Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0621052
Nº Convencional: JTRP00039125
Relator: ALZIRO CARDOSO
Descritores: MANDATO
PROCURAÇÃO
MORTE
Nº do Documento: RP200605020621052
Data do Acordão: 05/02/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: CONFIRMADA A SENTENÇA.
Indicações Eventuais: LIVRO 215 - FLS 167.
Área Temática: .
Sumário: I - Em regra o mandato caduca por morte do mandante. Só assim não será se for conferido também no interesse do mandatário ou de terceiro.
II - Caso típico desse interesse é o de qualquer deles ter contra o dador de poderes uma pretensão à realização do negócio ou o direito a uma prestação.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO:

I- Relatório
B………. e C………., instauraram a presente acção declarativa, com processo comum, sob a forma ordinária, contra D………. e mulher E………., na qualidade de legais representantes dos menores, filhos de ambos, F………. e G………., pedindo que seja declarada nula a escritura pública de doação realizada no Cartório Notarial de Vila Pouca de Aguiar no dia 23 de Outubro de 2000.
Fundamentaram o pedido alegando, em resumo, que:
O doador H………. faleceu, pelo menos, cinco horas antes da outorga da referida escritura de doação, na qual foi representado pelo Dr. I……….;
O decesso do doador fez cessar imediatamente os poderes conferidos pela procuração que havia outorgado;
Acresce que o representado H………. na procuração em que constituiu seu procurador o Dr. J………. não concedeu a este poderes para substabelecer, pelo que a escritura de doação é ainda nula em virtude do substabelecido Dr. I………. não ter poderes para representar o referido H………. naquele acto.

Citados os Réus contestaram, excepcionando a ilegitimidade passiva e activa, por não estarem na acção todos os interessados, e defendendo-se por impugnação alegando que a procuração não caducou por morte de H………., defendendo a validade da doação, alegando que a procuração foi passada com o objectivo de permitir a doação aos seus netos, por ser essa a sua vontade expressa, tendo o mandato sido conferido no interesse destes. Alegaram ainda que o substabelecimento era permitido, dado que a intenção do referido H………. era que fosse celebrada a escritura de doação, tendo para o efeito conferido amplos poderes ao seu procurador, neles se incluindo o de substabelecer.
Concluíram pela procedência da defesa por excepção ou quando assim se não entenda que a acção deve ser julgada improcedente e, em reconvenção, pediram que sejam declarados donos e legítimos proprietários da fracção objecto da doação cuja declaração de nulidade os autores peticionam.
Replicaram os autores pugnando pela improcedência da reconvenção e da defesa dos Réus por excepção, tendo requerido a intervenção principal, como associados dos Réus, da doadora L………. e dos demais herdeiros de H………., com excepção dos Autores, tendo a requerida intervenção sido admitida por despacho de folhas 175-176.
Citados os intervenientes, decorreu o prazo legal sem que tivessem apresentado contestação.

No saneador conheceu-se do mérito da causa, julgando-se a acção improcedente e a reconvenção procedente, declarando-se que foi transmitido para os Réus/Reconvintes o direito de propriedade, nos precisos termos em que existia na esfera jurídica dos doadores, incidente sobre a fracção autónoma designada pelas letras “AO”, destinada a habitação, correspondente ao apartamento ………., tipo T dois, no segundo andar, Bloco ., com garagem número vinte e cinco e divisão com o número cinquenta e cinco, ambas na cave, do prédio urbano constituído em regime de propriedade horizontal, sito na ………., freguesia e concelho de Vila Pouca de Aguiar, inscrita na matriz sob o artigo 1580-AO, descrito na Conservatória do Registo Predial de Vila Pouca de Aguiar, sob o n.º ..30/Vila Pouca de Aguiar.

Inconformados os Autores interpuseram o presente recurso de apelação tendo na sua alegação formulado extensas conclusões que no essencial se podem resumir nos termos seguintes:
- Não ocorre qualquer vício na doação feita por L………. a favor dos netos;
- O mesmo não sucedendo com a doação efectuada pelo falecido H……….., dado que com a morte deste caducaram os poderes concedidos ao mandatário por ele constituído;
Por outro lado, por não ter concedido ao mandatário poderes para substabelecer, o substituto carecia de poderes para o acto;
- Não tem aplicação o disposto no n.º 3, do artigo 265º, nem na 1ª parte do artigo 1175º do Código Civil, dado que o mandato não foi conferido a favor do mandatário ou de terceiros;
- A escritura de doação realizada pelo procurador substabelecido, após a morte do mandante, é nula relativamente à disposição gratuita do falecido H……….;
- Acresce que, por não se verificar nenhuma das situações em que o procurador pode substituir-se por outrem, o substituto não permitido agiu sem poderes;
- Tendo o mandante falecido antes da realização da escritura não podia ratificar a doação e os herdeiros ao instaurar a presente acção demonstraram não querer a ratificação;
- Por isso, a doação efectuada pelo substituto, quanto à doação efectuada pelo falecido H………., sempre seria ineficaz em relação aos herdeiros deste.
Termos em que deve ser revogada a sentença recorrida, na parte em que considera não haver qualquer vicio na doação efectuada pelo falecido H………., procedendo parcialmente a acção e improcedendo a reconvenção também parcialmente.

Os Réus contra-alegaram defendendo a improcedência do recurso.

Corridos os vistos cumpre decidir.

II- Fundamentos
1. De facto
Por não ter sido impugnada a matéria de facto, têm-se como assentes os seguintes factos julgados provados pela 1ª instância:
1.1. No dia 23 de Outubro de 2000, I………., na qualidade de procurador substabelecido de L……… e H………., e M………., na qualidade de procuradora de D………. e esposa E………., pais e legais representantes de seus filhos menores G………. e F………., de cinco e dez anos de idade, respectivamente, declararam por escrito, perante notário, o primeiro que, na qualidade em que intervém, pela presente escritura e por conta da legitima, doa em comum e em partes iguais aos filhos dos representados da segunda outorgante, netos dos doadores e que actualmente não são presuntivos herdeiros dos doadores, a fracção autónoma designada pelas letras “AO”, destinada a habitação, correspondente ao apartamento ………., tipo T dois, no segundo andar, Bloco ., com garagem número vinte e cinco e divisão com o número cinquenta e cinco, ambas na cave, do prédio urbano constituído em regime de propriedade horizontal, sito na ………., freguesia e concelho de Vila Pouca de Aguiar, inscrita na matriz sob o artigo 1580-AO, com o valor patrimonial de 2.016.487$00, descrito na Conservatória do Registo Predial de Vila Pouca de Aguiar, sob o número trinta/Vila Pouca de Aguiar, onde se encontrava registada a favor dos doadores pela inscrição G-dois.
1.2. Mais foi declarado que “atribuem a esta doação o valor de DOIS MILHÕES E DUZENTOS MIL ESCUDOS”.
1.3. No dia 18 de Agosto de 2000, L………. declarou, por escrito, que constituía “seu bastante procurador, com a faculdade de substabelecer, J………., viúvo, advogado, natural e residente na freguesia de Vila Pouca de Aguiar, concelho de Vila Pouca de Aguiar, ao qual confere os necessários poderes para doar a seus netos F………. e G………., solteiros, menores, de nove anos de idade e de cinco anos de idade, respectivamente, naturais do Luxemburgo, residentes na ………., em Vila Pouca de Aguiar, filhos de D………. e E………., em comum e partes iguais, a fracção autónoma designada por T2, com entrada pelo número .., sita no 2º direito, com a área de noventa e nove metros quadrados e meio, na ………., em Vila Pouca de Aguiar, com garagem n.º .. e uma divisão de arrumações n.º .., inscrita sob o artigo 1580-AO da matriz predial urbana da freguesia de Vila Pouca de Aguiar, outorgando e assinando a competente escritura (…);
1.4. Mais declarou a referida L………. que “leu o presente documento, que o mesmo exprime a sua vontade e foi por ela assinado”.
1.5. No dia 29 de Agosto de 2000, H………. declarou por escrito, perante o Chanceler do Consulado de Portugal em Luxemburgo, que constituía seu “bastante procurador, J………., viúvo, advogado, natural e residente na freguesia de Vila Pouca de Aguiar, concelho de Vila Pouca de Aguiar, a quem confere plenos poderes para doar a seus netos F………. e G………., solteiros, de nove anos e de cinco anos de idade, respectivamente, naturais do Luxemburgo, residentes na ………., em Vila Pouca de Aguiar, filhos de D……….. e E………, em comum e partes iguais, a fracção autónoma designada por T2, com entrada pelo número .., sita no 2º direito, com a área de noventa e nove metros quadrados e meio, na ………., em Vila Pouca de Aguiar, com garagem n.º .. e uma divisão de arrumações n.º .., inscrita sob o artigo 1580-AO da matriz predial urbana da freguesia de Vila Pouca de Aguiar, outorgando e assinando a competente escritura (…) e ainda “para assinar tudo o que se torne necessário para execução dos poderes aqui conferidos …”.
1.6. No dia 23 de Outubro de 2000, J………. declarou por escrito, perante notário, que “substabelece no Sr. Dr. I………., casado, natural e residente na freguesia e concelho de Vila Pouca de Aguiar, todos os poderes que lhe foram conferidos por L………., casada com H………., sob o regime da comunhão geral de bens, natural da referida freguesia e concelho de Vila Pouca de Aguiar, onde reside na ………., por procuração assinada no dia dezoito de Agosto do corrente ano, tendo sido o respectivo termo de autenticação outorgado no mesmo dia dezoito de Agosto, neste Cartório Notarial e os poderes conferidos pelo referido H………., natural da freguesia de………., deste concelho e residente em .., ………., ………., ………. do Luxemburgo, por procuração outorgada no dia vinte e nove de Agosto do corrente ano, pelo Consulado Geral de Portugal no Luxemburgo.”.
1.7. O referido H………. faleceu às 02 horas e 15 minutos do dia 23 e Outubro de 2000, no Luxemburgo, onde estava emigrado.

2. De direito
A primeira questão a decidir consiste em saber se a procuração passada pelo falecido H……… se extinguiu com a morte deste e se, em consequência, a doação efectuada, após o falecimento do mandante é nula.
Vejamos:
A procuração cuja disciplina vem regulada nos artigos 262.º e seguintes do Código Civil constitui um instrumento de representação, mediante o qual o representante (procurador) actua em nome do representado (constituinte), sendo na esfera jurídica deste que se produzem desde logo todos os efeitos (artigo 258.º do Código Civil).
O Código Civil trata autonomamente a representação e o contrato de mandato por via do qual alguém fica vinculado para com outrem a, por sua conta, praticar um ou mais actos jurídicos (art. 1157 do C.C.), o que vem mostrar que o legislador quis fazer absoluta separação entre as duas figuras jurídicas. Tal não obsta, porém a que possam associar-se.
De facto, a procuração pode existir autonomamente em relação ao mandato, caso em que o procurador não está vinculado à prática de qualquer acto jurídico, estando no entanto habilitado a praticá-los (art. 258º).
Estamos então perante um negócio jurídico unilateral.
Mas a procuração pode também surgir associada ao mandato, surgindo assim o mandato com representação, no âmbito do qual, por regra, o mandatário tem o dever de agir não só por conta mas também em nome do mandante (art. 1.178 do C.C.).
No mandato, o mandatário tem o dever de exercer o mandato, enquanto, na procuração, o procurador, não tendo esse dever, tem essa possibilidade ou poder (Pedro Leitão Pais de Vasconcelos, A Procuração Irrevogável, Almedina, Coimbra, 2002, pág. 43).
No caso típico da procuração no interesse exclusivo do mandante, em regra a morte deste determina a caducidade da relação subjacente (obra e autor citado, pág. 184).
Mas no caso da procuração irrevogável, a regra não será a extinção da relação subjacente em virtude da morte do mandante. A relação subjacente é constituída por um negócio do qual resulta uma utilidade para o procurador, ou o terceiro, atingirem fins próprios. Em princípio a relação subjacente à procuração naturalmente irrevogável transmite-se para aos sucessores do mandante originário, pelo que a procuração se mantém em vigor (obra e autor citados págs. 184 e 185).
Como se referiu a o mandato e a procuração podem coexistir ou andar dissociados.
Mas em grande número de casos o mandato e a procuração aparecem associados. Ao lado do mandato que impõe ao mandatário a obrigação de celebrar um acto por conta do mandante, existe a procuração que, uma vez aceita, obriga o mandatário-procurador, em princípio, a celebrar o acto em nome daquele. Nestes casos, a que poderemos chamar de mandato representativo, são de aplicar as disposições do mandato, e são de aplicar também as disposições relativas á representação. São pois, de aplicar conjuntamente as normas dos dois institutos e não apenas as do mandato. É o que dispõe o n.º 1 do artigo 1178º (v. Pires de Lima, Antunes Varela, Código Civil Anotado, 2ª ed., vol. II, p. 661).
No caso dos autos o falecido H………. passou procuração ao Dr. J………., advogado, a quem conferiu plenos poderes para doar a seus netos F………. e G………., a fracção autónoma identificada na procuração.
Não consta dos autos que tenha existido uma declaração negocial expressa de aceitação do mandato. Mas deduz-se a aceitação tácita da conduta do mandatário que cumprindo a vontade expressa na procuração que o mandante lhe passou, ainda que através de substabelecimento dos poderes que lhe foram conferidos, concretizou a celebração da respectiva escritura de doação. Não houve apenas procuração, mera representação, mas uma relação de mandato representativo.
Em regra o mandato caduca por morte do mandante (artigo 1174, alínea a), do Código Civil). Não há, porém, caducidade, se o mandato for conferido também no interesse do mandatário ou de terceiro (artigo 1175º).
A lei não define o “interesse do procurador ou de terceiro” que se deva ter como relevante para afastar o princípio geral da caducidade do mandato por morte do mandante. Será caso típico daquele interesse o de qualquer deles ter “contra o dador de poderes uma pretensão à realização do negócio” ou “o direito a uma prestação” (cf. Vaz Serra, RLJ ano 109, p. 124 e Ac. do STJ de 24-01-90, BMJ n.º 393, p. 588).
Mas, conforme se escreveu no Ac. do STJ de 13-02-96 (in CJ-STJ, Tomo I, p. 86), embora se entenda que não basta um qualquer interesse, como o da remuneração porventura devida pelo exercício do mandato conferido ao procurador, também não será exigível que este ou o terceiro fiquem titulares do direito a uma prestação directamente contra o representado. “O interesse do procurador ou do terceiro deve ter-se como relevante sempre que, auferindo alguma vantagem de ordem económica ou jurídica, não seja posta em causa a relação de confiança entre o representante e o representado ou a autonomia da vontade deste”.
No caso dos autos, a procuração, com poderes para a doação, foi conferida, manifestamente, no interesse comum do mandante e dos terceiros, seus netos e futuros donatários.
Mesmo que se estivesse perante uma situação de simples representação, sempre seria de aplicar o disposto no artigo 265º, n.º 3. Tendo a procuração sido conferida no interesse de terceiro só poderia ser revogada com justa causa. E não tendo sido revogada manteve a sua eficácia mesmo depois da morte do representado.
Com efeito, não se extingue a procuração, nem caduca o mandato representativo e é válido o negócio celebrado com ela depois da morte do constituinte, se uma ou outro foram conferidos no interesse de terceiro (v. Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil anotado, 4.ª edição, vol. I, 246 e 247 e vol. III da 3.ª edição, págs. 737 a 741)
“A não caducidade do mandato implica necessariamente como que ficcionar o prolongamento da vida do mandante até ao cumprimento integral da missão atribuída ao mandatário, podendo este, por isso, validamente praticar, em nome do mandante e para além da sua morte, os actos de que fora incumbido” (Ac. do STJ de 9-03-95, BMJ n.º 445, pág. 462).
Defendem ainda os apelantes que não tendo sido conferidos ao mandatário poderes para substabelecer, não podia fazer-se substituir na escritura de doação tendo, consequentemente, o substituto agido sem poderes, o que acarreta a ineficácia da doação.
Mas entendemos que também nessa parte não lhe assiste razão.
É certo que da procuração não consta expressamente a autorização para substabelecer.
Porém, na procuração outorgada pelo falecido H………. este conferiu ao mandatário “plenos poderes” para doar a identificada fracção aos seus netos e para assinar tudo o que se tornasse necessário para execução dos poderes conferidos.
Assim, como refere a sentença recorrida, resulta do conteúdo da procuração que o mandatário ficou autorizado a usar de todos e quaisquer poderes para cumprimento integral da missão que lhe foi atribuída, entre os quais se deve considerar incluída a faculdade de substituição na execução do mandato.
Improcedem, pois, as conclusões dos apelantes, sendo de manter a decisão recorrida.

III- Decisão
Pelo exposto, acordam em julgar a apelação improcedente, confirmando-se a sentença recorrida
Custas pelos apelantes
*
Porto, 2 de Maio de 2006
Alziro Antunes Cardoso
Albino de Lemos Jorge
Afonso Henrique Cabral Ferreira