se dão por reproduzidos para todos os efeitos legais.
20ª Os meios probatórios constantes do processo e do registo ou gravação nele realizada que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida são, em relação ao constante da conclusão 9ª, os seguintes:
21ª O depoimento da testemunha O………., cujo depoimento se encontra gravado no gravador, de rotação 1828 a 2470 do lado A da cassete nº 3 – só pode ser da cassete nº 3, mas o certo é que na acta de audiência de julgamento de 13/11/07 nada consta –, que era vizinha da frente da casa do 3º réu e que a conhecia por dentro que disse que o recheio da casa de habitação dos 1ºs réus valia pelo menos cinco mil contos; o depoimento de parte do autor, ora apelado, cujo depoimento se encontra gravado no gravador, de rotação 0010 a 0400 do lado A da cassete nº 1, que confessou que a renda que os 1ºs réus recebiam dos inquilinos da fracção descrita em C) dos factos assentes era de cem contos, o que é mais do que € 349,16 (trezentos e quarenta e nove euros e dezasseis cêntimos) como se perguntava no quesito 15º da Base Instrutória; o depoimento da testemunha N………., cujo depoimento se encontra gravado no gravador, de rotação 0010 a 1826 do lado A da cassete nº 3 – só pode ser da cassete nº 3, mas o certo é que na acta de audiência de julgamento de 13/11/07 nada consta – que é economista de profissão e, fez um estudo económico onde incluiu a fracção arrendada para padaria, cuja avaliação por sua intervenção na banca ascendeu a 150 mil, 160 mil contos, e apresentou um projecto para reestruturação da recauchutagem referida em E) dos factos assentes pelo que era uma pessoa habilitada e que conhecia pessoalmente a fracção, para que fim estava arrendada e, logicamente, melhor do que ninguém sabia qual o valor da renda mensal que disse ser de sessenta a setenta contos e, em relação à recauchutagem que também conhecia muito bem disse que tinha, pelo menos, 170 clientes; o depoimento da testemunha Q………., cujo depoimento se encontra gravado no gravador, de rotação 0833 a 1704 do lado B da cassete nº 1 – será, certamente, a nº 3 e, a referência à cassete nº 1 na acta de discussão e julgamento de 13 de Novembro de 2007, é um lapso –, que, em 12 de Abril de 2002 era empregado da recauchutagem referida em E) dos factos assentes e que disse que tinha pelo menos 100 clientes e, cujos aspectos mais importantes se encontram na transcrição integral em anexo e, foram, ainda, alguns deles supra transcritos no texto das presentes alegações e que aqui, por brevidade e para evitar, mais uma vez, a massificação do processo, se dão por reproduzidos para todos os efeitos legais.
22ª Os meios probatórios constantes do processo e do registo ou gravação nele realizada que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida são, em relação ao constante da conclusão 10ª, os seguintes:
23ª O autor, ora apelado, não provou documentalmente que, à data de 11 de Dezembro de 2001, dispunha da quantia de € 34.915,85, que a movimentou e a entregou aos 1ºs réus e, é notório que, ninguém tem essa quantidade de dinheiro guardada em casa!
24ª Quando, a pedido dos apelantes, o autor foi notificado para fazer essa prova documental, veio dizer que, afinal não tinha o dinheiro e que tinha sido um tio (cujo nome nunca se soube qual era, nem em julgamento!) e uma prima (que nunca se descobriu quem era) que lhe emprestaram o dinheiro! Sendo que, estes eram factos novos que não foram alegados nos articulados pelo que, não podiam ter sido levados em consideração.
25ª Mesmo que assim não fosse – o que não se concede – acresce que, pelas mesmas ordens de razões, ao autor competia-lhe fazer a prova documental de que os tais seus tio e prima dispunham dessa quantidade de dinheiro para lhe poder emprestar e, não o fez, aliás, nem sequer se conseguiu apurar, quanto é que cada um emprestou ao autor!
26ª Todas as testemunhas arroladas pelo autor que depuseram sobre estes factos não assistiram à entrega do dinheiro pelo autor aos 1ºs réus pelo que, o seu depoimento é indirecto, de ouvir dizer e, por isso, nada provam! Veja-se a propósito a transcrição integral em anexo e a transcrição parcial feita no texto destas alegações e que aqui, por brevidade e para evitar, mais uma vez, a massificação do processo, se dão por reproduzidos para todos os efeitos legais, dos depoimentos das testemunhas K………., cujo depoimento se encontra gravado no gravador, de rotação 0402 a 0800 do lado A da cassete nº 1; L………., cujo depoimento se encontra gravado no gravador, de rotação 0802 a 0863 do lado A da cassete nº 1, continuando de 0010 a 0102 do lado B da mesma cassete e M………., cujo depoimento se encontra gravado no gravador, de rotação 0216 a 0410 do lado B da cassete nº 1, continuando do lado A da cassete nº 2, que no nosso contador deu 000 a 020, mas como não consta da acta de audiência de julgamento de 29 de Outubro de 2007, não se pode cumprir integralmente com o disposto nos artºs 522º-C, nº 2 e 690º-A, nº 2 ambos do Código de Processo Civil.
27ª O documento junto aos autos a fls. 304 (fotocópia de um cheque) não foi impugnado pelo autor, tem nele escrito o mesmo valor que consta do quesito 1º da Base Instrutória – € 34.915,85 – está emitido à ordem do autor e o sacador é “S………., Ldª” – não são os 1ºs réus!!! – que era detida pelos filhos dos 1ºs réus e prova inequivocamente que o alegado empréstimo nunca foi feito pelo autor aos 1ºs réus, mas tê-lo-à sido a esta sociedade.
28ª Assim, a confissão judicial dos 1ºs réus, consubstanciada no facto de terem sido citados pessoalmente para contestar a acção e não o terem feito com as consequências previstas no artº 490º, nº 2 do CPC, é inadmissível por ser notoriamente inexistente, nos termos do disposto no artº 354º, al. c) do Código Civil.
29ª Assim e, caso V. Exªs. adiram ao nosso entendimento quanto à matéria de facto, que consideramos devidamente sustentado ao nível probatório, atenta esta factualidade dada como assente, terá necessariamente de se concluir que, o Autor não provou o primeiro dos requisitos gerais da Impugnação Pauliana previstos no artº 610º, al. a) do Código Civil, isto é, não provou que detinha um crédito sobre os 1ºs Réus pelo que, sem mais considerandos, tem a acção de ser julgada totalmente improcedente e não provada e os réus absolvidos do pedido nela formulado, o que se requer seja decretado por V. Exªs.
30ª Mas, mesmo que assim se não entenda – o que não se espera, nem se concede – sempre se dirá que, quer o crédito do autor seja anterior ou posterior ao acto impugnável, não se provou em primeiro lugar que a doação em causa fosse dolosa e; em segundo lugar, não se provou que desse acto – a doação – tivesse resultado a impossibilidade, para o Autor, de obter a satisfação integral do seu crédito, nem sequer resultou o agravamento dessa impossibilidade.
31ª Segundo as regras da repartição do ónus da prova, incumbia aos ora apelantes provar que os 1ºs réus, à data do acto impugnável – 12.04.2002 (data da doação) – que é aquela que tem de se considerar nesta acção – como é, aliás, unânime a Jurisprudência dos nossos Tribunais Superiores nesta matéria – possuíam bens penhoráveis de igual ou maior valor – artº 611º do Código Civil e a este respeito resultou provado que, àquela data;
32ª A soma dos valores dos bens que os 1ºs réus possuíam era mais do que € 382.710,00 (trezentos e oitenta e dois mil setecentos e dez euros) – € 59.856,00 + € 39.904,00 [alínea E) da factualidade assente] + € 204.750,00 (resposta ao quesito 11º e certidões das escrituras de compra e venda e de hipoteca de fls.) + € 78.200,00 (resposta ao quesito 11º e certidões das escrituras de compra e venda e de hipoteca de fls.) + resposta aos quesitos 12º e 16º – que estavam livres e desembaraçados, pois tanto a casa de habitação como a fracção autónoma referida em C) da factualidade dada como assente, serviram depois, em 9 de Julho de 2002, para os 1ºs réus as darem de hipoteca ao J………., S. A. para garantia do pagamento do contrato de mútuo que este lhes concedeu no valor de € 285.750,00 que, nessa altura celebraram. Alíneas C) e D) da factualidade dada como assente.
33ª Assim – à data de 12.04.2002 – os apelantes provaram nos autos que, os valores dos bens que os 1ºs réus possuíam de valor superior a € 382.710,00 eram, pelo menos, cerca de onze vezes superiores ao valor do crédito do Autor pelo que, provaram o que lhes era incumbido, nos termos do disposto no artº 611º do Código Civil e, com isso elidiram a presunção – que não se concede – de impossibilidade de realização do direito do crédito do Autor ou do seu agravamento, referida da douta sentença em crise.
34ª Quando assim se não entenda – o que mais uma vez, não se espera, nem se concede – sempre se dirá que, na decisão foi julgado procedente e provada a presente acção e, consequentemente, declarada nula e de nenhum efeito a doação efectuada pelos 1ºs réus … … ao segundo e terceiro réus… …, titulada por escritura pública celebrada em 12 de Abril de 2002, tudo com as legais consequências, quando, como muito bem vem dito na douta sentença em crise a fls. 9, “Na impugnação pauliana, o pedido a formular é o de declaração de ineficácia do acto que se impugna. A “restituição dos bens” prevista no artigo 616º do CC diz respeito às consequências de se julgar ineficaz o acto impugnado… “
35ª Subsidiariamente, requer-se que a decisão seja alterada e declarar-se ineficaz em relação ao autor, na medida do valor do seu crédito de € 34.915,85, a doação efectuada pelos 1ºs réus aos 2º e 3º réus, titulada por escritura pública celebrada em 12 de Abril de 2002, tudo com as legais consequências.
36ª Decidindo em contrário, a douta sentença recorrida violou o disposto nos artºs 354º, al. c); 610º, 611º e 616º, nºs 1 e 4 do Código Civil e nos artºs 264º, nºs 2 e 3; 490º, nº 2; 653º, nº 2; 659º e 668º, nº 1, al. b), c) e d) todos do Código de Processo Civil.
Os recorrentes pretendem assim que a sentença proferida pela 1ª Instância seja revogada e substituída por outra que julgue a acção totalmente improcedente e não provada e, consequentemente, os absolva do pedido ou, se assim não se entender, deve a mesma ser alterada, declarando-se ineficaz em relação ao autor, na medida do valor do seu crédito de € 34.915,85, a doação efectuada pelos 1ºs réus aos 2º e 3º réus, titulada por escritura pública celebrada em 12 de Abril de 2002.
Os apelados apresentaram contra-alegações, pronunciando-se pela manutenção do decidido.
Colhidos os vistos legais, cumpre então apreciar e decidir.
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FUNDAMENTAÇÃO
Aos presentes autos, face à data da sua entrada em juízo, é ainda aplicável o regime de recursos anterior ao Dec. Lei nº 303/07, de 24.8.
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O objecto dos recursos encontra-se balizado pelas conclusões das alegações dos recorrentes, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso – arts. 684 nº 3 e 690 nº 1 do Cód. do Proc. Civil -, sendo ainda de referir que neles se apreciam questões e não razões, que não visam criar decisões sobre matéria nova e que o seu âmbito é delimitado pelo conteúdo da decisão recorrida.
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As questões a decidir são as seguintes:
1. Apurar se a omissão na matéria fáctica da sentença recorrida do facto correspondente à resposta dada ao nº 14 da base instrutória constitui nulidade nos termos do art. 668, nº 1, al. b) do Cód. do Proc. Civil;
2. Apurar se há lugar à alteração da matéria de facto no que concerne às respostas dadas aos nºs 1, 2, 5, 8, 13, 15, 16 e 17 da base instrutória;
3. Apurar se, no presente caso, estão reunidos os pressupostos da impugnação pauliana;
4. Apurar se se deve manter na parte decisória que a doação é declarada nula e de nenhum efeito ou se esta deve ser alterada, declarando-se a doação ineficaz em relação ao autor, na medida do valor do seu crédito de €34.915,85.
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OS FACTOS
A matéria fáctica dada como assente pela 1ª Instância é a seguinte:
I.- Mediante escritura pública celebrada em 12 de Abril de 2002, no 2º Cartório da Secretaria Notarial da Póvoa de Varzim, os 1ºs. réus declararam ser donos e possuidores do seguinte imóvel, metade em propriedade plena e metade em raiz ou nua propriedade: prédio rústico denominado ………., sito no ………., da freguesia de ………., descrito na Conservatória do Registo Predial da Póvoa de Varzim, sob o nº 19809, do livro B-50 e inscrito na matriz sob os artigos 1350 e 1351. Declararam, ainda, doar tal imóvel a seu filho e terceiros outorgantes, ela irmã do 1º réu, G………., B………. e I………., na proporção de metade indivisa para o 2º e metade para os 3ºs. outorgantes e que a doação, na parte referente ao 2º outorgante, é feita pela força da quota disponível dos doadores. Declararam depois o 2º e 3ºs outorgantes que aceitavam tal doação, conforme certidão junta aos autos a fls. 134 e segs., cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido (cfr. A).
II.- À doação aludida em A), foi atribuído o valor de 25.000€ (cfr. al. B).
III.- Mediante escritura pública outorgada em 9 de Julho de 2002, no Primeiro Cartório da Secretaria Notarial da Póvoa de Varzim, os primeiros réus constituíram hipoteca a favor do J………., SA, sobre a casa de habitação de cave, r/c e andar, com anexos e quintal, sita na Rua ………., na Póvoa de Varzim, descrita na Conservatória de Registo Predial, sob o nº 2815, da freguesia da Póvoa de Varzim, e sobre a fracção autónoma designada pelas letras “CS”, correspondente ao r/c, nos topos norte/poente, do terreno onde está implantado, para actividades económicas, de um prédio urbano em regime de propriedade horizontal denominado “……….”, sito na Rua ………., nºs … e … e arruamento a criar, da freguesia de ………., descrito na Conservatória sob o nº 863, conforme certidão de fls. 127 e segs. cujo teor aqui se dá por reproduzido (cfr.al. C).
IV.- Mediante a escritura aludida em c), o J………. garantiu ser-lhe efectuado pelos primeiros réus o pagamento de um contrato de mútuo que nessa altura celebrou com os primeiros réus, no valor de 285.750€ (cfr.al. D).
V.- À data de 12.04.2002 os primeiros réus eram proprietários plenos e titulares de duas quotas no capital social de € 99.760,00, da sociedade comercial por quotas com a firma “T………., Lda”, com sede nesta cidade, pessoa colectiva, nº ………, matriculada sob o nº 00251/760128, na Conservatória do Registo Comercial da Póvoa de Varzim, a do 1º réu no valor de € 59.856,00, e a titulada em nome da 1ª. ré no valor de € 39. 904,00, conforme certidão de fls. 88 e segs. e que aqui se dá por inteiramente reproduzida (cfr. al. E).
VI.- Em 11.12.2001, o 1º autor emprestou aos 1ºs. réus a quantia de 34.915,85 euros (cfr. resposta ao quesito 1).
VII.- Os 1ºs. réus comprometeram-se a restituir aos autores a quantia aludida em 1) no prazo de um ano contado da data também ali referida, acrescida dos respectivos juros, calculados à taxa de 10% ao ano (cfr. resposta ao quesito 2).
VIII.- Os primeiros réus, decorrido o prazo de um ano aludido em 2º), e até ao dia de hoje, não efectuaram qualquer entrega de dinheiro ou valor a título de juros, não obstante as solicitações do autor nesse sentido (cfr. resposta ao quesito 3).
IX. - Quando o autor emprestou aos 1ºs. réus a quantia em 1) estes ainda eram os proprietários da casa aludida em c), no valor de cerca de 204,750 € e do prédio rústico aludido em A), num valor aqui não concretamente apurado de cerca de 100.000,00 € e da fracção autónoma aludida em C), no valor de 72.800,00€ (cfr. respostas aos quesitos 4,5 e 6).
X… explorava o estabelecimento comercial de recauchutagem aludido em D) (cfr. resposta ao quesito 7).
XI.- O estabelecimento de recauchutagem aludido em D), na altura do empréstimo atravessava dificuldades financeiras, não tendo conseguido recuperar a dinâmica comercial, nem pagar as suas dívidas (cfr. resposta ao quesito 8).
XII. Os 1ºs. réus disseram ao autor marido que não tinham dinheiro, nem possibilidades financeiras para liquidaram o empréstimo, só o podendo fazer quando vendessem o prédio rústico referido em A) (cfr. resposta ao quesito 9).
XIII.- Com a doação aludida em A), os 1ºs. réus pretenderam evitar o cumprimento da obrigação aludida em 2º (cfr. resposta ao quesito 10).
XIV.- Em 12.04.2002, a casa de habitação aludida em C), tinha um valor não inferior a 204.750,00€ (cfr. resposta ao quesito 11).
XV.- Apenas que à data de 12.04.2002, o recheio do prédio aludido em 11) era constituído por mobiliário, e electrodomésticos, com um valor aqui não concretamente apurado (cfr. respostas aos quesitos 12 e 13).
XV.- Em 12. 04. 2002, os 1ºs. réus tinham a fracção aludida em 14), arrendada para o exercício da actividade de padaria pela qual recebiam dos seus inquilinos uma renda de valor aqui não concretamente apurado (cfr. resposta ao quesito 15).
XVI.- À data de 12.04.2002, a sociedade aludida em E) tinha seis empregados ao serviço (cfr. resposta ao quesito 16).
XVII.- Os réus B………. e I………. tinham conhecimento da difícil situação económico-financeira em que os 1ºs. réus se encontravam e que os levou a sair do nosso país em finais de Novembro/ princípio de Dezembro de 2003 (cfr. resposta ao quesito 17).
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[Deixa-se aqui registado que na matéria fáctica constante da sentença não foi inserido o facto resultante da resposta dada ao nº 14 da base instrutória – “Em 12.4.2002, a fracção autónoma aludida em c) tinha o valor de, pelo menos, 72.800 euros”]
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O DIREITO
1. Em primeiro lugar, sustentam os recorrentes que tendo-se omitido na sentença recorrida, certamente por lapso, o facto resultante da resposta dada ao nº 14 da base instrutória, tal constitui uma nulidade dessa sentença nos termos do art. 668, nº 1, al. b) do Cód. do Proc. Civil.
Sucede que neste artigo se estabelece que “é nula a sentença...quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão.”
Ora, basta a simples leitura da sentença que consta de fls. 335 e segs. para se verificar que a mesma se encontra devidamente fundamentada tanto de facto como de direito.
Aliás, é entendimento da jurisprudência e doutrina dominantes, que só a absoluta falta de fundamentação seria susceptível de conduzir àquela nulidade, situação que manifestamente não ocorre no presente caso.
Assim, a circunstância de, por lapso, na enumeração dos factos provados constante da sentença recorrida o Mmº Juiz “a quo” ter omitido tão só o que resultava da resposta ao nº 14 da base instrutória não pode, de forma alguma, constituir nulidade de sentença nos termos do art. 668, nº 1, al. b) do Cód. do Proc. Civil.
Deste modo, nesta parte, não pode ser acolhido o recurso de apelação interposto pelos réus.
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2. Em segundo lugar, os réus procederam à impugnação da matéria de facto, solicitando a reapreciação das respostas que foram dadas aos nºs 1, 2, 5, 8, 13, 15, 16 e 17 da base instrutória.
Acontece que a Relação só pode alterar a decisão da 1ª Instância sobre a matéria de facto nos termos que vêm definidos no art. 712 nº 1 do Cód. do Proc. Civil, que passamos a citar:
«1. A decisão do tribunal de 1ª instância sobre a matéria de facto pode ser alterada pela Relação:
a) Se do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria de facto em causa ou se, tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados, tiver sido impugnada, nos termos do art. 690 – A, a decisão com base neles proferida;
b) Se os elementos fornecidos pelo processo impuserem decisão diversa, insusceptível de ser destruída por quaisquer outras provas;
c) Se o recorrente apresentar documento novo superveniente e que, por si só, seja suficiente para destruir a prova em que a decisão assentou.»
Verifica-se, assim, que a modificação da decisão da 1ª instância, em situações como a presente, deverá ser o resultado da reapreciação dos elementos probatórios que, com plena autonomia, é feita pela Relação, só devendo, porém, ocorrer se o tribunal superior, percepcionando os elementos de prova disponíveis, adquirir uma convicção diversa da que foi assumida pelo tribunal “a quo”.
Não estamos, por isso, convém sublinhá-lo, perante um segundo julgamento.
De tal modo que para alterar a decisão da 1ª instância quanto à matéria de facto não basta uma simples divergência relativamente ao decidido, tornando-se imprescindível que se demonstre, através dos concretos meios de prova que foram produzidos, que se verificou um erro na apreciação do seu valor probatório.
Vejamos então se no caso “sub judice” há que alterar as respostas que foram impugnadas pela ré/recorrente.
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a) Os nºs 1 e 2 da base instrutória têm a seguinte redacção:
Nº 1: Em 11.12.2001, o 1º autor emprestou aos 1ºs réus a quantia de 34.915,85 euros?
R: Provado que em 11.12.2001, o 1º autor emprestou aos 1ºs réus a quantia de 34.915,85 euros.
Nº 2: Os 1ºs réus comprometeram-se a restituir aos autores a quantia aludida em 1º) no prazo de um ano contado da data também ali referida, acrescida dos respectivos juros, calculados à taxa de 10% ao ano?
R: Provado que os 1ªs réus comprometeram-se a restituir aos autores a quantia aludida em 1) no prazo de um ano contado da data também ali referida, acrescida dos respectivos juros, calculados à taxa de 10% ao ano.
Pretendem os recorrentes que estas respostas sejam alteradas para “não provado” porque o autor não provou documentalmente que, em 11.12.2001, dispunha da quantia de €34.915,85 e que a entregou aos 1ºs réus e ainda porque as testemunhas arroladas pelo autor (K……….; L……….; W………. e M……….) não assistiram à entrega do dinheiro, tendo produzido depoimentos indirectos.
Acresce ainda que o cheque cuja fotocópia foi junta aos autos a fls. 304, que tem escrito o valor de €34.915,85 e está emitido à ordem do autor, foi sacado por “S………., Lda” e não pelos 1ºs réus, donde resulta, na perspectiva dos recorrentes, que o empréstimo foi feito a esta sociedade.
Ora, da audição dos depoimentos acima referidos e da análise dos documentos juntos ao processo, onde se destacará o de fls. 6 intitulado “reconhecimento de dívida”, entendemos que as respostas dadas aos nºs 1 e 2 da base instrutória nenhuma censura merecem.
Passamos a transcrever o teor deste documento datado de 3.1.2002:
“Nós, abaixo assinados, E………. e mulher F………. (...) declaramos, para os devidos efeitos, que somos devedores a nosso primo, C………. (...) da quantia de 34.915,85€ (...), importância que nos emprestou em 11 de Dezembro de 2001, e que nos comprometemos a pagar-lhe no prazo de um ano contado da data do empréstimo, bem como nos comprometemos a pagar-lhe juros desta quantia, calculados à taxa de 10% ao ano.”
Daqui decorre, de modo inequívoco, que os 1ºs réus se confessaram devedores da quantia de €34.915,85, que lhes foi emprestada pelo autor e que se comprometeram a restituir a mesma, com juros, no prazo de um ano.
Por outro lado, todas as testemunhas indicadas pelo autor, embora não tendo assistido à entrega do dinheiro, afirmaram, nos seus depoimentos, ter conhecimento do empréstimo. L………. e M………. relataram, inclusive, conversas que tiveram com o 1º réu, E………., em que este afirmou dever ao autor a referida quantia de 7.000 contos e que logo que pudesse a iria pagar.
Sucede assim que nem estes depoimentos, que, aliás, confirmam o empréstimo ao 1º réu, nem a fotocópia de um eventual cheque de garantia junta a fls. 304, emitido não pelo 1º réu, mas sim por uma sociedade, justificam que se alterem as respostas aos nºs 1 e 2 da base instrutória, uma vez que destes meios probatórios não resulta que o Mmº Juiz “a quo” tenha cometido qualquer erro nessas respostas.
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b) O nº 5 da base instrutória tem a seguinte redacção:
Nº 5: (Quando o autor emprestou aos 1ºs réus a quantia aludida em 1º), estes ainda eram proprietários) (...) do prédio rústico aludido em A), no valor de cerca de €200.000?
R: Provado que quando o autor emprestou aos 1ºs réus a quantia em 1) estes ainda eram os proprietários (...) do prédio rústico aludido em A), num valor aqui não concretamente apurado de cerca de 100.000,00€ (...).
Entendem os recorrentes que nesta resposta deveria ter-se dado como não provado o valor, apontando nesse sentido a imprecisão do depoimento prestado pela testemunha L………. .
Ouvimos então o depoimento desta testemunha, conhecedora o prédio rústico por ter passado junto ao mesmo diversas vezes, a qual, embora tivesse dito não ter a certeza do valor do prédio, afirmou que se fosse vendido era capaz de atingir os 40.000 contos.
Por seu turno, a testemunha K………., cunhado do 1º réu, cujo depoimento também ouvimos, considerou 40.000 contos um valor um pouco puxado, acrescentando que, de qualquer modo, o prédio valeria para cima de 20.000 contos.
Neste contexto, porque, face aos valores avançados por estas duas testemunhas, não se divisa, quanto a este ponto, que o Mmº Juiz “a quo” tenha cometido erro na apreciação dos meios probatórios produzidos, entendemos ser de manter a resposta dada ao nº 5 da base instrutória.
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c) O nº 8 da base instrutória tem a seguinte redacção:
Nº 8: O estabelecimento de recauchutagem aludido em D) atravessa dificuldades financeiras, não tendo conseguido recuperar a dinâmica comercial, nem pagar as suas dívidas?
R: Provado que o estabelecimento de recauchutagem aludido em D), na altura do empréstimo atravessava dificuldades financeiras, não tendo conseguido recuperar a dinâmica comercial, nem pagar as suas dívidas.
Pretendem os recorrentes que esta resposta seja alterada de modo a que não se considere provado que o estabelecimento de recauchutagem atravessasse dificuldades financeiras na altura do empréstimo, pois, na sua perspectiva, os depoimentos produzidos pelas testemunhas K………. e L………. não permitem dá-lo como assente.
Ora, da audição dos depoimentos destas duas testemunhas resultam evidentes as dificuldades financeiras do estabelecimento de recauchutagem, embora se note, nas duas, alguma imprecisão quanto ao momento a partir do qual tais dificuldades se teriam começado a fazer sentir.
Porém, conjugando o teor destes depoimentos com o que são as regras da experiência, pois não é natural que alguém sem dificuldades económicas peça 7000 contos emprestados a um familiar, comprometendo-se a restituir tal importância no prazo de um ano acrescida de juros à taxa de 10%, não se vislumbra que o Mmº Juiz “a quo” tenha errado, na apreciação dos meios probatórios, ao escrever na resposta ao nº 8 da base instrutória que na altura do empréstimo o estabelecimento de recauchutagem atravessava dificuldades financeiras.
Aliás, na sequência do que se tem vindo a expor, sempre se sublinhará que a divergência quanto ao decidido pelo tribunal recorrido, em sede de matéria de facto, só assumirá relevância se o recorrente lograr demonstrar, através dos meios de prova que indicou, que ocorreu erro na apreciação do seu valor probatório, sendo, porém, necessário que esses elementos se mostrem inequívocos no sentido pretendido pelo recorrente.
Por isso, como não se demonstrou que a 1ª Instância tenha cometido tal erro, será de manter, nos seus precisos termos, a resposta que foi dada ao nº 8 da base instrutória.
[A propósito desta resposta os recorrentes vieram invocar a nulidade de excesso de pronúncia, prevista no art. 668, nº 1, al. d) do Cód. do Proc. Civil, como nulidade de sentença, a qual, contudo, manifestamente não se verifica no presente caso, uma vez que aqui apenas estará em causa uma eventual resposta excessiva por parte do tribunal recorrido, cuja consequência será tão só a de se considerar a mesma como não escrita na parte em que ocorra o excesso.
Entendemos, porém, que esse excesso não se verifica e que a resposta dada pela 1ª Instância não ultrapassa os limites do quesito.
Com efeito, este nº 8 da base instrutória conexiona-se com os anteriores nºs 4, 5, 6 e 7 e correspondem genericamente à matéria factual que foi alegada pelos autores nos arts. 3 e 9 da petição inicial. Sucede que toda esta factualidade, respeitante ao património dos 1ºs réus e à sua actividade comercial, se reporta, tal como foi alegada, ao momento do empréstimo, surgindo a referência a este apenas no nº 4 (“quando o autor emprestou aos 1ºs réus a quantia aludida em 1.(...)) e utilizando-se no início dos números seguintes (5, 6 e 7) a conjunção copulativa “e”. Contudo, ao redigir-se o nº 8 não se deixou expressa em termos semânticos a ligação aos anteriores números, designadamente ao nº 7, como se impunha, nem tão pouco se recorreu à utilização do verbo “atravessar” no pretérito imperfeito.
Assim sendo, a forma como o Mmº Juiz “a quo” respondeu ao nº 8 da base instrutória não justifica da nossa parte qualquer censura, antes o compaginando com o conteúdo dos quesitos precedentes e com a factualidade alegada pelos autores na petição inicial.]
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d) Os nºs 13, 15 e 16 da base instrutória têm a seguinte redacção:
Nº 13: (À data de 12.4.2002, o recheio do prédio aludido em 11) era constituído nomeadamente por) (...) de valor não inferior a €20.000,00?
R: Provado apenas que à data de 12.4.2002 o recheio do prédio aludido em 11) era constituído por mobiliário e vários electrodomésticos, com um valor aqui não concretamente apurado.
Nº 15: À data de 12.4.2002 os 1ºs réus tinham a fracção aludida em 14) arrendada para o exercício da actividade de padaria pela qual recebiam dos seus inquilinos a renda anual de €4.189,90, em duodécimos mensais de €349,16?
R: Provado apenas que à data de 12.4.2002 os réus tinham a fracção aludida em 14) arrendada para o exercício da actividade de padaria pela qual recebiam dos seus inquilinos renda anual de valor aqui não concretamente apurado.
Nº 16: À data de 12.4.2002, a sociedade aludida em E) tinha muitos clientes e pelo menos 6 empregados ao seu serviço?
R: Provado apenas que à data de 12.4.2002 a sociedade aludida em E) tinha pelo menos seis empregados ao serviço.
Os recorrentes sustentam que estes três números da base instrutória deveriam ter sido dados como inteiramente provados com base nos depoimentos prestados pelas testemunhas O………., N………. e Q………. e ainda com base no depoimento de parte do autor C………. .
Quanto ao valor do recheio da casa de habitação (nº 13 da base instrutória) há que aludir aos depoimentos das testemunhas O………. (vizinha que entrou muitas vezes na casa) e P……….. (que lá fazia limpeza). O………. disse sobre esta questão: “não sei, tudo tão caro, roupas e tudo será 5.000 contos. Eu não sei...também não sou assim famosa nos negócios”. P………., por seu turno, quando questionada sobre o valor do recheio disse: “só o recheio...aí eu acho que ele tinha mais de dez mil contos lá” e depois, mais adiante, acrescentou “não sei...como não sei muito avaliar...não sei”
Ora, o que daqui se extrai é a manifesta dificuldade destas duas testemunhas, que conheciam a casa, em avaliar, de forma fundamentada, o valor do seu recheio, sublinhando o seu desconhecimento quanto a tal ponto e avançando com valores, aliás muito díspares, sem que os mesmos se mostrassem minimamente sustentados.
Por conseguinte, bem andou o Mmº Juiz “a quo” ao dar como provado que o recheio tinha um valor não concretamente apurado.
Passando depois ao nº 15 (valor da renda da fracção arrendada para o exercício da actividade de padaria) dir-se-à que a testemunha N………. (economista que fez uma análise da empresa de recauchutagem do 1º réu), quanto a esta questão, afirmou que a renda andaria por 60/70 contos mensais. Já o autor C………. depondo, de resto, sobre facto que não era pessoal, nem do qual devia ter conhecimento, limitou-se a referir que o 1º réu, seu primo, lhe dizia que recebia uma renda de cem contos. Também a testemunha Q………. (antigo empregado na firma de recauchutagem dos 1ºs réus) depôs sobre este ponto, dizendo não saber se a renda era de 50, de 70, de 80 ou de mais contos.
Neste contexto, em que se destaca a manifesta precariedade dos elementos probatórios produzidos no tocante ao montante da renda, sobressaindo aqui a ausência de suporte documental desta (por ex., recibo), consideramos que o Mmº Juiz “a quo” decidiu acertadamente ao dar como provado que tal renda era de valor não concretamente apurado.
Quanto ao nº 16 verifica-se que a testemunha N………. disse que o estabelecimento de recauchutagem tinha mais de 100 clientes, apontando para 170, ao passo que Q………. falou em 80 clientes.
Daqui decorre que tendo-se apurado, face a estes depoimentos, que a empresa de recauchutagem tinha clientes, embora não se conseguisse determinar o seu concreto número, deverá a resposta ao nº 16 da base instrutória ser alterada do seguinte modo:
“Provado apenas que à data de 12.4.2002 a sociedade aludida em E) tinha um número de clientes não apurado e pelo menos seis empregados ao serviço.”
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e) A redacção do nº 17 da base instrutória é a seguinte:
“Os réus B………. e I………. tinham conhecimento da difícil situação económico-financeira em que os 1ºs réus se encontravam e que os levou a sair do nosso país em finais de Novembro/princípio de Dezembro de 2003?
R: Provado que os réus B………. e I………. tinham conhecimento da difícil situação económico-financeira em que os 1ºs réus se encontravam e que os levou a sair do nosso país em finais de Novembro/princípio de Dezembro de 2003.
Os recorrentes entendem que esta resposta deve ser alterada para “não provado” por considerarem que as testemunhas indicadas pelos autores a este ponto (K………., L………. e M……….) não estavam habilitadas a depor sobre o mesmo.
Ora, quanto à resposta a este número da base instrutória não vemos razões para divergir da 1ª Instância. Com efeito, do teor, convergente, dos depoimentos destas três testemunhas, por nós ouvidos, resulta inequívoco que o 1º réu E………. tinha dificuldades financeiras, as quais o levaram a ausentar-se do nosso país, acrescendo que tais dificuldades eram públicas e do conhecimento dos réus B………. e I………., respectivamente irmã e cunhado do 1º réu, com o qual tinham grande proximidade.
Como tal, porque não se descortina que a 1ª Instância tenha cometido erro na apreciação destes depoimentos, manter-se-à a resposta dada pelo tribunal recorrido à matéria do nº 17 da base instrutória.
*
[Ao longo das suas alegações, os recorrentes, para além das que já foram analisadas em 1. e 2. c), fizeram ainda alusão, na parte respeitante à reapreciação da matéria de facto, ao cometimento de diversas outras nulidades de sentença, previstas no art. 668, nº 1, als. b) – falta de fundamentação – e d) – omissão de pronúncia/excesso de pronúncia -, que não transpuseram para as conclusões e que manifestamente não se verificam, uma vez que, nessa parte do seu recurso, o que estava em causa eram tão só a eventual alteração de respostas dadas a diversos números da base instrutória.
*
Também sem o transporem para as conclusões, os recorrentes sustentam no corpo das suas alegações existir contradição entre a resposta dada ao nº 10 da base instrutória (com a doação aludida em A), os 1ºs. réus pretenderam evitar o cumprimento da obrigação aludida em 2º) com as que tiveram os nºs 6, 11, 12, 13, 14 e 15 da base instrutória (relativas ao património dos 1ºs réus à data da doação).
Contudo, para que haja contradição relevante nas respostas aos quesitos, torna-se necessário que haja uma manifesta incompatibilidade entre as respostas dadas a diferentes pontos da matéria de facto constantes da base instrutória.
Ora, não se vislumbra existir qualquer contradição entre as respostas dadas por um lado ao nº 10 e por outro aos nºs 6, 11, 12, 13, 14 e 15 da base instrutória, até porque o facto de os 1ºs réus à data da doação serem titulares de bens não significa, de modo algum, que estes com tal doação não possam ter tido como finalidade precisamente evitar o posterior cumprimento da obrigação que assumiram perante os autores.]
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3. Em terceiro lugar, há que apurar se, face à matéria fáctica dada como assente, estão reunidos os pressupostos de que depende a procedência da presente acção de impugnação pauliana.
Dispõe o art. 610 do Cód. Civil que «os actos que envolvam diminuição da garantia patrimonial do crédito e não sejam de natureza pessoal podem ser impugnados pelo credor se concorrerem as circunstâncias seguintes: a) ser o crédito anterior ao acto ou, sendo posterior, ter sido o acto realizado dolosamente com o fim de impedir a satisfação do direito do futuro credor; b) resultar do acto a impossibilidade, para o credor, de obter a satisfação integral do seu crédito, ou agravamento dessa impossibilidade.»
Depois no art. 612, nº 1 do mesmo diploma estabelece-se que «o acto oneroso só está sujeito à impugnação pauliana se o devedor e o terceiro tiverem agido de má fé.» Sendo o acto gratuito «a impugnação procede, ainda que um e outro agissem de boa fé.»
A impugnação pauliana tem assim os seguintes pressupostos:
a) a realização pelo devedor de um acto que diminua a garantia patrimonial do crédito e não seja de natureza pessoal;
b) que o crédito seja anterior ao acto ou, sendo posterior, ter sido ele realizado dolosamente com o fim de impedir a satisfação do direito do futuro credor;
c) que o acto seja de natureza gratuita ou, sendo oneroso, ocorra má fé tanto do alienante como do adquirente;
d) que resulte do acto a impossibilidade de o credor obter a satisfação integral do crédito ou agravamento dessa impossibilidade.
Ora, da análise da matéria fáctica dada como provada, pese embora a alteração que foi introduzida na mesma, decorre o preenchimento de todos estes pressupostos.
Com efeito, o crédito do autor, cuja existência decorre das respostas aos nºs 1 e 2 da base instrutória, é anterior à doação do prédio do prédio rústico descrito em A) efectuada pelos 1ºs réus e dessa doação resultou o agravamento da impossibilidade do autor obter a satisfação integral do seu crédito.
Por outro lado, tratando-se de acto de natureza gratuita a impugnação procede mesmo que todos os intervenientes na doação estejam de boa fé, ao invés do que sucede com os actos onerosos, onde para a procedência da impugnação se exige a má fé tanto do alienante como do adquirente.
Contudo, os recorrentes, para além de entenderem que, no caso “sub judice”, os autores não lograram provar a titularidade de um crédito sobre os 1ºs réus, o que por nós logo foi afastado com a manutenção das respostas dadas aos nºs 1 e 2 da base instrutória, consideraram igualmente no seu recurso não se ter provado que da doação tenha resultado a impossibilidade – ou o agravamento da impossibilidade – de o autor obter a satisfação integral do seu crédito. Para tal efeito, apoiando-se no disposto no art. 611 do Cód. Civil, afirmam ter provado que, à data da celebração da escritura de doação (12.4.2002), os 1ºs réus possuíam bens penhoráveis de igual ou maior valor do que o crédito do autor.
Não concordamos com a argumentação dos recorrentes.
O referido art. 611 do Cód. Civil estatui o seguinte:
«Incumbe ao credor a prova do montante das dívidas, e ao devedor ou a terceiro interessado na manutenção do acto a prova de que o obrigado possui bens penhoráveis de igual ou maior valor.»
Consagra-se neste artigo um desvio às regras gerais sobre a repartição do ónus da prova contidas no art. 342 do Cód. Civil. Em princípio, numa acção de impugnação pauliana competiria ao autor a prova dos requisitos necessários à procedência do respectivo pedido e, portanto, devia caber-lhe não só a prova do montante da dívida e da anterioridade do crédito, mas também da diminuição da garantia patrimonial. Daí que deveria provar não só o passivo como, também, o activo do devedor, pois de ambas as circunstâncias depende a impossibilidade de satisfação do crédito ou o agravamento dessa impossibilidade. È que a impossibilidade de pagamento não depende apenas do montante das dívidas do obrigado mas também do valor do activo, que pode ser suficiente e encontrar-se disponível para cobrir o passivo.
Porém, por razões compreensíveis, que se traduzem na dificuldade ou mesmo impossibilidade de provar que o devedor não tem bens, o art. 611 atribui a este ou ao terceiro interessado na manutenção do acto o encargo de provar que o devedor possui bens penhoráveis de valor igual ou superior ao das dívidas.[1]
Isto é, reparte-se o encargo da prova entre o credor e o devedor; aquele prova o passivo e este prova o activo.
Contudo, o art. 611 deve ser relacionado em termos hábeis com o art. 610, al. b), sob pena de se ter de admitir que neste preceito se encontra consagrado o puro e simples requisito da insolvência ou do agravamento dela, o que não foi a intenção do legislador.[2]
Será aliás oportuno referir aqui que se no domínio do anterior Cód. Civil de 1867 (cfr. artigo 1033.º) e no âmbito de uma formulação algo estreita do requisito de impossibilidade de obter a satisfação integral do seu crédito ou agravamento dessa impossibilidade, seria admissível concluir-se que, para o acto do devedor poder ser impugnado, era necessário que dele resultasse a insolvência ou o agravamento da insolvência do devedor, por só nesses casos haver aparentemente essa impossibilidade de satisfação, esse entendimento não é hoje de acolher, pois com a lei actualmente vigente pretendeu-se colocar ao alcance do credor também os casos em que, não determinando o acto a insolvência do devedor, dele resulte, no entanto, a impossibilidade prática, de facto, de pagamento forçado do crédito.
Prosseguindo, dir-se-à que a jurisprudência e a doutrina têm entendido que o momento a que deve atender-se para se aferir da insuficiência do património do devedor para satisfazer integralmente o crédito é o da prática do acto de diminuição da garantia patrimonial.[3]
Todavia, na sequência do que se vem expondo, não se exige que o devedor esteja em situação de insolvência, podendo ocorrer que, não obstante não existir tal situação de insolvência, o acto produza ou agrave a impossibilidade fáctica de o credor obter a satisfação integral do seu crédito e nesta circunstância a acção de impugnação pauliana procederá.
Aliás, conforme refere Vaz Serra (in BMJ, nº 48, pág. 199)[4], a este respeito, para que a acção pauliana proceda, bastará ao impugnante alegar e provar que os bens remanescentes do devedor, necessários à cobertura do seu passivo, são de difícil, dispendiosa ou precária apreensão no processo executivo.
Regressando ao caso concreto, verifica-se que os autores provaram, para além da existência do seu próprio crédito (€34.915,85), a existência igualmente de uma significativa dívida dos 1ºs réus para com o J………. (€285.750,00), tendo estes, para garantia do seu pagamento, constituído hipoteca sobre os dois imóveis referidos na al. C) dos factos assentes (casa de habitação e fracção autónoma “CS”).
Da matéria fáctica dada como assente decorre ainda que o estabelecimento de recauchutagem atravessava dificuldades financeiras, não tendo conseguido recuperar a dinâmica comercial, nem pagar as suas dívidas (cfr. resposta nº 8 da base instrutória), que os 1ºs. réus disseram ao autor marido que não tinham dinheiro, nem possibilidades financeiras para liquidarem o empréstimo, só o podendo fazer quando vendessem o prédio rústico referido em A) (cfr. resposta ao nº 9 da base instrutória) e que com a doação aludida em A), os 1ºs. réus pretenderam evitar o cumprimento da obrigação aludida em 2º (cfr. resposta ao nº10 da base instrutória).
Deu-se ainda como assente que os 1ºs réus saíram do nosso país em finais de Novembro/início de Dezembro de 2003, devido à difícil situação financeira em que se encontravam (cfr. resposta ao nº 17 da base instrutória).
Por seu turno, pretendendo demonstrar que o devedor (1º réu) possuía, à data da escritura de doação (12.4.2002), bens penhoráveis de igual ou maior valor do que as dívidas, os recorrentes provaram o seguinte:
- que nessa data a casa de habitação aludida em C), tinha um valor não inferior a 204.750,00€ (cfr. resposta ao nº 11 da base instrutória);
- que o recheio deste prédio era constituído por mobiliário, e electrodomésticos, com um valor aqui não concretamente apurado (cfr. respostas aos nºs 12 e 13 da base instrutória);
- que a fracção autónoma aludida em c) tinha o valor de, pelo menos, €72.800,00 (cfr. resposta ao nº 14 da base instrutória);
- que os 1ºs. réus tinham esta fracção arrendada para o exercício da actividade de padaria pela qual recebiam dos seus inquilinos uma renda de valor aqui não concretamente apurado (cfr. resposta ao nº 15 da base instrutória);
- que à data de 12.04.2002, a sociedade aludida em E) tinha um número de clientes não apurado e pelo menos seis empregados ao serviço (cfr. resposta ao nº 16 da base instrutória).
Ora, em todo este contexto factual, o que se terá de salientar é a patente má situação financeira do estabelecimento de recauchutagem pertencente aos 1ºs réus, impossibilitado de recuperar a sua dinâmica comercial e de pagar as dívidas contraídas, situação essa que, de resto, é anterior à doação que nestes autos se discute e que depois os levaria a sair do nosso país.
E se é certo que, à data da celebração da escritura de doação referente ao prédio rústico descrito em A), os 1ºs réus dispunham de outros bens, pelo que não se achavam numa situação de absoluta insolvência, não é menos verdade que o quadro que domina as suas vidas é o das dificuldades financeiras, que aliás pouco tempo após – 9.7.2002 - se traduzirá na contracção de um elevado empréstimo junto da banca (€285.750,00) e na constituição, como garantia de pagamento, de hipoteca sobre os seus bens imóveis de maior valor (a casa de habitação e a fracção autónoma referidas em C).
Para além disso, também não poderá deixar de se sublinhar que o prazo do empréstimo concedido aos 1ºs réus e estabelecido a favor destes terminava apenas em 11.12.2002, pelo que só depois dessa data o autor começaria a diligenciar pelo seu pagamento e então já o prédio rústico descrito em A) havia sido doado aos 2º e 3ºs réus e os bens imóveis atrás referidos se encontravam hipotecados a favor do J………. .
Por tudo isto, considerando sempre, como atrás já se sublinhou, que o art. 611 do Cód. Civil terá que ser interpretado com a devida cautela e conjugadamente com o antecedente art. 610, de forma a não se ver na sua redacção a consagração do requisito da insolvência do devedor ou do seu agravamento para a procedência da impugnação pauliana, entendemos que, embora não se verifique tal insolvência à data da escritura de doação, este acto agrava a impossibilidade de o credor obter a satisfação integral do seu crédito.
Com efeito, apesar de os 3ºs réus terem demonstrado ser titulares de outros bens imóveis, para lá daquele que foi objecto da escritura de doação, os autores, por seu turno, alegaram e provaram que esses bens se acham hipotecados ao J………, para garantia de pagamento do significativo empréstimo que os 1ºs réus contraíram junto desta instituição bancária e ainda que o estabelecimento de recauchutagem a estes pertencente atravessava dificuldades financeiras e tinha dívidas, facto que já se verificava em data anterior àquela doação.
Como tal, à semelhança do que foi entendido pela 1ª Instância, a presente acção de impugnação pauliana procederá, por se mostrarem reunidos os seus pressupostos, improcedendo simultaneamente, nesta parte, o recurso interposto pelos réus B………. e marido I………. .
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4. Em quarto lugar, os recorrentes referem que na sentença recorrida declarou-se nula e de nenhum efeito a doação efectuada pelos 1ºs réus ao 2º e 3ºs réus, quando na impugnação pauliana o pedido a formular é o da declaração de ineficácia do acto que se impugna.
Entendem, por isso, que a decisão deve ser alterada, declarando-se a doação ineficaz em relação ao autor, na medida do valor do seu crédito de €34.915,85.
Vejamos então.
Na acção pauliana, tal como referem os recorrentes, o pedido a formular é o da declaração de ineficácia do acto que se impugna.
Porém, os autores pediram que se declarasse nula e de nenhum efeito a doação efectuada pelos 1ºs réus aos 2º e 3ºs réus, através de escritura pública celebrada em 12.4.2002 e o Mmº Juiz “a quo”, na sentença recorrida, declarou essa nulidade nos precisos termos em que foi peticionada.
Ora, entendemos que a 1ª Instância em vez de ter declarado a doação nula e de nenhum efeito, deveria antes ter declarado tal doação ineficaz relativamente aos autores na medida do valor do seu crédito.
E tal não significará, conforme entende Antunes Varela (in RLJ, ano 122, págs. 252 a 255) qualquer violação do disposto no art. 661, nº 1 do Cód. do Proc. Civil, que impede a condenação em quantidade superior ou em objecto diverso do que se pedir, porque o erro na qualificação jurídica do efeito prático que o autor pretende obter com a acção de impugnação pauliana (que é a inutilização jurídica do acto, na parte em que a mesma atinge o direito do autor) deve ser corrigido pelo juiz sem a mais ligeira ofensa do princípio dispositivo, tal como o art. 664 do Cód. Proc. Civil o concebe e o define.[5]
Por conseguinte, neste segmento, o recurso interposto pelos 3ºs réus será acolhido.
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DECISÃO
Nos termos expostos, acordam os juízes que constituem este Tribunal em julgar parcialmente procedente o recurso de apelação interposto pelos réus B………. e I………. e, em consequência, declara-se ineficaz em relação aos autores, na medida do valor do seu crédito de €34.915,85, a doação efectuada pelos 1ºs réus aos 2º e 3ºs réus, titulada por escritura pública celebrada em 12.4.2002.
Custas na proporção de 4/5 para os recorrentes e de 1/5 para os recorridos.

Porto, 19.5.2009
Eduardo Manuel B. Martins Rodrigues Pires
Mário João Canelas Brás
Manuel Pinto dos Santos

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[1] Cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, “Código Civil Anotado”, vol. I, 4ª ed., págs. 627/8.
[2] Cfr. Almeida Costa, “Direito das Obrigações”, 3ª ed., pág. 606, nota 2.
[3] Cfr., por ex., Antunes Varela, “Das Obrigações em Geral”, vol. II, 6ª ed., pág. 447 e Ac. Rel. Porto de 16.6.2005, p. 0533320, disponível in www.dgsi.pt.
[4] Citado no Ac. Rel. Porto de 29.5.2007, p. 0722321, disponível in www.dgsi.pt.
[5] Cfr. Ac. Rel. Porto de 17.6.2004, p. 0433052, disponível in www.dgsi.pt.