Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0326819
Nº Convencional: JTRP00036187
Relator: FERNANDO SAMÕES
Descritores: CONDOMÍNIO
ADMINISTRADOR
LEGITIMIDADE
Nº do Documento: RP200402100326819
Data do Acordão: 02/10/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recorrido: 3 J CIV V N GAIA
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: CONFIRMADA A SENTENÇA.
Área Temática: .
Sumário: I - É legalmente possível que o regulamento ou Estatuto de Condomínio proíba a detenção de animais na parte comum ou própria, sobretudo se atentarem contra o repouso, saúde e tranquilidade dos condóminos.
II - O Administrador do condomínio tem legitimidade para mover acção contra o condómino pedindo que este seja obrigado a retirar o animal.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I. Relatório

O Condomínio do Edifício....., sito na Rua....., ....., representado pelo seu Administrador António....., com domicílio profissional na Rua....., da mesma localidade, instaurou, no Tribunal Judicial dessa Comarca, onde foi distribuída ao -º Juízo Cível, acção com processo sumário contra Ana....., residente no referido edifício, ..º B, pedindo que esta seja condenada a retirar o cão desta sua habitação.
Para tanto, alegou, em resumo, que a ré é proprietária da fracção “R”, do referido edifício, onde reside, aí mantendo um cão, sua pertença, o qual vem causando graves incómodos, no uso e fruição das partes comuns do prédio, aos restantes condóminos, perturbando o repouso, tranquilidade e qualidade ambiente destes, bem como prejudica as condições de higiene nos locais de acesso ao prédio, conspurcando-os com urina e maus cheiros, o que levou a Assembleia de Condóminos, realizada no dia 4 de Janeiro de 2000, a deliberar a remoção do cão, deliberação que a ré não cumpriu.
A ré contestou por excepção e por impugnação.
Excepcionou a ilegitimidade do autor dizendo que só os condóminos cujos direitos estivessem a ser violados é que poderiam exigir a retirada do cão do apartamento e alegou que a detenção de cães nas fracções é permitida pelo Regulamento do Condomínio, que nunca deu o seu acordo, nem foi convocada para a assembleia de condóminos que tivesse este assunto na sua ordem de trabalhos e que possui o seu cão com respeito de todas as normas, não causando quaisquer perigos, perturbações ou maus cheiros. Concluiu pela improcedência da acção.
Na resposta, o autor pugnou pela sua legitimidade e pela validade da deliberação tomada, concluindo como na petição inicial.
Proferido o despacho saneador e dispensada a organização da condensação, prosseguiram os autos para julgamento, ao qual se procedeu, tendo a matéria de facto sido decidida pela forma constante do despacho de fls. 111 e 112, que não mereceu reparo das partes.
Seguiu-se douta sentença que julgou a acção procedente e condenou a ré a retirar o cão da sua habitação sita no Edifício......

Inconformada com o assim decidido, a ré interpôs recurso de apelação para este Tribunal e apresentou a respectiva alegação com as seguintes conclusões:
1. Aos condóminos é permitido ter cão, conforme o Regulamento do Condomínio;
2. A ré e demais condóminos apenas estão sujeitos às limitações previstas no art.º 1422º do C. Civil;
3. A Assembleia de Condóminos não pode obrigar os condóminos a não possuírem animais, a não ser que haja acordo de todos;
4. O deliberado na Assembleia apenas vincula os seus intervenientes, sendo ineficaz quanto aos restantes;
5. A violação de qualquer direito de personalidade dos condóminos apenas pode ser atacada, individual ou colectivamente, pelos próprios condóminos e nunca pelo Condomínio do......
6. Foram violadas as normas contidas na al. d) do n.º 2 do art.º 1422º e 1436º do Código Civil.

Contra-alegou o apelado defendendo a confirmação do julgado.

Sabido que o objecto do presente recurso é delimitado pelas conclusões da apelante, conforme resulta do disposto nos art.ºs 684º, n.º 3 e 690º, n.º 1, ambos do CPC, as questões a decidir consistem em saber:
- se a deliberação da assembleia de condóminos de 4/1/2000 vincula ou não a ré;
- e se ao autor estava vedado instaurar a presente acção.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir:

II. Fundamentação

1. De facto.
Na sentença recorrida foram dados como provados os seguintes factos:

1. A R. é condómina do....., proprietária da fracção “R”, onde reside, tendo no interior da referida habitação um cão, sua pertença.
2. O cão ladra e atira-se à porta sempre que alguém passa no corredor de acesso às habitações, a qualquer hora do dia ou da noite.
3. O cão, por vezes, assusta crianças e causa intranquilidade nos adultos.
4. A R. leva o cão à rua e, por vezes, deixa-o solto nas escadas, elevadores e corredores, locais onde o cão, por vezes, urina, deixando o chão e as paredes sujas e com mau cheiro.
5. O cão ladra, corre, fazendo ruído, intimidando e incomodando, por vezes, os habitantes do prédio e pessoas que lá se deslocam.
6. Por vezes, tal situação não permite manter as condições de higiene próprias nos locais de acesso do prédio, apesar de serem limpos três vezes por semana.
7. Por vezes, ficam com urina e maus cheiros provenientes do cão.
8. Por vezes, são incomodados os habitantes na sua tranquilidade pelo ruído que o cão faz, ladrando, arranhando as portas e correndo livremente nos corredores e escadas.
9. Quando permanece na fracção da R., o cão ladra e arranha a porta.
10. Por vezes, há a proveniência, para o exterior, de maus cheiros vindos do interior daquela habitação causados pelo cão.
11. Os condóminos reunidos em Assembleia, realizada em 04.01.00, deliberaram maioritariamente no sentido de não autorizar a permanência no prédio do cão pertença de Ana......
12. Notificada para o efeito, a R. não retirou o cão da sua habitação.
13. Participou o Condomínio à Câmara Municipal e à Delegação de Saúde, expondo a situação e solicitando as providências necessárias à remoção do cão dado os motivos alegados.
14. A Câmara Municipal notificou a R. para a remoção do cão, por aquele pôr em causa a salubridade e tranquilidade da vizinhança.
15. Foi comunicado à Administração de Condomínios, pela Câmara Municipal, que por ter sido revogado o D.L. 317/85 de 02/08, não tinha competência a autarquia para remoção do animal.
16. De acordo com o teor do art.º 14º do Regulamento do Condomínio do....., é permitida a detenção de cães de companhia nas fracções autónomas, nas habitações.
Atento o teor dos documentos juntos de fls. 4 a 10 e 47 a 52, não impugnados, consideram-se provados mais os seguintes factos:
17. A detenção referida no número antecedente só é permitida, de acordo com a alínea h) do art.º 14º do mesmo Regulamento, “desde que não incomodem os demais utentes do edifício”.
18. A ré esteve presente na assembleia aludida em 11.
19. E foi notificada do conteúdo integral da respectiva acta, em 31/1/2000, por carta registada com aviso de recepção, não tendo manifestado qualquer oposição.

2. De direito.
Aplicando o direito aos factos, vejamos a solução a dar às questões suscitadas:

2.1. Do confronto dos art.ºs 1414º a 1416º do Código Civil extrai-se que existe propriedade horizontal quando as fracções de que se compõe um edifício estão em condições de constituírem unidades independentes, havendo no mesmo prédio fracções individualizadas de propriedade privada, perfeitamente distintas, afectas ao uso exclusivo do proprietário, ao lado de partes comuns adstritas ao uso de todas ou de algumas fracções, objecto de compropriedade.
Neste regime, cada condómino é proprietário exclusivo da fracção que lhe pertence e comproprietário das partes comuns do edifício (art.º 1420º, n.º 1 do C. Civil).
Desta simbiose entre a propriedade sobre a fracção autónoma e a compropriedade forçada (n.º 2 do citado art.º 1420º) sobre as partes comuns do edifício resulta que os condóminos sofrem, no exercício deste novo direito, restrições ou limitações ditadas pela necessidade de conciliar os interesses de todos, dado existirem entre eles especiais relações de interdependência e de vizinhança.
Nas relações entre si, os condóminos estão sujeitos, quanto às fracções que exclusivamente lhes pertencem, às limitações impostas aos proprietários e, relativamente às partes comuns, às limitações impostas aos comproprietários de coisas imóveis (art.º 1422º, n.º 1 do C. Civil).
Quanto às suas fracções, os condóminos estão sujeitos não só às restrições e limitações ao exercício do direito de propriedade normal e legalmente impostas em termos gerais, mas também às que decorrem da relação de proximidade ou comunhão em que vivem, visando sempre salvaguardar interesses de ordem pública: interesses públicos e colectivos, relacionados com condições de salubridade, estética e segurança dos edifícios, bem como das condições estéticas, urbanísticas e ambientais (cfr. Aragão Seia, Propriedade Horizontal, 2ª ed., pág. 102, referindo o acórdão do TC publicado no DR, II série, de 5/8/99).
Segundo o n.º 2, al. d) do citado art.º 1422º é especialmente vedado aos condóminos “praticar quaisquer actos ou actividades que tenham sido proibidos no título constitutivo ou, posteriormente, por deliberação da assembleia de condóminos aprovada sem oposição”.
A detenção de certas espécies de animais domésticos é, precisamente, um exemplo de acto material incluído nestas proibições, dado pelos Profs. Pires de Lima e Antunes Varela, para quem “Todas as restrições de origem negocial, quer quanto ao destino das fracções autónomas, quer quanto aos actos materiais ou jurídicos que os condóminos não podem praticar, fazem parte integrante do estatuto do condomínio, o que equivale a dizer que têm natureza real e, portanto, eficácia erga omnes, prevalecendo sobre qualquer negócio que com elas se não harmonize” (cfr. Código Civil Anotado, vol. III, 2ª ed., págs. 426 e 427).
No caso dos autos, o Estatuto do Condomínio, no seu art.º 14º, al. h), proíbe a detenção de animais “em qualquer parte comum ou própria, salvo cães, gatos ou aves engaioladas, desde que não incomodem os demais utentes do edifício”.
Não há dúvida, nem tal foi questionado no recurso, que o cão da ré incomoda os demais utentes do Edifício...... Os factos provados, designadamente os constantes dos itens 2 a 10, demonstram-no muito bem, tendo permitido à Mmª Juíza concluir, na sentença recorrida, pela violação dos direitos de personalidade dos restantes condóminos, por a situação verificada atentar contra o seu direito ao repouso, saúde e tranquilidade.
Por isso e por força daquela disposição do Regulamento, estava vedado à ré deter o cão na sua residência.
Além disso, a assembleia de condóminos deliberou, em 4/1/2000, não autorizar a permanência no dito prédio do cão da ré.
Esta deliberação foi aprovada sem oposição.
A ré, apesar de estar presente nessa assembleia, não se manifestou contra a aprovação de tal deliberação. E nem sequer deduziu qualquer oposição após a notificação do teor da respectiva acta que lhe foi feita, sendo que nem a mesma era necessária não só porque a deliberação não carecia de ser aprovada por unanimidade, mas também porque a ré não esteve ausente, valendo sempre o seu silêncio como aprovação (cfr. art.ºs 218º, 1422º, n.º 2, d) e 1432º, n.ºs 5, 6 e 8 do C.C.).
Deste modo, a deliberação assim aprovada é válida e eficaz, vinculando todos os condóminos, incluindo a ré/recorrente, pelo que improcedem as conclusões atinentes a esta questão.

2.2. A segunda questão tem a ver com a legitimidade e as funções do administrador.
Este tem legitimidade para agir em juízo, quer contra qualquer dos condóminos, quer contra terceiro, na execução das funções que lhe pertencem ou quando autorizado pela assembleia (art.º 1437º, n.º 1 do C. Civil).
Entre essas funções contam-se a de executar as deliberações da assembleia e a de assegurar a execução do regulamento e das disposições legais e administrativas relativas ao condomínio (art.º 1436º, als. h) e l) do C. Civil).
O administrador é o órgão executivo do grupo de condóminos constituído em torno da propriedade horizontal.
As suas atribuições reportam-se, em princípio, apenas às coisas comuns e aos serviços de interesse comum.
Dentro da sua esfera de poderes, o administrador está subordinado às deliberações que a assembleia tome sobre a gestão dos bens comuns, as quais lhe cumpre executar (cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit., pág. 453).
É ele quem representa o condomínio, o qual viu expressamente reconhecida a personalidade judiciária e, por inerência, também a capacidade judiciária, sendo parte legítima quando tiver interesse em demandar (art.ºs 6º, e), 9º e 26º do CPC).
A presente acção destina-se, acima de tudo, a executar a deliberação da assembleia de condóminos de 4/1/2000, na parte referente à proibição da permanência do cão na habitação da ré, e, reflexamente, a assegurar a execução do regulamento do condomínio.
Estas atribuições são da competência do administrador e os factos que integram a causa de pedir reportam-se às partes comuns do edifício, bem como à salvaguarda de interesses colectivos, relacionados com condições de salubridade.
Deste modo, e apesar de, através dela, se tutelarem também interesses individuais dos condóminos, é patente o interesse directo em demandar do autor, pelo que tem a necessária legitimidade, podendo instaurar, como fez, a presente acção.
Improcedem, por conseguinte, as conclusões referentes a esta questão.

III. Decisão

Por tudo o exposto, decide-se julgar a apelação improcedente e confirmar a sentença recorrida.
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Custas pela recorrente.
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Porto, 10 de Fevereiro de 2004
Fernando Augusto Samões
Alziro Antunes Cardoso
Albino de Lemos Jorge