Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
180/08.7TBAMT-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MARIA JOÃO AREIAS
Descritores: EXECUÇÃO
RECONHECIMENTO DA DÍVIDA
NEGÓCIO CAUSAL
ALEGAÇÃO DA RELAÇÃO FUNDAMENTAL
PRESUNÇÃO DA SUA EXISTÊNCIA
Nº do Documento: RP20130514180/08.7TBAMT-A.P1
Data do Acordão: 05/14/2013
Votação: MAIORIA COM 1 VOT VENC
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A declaração de reconhecimento de dívida ou de promessa de cumprimento previstos no art. 458º do CC, não configura um negócio abstracto, mas um negócio causal.
II - A causa do negócio não é constituída pelo reconhecimento da dívida ou promessa de cumprimento, mas pela relação fundamental que lhe subjaz.
III - O regime contido no art. 458º do CC, apenas dispensa o credor da prova da existência da relação fundamental, que se presume até prova em contrário pelo executado/oponente.
IV - O credor de uma obrigação causal, cuja causa não conste do título exequendo, deverá alegá-la no requerimento executivo, sob pena de ineptidão inicial, nos termos do art. 193º, nº1 do CPC.
V - Apenas tal alegação permitirá ao executado a prova de que tal relação fundamental não existe, sob pena de ter de ser defender contra uma infinitude de causas possíveis.
VI - Para a procedência da oposição, bastará ao executado a demonstração da inexistência da causa debendi invocada pelo exequente, não se tornando indispensável a demonstração de que a declaração de reconhecimento de dívida foi obtida mediante um vício de vontade (erro, dolo ou coação).
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 180/08.7TBAMT-A.P1 – Apelação

Relator: Maria João Areias
1º Adjunto: Maria de Jesus Pereira
2º Adjunto: José Igreja Matos

Acordam no Tribunal da Relação do Porto (2ª Secção):
I – RELATÓRIO
Por apenso à execução comum para pagamento de quantia certa, que contra si é movida por B…, vêm as executadas C… e D…, deduzir oposição à execução, alegando em síntese:
só assinaram a confissão de divida dada à execução, porque foram para tanto coagidas, sendo certo que nunca tiveram qualquer relação comercial com a exequente.
Pedem ainda que, na procedência da oposição, seja o exequente condenado como litigante de má-fé.
O exequente contestou, impugnando os factos constantes na oposição deduzida, alegando ainda, e em síntese:
a executada D… havia emitido e entregue ao exequente no dia 27 de Abril de 2007, um cheque no montante de 20.000,00 €, cheque que veio a ser devolvido por falta de provisão;
foi então que executada C… pediu ao exequente que lhe devolvesse o cheque, ao que o exequente anuiu com a condição de a executada C… assumisse a dívida da sua filha e genro, e emitisse consequentemente declaração de reconhecimento dessa dívida, declaração que as executadas emitiram e assinaram, bem como entregaram um novo cheque.
Conclui pela improcedência da oposição e pela condenação das executadas como litigantes de má-fé.
Realizada audiência de julgamento foi proferida sentença que julgando improcedente a presente oposição à execução, determinou o prosseguimento da a execução apensa.
Inconformadas com tal decisão, as executadas dela interpuseram recurso de apelação, concluindo a sua motivação com as seguintes conclusões:
1ª – Deve dar-se como provado e aditar-se ao rol dos factos dados como provados na douta sentença o facto seguinte: “Ainda no tempo de solteiro o exequente emprestou a E… a quantia de € 43.800,00, a solicitação deste”, considerando o texto constante da acta da audiência de julgamento e a confissão do recorrido/exequente;
2ª – O facto da alínea P) dos factos provados encontra-se incorrectamente julgado, conforme resulta da acta da audiência de julgamento, devendo dar-se como provado apenas o seguinte: “O exequente e sua esposa foram convidados para o casamento da oponente D… pelo seu ex-marido, tendo estado presente o exequente”;
3ª – Pois que assim resulta da assentada lavrada do depoimento prestado pela oponente D… e do depoimento prestado pela testemunha E…, registado em áudio, nomeadamente da passagem dos minutos 25:16 a 25:33.
4ª – Os factos alegados nos artigos 11º e 12º da petição de oposição encontram-se incorrectamente julgados e deveriam ser dados como provados, como o impõem os depoimentos prestados pelas testemunhas F… e E…, nomeadamente as passagens constantes dos minutos 21:45 a 24:57 do depoimento do primeiro e dos minutos 5:43 a 10:45 do segundo.
5ª – O facto alegado no artigo 14º da petição de oposição encontra-se incorrectamente julgado e deve ser dado como provado que “O exequente já reconheceu perante terceiros que as executadas nada lhe devem”;
6ª – Pois assim o impõem os depoimentos das testemunhas E… (minutos 6:15 a 14:21), G… (minutos 5:43 a 10:50) e H…. (minutos 3:58 e seguintes).
7ª – Os factos alegados nos artigos 20º, 21º, 22º, 23º, 40º, 42º e 43º da petição de oposição à execução encontram-se incorrectamente julgados e deveriam ser dados como provados;
8ª – Assim o impõem o depoimento prestado pelas testemunhas F… (minuto 5:11 e minutos 6:22 a 6:51), E… (minutos 2:20 e 6:15 a 14:21) e G… (minutos 5:43 a 10:50).
9ª – O facto alegado no artigo 45º da petição encontra-se incorrectamente julgado, devendo ser dado como provado, pois assim o impunham os depoimentos prestados pelo próprio exequente (minutos 2:37, 7:50 e 9:40 a 15:50), bem como os depoimentos prestados pelas testemunhas E… (minutos 4:50 a 5:50; 7:50 e 9:40 a 15:50) e G… (minutos 5:43 a 10:50).
10ª – Alterada a matéria de facto no sentido que vem proposto deverá a oposição à execução ser julgada integralmente procedente.
Sem prescindir:
11ª – O documento dado à execução constitui uma declaração unilateral e nua de reconhecimento de dívida e de promessa de pagamento até 10/08/2007 de uma dívida no montante de € 20.000,00, subscrita pelas oponentes;
12ª – Tal declaração de reconhecimento de dívida e de promessa de pagamento, unilateral e nua, é um negócio causal e não abstracto e, nessa medida, apenas cria a presunção da existência de uma relação negocial ou extranegocial – a relação fundamental a que se refere o art.º 458º – sendo esta relação fundamental a verdadeira fonte de obrigação.
13ª – A presunção estabelecida pelo art.º 458º, n.º 1, é uma mera presunção júris tantum, pois a própria norma admite que o aparente devedor possa provar que a relação fundamental não existe ou é nula.
14ª – O negócio jurídico unilateral constituído pela alegada declaração de reconhecimento de dívida e de promessa de pagamento não constitui a causa ou a fonte da obrigação, pois a fonte ou a causas da obrigação continua a ser a relação fundamental que necessariamente subjaz à promessa de cumprimento ou de reconhecimento de dívida que é um negócio causal.
15ª – No caso vertente, é inquestionável que o documento dado à execução não indica a relação fundamental subjacente à confissão e promessa de pagamento;
16ª – Mas também no requerimento executivo não se alegou a relação fundamental que necessariamente subjaz à obrigação e que dele constitui a causa.
17ª – Nem do título executivo nem do requerimento executivo consta a causa de pedir na presente acção executiva, sendo que o requerimento executivo deve obrigatoriamente conter a exposição sucinta dos factos que fundamentam o pedido, quando não constem do título executivo – al. b) do n.º 3 do art.º 810º do CPC, na redacção vigente à data da instauração da presente acção.
18ª – Como no caso dos autos, a relação fundamental ou causal não consta do título executivo nem foi alegada no requerimento executivo, a execução está inquinada de um vício genético que é a ineptidão da petição inicial que implica a nulidade consequente de todo o processo executivo, o que também deverá conduzir a procedência da acção executiva;
19ª – Até porque tal vício é de conhecimento oficioso e deve ser declarado oficiosamente pelo tribunal.
20ª – O credor que tenha em seu benefício uma declaração de reconhecimento de dívida e/ou promessa de pagamento unilateral e nua, não está dispensado de invocar ou alegar a causa de pedir no requerimento executivo. Esse credor apenas está dispensado de provar a relação subjacente, mas é obrigado a alegá-la no requerimento executivo, se ela não constar do título executivo.
21ª – A inversão do ónus da prova, não dispensa o ónus da alegação da relação subjacente que constitui a causa ou fonte da obrigação.
22ª – Quando, como no caso dos autos, o título executivo não fizer qualquer referência à relação causal, encontra-se o exequente obrigado a alegar no requerimento executivo a causa ou fonte da obrigação, sob pena de o título dado à execução não poder valer como título executivo.
Ainda sem prescindir:
23ª – Como decorre do n.º 1 do art.º 458º o aparente devedor é admitido a fazer a prova em contrário, quando veja contra si instaurada uma execução baseada em título que não contenha a causa debendi e um requerimento executivo no qual também se não alega a relação fundamental.
24ª – Provou-se que entre exequente e executadas nunca foi celebrado qualquer negócio jurídico de onde emergisse para estes a obrigação de pagar àquele a quantia de € 20 000,00; bem como se provaram os factos constantes das alíneas C), D), E) e F) do probatório constante da douta sentença e que aqui se dão por integrados;
25ª – O que vale por dizer que as oponentes/recorrentes lograram fazer a prova do contrário que lhes é admitida pelo n.º 1 do art.º 458º e, por isso, deve a presente oposição ser julgada totalmente procedente, com as legais consequências.
26ª – Julgando pela improcedência da presente oposição, a douta sentença violou o disposto no n.º 1 do art.º 458º, bem como a al. b) do n.º 3 do art.º 810º do CPC, na redacção vigente à data da instauração da presente acção, devendo ser revogada.
O Exequente apresentou contra-alegações, defendendo a manutenção do decidido.
Cumpridos os vistos legais, há que decidir.
II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
Tendo em consideração que o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações de recurso, sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso – cfr., arts. 684º, nº3 e 690º, do Código de Processo Civil (na redacção anterior ao DL 303/2007, de 24.08), as questões a decidir são as seguintes:
1. Impugnação da matéria de facto.
2. Título executivo – confissão de dívida – necessidade de alegação da relação fundamental.
3. Demonstração da inexistência de causa debendi.
III – APRECIAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
1. Impugnação da matéria de facto.
Os tribunais da Relação, sendo tribunais de segunda instância, têm actualmente competência para conhecer tanto de questões de direito, como de questões de facto.
Segundo o nº1 do art. 712º do CPC, na redacção do DL 303/2007, de 24 de Agosto, a decisão do tribunal da 1ª instância pode ser alterada pela Relação:
a) Se do processo constarem todos os meios de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria de facto em causa ou se, tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados, tiver sido impugnada, nos termos do art. 685º-B, a decisão com base neles proferida;
b) Se os elementos fornecidos pelo processo impuserem decisão diversa, insusceptível de ser destruída por quaisquer outras provas;
c) Se o recorrente apresentar documento novo superveniente e que, por si só, seja suficiente para destruir a prova em que a decisão assentou.
Tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados em audiência, o que nos permite alterar a matéria da matéria de facto nos amplos termos previstos na al. a), do art. 712º do CPC[1], passamos, assim, a analisar cada um dos pontos da matéria de facto postos em causa pela embargante/recorrente, nas suas alegações de recurso.
1.1. Aditamento de um facto.
Pretendem as apelantes que se deve dar como provado, aditando-o ao rol de factos provados, o seguinte facto: “Ainda no tempo de solteiro, o exequente emprestou ao E… a quantia de 43 800,00 €, a solicitação deste”.
Ora, não só tal facto não se encontra alegado expressamente por nenhuma das partes, como ainda que viesse a considerar-se como provado, sempre o mesmo seria irrelevante, como explicitaremos mais adiante.
Não se conhecerá, assim, nesta parte da impugnação à matéria de facto.
1.2. Impugnação da resposta à matéria de facto contida na al. P) dos factos dados como provados.
Segundo o Apelante, o facto constante da alínea P) dos factos provados encontra-se incorrectamente julgado, devendo dar-se como provado apenas o seguinte: “O exequente e sua esposa foram convidados para o casamento da oponente D… pelo seu ex-marido, tendo estado presente o exequente.
Dado o teor da al. P), dos factos provados, aqui sob impugnação – “O exequente e a sua esposa foram, inclusivamente, convidados para o casamento da executada D…, que se realizou em finais de Dezembro de 2006, tendo estado presentes –, é óbvio ser absolutamente irrelevante a alteração pretendida pelas apelantes (assim como é irrelevante para a resolução do litígio, a matéria constante de tal alínea, tal como se encontra dada como provada).
Com efeito, não é o facto de ter sido convidado para o casamento da ora oponente por ela própria ou pelo seu ex-marido que torna as ora oponentes mais ou menos devedoras perante o exequente.
Como tal, não se conhecerá, nesta parte, a impugnação deduzida à matéria de facto.
1.2. Impugnação relativa à matéria constante dos arts. 11º e 12º, 14º, 21º, 22º, 23º, 40º, 42º, 43º, 45º, do requerimento de oposição à execução.
Insurgem-se, ainda, as apelantes contra a decisão sobre a matéria de facto proferida pelo juiz a quo, defendendo que, face à prova produzida m audiência, deveriam ter sido dado como provados o teor dos arts., 11º, 12º, 14º, 21º, 22º, 23º, 40º, 42º, 43º, e 45º, do requerimento de oposição à execução, que aqui se reproduzem:
Art. 11º - Entre as executadas e o exequente nunca, sequer, existiram, nem existem, quaisquer razões pessoais.
Art. 12º - As executadas apenas conhecem o exequente de vista, por o mesmo também residir na freguesia de …, deste concelho (…).
Art. 14º - O exequente já reconheceu perante terceiros em data que as executadas não podem indicar com rigor – mas que sabem situar-se no último trimestre de 2007 – que as executadas nada lhe devem.
Art. 20º - Por cerca de Março de 2007 chegou ao conhecimento da executada D… que o seu referido ex-marido andava envolvido, em conjunto com diversas outras pessoas, em negócios ligados a veículos automóveis.
Art. 21º - Cujos objecto e contornos, detalhados e rigorosos, ela nunca conseguiu apurar com precisão, porque o seu ex-marido sempre se negou a referi-los, mesmo quando por ela confrontado com os rumores e indícios da sua existência.
Art. 22º - A executada conseguiu apurar que tais negócios provinham já dos tempos de solteiro.
Art. 23º - Veio também a saber que um dos envolvidos nesses alegados negócios era o ora exequente.
Art. 40º - Visando o mesmo objectivo já referido nos antecedentes arts. 3º, 35º e 36º deste articulado.
Art. 42º - Com o documento dado à execução, o exequente visa, não obter o pagamento de dívidas que as executadas tenham para consigo.
Art. 43º - Mas antes obter o pagamento de dívidas que o exequente dizia qu o ex-marido da executada D… tinha para consigo já desde o tempo em que era solteiro.
Art. 45º - Porém e apesar de ter tal documento em seu poder, o exequente sabe que as executadas nada lhe devem e nunca nada lhe deveram.
Contudo, tais artigos contêm afirmações genéricas e conclusivas, em nada adiantando ao já dado como provado pelo juiz a quo, surgindo como perfeitamente irrelevantes para a decisão em apreço, como melhor resultará do que se virá a expor na apreciação à impugnação de direito.
Como tal, conhecerá na sua totalidade a impugnação à matéria de facto deduzida pela apelante.
B. Subsunção dos factos ao direito.
A. Matéria de Facto.
São os seguintes, os factos dados como provados na decisão recorrida:
A) O título que serve de base execução apenas é o documento que as partes denominaram como “Reconhecimento de divida”, junto aos autos de execução a fls.11, datado de 10.5.2007 e assinado pelo punho das oponentes cujo teor e dizeres se dão aqui por reproduzidos.
B) Entre o exequente e as executadas nunca foi celebrado qualquer negocio de onde emergisse para estas a obrigação de pagar aquele a quantia de € 20.000,00.
C) As executadas nunca compraram ao exequente qualquer bem, móvel, ou imóvel.
D) Nunca lhe pediram dinheiro emprestado, seja a quantia inscrita no titulo executivo ou qualquer outra.
E) Nunca praticaram qualquer acto ou facto ilícitos que provocassem prejuízos ou danos ao exequente.
F) Nunca solicitaram ao exequente a prestação de qualquer serviço ou tarefa, que estes lhe tenham efectivamente prestado.
G) A executada D… é filha da executada C….
H) É psicóloga clínica, e funcionária do Hospital …, desta cidade, hoje integrada no Centro Hospitalar ….
I) A executada D… contraiu casamento em 21/12/2006 com E…, dissolvido por divorcio em 29.6.2007.
J) O ex marido da executada D… andava envolvido em negócios, com outras pessoas, e entre elas o exequente.
K) Havendo débitos e créditos recíprocos entre o exequente e o seu ex marido, em montantes e com causas que as executadas ignoram.
L) Em Abril de 2007, a oponente D… estava grávida há cerca de 4 meses.
M) O exequente já antes tentara que o pai do ex marido da oponente D… lhe assinasse documento idêntico aquele que foi dado à execução, sendo que este se recusou a assiná-lo.
N) No ano de 2006 foram estabelecidas relações negociais entre o exequente, e a executada C….
O) O exequente era amigo do ex marido da oponente D…, e nessa qualidade, a oponente D…, durante o tempo de namoro e de casamento conviveu em eventos sociais com o exequente.
P) O exequente e a sua esposa foram, inclusivamente, convidados para o casamento da executada D…, que se realizou em finais de Dezembro de 2006, tendo estado presentes.
Q) A oponente D… preencheu, assinou e entregou ao seu ex-marido, um cheque no montante de € 20.000,00, sacado sobre o I… da conta de que era titular e cuja cópia se encontra junta aos autos a fls. 42.
R) Apesar de tempestivamente apresentado a pagamento aos balcões do J…, o mesmo foi devolvido não tendo o exequente logrado obter através dele o seu pagamento.
S) Subsequentemente, em 31.8.2007 a executada C… preencheu, assinou e entregou ao exequente o cheque junto aos autos a fls. 43, no mesmo valor de € 20.000,00, cujos dizeres e teor se dão aqui por reproduzidos.
T) Provado que, quando da devolução do cheque o exequente disse à executada D… que caso não o pagasse accionaria os meios judiciais ao seu dispor.
B. O Direito
Considerando o juiz a quo que o documento dado à execução constitui um título executivo válido que incorpora uma confissão de dívida nos termos do art. 485º do CPC, e que caberia às executadas “provar os factos impeditivos, modificativos ou extintivos da obrigação exequenda – designadamente que foram coagidas a assinar a confissão de divida e que esta não titula nem incorpora qualquer obrigação, o que não lograram provar”, julgou improcedente a presente oposição.
Insurgem-se as apelantes contra o decidido, fazendo assentar a sua discordância, fundamentalmente, em duas ordens de razões[2]:
1. O documento dado à execução – simples declaração de unilateral de reconhecimento de dívida sem menção da respectiva causa –, não constitui um negócio abstracto mas um negócio de causa presumida, implicando tão só uma inversão do ónus da prova da relação fundamental.
O credor que tenha em seu benefício uma declaração de reconhecimento de dívida ou uma promessa de pagamento não se encontra dispensado da alegação da respectiva causa, mas tão só do ónus da respectiva prova.
Assim sendo, não constando do documento exequendo a relação fundamental subjacente à confissão, e não alegando o credor, no requerimento executivo, a causa de pedir, tal requerimento é inepto.
2. Ainda que assim não fosse, as oponentes alegaram e conseguiram provar que o documento dado à execução não titula nem incorpora qualquer obrigação.
Passemos, então, à análise de cada uma das razões de discordância aduzidas pelas apelantes.
1. Título executivo – confissão de dívida – necessidade de alegação da relação fundamental.
O título dado à execução consiste num documento, assinado pelas executadas, intitulado como RECONHECIMENTO DE DÍVIDA, e que aqui se reproduz na íntegra:
“DECLARAM para os devidos e legais efeitos, que são devedores de B…, casado, titular do Bilhete de Identidade n° ……., emitido em 28/02/2002 pelo Arquivo de Identificação do Porto, contribuinte n. ………, residente em …, freguesia de …, concelho de Amarante, pela quantia de 20.000.00 € (vinte mil euros).
MAIS DECLARAM que se comprometem liquidar-lhe a referida importância de vinte mil euros, por meio de cheque ou dinheiro, conforme convier ao devedor, no domicílio do identificado credor, até ao próximo dia 10 de Agosto de 2007”.
O referido documento – pelo qual as ora executadas reconhecem ser devedoras de determinada quantia ao ora exequente, comprometendo-se a proceder ao respectivo pagamento –, é omisso quanto à causa da obrigação aí declarada.
Dispõe o nº 1 do art. 458º do CC:
“Se alguém, por simples declaração unilateral, prometer uma prestação ou reconhecer uma dívida, sem indicação da respectiva causa, fica o credor dispensado de provar a relação fundamental, cuja existência se presume até prova em contrário”.
O reconhecimento de dívida e promessa de pagamento a que se refere o art. 485º do CC, configura um título em que alguém, unilateralmente, se confessa devedor de uma prestação, sem indicação da respectiva causa, isto é, do negócio que está na origem do crédito, ou ainda, da obrigação anteriormente constituída.
Como afirmam Pires de Lima e Antunes Varela, “não se consagra neste artigo o princípio do negócio abstracto[3]. O que se estabelece é apenas a inversão do ónus da prova da existência da relação fundamental[4]”, sendo que negócios puramente abstractos existem apenas no domínio dos títulos de crédito, no campo do direito comercial.
Na expressão utilizada por João de Castro Mendes, tratar-se-ão de negócios com causa presumida[5], ou puras presunções de causa, como são denominados por Mário Júlio de Almeida e Costa[6].
“O facto de somente se presumir a causa não faz com que o negócio seja abstracto; ele continua causal, apenas se dando uma inversão do ónus da prova[7]”.
Explicitando o teor de tal norma, afirma Fernando Pessoa Jorge:
“Significa este preceito que o credor que disponha de um documento escrito do devedor em que este unilateralmente declara prometer uma prestação ou reconhecer uma dívida, não precisa de provar a causa da obrigação, cuja validade e existência se presume.
Não se está, portanto, em face de um negócio abstracto, mas sim de um acto causal, embora com presunção de causa, presunção que, sendo ilidível, determina a inversão do ónus da prova: não será o credor quem terá de demonstrar a existência e a licitude da causa, mas será sim ao devedor que caberá provar que a prestação que prometeu ou reconheceu não tem causa ou esta é ilícita[8]”.
Segundo Pedro Pais de Vasconcelos, do regime deste artigo “se retira, desde logo, que, sempre que alguém, por uma declaração unilateral nua, isto é, sem invocação da respectiva causa, reconheça uma dívida ou prometa pagá-la, a procedência da pretensão do respectivo credor não fica prejudicada pela falta de demonstração da sua causa, ficando o devedor onerado com o encargo de demonstrar o contrário, isto é, que a causa não existe, ou cessou, ou é ilícita[9]”.
Antunes Varela adverte ainda que o art. 458º não foge à regra de que o negócio unilateral não é fonte de obrigações: nenhum dos actos a que nele se alude (promessa de uma prestação ou reconhecimento de uma dívida), constituiu, com efeito, fonte autónoma de uma obrigação. Criam apenas a presunção da existência de uma relação negocial ou extra-negocial (a relação fundamental a que aquele preceito se refere), sendo esta a verdadeira fonte da obrigação. Por isso se inverte o ónus da prova, mediante uma verdadeira relevatio ab onere probandi. Se o declarante ou os seus sucessores alegarem e provarem que semelhante relação não existe (porque o negócio que a promessa de prestação ou o reconhecimento de dívida pressupõem não chegou a constituir-se, porque é nulo ou foi anulado, porque caducou ou os seus efeitos se extinguiram entretanto, etc.), a obrigação cai, não lhe servindo de suporte bastante nem a promessa de cumprimento nem o reconhecimento da dívida[10].
Ou seja, haverá que atentar-se em que, tratando-se de declarações negociais causais, a sua causa não reside na promessa de cumprimento ou no reconhecimento da dívida – a fonte da obrigação continua a ser a relação fundamental que subjaz à promessa de cumprimento ou de reconhecimento da dívida.
Como salienta Pedro Pais Vasconcelos, as promessas unilaterais de uma prestação ou do cumprimento e os respectivos reconhecimentos unilaterais de dívida, feitos sem indicação da respectiva causa não são originariamente constituintes das obrigações a que se referem, tendo subjacentes uma relação fundamental ou relação subjacente que lhe constituiu a respectiva causa civilis obligandi:
“A um nível mais profundo, pode concluir-se do art. 485º que não são a promessa de cumprimento ou o reconhecimento da dívida, unilaterais e nus, que constituem a fonte ou o fundamento jurídico, isto é, a causa das obrigações a que se referem. As obrigações cujo cumprimento é unilateralmente prometido e as dívidas que são unilateralmente reconhecidas ad nutum foram geradas ou constituídas por uma outra causa, que constituiu o seu fundamento jurídico originário[11]”.
Para explicitar o regime contido no art. 458º CC, José Lebre de Freitas socorre-se da figura da abstracção processual[12], traduzida numa inversão do ónus da prova, baseada no conceito de causa eficiente, isto é, de causa de efeitos jurídicos, a qual coincide com o próprio facto que a dívida resulta:
“Libertar o credor do ónus de provar a relação fundamental significa libertá-lo da prova, que de outro modo lhe competia (C.C., art. 342º-1), do facto constitutivo do seu direito. A disposição do art. 458º do C.C. nada tem, pois, a ver com a figura substantiva do negócio abstracto, nem o conceito de causa nele utilizado se confunde com o de causa do negócio jurídico (…).
Sendo que a inversão do ónus da prova não dispensa o ónus da alegação e que o autor tem de alegar, na petição inicial, a causa de pedir (art. 467º-1-c), o credor que, tendo embora em seu poder um documento em que o devedor reconhece uma dívida ou promete cumpri-la sem indicar o facto que a constituiu, contra ele propuser uma acção, deverá alegar o facto constitutivo do direito de crédito – o que é confirmado pela exigência da forma do art. 458º-2 do C.C., que pressupõe o conhecimento da relação fundamental. Este facto ficará provado por apresentação do documento, isto é, por ilação tirada, nos termos do art. 458º-1 do CC, da declaração representada nesse documento conjugada com a alegação do credor, a qual, ao mesmo tempo que satisfaz uma exigência processual com mera relevância substantiva. Não se verifica, pois, o perigo de a prova se fazer relativamente a qualquer possível causa constitutiva do direito, pois se faz apenas relativamente àquela que for invocada pelo credor, e configurando-se assim uma prova por presunção[13]”.
Em conformidade com a referida norma do Código Civil, se deve entender a al. c), do art. 46º do CPC, ao reconhecer como título executivo os documentos particulares assinados pelo devedor que importem a constituição ou o reconhecimento de obrigações pecuniárias cujo montante seja determinado ou determinável por simples cálculo aritmético.
A situação aí prevista em último, de título executivo que incorpore o reconhecimento de uma dívida pré-existente, reporta-se precisamente à promessa de cumprimento ou de reconhecimento de dívida prevista no art. 458º do CC.
Como refere Lopes do Rego estabelece-se expressamente que a força executiva tanto é conferida aos documentos “que incorporem o acto ou negócio constitutivo do débito exequendo, como aos de carácter puramente recognitivo, que envolvam mero reconhecimento pelo devedor de uma obrigação pré-existente[14]”.
E, desde que preencha os requisitos externos de exequibilidade previstos por lei, presume-se a existência do direito que o título corporiza, só susceptível de ser afastada pela prova da inexigibilidade ou inexistência do direito, a alegar e a provar pelo executado em oposição à execução[15].
Alegam as apelantes que, não só o documento dado à execução não menciona nem indica a relação fundamental subjacente à confissão, como, no requerimento executivo, o exequente se limitou a apresentar tal documento para execução, não alegando a causa de pedir ainda que através de uma sucinta exposição dos factos que fundamentam o seu pedido.
Segundo a al. e), do nº1 do art. 810º do CPC, na redacção que lhe foi dada pelo DL 226/2008, de 20.11, o requerimento executivo deve conter, entre outros elementos, “a exposição sucinta dos factos que fundamentam o pedido, quando não constem do título executivo”.
Tendo a execução por base um título executivo que deve acompanhar o requerimento executivo, a indicação da causa de pedir só tem de ter lugar quando não conste do título[16].
Como refere Lopes do Rego em anotação a tal norma, “a especificidade da acção executiva, assente necessariamente no título executivo, leva, em regra, a que não caiba ao exequente o ónus de “expor os factos e as razões de direito que servem de fundamento à acção”, ressurgindo tal ónus de alegação dos factos que servem de “causa petendi”, nos casos em que eles não constem integralmente do título executivo, cabendo, então ao exequente a exposição sucinta da matéria de facto que fundamenta a pretensão executiva[17]”.
Segundo Miguel Teixeira de Sousa[18], relativamente aos fundamentos da obrigação exequenda e à suficiência do título executivo, haverá que distinguir entre as obrigações abstractas e as causais. As primeiras dispensam a alegação de qualquer causa de aquisição da prestação, pelo que, sempre que o título executivo respeite a uma prestação abstracta, o título executivo é suficiente para fundamentar a execução, mesmo que dele não conste qualquer causa debendi. Se por ex., o direito de crédito se encontra titulado por uma letra ou uma livrança, o exequente só tem o ónus de apresentar esse título de crédito, porque ele incorpora a relação cambiária que constituiu a causa de pedir do pedido executivo. Se a obrigação exequenda for causal ela exige a alegação da causa debendi, pelo que se ela não constar ou não resultar do título executivo, este deverá ser completado com essa alegação.
Quando do documento particular não conste a causa da obrigação, no entendimento de José Lebre de Freitas, “há que distinguir consoante a obrigação a que se reportam emirja ou não dum negócio jurídico formal. No primeiro caso, uma vez que a causa do negócio jurídico é um elemento essencial deste, o documento não constitui título executivo (arts. 221º-1 CC e 223º-1 CC). No segundo caso, porém, a autonomia do título executivo em face da obrigação exequenda e a consideração do regime do reconhecimento da dívida (art. 458º nº1 CC) leva a admiti-lo como título executivo, sem prejuízo da causa da obrigação dever ser invocada no requerimento inicial da execução e poder ser impugnada pelo executado[19]”.
“Assim, quando a acção executiva se não reconduza a uma relação abstracta – v.g. execução fundada em letra de câmbio ou cheque, títulos que incorporam e definem o próprio direito formal, independentemente e que se destaca da “causa debendi” – mas a uma relação causal, não chega juntar o documento sem indicação da origem da obrigação de pagamento, carecendo o exequente de alegar a causa da obrigação, a fim de o tribunal ficar habilitado a ajuizar da validade da declaração unilateral documentada ou da própria existência do direito em face dos respectivos factos constitutivos, ou, porventura, impeditivos ou extintivos de que lhe seja lícito conhecer[20]”.
Igual opinião é sustentada por Fernando Amâncio Ferreira:
“Por não se consagrar aqui o princípio do negócio abstracto, mas apenas a inversão do ónus da prova da existência da relação fundamental, não fica o credor desonerado do ónus da alegação da relação fundamental, a servir de causa de pedir, aquando da apresentação do requerimento executivo sob pena de recusa do recebimento deste (art. 811º, nº1, al. a), com referência ao art. 810º, nº1, al. e)). Mas não lhe incumbe provar o facto constitutivo da obrigação. É ao devedor que compete provar, em oposição à execução, que a relação fundamental não existe ou é nula[21]”.
Ou seja, tem-se concluído não ser necessário que do título executivo, enquanto documento particular, conste a razão da ordem de pagamento que enuncia, para se poder afirmar que constituiu ou reconhece uma obrigação pecuniária, desde que a causa debendi seja alegada no requerimento inicial da execução[22].
Como se afirma no Acórdão do TRL de 17.12.2009, “o credor, por força do art. 458º do CCivil, apenas está dispensado de provar a relação subjacente, que se presume, mas não de a alegar. Por força dessa presunção deixa de ser necessário que do título executivo conste a causa da obrigação. Desde que, como dissemos, o exequente, no requerimento executivo alegue os factos integrantes da relação subjacente, Continua a caber ao credor a invocação da relação subjacente, cabendo ao devedor, por força da inversão do ónus da provam provar que a relação nunca existiu ou deixou de existir. Mas para isso tem que saber qual a relação pressuposta pelo credor, sob pena de poder estar perante uma infinidade de causas possíveis[23]”.
A invocação da causa de pedir no requerimento inicial é, assim, condição necessária para que a mesma possa ser impugnada pelo executado, nos termos do art. 815º do CPC[24].
Assim como, só a alegação da causa de pedir permitirá ao juiz pronunciar-se oficiosamente sobre a validade das declarações negociais que dependam da observância de forma especial, m conformidade com o regime que flui dos arts. 220º, 285º e 286º, do CC[25].
Concluindo, um título executivo relativo a uma obrigação causal exige sempre a indicação do respectivo facto constitutivo, porque sem este a obrigação não fica individualizada, sendo, por isso, o requerimento executivo inepto por falta de indicação da respectiva causa de pedir[26].
No caso em apreço, o credor instaurou a presente execução juntando o documento intitulado de “confissão de dívida”, limitando-se a alegar o respectivo teor, ou seja, que “as executadas confessaram-se devedoras da quantia de 20.000,00 €” e “comprometeram-se as executadas a pagar o referido montante, inicialmente até 10 de Agosto de 2007, mas em adenda rubricada pelo exequente, foram autorizadas a pagar o referido montante até ao final do mês de Agosto de 2007”, sendo totalmente omisso quanto à relação fundamental que esteve na origem da declaração que as executadas fizeram constar do documento dado à execução.
Sendo o requerimento executivo omisso quanto à causa de pedir, em contravenção com o disposto na al. e) do nº1 do art. 810º, do CPC, encontra-se o mesmo ferido de ineptidão nos termos do art. 193º do CPC.
E, como tal, a alegação que o exequente vem a fazer mais tarde, na contestação à oposição, quanto às circunstâncias em que tal declaração foi emitida, sempre seria irrelevante, por extemporânea.
Como se afirma no Acórdão do STJ de 15-09-2011 já citado, se o exequente não invocar a causa da obrigação no requerimento inicial e porque já não é possível fazê-lo na pendência do processo, a não ser com o acordo do executado (art. 272º CPC), por tal implicar uma alteração da causa de pedir, e atenta a posição dos executados, não poderá a execução prosseguir.
2. Demonstração de inexistência de causa debendi
Contudo, e para o caso de assim não se entender – ou seja, para o caso de se seguir a tese de que o exequente se encontra dispensado não só da prova mas igualmente da alegação da relação fundamental e que, como tal, sob as executadas impenderia o ónus da alegação e prova da inexistência de causa debendi – sempre se dirá que igualmente se concorda com as apelantes quando defendem que lograram provar tal inexistência.
O facto de o exequente, no requerimento executivo inicial, não ter individualizado a relação fundamental que deu origem à obrigação cuja existência é reconhecida no título, dificulta de um modo especial a impugnação do mesmo, obrigando as executadas a terem de se defender contra uma infinidade de causas possíveis.
E atentar-se-á em que, ainda que atendêssemos à factualidade que veio a ser alegada posteriormente pelo exequente, em sede de contestação à oposição deduzida pelas executadas (alegação que, como já vimos, sempre seria extemporânea), de tais factos não se deduz a existência de qualquer relação contratual, da qual resultasse para as ora executadas a obrigação de pagamento da quantia que reconhecem dever à exequente na alegada “confissão de dívida”:
Com efeito, o exequente limita-se a alegar a seguinte factualidade que se encontraria na origem da “confissão de dívida” dada à execução (arts. 11 a 14º da contestação):
a executada D… havia emitido e entregue ao exequente, no pretérito dia 26 de Abril de 2007, um cheque no valor de 20.000,00 €, sacado sobre o I…, da conta de que aquela é titular;
apesar de tempestivamente apresentado a pagamento aos balcões do J…, o certo é que o mesmo foi devolvido (doc. 1), não tendo o exequente logrado obter através dele o seu pagamento;
como o cheque da executada D… não foi pago, foi o exequente procurado pela executada C… que pediu à exequente a devolução daquele cheque, pois não queria que a sua filha D… tivesse quaisquer problemas a nível bancário e a nível de trabalho;
o portador do cheque e aqui exequente concordou em devolver o aludido cheque (doc. 1), conquanto a executada C… assumisse a dívida da sua filha e genro, e emitisse, consequentemente declaração de reconhecimento dessa dívida, declaração que as executadas emitiram e assinaram, bem como entregaram um novo cheque para pagamento do cheque emitido pela executada D… (doc. 2).
Antes de mais, como é entendimento pacífico na doutrina e jurisprudência, a emissão de um cheque nem sequer importa uma confissão de dívida, mas tão só uma ordem de pagamento a um banco.
Sobretudo, quando se veio a provar que o referido cheque, que o exequente alega ter-lhe sido entregue pela executada C…, afinal havia sido entregue por esta, não ao exequente, mas ao seu ex-marido (cheque que, ainda agora, se apresenta em branco quanto ao beneficiário). Ora, a emissão e entrega de tal cheque ao ex-marido, em branco quanto à identificação do beneficiário, nunca poderia configurar o reconhecimento de uma dívida da ora executada D… perante o exequente, às mãos de quem tal veio a parar, sem que o exequente alegue sequer em que circunstâncias o mesmo lhe foi entregue e qual a relação fundamental existente entre si e a pessoa que lhe entregou o cheque.
Ou seja, mesmo na contestação à oposição, o exequente optou por silenciar ou omitir qual o negócio ou contrato que terá dado origem à emissão do primeiro cheque por parte da ora executada/oponente D… (se é que houve algum contrato entre a executada D… e o exequente, uma vez que o referido cheque foi entregue por esta ao seu ex-marido e não ao exequente).
Quanto à declaração de “reconhecimento de dívida”, e tendo-se o exequente limitado a alegar que foi por estas emitida para que o exequente lhes devolvesse o referido cheque (desconhecendo-se como o mesmo terá ido parar às mãos do exequente), não integra tal alegação qualquer relação fundamental da qual resulte para ambas as executadas a obrigação de pagamento da quantia exequenda.
Por outro lado, como já foi referido, a “confissão de dívida” sem indicação de causa, prevista no art. 458º do CC, não é ela própria constitutiva da obrigação a que se refere, tendo subjacente outra relação jurídica fundamental que lhe constituiu a causa.
Ora, no caso em apreço, o exequente omite a relação fundamental que constituiu a causa do documento de “reconhecimento de dívida”.
E face a tal omissão, e a admitir que o regime das declarações unilaterais previstas no art. 458º do CC dispensaria o exequente da alegação da relação fundamental (ao contrário da tese aqui seguida), sempre teríamos de concluir que as exequentes lograram provar a inexistência de causa debendi.
Com efeito, e dentro da diversidade de causas possíveis, lograram as executadas a prova dos seguintes factos:
C) As executadas nunca compraram ao exequente qualquer bem, móvel, ou imóvel.
D) Nunca lhe pediram dinheiro emprestado, seja a quantia inscrita no título executivo ou qualquer outra.
E) Nunca praticaram qualquer acto ou facto ilícitos que provocassem prejuízos ou danos ao exequente.
F) Nunca solicitaram ao exequente a prestação de qualquer serviço ou tarefa, que estes lhe tenham efectivamente prestado.
Ficou ainda provado que “no ano de 2006 foram estabelecidas relações comerciais entre o exequente e a executada C…”, contudo, é o próprio exequente que descarta tais relações comerciais como possível causa da dívida, ao alegar, na sua contestação, que as mesmas tinham em “vista a aquisição, por compra, de um estabelecimento de salão de chá e pastelaria denominado K…, negócio que acabaria por não se concretizar”.
A omissão total da relação fundamental por parte do exequente (postura que acabou por manter na contestação à oposição, ao silenciar a causa da emissão do primeiro cheque por parte da executada D…[27]), inviabilizou uma defesa concreta e capaz por parte das executas, implicando uma quase impossível alegação de factos por parte do executado que abarque toda a infinidade de causas possíveis que pudessem estar na origem da obrigação reconhecida no título. Como tal, a apreciação a efectuar pelo tribunal sobre a suficiência dos factos alegados e dados como provados para efeitos de considerar afastada “toda e qualquer causa” terá necessariamente de ter em consideração a postura processual do exequente.
Assim sendo, ter-se-á por suficientemente demonstrada a inexistência de causa debendi da obrigação unilateralmente declarada.
E, dando por demonstrada a falta de causa da obrigação, não lhes seria necessário provar, para além disso, como o seria no caso de o reconhecimento da dívida ser configurado como um negócio abstracto, que só assinaram porque a tal foram coagidas pelo exequente.
A presunção da existência da relação fundamental contida no art. 458º do CC é ilidível – tantum iuris –, mediante simples prova em contrário pelo respectivo obrigado, que é admitido a invocar a sua falta ou ilicitude, ou qualquer outra excepção ex causa – nomadamente a insubsistência do crédito, por cumprimento ou por prescrição, ou por invalidade da relação fundamental –[28], sem necessidade de alegação e prova de que a confissão de dívida tenha sido obtida mediante um vício de vontade (por erro, dolo ou coacção)[29].
Como tal, e ao contrário do defendido pelo juiz a quo, provada a inexistência de causa debendi, afastada fica a presunção da existência da relação fundamental que subjaz ao reconhecimento de tal documento como título executivo.
Concluindo, haverá que julgar a oposição procedente, com a consequente extinção da execução.
A apelação será de proceder.
IV – DECISÃO
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar a Apelação procedente, revogando-se a decisão recorrida, julgando-se procedente a oposição à execução, com a consequente extinção da execução.
Custas a suportar pelo Apelado.

Porto, 14 de Maio de 2013
Maria João Fontinha Areias Cardoso
Maria de Jesus Pereira (com voto de vencido)
José Manuel Igreja Martins Matos
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[1] Quanto à questão altamente debatida na jurisprudência sobre se a impugnação da matéria de facto deve ser reservada para a correcção de erros manifestos de apreciação de prova, ou se a relação pode proceder a uma reapreciação autónoma dos meios de prova com base na sua convicção nos termos do art. 655º do CPC, seguiremos a posição actualmente dominante na doutrina e jurisprudência de que, embora a impugnação se destine à detecção e correcção de erros pontuais de julgamento, na reapreciação das provas gravadas, a relação dispõe dos mesmos poderes atribuídos ao tribunal de 1ª instância, nomeadamente o da livre apreciação da prova consagrado no nº1 do art. 655º do CPC – cfr., entre outros, Acórdãos do STJ de 06-07-2001, relatado por Granja da Fonseca, de 16-03-2001, relatado por Moreira Camilo, 15-09-2010, relatado por Pinto Hespanhol, de 12-03-2009, relatado por Santos Bernardino, e de 28-05-2009, relatado por Serra Baptista, todos disponíveis in http://www.dgsi.pt/jstj. Isto sem esquecer que, como refere Abrantes Geraldes, as limitações decorrentes da falta de imediação não devem esvaziar o regime da reapreciação da matéria de facto, mas tão só aconselhar especiais cuidados aquando da reapreciação dos meios de prova produzidos na 1ª instância, “evitando a introdução de alterações na decisão da matéria de facto, quando, fazendo actuar o princípio da livre apreciação das provas, não seja possível concluir, com a necessária segurança, pela existência de erro na apreciação relativamente a concretos pontos de facto impugnados – cfr., “Recursos Em Processo Civil, Novo Regime”, 3ª ed., Almedina 2010, pág. 318.
[2] Desde já se adiantando a nossa concordância total com as considerações expostas pelas apelantes nas suas alegações de recurso relativamente à caracterização e sentido da declaração negocial prevista no art. 458º do Código Civil, face à posição já assumida no Acórdão do TRL de 31.01.2012, pela aqui relatora e que se encontra disponível in http://www.dgsi.pt.
[3] Na definição de António Menezes Cordeiro, o negócio é causal quando a sua fonte tenha de ser explicitada para que a sua eficácia s manifeste e subsista, o negócio é abstracto quando essa eficácia se produza e conserve independentemente da concreta configuração que o haja originado – “Tratado de Direito Civil Português”, I Parte Geral, Tomo I, 2ª edição 2000, Almedina, pág. 317.
[4] “Código Civil Anotado”, Vol. I, 4ª ed., Coimbra Editora, pág. 440.
[5] Teoria Geral do Direito Civil, Vol. II, revisto e actualizado, edição AAFDL, Lisboa 1985, pág. 190 e 191.
[6] “Direito das Obrigações”, 9ª ed., Almedina, pág. 426.
[7] Vaz Serra, “Negócios Abstractos”, in BMJ nº 83, págs. 32 e 62.
[8] “Lições de Direito das Obrigações”, 1975/76, págs. 219 e 220.
[9] “Teoria Geral do Direito Civil”, 2010 6ª ed., Almedina, pág. 503.
[10] Cfr., Antunes Varela, “Das Obrigações em Geral”, Vol. I, 9º ed., Almedina 1996, págs. 454 e 455.
[11] Cfr., obra citada, págs. 503 e 504..
[12] Segundo tal autor, a disposição do art. 458º do C.C. nada tem a ver com a figura substantiva do negócio abstracto, nem o conceito de causa nele utilizado se confunde com o de causa do negócio jurídico – na previsão do art. art. 485º do CC, não é apenas a causa do negócio jurídico que não é indicada no acto do reconhecimento, mas todo o negócio de que a obrigação resulte – cfr., “A Confissão no Direito Probatório”, Coimbra Editora, 1991, pág. 390, nota 24.
[13] José Lebre de Freitas, “A Confissão no Direito Probatório”, págs. 389 a 391.
[14] “Comentários ao Código de Processo Civil”, Vol. I, 2ª ed. – 2004, Almedina, pág. 82.
[15] Como afirma Lebre de Freitas, encontramo-nos perante a figura da presunção de direito: “para além da eficácia própria do documento que o consubstancia, o título executivo constitui base da presunção da existência (e titularidade) da obrigação exequenda e não apenas da existência do facto que a constituiu” – cfr., “A Acção Executiva depois da Reforma da Reforma”, 5ª ed., pag. 74, nota 89.
[16] Aderindo-se à conceptualização defendida por João de Castro Mendes e Antunes Varela, a causa de pedir e o título executivo são conceitos estrutural e funcionalmente distintos: o título executivo é o documento donde consta (não donde nasce) a obrigação que se pretende obter por via coactiva; a causa de pedir é o facto (as mais das vezes complexo nos seus efeitos) que serve de fonte à pretensão processual. Ou ainda, “a causa de pedir é um elemento essencial de identificação da pretensão processual, ao passo que o título executivo é um instrumento probatório especial da obrigação exequenda” – Cfr., anotação de Antunes Varela, ao Ac. do STJ de 24.11.1983, in RLJ Ano 121, págs. 147 e 148.
[17] “Comentários ao Código de Processo Civil”, Vol. II, 2ª ed. 2004, Almedina, pág. 25.
[18] Cfr., “A Acção Executiva Singular”, LEX, Lisboa 1998, pág. 68 e 69.
[19] Cfr., “A Acção Executiva, depois da Reforma da Reforma”, 5ª ed., Coimbra Editora 2009, págs. 62 e 63, e, no mesmo sentido, Acórdãos do STJ de 18.01.2001, relatado por Francisco Ferreira de Almeida, e de 30.01.2001, relatado por Garcia Marques, in CJ-STJ Ano IX, T1, págs. 71 e 55, e Ac. STJ de 29.01.2002, relatado por Azevedo Ramos, in CJ-STJ Ano X, T1, pag. 65.
[20] Cfr. Ac. do STJ de 03.07.2002 (nº convencional: JSTJ000) disponível em http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f.
[21] “Curso de Processo de Execução”, 11ª ed., Almedina 2009, pág. 160.
[22] Cfr., neste sentido, entre outros, Ac. STJ de 31.01.2002, in CJ-STJ Ano X, T1, pag. 66, Acórdão do TRP 03.07.2003, relatado por Fernando Samões, Ac. do STJ de 15.09.2011, relatado por Granja da Fonseca, disponíveis em http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/c3f. Em sentido contrário à tese maioritária na doutrina e na jurisprudência, se pronuncia, porém, António Abrantes Geraldes: “Atento o regime prescrito pelo art. 485º do CC e a conexão existente entre o ónus de alegação e o ónus da prova, não descortinamos fundamento para impor ao credor, tanto numa acção declarativa como numa acção executiva, o ónus de invocar a causa da dívida reconhecida, pois só faz sentido impor o ónus de alegação àquele sobre quem recai simultaneamente o ónus da prova. Considerando que a lei, face a uma promessa de cumprimento ou a uma declaração de reconhecimento de dívida, presume a existência da respectiva causa, o credor está desonerado do respectivo ónus de prova (art. 344º, nº1 do CC), logo não faz qualquer sentido impor-lhe o ónus de alegação que, no contexto processual, parece totalmente despiciendo” – “Títulos Executivos”, estudo publicado na THEMIS, Revista da FDUNL, Ano IV-nº7-2003, pág. 63. Também no Acórdão do STJ de 21.10.2010, relatado por Lopes do Rego, adoptando posição diversa da por nós seguida no presente acórdão, se defende que a presunção de existência da relação fundamental decorrente do regime estabelecido no art. 458º, implica a dispensa do credor exequente de invocar os respectivos factos constitutivos no requerimento executivo – acórdão disponível in http://www.dgsi.pt/jstj.
[23] Acórdão relatado por Fátima Galante, disponível in http://www.dgsi.pt/jtrl.
[24] Cfr., neste sentido, Acórdão do STJ de 30.01.2001, relatado por Garcia Marques, disponível in CJ-STJ Ano IX, T1 2001, pág. 87.
[25] Cfr., Como bem exemplifica, Fernando Amâncio Ferreira, “pense-se num mútuo de valor superior a € 25.000,00, só válido de for celebrado por escritura pública ou por documento particular autenticado (art. 1143º do CC), dado à execução com base num escrito particular, onde o mutuário confesse apenas a dívida sem indicar o facto jurídico que a originou. Só a indicação da causa de pedir, no requerimento executivo, permitirá ao juiz, indeferi-la liminarmente, face à nulidade da obrigação titulada” – “Curso de Processo de Execução”, pág. 161.
[26] Cfr., neste sentido, Miguel Teixeira de Sousa, obra citada, pág. 69.
[27] Pondo-se a hipótese de o exequente não ter concretizado qual o “negócio” que teria estado por detrás da emissão do 1º cheque por parte da executada D…, talvez, porque, pura e simplesmente, terá recebido o mesmo através de um endosso em branco, como para tal aponta o facto de ter ficado provado que afinal tal cheque não foi emitido e entregue pela executada D… ao ora exequente, mas ao seu ex-marido. E, assim sendo, inexiste qualquer relação fundamental entre esta executada e o exequente, sendo que, como é confessado pelo exequente, foi a devolução de tal cheque sem provisão e a ameaça sobre as executadas de que agiria judicialmente sobre a executada D… que levou à assinatura do presente documento de “confissão de dívida”.
[28] Cfr., neste sentido, Pedro Pais Vasconcelos, obra citada, pág. 506 e 507.
[29] Como salienta José Lebre de Freitas, a propósito do documento do qual conste o reconhecimento de uma dívida enquanto título executivo, “o título executivo serve de base à execução de uma obrigação enquanto documento probatório do facto constitutivo duma obrigação ou do acto judicial que acerte este acto constitutivo, ou ainda dum outro facto probatório do mesmo facto constitutivo, a sua autonomia em face da obrigação tem como limites, não só a possibilidade de, em embargos de executado, se vir provar a inexistência da relação exequenda (a prova em contrário a que se refere o art. 458º-1 do CC)), como também a de oficiosamente se concluir dessa inexistência com base em factos de que o tribunal possa tomar conhecimento” – “A Confissão no Direito Probatório”, págs. 397 e 398.
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Voto de vencido:
Com todo o respeito pela opinião que fez vencimento, considero, que, se o credor/exequente não alegou a relação causal ou fundamental cujo ónus era seu, o requerimento executivo revela-se inepto e determina a nulidade de todo o processado e, consequentemente, a absolvição da executada/oponente da instância executiva – art. 193,nº1, e nº 2, alínea b), do CPC-
Declararia, por isso, a nulidade de todo o processo executivo, absolvendo as executadas da instância executiva.

Maria de Jesus Pereira
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V – Sumário elaborado nos termos do art. 713º, nº7, do CPC.
1. A declaração de reconhecimento de dívida ou de promessa de cumprimento previstos no art. 458º do CC, não configura um negócio abstracto, mas um negócio causal.
2. A causa do negócio não é constituída pelo reconhecimento da dívida ou promessa de cumprimento, mas pela relação fundamental que lhe subjaz.
3. O regime contido no art. 458º do CC, apenas dispensa o credor da prova da existência da relação fundamental, que se presume até prova em contrário pelo executado/oponente.
4. O credor de uma obrigação causal, cuja causa não conste do título exequendo, deverá alegá-la no requerimento executivo, sob pena de ineptidão inicial, nos termos do art. 193º, nº1 do CPC.
5. Apenas tal alegação permitirá ao executado a prova de que tal relação fundamental não existe, sob pena de ter de ser defender contra uma infinitude de causas possíveis.
6. Para a procedência da oposição, bastará ao executado a demonstração da inexistência da causa debendi invocada pelo exequente, não se tornando indispensável a demonstração de que a declaração de reconhecimento de dívida foi obtida mediante um vício de vontade (erro, dolo ou coação).