Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0316950
Nº Convencional: JTRP00034478
Relator: DOMINGOS MORAIS
Descritores: ILÍCITO DE MERA ORDENAÇÃO SOCIAL
HORÁRIO DE TRABALHO
CONDUÇÃO AUTOMÓVEL
Nº do Documento: RP200404260316950
Data do Acordão: 04/26/2004
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC CONTRAORDENACIONAL.
Decisão: REJEITADO O RECURSO.
Área Temática: .
Sumário: A entidade empregadora é a responsável pela infracção cometida pelos seus motoristas traduzida na inobservância dos preceitos legais referentes às pausas a observar na condução de veículos automóveis.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação do Porto:

I - A.........., com sede no Lugar de....., freguesia de....., concelho de Barcelos, impugnou judicialmente a decisão do Sr. Delegado da Inspecção Geral do Trabalho (IGT) de Braga (fls. 20), que lhe aplicou a coima de 1 250,00 euros, pela prática da infracção, com negligência, p.p. nas disposições conjugadas do artigo 7.°, n.º 1 do DL n.° 272/89, de 19 de Agosto, com a redacção dada pela Lei n.º 114/99, de 3 de Agosto; artigo 7.° do Regulamento (CEE) n.° 3820/85, do Conselho da Europa; artigo 7.º, n.° 3, alínea d); artigo 9.°, n.º 1, alínea d), da Lei n.º 116/99, de 4 de Agosto, com a redacção dada pelo DL n.° 323/2001, de 17 de Dezembro.

Por sentença proferida pelo M. Juiz da 1.ª instância, foi negado provimento ao recurso e mantida a coima aplicada à impugnante.
De novo inconformada, a arguida recorreu para o Tribunal da Relação do Porto, concluindo, em síntese, que:
- O levantamento do auto de notícia resultou de uma lapso na “leitura” da folha de registo do tacógrafo;
- Os motoristas são advertidos para o cumprimento das regras prescritas para a condução de veículos pesados no transporte de mercadorias;
- Por força das circunstâncias dessa actividade, que, por vezes, tornam inexequíveis as instruções dadas aos motoristas, justifica-se uma atenuação especial da pena;
- A decisão impugnada violou o disposto nos artigos 72.º e 73.º do Código Penal; nos artigos 7.º e 8.º, da Lei n.º 114/99, de 03.08; nos artigos 7.º e 8.º da Lei n.º 116/99, de 04.08, e artigo 18.º do DL n.º 433/82, de 27.10.

Respondeu o D. M. do M.º Público, junto do Tribunal da 1.ª Instância, concluindo no sentido do improvimento do recurso.
Nesta Relação, o Sr. Procurador da República emitiu Parecer, concluindo no mesmo sentido.
Recebido o recurso e colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

II - OS FACTOS
Está assente a seguinte factualidade:
1. No dia 30 de Outubro de 2002, pelas 9 horas e 25 minutos, circulava na E.N. 101, em....., Vila Verde, o veículo pesado de mercadorias, de matrícula ..-..-GF, propriedade da arguida e conduzido por B.........., que desempenhava as funções de motorista sob as ordens, direcção e fiscalização da arguida;
2. O referido motorista conduziu o aludido veículo durante um período superior a 4 horas e 30 minutos, sem fazer uma pausa de, pelo menos, 45 minutos ou, em sua substituição, 3 pausas de, pelo menos, 15 minutos cada;
3. A conduta referida em 2. ficou a dever-se a desleixo por parte da arguida, que não agiu com o cuidado que lhe era exigível com vista à observância daqueles períodos de repouso;
4. Na referida data, a arguida tinha 300 trabalhadores ao seu serviço e apresentou um volume de negócios de € 22.703.280,09.

III - O Direito

Da sucessão de regimes sancionatórios
Em primeiro lugar, importa analisar a questão da sucessão de regimes sancionatórios quanto aos factos imputados à arguida e sua eventual repercussão no julgamento do presente recurso.
Como é sabido, a partir do dia 1 de Dezembro de 2003, vigora o Código do Trabalho, aprovado pela Lei n.º 99/2003, de 27.08, que, apesar de ter mantido intocado o DL n.º 272/89, de 19.08, ao abrigo de cujo artigo 7.°, em conjugação com o Regulamento (CEE) n.º 3820/89, do Conselho, de 20.12.85, a arguida foi sancionada, revogou, expressamente, a Lei n.º 116/99, de 04.08 (cfr. artigos 1.°, 3.°, 8.° e 21 ° n.º 1, al. aa)), diploma ao qual pertenciam as normas por força das quais a concreta sanção foi definida e aplicada, na consideração de que aquela era responsável pela prática negligente de uma contra - ordenação grave (cfr. artigos 9.°, n.º 1, al. d), e 7.°, n.º 3, al. d), da Lei n.º 116/99).
Como bem refere o Sr. Procurador no seu Parecer, a mesma contra - ordenação grave é agora punida nos termos dos artigos 619.° e 620.°, n.ºs 1 e 3, alínea e), com coima variável entre 15 e 40 UC.
Deste modo, sendo-lhe imputada igual contra - ordenação a título negligente e punida pelo mínimo, (no âmbito do anterior regime foi-lhe aplicada coima ligeiramente superior a tal mínimo, que era de € 1 122,30), a coima correspondente seria agora de 15 UC (considerando o valor dessa unidade mais próximo da data da prática da infracção, inferior ao actual, que é de € 89,00 desde 1 de Janeiro de 2004), isto é, (€ 79,81 X 15) = € 1.197,15, clara e concretamente mais desfavorável do que aqueloutro (apesar desse mínimo ainda se situar abaixo da coima concretamente aplicada, o confronto entre ambos os regimes deverá fazer-se numa base proporcional dos mínimos de cada um face à penalidade concretamente aplicada).
Ora, atento o disposto no artigo 3.°, n.ºs 1 e 2, do RGCO (DL 433/82, de 27 de Outubro), por força do artigo 615.° do Código do Trabalho, deve aplicar-se, ao caso em apreço, o regime vigente à data da prática da infracção, por ser o concretamente mais favorável à arguida.

Do recurso
As conclusões do recurso da arguida delimitam as seguintes questões:
- Reapreciação da matéria de facto;
- Responsável pela prática da infracção;
- Atenuação especial da pena e sua suspensão;
- Ilegalidade na determinação da medida da coima e insuficiente fundamentação na fixação da respectiva medida.

Reapreciação da matéria de facto
Nos termos do artigo 75.°, n.º 1, do citado RGCO, o presente recurso circunscreve-se à matéria de direito e, salvo os casos previstos no artigo 410,º, n.º 2 do CPP, está vedado ao Tribunal da Relação sindicar o julgamento em matéria de facto, pelo que deve ater-se à que se mostra assente na decisão impugnada.

Responsável pela prática da infracção
A arguida alega que agiu com toda a diligência e cuidado, não ocorrendo culpa sua.
Nos termos do artigo 7.º, n.º 1, do Regul. (CEE) n.º 3820/85, "após 4 horas e meia de condução, o condutor deve fazer uma pausa de, pelo menos, 45 minutos, excepto se iniciar um período de repouso”.
E o n.º 2 acrescenta: “Esta interrupção pode ser substituída por pausas de, pelo menos, 15 minutos cada, intercaladas na duração diária de condução ou imediatamente após este período, de modo a respeitar as disposições do n.º 1”.
Ora, resulta provado que o motorista em causa conduziu o veículo durante um período superior a 4 horas e 30 minutos, sem fazer uma pausa de, pelo menos, 45 minutos ou, em sua substituição, 3 pausas de, pelo menos, 15 minutos cada.
O artigo 15.º do Regulamento (CEE) n° 3820/85, de 20.12, estabelece que "A empresa organiza o trabalho dos condutores de tal forma que estes possam dar cumprimento às disposições adequadas do presente regulamento, assim como do Regulamento (CEE) n.º 3821/85 (nº 1);
E que "A empresa verifica periodicamente se os dois regulamentos foram respeitados. Se se verificarem infracções, a empresa toma as medidas necessárias para evitar que se reproduzam (sublinhado nosso)-.
A arguida tem, pois, o dever de verificar, regularmente, os discos de registo, para se certificar se, na prática, os regulamentos estão ou não a ser respeitados pelos seus motoristas.
As "medidas necessárias" podem passar, em último caso, por sanções disciplinares, caso se verifique o desrespeito, por parte dos motoristas, dos referidos regulamentos.

Nos termos do artigo 1º da Lei nº 116/99, de 04.08 (regime jurídico aplicável ao caso dos autos), "Constitui contra-ordenação laboral todo o facto ilícito e censurável que preencha um tipo legal correspondente à violação de norma de lei ou instrumento de regulamentação colectiva que consagre direitos ou imponha deveres aos sujeitos de relação de trabalho, para o qual se comine uma coima".
E sob a epígrafe "Sujeitos responsáveis pela infracção", o artigo 4.º, n.º 1, alíneas a) e c) do mesmo diploma, dispõe, claramente, que são responsáveis pelas contra-ordenações laborais e pelo pagamento das coimas, a entidade patronal, quer seja pessoa singular ou colectiva e o agente da entidade patronal, conjuntamente com esta, nos casos em que a lei especialmente o determine (ver, actualmente, o artigo 617.º do Código do Trabalho).
Este normativo estabelece, como regra geral, a responsabilização da entidade patronal, independentemente de saber quem é, na prática, o "agente de facto" da infracção.
O motorista profissional - "o infractor material" - exerce a sua actividade subordinado juridicamente à entidade empregadora, que tem o poder de direcção e fiscalização da conduta do motorista, não só porque esse poder resulta da natureza própria do contrato de trabalho (na relação empregador/trabalhador), mas também porque, no caso específico das empresas que se dedicam ao transporte rodoviário, o Regulamento (CEE) lhes impõe, como supra referido, a obrigação de verificar o cumprimento das normas respeitantes ao tempo de trabalho e outras, para defesa dos próprios motoristas (saúde e segurança no trabalho) e para defesa específica da segurança rodoviária, um bem social cada vez mais escasso.
O trabalhador, neste caso motorista, desempenha um papel meramente instrumental, no âmbito das relações do trabalho, em que os meios de produção pertencem à entidade empregadora. Transferir a responsabilidade pelas infracções laborais para o trabalhador, é legitimar a impunibilidade dessas infracções, dado que o trabalhador, como agente subordinado que é, vem alegar que agiu cumprindo ordens da sua entidade patronal.
Embora assumindo contornos de uma responsabilidade "quase objectivada", a solução legal do artigo 4.º da Lei n.º 116/99 faz prevalecer razões de ordem pragmática no regime de punição em causa.
E para afastar a sua responsabilidade, não basta ao empregador realizar cursos de formação para os motoristas e entregar-lhes um manual de utilização dos discos no tacógrafo, pois, na prática, dada a concorrência no sector dos transportes terrestres de mercadorias, o roteiro de cada viagem a realizar pelo motorista, por determinação do empregador ou de uma terceira empresa para quem este preste serviço, é tão condicionado no tempo e no espaço que, na maior parte dos casos, não permite ao motorista cumprir o roteiro de viagem e, simultaneamente, respeitar os regulamentos CEE.
Daí que, transferir a responsabilidade do empregador para o motorista, conduziria à completa impunidade e desresponsabilização social daquele, contra quem, por via de regra e para evitar abusos, se dirigem as contra-ordenações laborais.
Em conclusão: a arguida é a responsável pela prática da infracção de que vem acusada, a título de negligência.

Ilegalidade na determinação da medida da coima e insuficiente fundamentação na fixação da respectiva medida.
A qualificação da "gravidade da contra-ordenação" resulta da lei - artigo 7.º, n.º 1 da Lei n.º 114/99, de 03.08:
"Constitui contra-ordenação grave o não cumprimento de qualquer disposição relativa aos tempos de condução e de repouso e às interrupções da condução".
E a coima aplicada respeita os limites fixados no artigo 7.º, n.º 3, alínea d) da Lei n.º 116/99, na redacção dada pelo DL n.º 323/2001, de 17.12.
Atenta a factualidade sob o n.º 4 e o disposto no artigo 9.º, n.º 1, alínea d), a arguida é considerada uma grande empresa e foi punida por negligência, pelo não se verificam as ilegalidades invocadas.

Atenuação especial da pena e sua suspensão
A atenuação especial da punição por contra-ordenação está consagrada no artigo 18.º, n.º 3 e pode verificar-se nas situações previstas nos artigos 9.º, n.º 2 (erro censurável); 13.º, n.º 2 (tentativa punível) e 16.º, n.º 3 (cúmplice) todos do DL n.º 433/82, de 14.09.
O caso dos autos não se enquadra em nenhuma das referidas situações.
O artigo 72.º do Código Penal, aplicável por força do artigo 32.º do DL n.º 433/82, prevê a atenuação especial da pena, para além dos casos previstos na lei, quando existam circunstâncias anteriores ou posteriores à infracção ou contemporâneas dela, que diminuam por forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena.
Para que se possa verificar o privilégio da atenuação especial é necessário que se provem factos que consubstanciem uma diminuição da ilicitude do facto, da culpa da arguida ou da desnecessidade da punição.
Ora, manifestamente, não foram provados factos que permitam a pretendida atenuação da coima.

Quanto à suspensão da coima, diremos, apenas, que ela não está prevista no regime geral das contra-ordenações, nem no regime geral das contra-ordenações laborais e o disposto no artigo 50.º do CP - suspensão da execução da pena - aplica-se tão só às penas de prisão e não ás coimas contra-ordenacionais, como é entendimento doutrinário (cfr. Código Penal, notas de trabalho, MMPDJP, pág. 86 e M. Maia Gonçalves, Código Penal Português, 12.ª ed., pág. 203).

IV - Decisão

Face ao exposto, decide-se negar provimento à impugnação, rejeitando o recurso, nos termos do artigo 420.º, n.º 1 do CPP.
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Custas pela recorrente, fixando em 5 UC a taxa de justiça.
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Porto, 26 de Abril de 2004
Domingos José de Morais
João Cipriano Silva
José Carlos Dinis Machado da Silva