Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0530559
Nº Convencional: JTRP00037750
Relator: JOÃO BERNARDO
Descritores: PROPRIEDADE HORIZONTAL
CONDOMÍNIO
Nº do Documento: RP200502240530559
Data do Acordão: 02/24/2005
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: CONFIRMADA A SENTENÇA.
Área Temática: .
Sumário: Relativamente todos os blocos - integrantes de um só prédio - cuja separação não resulta com nitidez do título de constituição da propriedade horizontal, só pode haver um condomínio.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I –
O “CONDOMÍNIO ..........”, sito na .........., ..., .......... demandou:
B.......... e marido C.........., residentes no Apartamento ... de tal prédio.

Pediu a condenação dela a:
Reconhecer a propriedade dela, R., de uma área que identifica integrante bloco em propriedade horizontal referido;
Reconhecer, em consequência, a obrigação de pagamento de quotização, calculada tendo em conta tal área;
Pagar o montante de 670,8 euros, correspondente a tal obrigação.

Contestou a R., sustentando, na parte que agora interessa, que o A. não tem personalidade judiciária.

Respondeu ele afirmando tal personalidade.
E, para a hipótese de assim se não entender, requereu a intervenção principal da “Administração do Condomínio do Edifício sito na .........., ..........”.

II –
A Sr.ª Juíza entendeu que se verificava, efectivamente, a alegada falta de personalidade judiciária e que esta não podia ser remediada pelo incidente de intervenção requerida.
Nessa conformidade:
Não admitiu tal incidente e absolveu os RR da instância.

III –
Desta decisão traz o A. agravo.

Conclui as alegações do seguinte modo:

1. A inexistência de personalidade jurídica não contende com a possibilidade de a recorrente ser parte nos autos, detendo, como tal, personalidade judiciária nos termos do artigo 5º, 1 do Código de Processo Civil;
2. No caso concreto da autora a sua personalidade judiciária estende-se à norma contida no artigo 6º, alínea e) do Código de Processo Civil e,
3. Ainda que se entenda inexistente a personalidade judiciária em causa, a mesma seria sanável pela aplicação analógica do disposto no artigo 8º do diploma adjectivo civil e com o recurso à intervenção da ADMINISTRAÇÃO DO CONDOMÍNIO do Edifício sito na ........., .......... tal como o mesmo é definido na escritura de constituição da propriedade horizontal e através do, pela autora/recorrente, mecanismo da intervenção principal provocada e para a RATIFICAÇÃO DO PROCESSADO;
4. Encontrando-se violados na decisão recorrida e por força do supra exposto, os artigos 5º, 6º, alínea e) e 8º do Código de Processo Civil.
5. A ré nunca colocou em causa a legitimidade da Administração do Condomínio .......... a que pertence, bem assim como a validade das decisões tomadas pela Assembleia de Condomínio, as quais jamais foram objecto de impugnação;
6. O acordo unânime quanto ao modo de funcionamento de determinado condomínio, a definição de permilagens e a percentagem com que participarão nas despesas comuns, vinculam as pessoas ou entidades concretas que o subscreveram, designadamente a ré que jamais impugnou tais decisões, destarte considerar-se que tal alteração do regime de propriedade horizontal só pode ser celebrado por escritura pública;
7. A determinação das prestações da Condómina/ré para as despesas aludidas no artigo 1.424 do Código Civil resulta, validamente, do acordo de todos, ainda que em desconformidade com o critério constitutivo da propriedade horizontal ou com as regras supletivas previstas nesse artigo;
8. Actuando a ré processualmente com claro ABUSO DE DIREITO e, por estar em causa a violação dos princípios da boa fé e da confiança, o abuso de direito torna ilegítima a invocação da nulidade do contrato de constituição da propriedade horizontal por vício de forma por parte da ré;
9. A figura do abuso de direito é invocável para afastar a nulidade decorrente da falta de forma legalmente prescrita, designadamente por não se encontrar em causa interesses de ordem pública;
10. Pugna-se por que, em douto acórdão a proferir pelos Venerandos Juízes Desembargadores no Tribunal da Relação do Porto, seja a decisão recorrida objecto de revogação e substituição por outra que determine a personalidade judiciária da recorrente nos termos do disposto nos artigos 5º e 6º, alínea e) do Código de Processo Civil ou, quando muito, a possibilidade da sua sanação nos termos analogicamente aplicáveis do artigo 8º do Código de Processo Civil, com a admissão do requerimento de INTERVENÇÃO PROVOCADA, e, em consequência, ser a ré ouvida, nos termos do disposto no artigo 326º, 2 do Código de Processo Civil, e, a final, ser a interveniente citada para a ratificação do processado até à data.

Contra-alegou a parte contrária, pugnando pela manutenção do decidido.

IV –
Antes as conclusões das alegações, importa tomar posição sobre:
Se assiste ao A. personalidade judiciária;
Não assistindo, deve ser admitido o incidente de intervenção principal provocada a fim de remediar tal falta.
Em qualquer caso, se, contra a R., vale a figura do abuso do direito.

V –
A decisão a tomar assenta, no plano factual, no seguinte, retirado da tramitação processual:

O A. identificou-se como “Condomínio .........., sito na .........., ..., ..........”;
A propriedade horizontal a que se reporta foi constituída pela escritura pública de 7.8.97 cuja certidão juntou;
Desta consta o seguinte:
“… A sua representada está a proceder à construção de um edifício composto por três blocos, com cave comum aos três blocos, sendo o bloco ...01 constituído por rés-do-chão e seis andares, o Bloco ...02 constituído por rés-do-chão e sete andares e o Bloco ...03 constituído por rés-do-chão e cinco andares…”.
“…O referido prédio obedece aos requisitos legais para sobre ele ser instituído o regime de propriedade horizontal, pois é constituído por 69 fracções autónomas… e por uma parte comum do prédio…”
“…Assim … têm instituído o regime de propriedade horizontal sobre o identificado prédio”.
No anexo, ainda de tal documento, reservado à enumeração das fracções escreveu-se em título: “Relação das fracções pertencentes a um prédio… composto por três blocos…” aludindo-se em tal relação apenas a “cave comum”.
…………………

VI –
Nos termos do art.º 1414.º do CC (Diploma a que pertencem também os artigos abaixo indicados, sem menção de inserção) as fracções de que um edifício se compõe, em condições de constituírem unidades independentes podem pertencer a proprietários diversos em regime de propriedade horizontal.
E de acordo com o artigo seguinte, só podem ser objecto de propriedade horizontal as fracções com saída própria para as partes comuns do edifício.
Daqui retiramos, em primeira análise, uma ideia base:
A cada edifício corresponde uma propriedade horizontal.

VII –
Mas esta ideia base não é totalmente correcta.
O legislador introduziu o art.º1438.º-A, epigrafando-o de “Propriedade Horizontal de Conjuntos de Edifícios, abrindo ali uma excepção a tal regra.
Pode agora constituir-se uma propriedade horizontal relativamente a conjuntos de edifícios, funcionalmente ligados entre si.

Não temos, porém, previsão na lei do contrário, ou seja, que, no mesmo edifício, possa haver várias propriedades horizontais.

VIII –
No caso presente, temos o teor da escritura de constituição da propriedade horizontal:
“Está-se a construir um edifício”, “esse edifício foi implantado num terreno”, o “referido prédio é constituído por 69 fracções autónomas”, “a propriedade horizontal é constituída sobre o identificado prédio”, e a Relação das fracções “pertencentes a um prédio em construção composto por três blocos”, tudo ali se pode ler (sendo o sublinhado nosso, é evidente).
Este teor da escritura determina a sua interpretação, sendo certo que outros elementos não existem que divirjam do entendimento derivado da redacção que se deu ao documento. Na verdade, poder-se-ia colocar outra hipótese de interpretação do conteúdo da escritura se se constatasse que os outorgantes tinham ignorado a realidade dos três blocos. Mas não. Afirmaram-na repetidamente, afirmando, concomitantemente, que estes integravam apenas um prédio.

Estamos nitidamente fora do alcance daquele art.º1438.º - A.

IX –
Tendo nós um edifício apenas – ainda que composto de 3 blocos – temos um único condomínio, atento o disposto no art.º1430.º, n.º1.
O Dr. Aragão Seia (Propriedade Horizontal, 156) admite que, em propriedade horizontal, haja vários administradores (admitindo, portanto, implicitamente que haja vários condomínios), mas nos casos em que haja um “conjunto de edifícios”, ou seja, nos casos do art.º1438.º-A referido.
Por isso, interpretando este Autor “a contrario sensu”, cremos antes que a sua posição pode ser usada em reforço da solução da unidade de condomínio para o caso presente.
Menos exigentes, quanto à não unidade de administração, são os dr.s Rodrigues Pardal e Dias da Fonseca (Da Propriedade Horizontal no Código Civil e Legislação Complementar), 6.ª ed., 125, falando, não em mais do que um “edifício”, mas em zonas ou torres de um “edifício”. No entanto, logo frisam que o título constitutivo “deve assinalar devidamente cada zona ou torre e suas fracções autónomas e respectivas partes comuns”. Ora, a referência comum que se faz, no nosso caso, é apenas à cave onde se situa a garagem, o que será insuficiente.
Conforme os contornos da propriedade horizontal constituída pela referida escritura pública, teria que haver um condomínio para todas as fracções comuns e para todas as partes comuns.
Um condomínio para cada bloco só com alteração do título constitutivo.

X –
Daqui resulta inquinada a própria existência do A.
Porque, sendo-o apenas do “Bloco ...01”, não resulta da propriedade horizontal, não podendo valer, a seu favor, a alínea e) do art.º 6.º do CPC.
Não tem personalidade judiciária.

XI –
A falta de personalidade judiciária é um vício tão profundo que, no dizer do prof. A. dos Reis, “não tem remédio” (Código de Processo Civil Anotado, ed. de 1948, 66).
Evoluiu, no entanto, esta posição radical [Ainda no tempo do prof. A. dos Reis, como se pode ver em Código Civil Anotado de 1960, I, 24] e agora temos o art.º 8.º deste mesmo código. Pode a falta ser sanada relativamente a sucursais, agências, filiais, delegações ou representações, mediante a intervenção da administração principal e a ratificação ou repetição do processado.
Temos aqui nitidamente uma norma excepcional, estando a analogia pretendida pelo recorrente com a argumentação sobre a intervenção principal que requereu, afastada pelo art.º11.º, agora do Código Civil.
De qualquer modo, mesmo que assim não se entendesse, sempre haveria que ter em conta as diferenças. As entidades referidas no art.º 8.º aludido estão admitidas e previstas na lei, têm uma ligação a um ente do qual são dependentes. A falha da personalidade judiciária reside em estarem elas em juízo em vez deste.
No nosso caso, temos um condomínio juridicamente inexistente e, mesmo no plano factual, sem qualquer ligação apurada ao condomínio de todo o edifício. Vale, quanto a esta diferença, precisamente o que referem o prof. A. Varela e outros no Manual de Processo Civil, 2.ª ed., 117, nota 2 de pé de página.
A intervenção principal requerida não pode remediar a falta de personalidade judiciária.

XII –
Não havendo personalidade judiciária, a acção deixa de poder ter aceitação [No local citado, o Prof. Varela e outros referem que, nestes casos, a petição deve ser pura e simplesmente arquivada].
Não há aquela base mínima para nesta se poderem tomar decisões que vão além da referente à tal falta de tal personalidade.
O abuso do direito invocado tem, então, de ser circunscrito precisamente a esta questão.
Ora, a falta de personalidade tem de funcionar objectivamente, não podendo, por tal mecanismo, uma parte “criar” um ente que não pode ser parte. Voltamos à irremediabilidade de que falava o prof. A. dos Reis no lugar supra aludido, não relevando para aqui as situações excepcionais que, entretanto, vieram a lume.

Não podem proceder os argumentos do A.
…………….

XII –
Nesta conformidade, nega-se provimento ao recurso, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas pelos elementos que constituem o recorrente.
Porto, 24 de Fevereiro de 2005
João Luís Marques Bernardo
Gonçalo Xavier Silvano
Fernando Manuel Pinto de Almeida