Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0535475
Nº Convencional: JTRP00038451
Relator: OLIVEIRA VASCONCELOS
Descritores: INTERDIÇÃO POR ANOMALIA PSÍQUICA
Nº do Documento: RP200511030535475
Data do Acordão: 11/03/2005
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: ALTERADA A SENTENÇA.
Área Temática: .
Sumário: Pressupostos da interdição por anomalia psíquica são
I) - a maioridade do sujeito
II) - a incapacidade de reger os bens e a pessoa em razão de anomalia psíquica;
III) - a anomalia psíquica revestir determinadas características.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

Em 00.10.30, na ...ª Vara Cível do Porto, B........... requereu a presente acção especial para interdição por anomalia psíquica de C........., sua mãe, com o fundamento de a requerida estar afectada de demência senil que a incapacita totalmente de reger a sua pessoa e administrar os seus bens

Foi dada publicidade à acção, tendo a requerida sido citada em 01.01.31.

A requerida juntou procuração outorgada a mandatário forense e contestou a acção.

Na contestação a requerida impugna os factos articulados.

Em 01.06.26, foi realizado interrogatório e exame da arguida.

A requerida faleceu em 02.01.01.

Em face deste facto veio o requerente e ao abrigo do disposto no artigo 957º, n.º1, do Código de Processo Civil, requerer o prosseguimento da acção, ou que foi deferido.

Foi realizado exame pericial por três peritos médicos, que apresentaram os seus relatórios.

Em 05.05.03 foi proferida sentença, na qual de se decidiu que a falecida requerida estava incapacitada de reger a sua pessoa e os seus bens desde 1 de Janeiro de 1998.

Inconformado, o representante da requerida deduziu a presente apelação, apresentando as respectivas alegações e conclusões.

O requerente contra alegou, pugnando pela manutenção da sentença recorrida.

Corridos os vistos legais, cumpre decidir.

As questões

Tendo em conta que
- o objecto dos recursos é delimitado pelas conclusões neles insertas - arts. 684º, nº3 e 690º do Código de Processo Civil;
- nos recursos se apreciam questões e não razões;
- os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido
são os seguintes os temas das questões propostas para resolução:
- alteração da matéria de facto
- fixação da data da do começo da incapacidade.

Os factos

São os seguintes os factos que foram dados como provados na 1ª instância:
- No dia 16 de Março de 1913 nasceu C.......... - alínea a) dos factos assentes.
- A referida C......... faleceu no dia 1 de Janeiro de 2002 - alínea b) dos factos assentes.
- A requerida C........ contraiu casamento com D.........., com quem estava casada à data do seu óbito - alínea c) dos factos assentes.
- A requerida foi internada em Dezembro do ano de 1980, no Hospital do Carmo e sujeita a intervenção cirúrgica –Colecistectomia - realizada pelo Prof. E........., tendo tido alta em 05/02/1981 – alínea d) dos factos assentes.
- Situação de natureza idêntica repetiu-se em 31/05/98, cerca das 11h55m em que a requerida teve de deslocar-se ao Hospital Geral de Santo António do Porto, onde deu entrada com tonturas, cefaleias, perda de memória e dor nas costas, decorrente de traumatismo que tinha sofrido no dia anterior, por perda de equilíbrio - alínea e) dos factos assentes.
- No final de 1998, a requerida apresentava um estado de saúde cada vez mais preocupante, encontrando-se muito fragilizada e cada vez mais instável, com sinais e sintomas de manifesto declínio do ponto de vista neuropsicológico e pneumocardiológico, traduzido por grande ansiedade e agitação, dificuldades respiratórias e um estado confusional, com desorientação espaço-temporal - alínea f) dos factos assentes.
- À requerida, por volta dos 52 anos de idade, foi-lhe diagnosticado um quisto mamário e consequentemente foi sujeita a intervenção cirúrgica, - decisão sobre o facto nº 1 da base instrutória.
- Durante alguns anos antes da intervenção cirúrgica referida na d) dos factos assentes a requerida teve problemas de ordem gastroenterológico, com queixas do foro epigástrico, acompanhadas de cólicas abdominais, eructações e vómitos biliares - decisão sobre o facto nº 2 da base instrutória.
- Apesar de recomendações feitas no pós-operatório, de necessidade de mais cuidados com alimentação, a requerida sofreu um aumento de peso desproporcionado, em relação á sua estatura e idade - decisão sobre o facto nº 3 da base instrutória.
- Como reflexo dos factos supra referidos, desde há cerca de cinco anos, a requerida sofre de crises agudas de hipertensão, com alterações significativas dos valores laboratoriais, com referência especial para a colesterolémia e triglicéridos - decisão sobre o facto nº 4 da base instrutória.
- Em consequência a requerida, sofreu ictus vasculares cerebrais, hemorragias nasais, tromboflebites e enfarte do miocárdio - decisão sobre o facto nº 5 da base instrutória.
- No final do ano de 1996, inicio de 97, verificou-se um agravamento geral do seu estado de saúde, com especial incidência nos seus valores tensionais e reflexos sobre a componente cardíaca, tendo-se instalado um estado de insuficiência cardíaca - decisão sobre o facto nº 6 da base instrutória.
- Em 20/02/1997, a requerida tem um enfarte do miocárdio e foi assistida no seu domicílio por um médico da Clínica do Bonfim, sujeita a sedativos e oxigénio - decisão sobre o facto nº 7 da base instrutória.
- Com todas as consequências que advêm do mesmo, sobretudo atenta a idade da requerida, sequelas que se traduzem por insuficiência cardíaca marcada - decisão sobre o facto nº 8 da base instrutória.
- Entre vários episódios de valores tensionais e laboratoriais elevados, crises de dificuldades respiratórias e uma insuficiência cardíaca cada vez mais marcada, a requerida começa a apresentar um declínio acentuado do seu estadopsico-somático, com quadros confusionais que se podem relacionar com focos de ictus cérebro-vasculares e abundantes hemorragias nasais - decisão sobre o facto nº 9 da base instrutória.
- Revelador de tal declínio de condições físicas, foi a ida da requerida ao Serviço de Urgência do Hospital de S. João, Porto, pelas 4h00, no dia 25/02/1998, com uma crise paroxistica nocturna - decisão sobre o facto nº 10 da base instrutória.
- Em 3/9/98, a requerida foi internada na Clínica do Bonfim, por desidratação, cianose, dispneia e apresentando insuficiência cardíaca com arritmia, agitada e desorientada - decisão sobre o facto nº 11 da base instrutória.
- Em 6/9/98 e ainda internada na Clínica referida no parágrafo anterior, a requerida mantinha o seu estado de agitação e referia querer ir para o “jardim” - decisão sobre o facto nº 12 da base instrutória.
- Estando sujeita a terapêutica com ansioliticos e antidepressivos –Terclan e Valium - decisão sobre o facto nº 13 da base instrutória.
- Em 28/04/2000, pelas 12h e 18m, a requerida recorreu uma vez mais ao Hospital de São João do Porto, com uma hemorragia nasal –Epistáxis –tendo sido observada na especialidade de Otorrino e efectuado o tamponamento - decisão sobre o facto nº 14 da base instrutória.
- A requerida encontra-se sujeita a uma terapêutica de base, com antihipertensores, diuréticos, ansioliticos, antidepressivos, sedativos e hipnóticos, tais como Tercian, Melleril, Diazepam, Valium e Prozac - decisão sobre o facto nº 15 da base instrutória.
- A requerida sentia uma crescente agitação e mal estar, que implicava a necessidade constante de recorrer ao oxigénio, que se encontrava sempre a seu lado - decisão sobre o facto nº 16 da base instrutória.
- A requerida começou a apresentar um declínio do seu estado cognitivo que se traduzia numa diminuição de vigilidade, grau de cooperação, alterações de humor, aumento da actividade motora desconexa, com períodos de ausência e alucinações, interrompidas por breves intervalos de lucidez - decisão sobre o facto nº 17 da base instrutória.
- Nos breves períodos de alguma actividade, a requerida tinha condutas bizarras, como, designadamente, preocupar-se insistentemente em guardar comida apodrecida no frigorífico e despensa, que pretende destinar ao consumo de diversos gatos vadios que se têm instalado no seu domicilio - decisão sobre o facto nº 18 da base instrutória.
- Insistia em manter alimentos estragados, com odores intensos e pestilentos no frigorífico, arca congeladora e despensa, nomeadamente peixe e fruta - decisão sobre a facto nº 19 da base instrutória.
- A requerida apresentava ainda uma perda fácil de atenção e da noção espaço - temporal, linguagem desconexa e avulsa - decisão sobre o facto nº 20 da base instrutória.

Os factos, o direito e o recurso

A - Vejamos, então, como resolver a primeira questão.

O tribunal “à quo” deu como provada toda a matéria dos quesitos 18º e 19º da base instrutória, acima referidos.

O apelante entende que essas respostas devem ser consideradas negativas porque se teriam baseado exclusivamente nos depoimentos das testemunhas F......... e G........., empregadas da requerida, segundo afirmam desde Setembro de 1998 e Novembro de 2000 ou segundo afirmam outra testemunhas, até Janeiro de 2000, quanto à testemunha G....... e após Janeiro de 2001, quanto à testemunha F......., motivo pelo qual só dentre dessas datas é que podiam ter estado em casa da requerida e em contacto com ela.

Cremos que não tem razão.

O art. 655º n.º1 do Código de Processo Civil consagra o denominado sistema da prova livre, por contraposição ao regime da prova legal: o tribunal aprecia livremente as provas, decidindo os juízes segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto.

Quer isto dizer que a prova é apreciada segundo critérios de valoração racional e lógica do julgador, pressupondo o recurso a conhecimentos de ordem geral das pessoas, normalmente inseridas na sociedade do seu tempo, a observância das regras da experiência e dos critérios da lógica, tudo se resolvendo, afinal, na formação de raciocínios e juízos que, tendo subjacentes as ditas regras, conduzem a determinadas convicções reflectidas na decisão dos pontos de facto em avaliação.

Assim, como escreveu o Prof. Alberto dos Reis, “prova livre quer dizer prova apreciada pelo julgador segundo a sua experiência, sem subordinação a regras ou critérios formais preestabelecidos, isto é, ditados pela lei” – Código de Processo Civil Anotado, volume IV, página 570.

A essas regras de apreciação não escapa a prova testemunhal, como expressamente se dispõe no art. 396º do Código Civil, sendo que, dada a sua reconhecida falibilidade, se impõe uma especial avaliação crítica com vista a uma valoração conscienciosa e prudente do conteúdo dos depoimentos e da sua força probatória.

Importam aqui, sobremaneira, as relações pessoais da testemunha com as partes e a razão de ciência do depoente.

De referir ainda, pela sua relevância, que a prova produzida deve ser considerada globalmente, conjugando todos os elementos produzidos no processo e atendíveis, independentemente da sua proveniência - princípio da aquisição processual (art. 515ºdo Código de Processo Civil).

Finalmente, não pode esquecer-se que, no âmbito e aplicação dessa valoração das provas no seu conjunto, poderá o julgador lançar mão de presunções naturais, de facto ou judiciais, isto é, o juiz, no seu prudente arbítrio, poderá deduzir de certo facto conhecido um facto desconhecido, porque a experiência ensina que aquele é normalmente indício deste - art. 351º Código Civil (ob. cit., III, 249).

A apreciação da prova na Relação envolve "risco de valoração" de grau mais "elevado" que os que se correm em 1ª instância, onde são observados os princípios da imediação, da concentração e da oralidade, já que a "oralidade indirecta", através da gravação, não permite colher, por intuição, tudo aquilo que o julgador pode apreender, quando tem a testemunha ou o depoente diante de si.

Quando o Juiz tem diante de si a testemunha ou o depoente de parte, pode apreciar as suas reacções, do entusiasmo, das hesitações, do nervosismo, das reticências, das insinuações, da excessiva segurança ou da aparente imprecisão, da sua convicção e da espontaneidade, ou não, do depoimento, do perfil psicológico de quem depõe; em suma, daqueles factores que são decisivos para a convicção de quem julga que, afinal, é fundada no juízo que faz acerca da credibilidade dos depoimentos.

Socorremo-nos das doutas palavras que, acerca da imediação, escreve Antunes Varela, “in” Manual de Processo Civil , 2ª edição, pág. 657:
"Esse contacto directo, imediato, principalmente entre o juiz e a testemunha, permite ao responsável pelo julgamento captar uma série valiosa de elementos (através do que pode perguntar, observar e depreender do depoimento, da pessoa e das reacções do inquirido) sobre a realidade dos factos que a mera leitura do relato escrito do depoimento não pode facultar".

De tudo isto se conclui que da reanalise das provas produzidas só pode surgir uma alteração da matéria de facto decidida na 1ª instância se tiver havido um erro notório na apreciação da matéria de facto, ou seja, quando se verifique que as respostas dadas não têm qualquer fundamento face ao elementos de prova trazidos ao processo ou estão profundamente desapoiados face às provas recolhidas.

Ora não é isso o que se passa no caso concreto em apreço.

Em primeiro lugar, há que referir que as respostas aos quesitos em causa – assim como aos restantes quesitos – não se basearam apenas nos depoimentos apontados pela apelante, mas também nos depoimentos das “testemunhas ouvidas em audiência de julgamento que privaram com a requerida”.

Em segundo lugar, também há a referir que a matéria dos quesitos não se reporta a uma data especifica, como parece entender o apelante.
De qualquer forma, tendo em conta que foi extraída da matéria constante dos artigo 31º e 32º da petição inicial e que esta se refere à contemporaneidade da instauração da presente acção – Outubro de 2000 – não havia qualquer impossibilidade de o tribunal considerar relevantes esses depoimentos “no que toca à vida e ao estado de vida da requerida”.

Em terceiro lugar, porque ouvidos os depoimentos apontados pela apelante, não se vê motivo para alterar o juízo eu sobre eles foi feito quanto à sustentação da matéria dos quesitos em causa.

Não há, assim, que proceder a qualquer alteração da matéria de facto dada como provada na 1ª instância.

B – Atentemos agora na segunda questão.

Na sentença recorrida fixou-se o começo da incapacidade da requerida em 98.01.01.

O apelante entende que os factos dados como provados são inócuos para a fixação da data em que se iniciou a incapacidade, mas a fixar-se alguma data, ela devia ser a de 01.10.22 – data do relatório pericial – ou 01.06.27 – data do interrogatório judicial.

Vejamos.

Antes de mais, vamos alinhavar alguns conceitos, extraídos de um artigo de Raul Guichard Alves “in” Direito e Justiça, Revista da faculdade de Direito da Universidade Católica, volume IX, Tomo 2, denominado “Alguns Aspectos do Instituto da Interdição”

Atendendo a que a interdição colide necessariamente com a liberdade individual, implicando uma restrição de direitos fundamentais, compreende-se que elas apenas seja possível com fundamento legal inequívoco, pelo que a enumeração das suas causas ou pressupostos contida no artigo 138º do Código Civil deve considera-se exaustiva e não susceptível de ser aplicadas por via analógica.

A protecção do incapaz e dos seus interesses constitui o fim precípuo da regulamentação legal.
Mais concretamente, pretende-se proteger o sujeito tanto perante terceiros, que tencionassem aproveitar-se da sua situação de inferioridade, como face a si próprio, enquanto poderia causar prejuízos à sua pessoa, por acção ou omissão.

Pressupostos da interdição por anomalia psíquica são
I) - a maioridade do sujeito
II) - a incapacidade de reger os bens e a pessoa em razão de anomalia psíquica;
III) - a anomalia psíquica revestir determinadas características.

I) - O primeiro pressuposto resulta do disposto no n.º 2 do artigo 138º do Código Civil.

II) Quando ao segundo pressuposto, há que salientar algumas ideias.

Anomalia psíquica compreende qualquer perturbação das faculdades intelectuais ou intelectivas (afectando a inteligência, a percepção ou a memória) ou das faculdades volitivas (atinente quer à formação da vontade, quer à sua manifestação).
Teve-se aqui em conta, nomeadamente, que há enfermidades mentais nas quais o primeiro aspecto permanece suficientemente intacto, mas que a componente volitiva surge alterada.
O nosso legislador prescindiu de fornecer uma definição do conceito de anomalia psíquica, o que constitui um necessário reenvio às correspondentes noções cientificas, medico-psiquiatricas, na sua continua evolução, permitindo a actualização do seu conteúdo.
Não é pressuposto, pois, da interdição por anomalia psíquica, a existência de uma típica enfermidade mental, importando, sobretudo, a presença de uma qualquer perturbação, desarranjo ou defeito patológico das faculdades psíquicas, dando lugar a uma incapacidade para prover aos interesses pessoais.
Decorre desta mesma ideia que a anomalia psíquica, conquanto imprescindível, não releva, em si, mas enquanto causa da inaptidão.
Ou dito doutro modo, o juízo de incapacidade ou impossibilidade para governar a própria pessoa e bens aparece, segundo o ligame de interdependência estabelecido pelo legislador, coo medida de relevância da anomalia psíquica.
Sendo certo, no entanto, que e lei - artigo 138º do Código Civil – exige ao julgador que constate um nexo etiológico entre a anomalia psíquica e a incapacidade: esta há-de resultar daquela, ter nela a sua origem.

Por outro lado, há que salientar que o processo de interdição reveste um carácter duplamente concreto: por um lado, a correlação entre o distúrbio psíquico e a capacidade de agir há-de ser averiguada em termos estritamente individuais, assim como individual é a doença e o seu diagnóstico; por outro lado, a valoração do distúrbio e a sua incidência na vida do interdicendo deve ir referida à “qualidade” dos seus interesses e à necessidade de a eles provir, ponderando-se, nomeadamente, a sua personalidade, a condição social e a importância dos interesses ou assuntos de distinta índole (patrimonial ou não) cuja gestão lhe pertença.

No concernente ao âmbito dos aspectos e interesses a considerar pelo juiz para formular o seu juízo sobre a incapacidade, incluir-se-á aí não apenas a vertente patrimonial, mas também a vertente pessoal, conforme a própria fórmula legislativa – “incapaz de governar a sua pessoa e os seus bens”.

III) – Quanto ao terceiro pressuposto da interdição por anomalia psíquica, as características que esta deve revestir estão relacionadas com a gravidade, actualidade e habitualidade.

Quanto à primeira característica, ela resulta do já atrás exposto quanto à anomalia psíquica se revelar incapacitante de reger a pessoa e os bens, não carecendo, no entanto, de se traduzir numa total desordem intelectual, num estado de absoluta imbecilidade ou demência, numa total inadequação às exigências da vida em relação.

Quanto à actualidade, significa que ela deve existir no momento em que se desenvolve o processo de interdição.
Nestes termos, o processo de interdição não pode aferir-se apenas com base numa precedente enfermidade mental nem tão pouco, num precedente exame médico.
Decisivo é o estado psíquico do sujeito, aferido ao momento presente.
A inexistência de actos anteriores prejudicais ou de um estado prolongado de doença não implica a improcedência da acção de interdição, desde que fique suficiente temente provada a actual inaptidão do interdicendo e se constate um perigo igualmente actual para os seus interesses.

Quanto à terceira característica – a habitualidade – com ela pretende-se exprimir a ideia que independentemente do seu carácter congénito ou adquirido e da sua gravidade, o distúrbio mental não deve apenas ser episódico ou passageiro, antes pelo contrário, as condições mentais do sujeito devem estar perduravelmente alteradas ou afectadas, não sendo previsível a sua normalização pelo menos num prazo de tempo próximo.

Vejamos agora como aplicar estes conceitos ao caso concreto em apreço e em relação à questão que nos ocupa, ou seja, qual a data do começo da incapacidade.

Antes de mais, há que assinalar que para a formulação de um juízo sobre a existência de uma incapacidade proveniente de uma anomalia psíquica e data do seu começo é preponderante o parecer dos peritos médicos, uma vez que se trata de uma questão eminentemente técnica e que exige conhecimentos especiais que em regra o julgador não possui.

Ora, com todo o respeito por opinião contrária, entendemos que no caso concreto em apreço existe a possibilidade de fixar essa data.

Começando pelo parecer dos peritos médicos, constatamos que, segundo eles, a falecida requerida sofria de um “quadro demencial” – na terminologia de dois dos peritos médicos, Drs. H....... e I........ – ou de um “Sindroma Cerebral Orgânico, tipo Demência, de etiologia vascular (por multi-enfartes)” – na terminologia do outro, Dr. J........, encontrando-se, por esse motivo, de modo total e definitivo, incapacitada para reger a sua pessoa e administrar os seus bens.

Quanto ao momento a partir do qual essa incapacidade começou a verificar-se, os dois primeiros peritos concluíram que “a doença evolui desde há cerca de dois anos” - o exame foi efectuado em Junho de 2001 – pois a requerida “há cerca de dois anos, aproximadamente, durante a convalescença de patologia cardíaca grave e incapacitante, começou a apresentar períodos (fugazes) de “esquecimentos” que não foram desde logo valorizados pela família”.

O outro perito concluiu que desde finais de 1996 se evidenciou a patologia cardiovascular grave e incapacitante que a requerida padecia.

Todos os peritos estão, pois, de acordo em que a requerida se encontrava, à data do exame, incapacitada para reger a sua pessoa e os seus bens – no que, aliás, a apelante também está de acordo – e que essa incapacidade teve fundamentalmente origem nas consequências de problemas cardiovasculares que padeceu.

O que divergem é que enquanto o Dr. J......... situa o início da incapacidade logo quando esses problemas cardíacos se evidenciaram, os outros dois peritos médicos apenas o situam posteriormente, no período de convalescença.

Sem pôr, obviamente, em causa a competência técnica dos outros peritos, o facto é que, perante a divergência entre o parecer do perito indicado pelo requerente – o Dr. J...... – e o perito indicado pela requerida – o Dr. I....... – o parecer do perito nomeado pelo tribunal – o Dr. H........ – tem de ser considerado decisivo, pela distanciação que tem em relação às partes, tanto mais que se movimenta dentro dos conceitos acima referidos genericamente sobre a interdição por anomalia psíquica.

Na verdade, a ocorrência dos problemas cardiovasculares na requerida não tinha, necessária e imediatamente, de causar a sua incapacidade para reger a sua pessoa e os seus bens.

E mesmo que ela evidenciasse alguns distúrbios psíquicos antes da data indicada pelos dois peritos acima referidos para o início da sua incapacidade, o certo é que a existência desses distúrbios apenas poderia ser considerada relevante para a determinação desse início no momento em que a determinassem.

Ou seja, nada impedia que se considerasse que a requerida – pessoa em concreto – apesar de ter tido distúrbios psíquicos por virtude dos problemas cardíacos que sofreu, não continuasse durante algum tempo a ser capaz para reger a sua pessoa e os seus bens, atento à “qualidade” dos seus interesses e à necessidade de a eles provir.

Concluímos, pois, aceitando o laudo maioritário dos peritos, que o início da incapacidade da requerida se deve situar em Junho de 1999.

Por outro lado, tal conclusão não é de modo algum contrariada pela matéria dada como provada, antes ela vai nesse sentido

A decisão

Nesta conformidade, acorda-se em julgar parcialmente procedente a presente apelação e assim, em alterar a sentença recorrida no sentido de que o começo da incapacidade da requerida C......... ocorreu em Junho de 1999 (mil novecentos e noventa e nove).
Custas pelas partes, na proporção de metade para cada uma.

Porto, 3 de Novembro de 2005
Fernando Manuel de Oliveira Vasconcelos
José Viriato Rodrigues Bernardo
Gonçalo Xavier Silvano