Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
127/09.3GARSD.P2
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOAQUIM GOMES
Descritores: AUDIÊNCIA DE JULGAMENTO
DECISÃO
DESPACHO
NULIDADE SANÁVEL
Nº do Documento: RP20110330
Data do Acordão: 03/30/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC CONTRAORDENACIONAL.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: Ocorre a nulidade dependente de arguição prevista no art. 120º, nº 2, alínea d), última parte, do Código de Processo Penal, se, tendo sido, em recurso, o arguido absolvido da acusação por um crime, no entendimento de que os factos integravam apenas uma contra-ordenação, e ordenada a baixa do processo ao tribunal de 1ª instância, para aí se decidir sobre esta última infracção, a decisão de 1ª instância não foi precedida de audiência de julgamento nem de despacho a afirmar a desnecessidade dessa audiência.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Recurso n.º 127/09.3GARSD.P2
Relator: Joaquim Correia Gomes; Adjunta: Paula Guerreiro

Acordam, em Conferência, na 1.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto

I. RELATÓRIO

1. No PCS n.º 127/09.3GARSD do Tribunal de Resende, em que são:

Recorrente/Arguido: B…

Recorrido: Ministério Público

foi proferida sentença em 24 de Outubro de 2010, por sinal um dia de domingo, a fls. 151-158, que condenou o arguido pela prática de uma contra-ordenação de condução sob a influência de álcool ou de substâncias psicotrópicas p. e p. no art. 81.º, n.º 1 e 2, 146.º, al. j) do Código da Estrada – quando por lapso se diz do RGCO – bem como na sanção acessória de inibição de conduzir por um período de 2 meses.
2. O arguido interpôs recurso por carta expedida em 2010/Nov./18 a fls. 172-175, pugnando que a sentença, e passamos a transcrever, “seja revogada, por ilegalidade e nulidade insanável e serem os autos reenviados para dar cumprimento à ordem do tribunal de recurso, devendo o arguido ser formalmente absolvido por nova sentença pública e tomar conhecimento do envio dos autos para conhecimento da entidade administrativa competente para decidir da contra-ordenação”, concluindo que:
1.º) A sentença errou ao omitir o teor da ordem de reenvio do tribunal de recurso, sendo nula a sentença porque não notificou o arguido e o mandatário judicial para a audiência pública da leitura da sentença [A, B, C];
2.º) Mais errou ao decidir da contra-ordenação dado que o tribunal judicial é materialmente incompetente para decidir de uma contra-ordenação em 1.ª instância [D];
3.º) Feriu assim a sentença os art. 16.º, “a contrario sensu”), 61.º, n.º 1, al. a) e f), 64.º, n.º 1, 119.º, al. e), 120.º, n.º 2, al. d), 373.º, 379.º, n.º 1, al. c) todos do C. P. Penal.
2. O Ministério Público respondeu em 2010/Nov./26 a fls. 168-169 sustentando que o recurso não merece provimento.
3. Nesta Relação o Ministério Público emitiu parecer em 2011/Fev./08, a fls. 174, no sentido de que o tribunal de 1.ª instância é materialmente incompetente para decidir da contra-ordenação.
4. Cumpriu-se o disposto no art. 417.º, n.º 2 do C. P. Penal, nada obstando ao conhecimento do recurso.
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O objecto do recurso incide sobre a competência do tribunal da 1.ª instância para conhecer da contra-ordenação [a)] e da existência da nulidade por não ter havido audiência para leitura da sentença [b)].
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II. FUNDAMENTAÇÃO
1. Circunstâncias a considerar
1.º) Após audiência de julgamento realizada em 2010/Mar./08 a fls. 74-76, que teve continuação em 2010/Mar./23 a fls. 81-82 e em 2010/Abr./14, a fls. 92-93, foi proferida sentença nesta última data, que foi lida publicamente, condenando o arguido pela prática, como autor material, de um crime de condução em estado de embriaguez da previsão do art. 292.º, n.º 1 do Código Penal, numa pena de 40 dias de multa, com o valor diário de € 8 e numa pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor pelo período de 3 meses.
2.º) O arguido interpôs recurso desta sentença em 2010/Mai./03 a fls. 104-109, pugnando pela sua absolvição pelo apontado crime.
3.º) O Tribunal da Relação do Porto proferiu acórdão em 2010/Jun./23, a fls. 126-145, mediante o qual se deu provimento ao recurso, “alterando-se a matéria de facto na forma sobredita e absolvendo-se o recorrente do crime pelo qual foi condenado. O tribunal de 1.ª instância deverá providenciar no sentido da concretização da responsabilidade contra-ordenacional”.
4.º) Remetido os autos para a 1.ª instância foi proferida sentença em 24 de Outubro de 2010, a fls. 151-158, a qual não foi precedida de audiência de julgamento nem foi publicamente lida tendo sido expedida notificação aos interessados em 2010/Out./26 a fls. 159-161 e depositada em 2010/Nov./05.
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2. Os fundamentos do recurso
a) Competência material do tribunal de 1.ª instância
“Os tribunais são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo” [202.º, n.º 1 Constituição].
Na orgânica judiciária os tribunais judiciais são aqueles que para além de terem competência jurisdicional em matéria cível e criminal também exercem a sua jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais [211.º, n.º 1 Constituição; 26.º LOFTJ(1)].
Atenta a diversa natureza das matérias susceptíveis de serem sujeitas a julgamento e reconhecidas as conveniências de especialização no seu conhecimento, os tribunais, que em regra, são comuns, passaram a organizar-se como tribunais especializados ou de competência especial – os outros critério delimitadores da competência são o valor, a hierarquia e o território [23.º, n.º 1 da LOFTJ].
Porém, a competência fixa-se no momento em que a acção se propõe, sendo irrelevantes as modificações de facto e de direito entretanto ocorridas, salvo quando houver a supressão do respectivo órgão ou lhe for atribuída competência que antes não tinha [24.º, LOFTJ], advindo daqui o princípio da prevalência da competência inicial ou da irretroactividade.
Por outro lado, é proibido o desaforamento de processos [24.º, LOFTJ].
No entanto, a regulamentação da competência material e funcional em matéria criminal encontra-se regulada no Código de Processo Penal(2) [10.º a 31.º].
Assim, quando os tribunais judiciais tenham competência exclusiva em relação à matéria criminal esta pode estender-se à matéria civil, mais precisamente à responsabilidade civil extracontratual resultante da prática de um crime [71.º], como ainda alargar-se a questões conexas que interessam à decisão da causa [7.º].
Este princípio da suficiência penal pode igualmente alargar-se à matéria contra-ordenacional, porquanto os tribunais judiciais têm também competência para apreciar as contra-ordenações em caso de concurso com a prática de um crime [38.º RGCOC(3)].
Mas mesmo afastada a responsabilidade criminal e atento o princípio da prevalência da competência inicial, como o da proibição do desaforamento, os tribunais podem continuar a ter competência para conhecer das matérias conexas com aquela, como sucede com o pedido de indemnização cível [377.º, n.º 1; Ac. STJ 2002/Abr./17 CJ (S) II/171; Ac. TRL 1999/Out./13, CJ IV/150; Ac. TRP 1998/Nov./18 CJ V/225; Ac. TRC 2005/Out./12 CJ IV/52].
O mesmo sucede quando uma infracção tenha sido inicialmente acusada como crime que depois é convolada para contra-ordenação [77.º, n.º 1 RGCOC].
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Tanto no processo contra-ordenacional, como no processo penal, deve-se assegurar o direito a um processo equitativo [20.º, n.º 4 Constituição; 10.º DUDH(4); 14.º, n.º 1 PIDCP(5); 6.º CEDH(6), 47.º, § 2.º CDFUE(7)], com as necessárias garantias de defesa [32.º, n.º 1 e 10 da Constituição].
Uma das vertentes do processo equitativo é a obtenção de uma decisão num prazo razoável, em que a justiça seja administrada sem atrasos que venham a pôr em crise a sua eficácia e credibilidade, exigindo-se sempre um equilíbrio entre celeridade e os direitos a um justo processo, conforme jurisprudência do TEDH [Ac. H/França (1989/Out./24); Vernillo (1991/Fev./20); Boddaert (1992/Dez./12)], que já levou a condenações do nosso país [vg. Pinto Oliveira (2001/Mar./08)].
Também o princípio constitucional da presunção da inocência, que corresponde a um direito fundamental [32.º, n.º 2, Constituição 11.º, n.º 1 da DUDH, art. 14.º, n.º 2 do PIDCP, 6.º, n.º 2 da CEDH, 48.º, n.º 1 da CDFUE], conduz a que se obtenha para o arguido uma resolução judicial no mais curto espaço de tempo.
Nesta conformidade, aquele princípio da suficiência do processo penal acaba por ser uma concretização legal do direito constitucional a um processo equitativo, na vertente de obtenção de uma decisão em prazo razoável.
Aliás e havendo trânsito em julgado de sentença ou despacho judicial que aprecie o facto como contra-ordenação fica precludido o seu novo conhecimento como crime [79.º, n.º 2 RGCOC].
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Nesta conformidade, atento o princípio constitucional do direito a um processo equitativo, aqui na vertente de obtenção de uma decisão em prazo razoável, bem como os princípios da prevalência da competência inicial ou da irretroactividade, como o da proibição do desaforamento, não tem qualquer fundamento a invocada falta de competência do tribunal da 1.ª instância para conhecer daquela contra-ordenação, quando antes essa mesma infracção estava referenciada como crime pela acusação pública.
Tanto mais que o mesmo tribunal encontrava-se vinculado ao acórdão anterior desta Relação, o qual transitou em julgado.
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b) Nulidade por falta de audiência pública
O direito a um processo equitativo implica, entre outras coisas, que a respectiva causa seja examinada publicamente, como de resto é desde logo patente no art. 6.º, n.º 1 da CEDH, encontrando-se igualmente no art.14.º, n.º 1 PIDCP.
Por sua vez, a Constituição estabelece que as audiências nos tribunais são públicas, salvo quando o próprio tribunal decidir em contrário e mediante despacho fundamentado, para salvaguarda da dignidade das pessoas e da moral pública ou para garantir o seu normal funcionamento [206.º].
Consagra-se, assim, o princípio constitucional da publicidade das audiências dos tribunais, que tem em vista assegurar a transparência e a democraticidade do exercício da função jurisdicional, mormente na fase de julgamento, de modo a preservar a confiança nos tribunais e a proteger os litigantes dos julgamentos secretos.
Este principio tanto se dirige aos interessados na causa, como aos cidadãos em geral e reporta-se essencialmente à publicidade do julgamento.
Essa dimensão pública do exame da causa implica normalmente o direito a uma audiência pública e ao subsequente sentenciamento. No entanto essa publicidade da sentença poderá bastar-se, atentas as características, o objecto ou a fase do processo, com o seu depósito na secretaria do tribunal, sendo aí acessível a todo o público, como sucede nas fases de recurso [Ac. TEDH Pretto e outros c. Itália (1983/Dez./03); Axen c. Alemanha (1983/Dez./08) , Sutter c. Itália (1984/Fev./22)] [Werner c. Áustria de 1997/Nov./24].
No que se reporta ao processo penal a audiência de julgamento em 1.ª instância é sempre pública sob pena de nulidade insanável, salvo nos casos de justificada exclusão ou restrição de publicidade [321.º], sendo, no entanto, sempre pública a leitura da sentença [87.º, n.º 5; 373.º, n.º 2].
Nesta conformidade, podemos assentar que em processo penal o princípio constitucional da publicidade das audiências dos tribunais reporta-se tanto ao momento da produção e discussão da prova, como ao conhecimento do sentenciamento.
Daí que, mesmo em caso de reenvio do processo para novo julgamento, seja obrigatória a leitura pública da sentença, sob pena de ocorrer uma nulidade insanável [Ac. R. P. de 2010/Mar./10](8).
Mas se isto é assim em processo penal também o será em processo contra-ordenacional? É o que passaremos a analisar.
Para o efeito convém ter desde logo presente que nos casos em que existe o processamento conjunto de contra-ordenações e crimes, aquelas continuam a ter uma regulamentação específica [78.º, n.º 1 RGCOC], só assim não sucederá se houver recurso, pois caso haja o processo contra-ordenacional fica subordinado ao processo penal [78.º, n.º 2 e 3 RGCOC].
Por maioria de razão deve-se manter aquela regulamentação específica se a infracção inicialmente tida como crime for convolada para contra-ordenação.
Ora na fase judicial do processo contra-ordenacional encontra-se estabelecido no art. 64.º, n.º 1 do RGCOC que “O juiz decide por despacho quando não considere necessária a audiência de julgamento e o arguido ou o Ministério Público não se oponham”.
Assim este dever de audiência pública, que é caracterizado pelos princípios da oralidade e da imediação, pode ser afastado quando essa audiência se mostrar desnecessária, o que essencialmente ocorre se for prescindível tanto a produção de prova como o exercício do contraditório.
O mesmo se passa no processo de contra-ordenações laborais [549.º, Código de Trabalho](9) e no processo de contra-ordenações reguladas no Código de Valores Mobiliários(10) [416.º, n.º 3 CVM](11)
O processo de contra-ordenação afasta-se, assim, do paradigma da obrigatoriedade quase que inultrapassável da publicidade da audiência de julgamento e da leitura do subsequente sentenciamento.
Por sua vez, o meio para se reagir contra o despacho que decretou a desnecessidade da audiência é através de recurso [73.º, n.º 1, al. e) RGCOC].
No caso de não ter sido proferido qualquer despacho e não se ter realizado a audiência de julgamento, que deveria ter sido pública, haverá então a omissão de uma diligência que se podia reputar essencial para a descoberta da verdade [120.º, n.º 2, al. d) “ex vi” 41.º, n.º 1 RGCOC].
Sendo uma nulidade relativa, em virtude de ser sanável, a mesma tem que ser previamente suscitada perante o tribunal que a praticou [120.º n.º 1].
Por aqui se pode constatar que a falta de audiência de julgamento e a sua publicidade em processo penal e em processo de contra-ordenação têm uma regulamentação distinta e, naturalmente, consequências igualmente dissemelhantes.
E isto tem certamente que ver com a diferenciação e a autonomia do processo de contra-ordenação em relação ao processo penal, porquanto tanto os meios cautelares deste como as reacções sancionatórias penais assumem uma relevância mais restritiva dos direitos fundamentais do aquele outro processo e do que as reacções contra-ordenacionais.
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Nesta conformidade e uma vez que o tribunal recorrido não proferiu qualquer despacho a justificar a não realização da audiência, sempre teria o recorrente que suscitar previamente e perante esse mesmo tribunal a omissão da audiência de julgamento e só depois, consoante o decidido, recorrer caso ficasse vencido, pelo que o presente fundamento de recurso é destituído de razão.
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III.- DECISÃO
Nos termos e fundamentos expostos, nega-se provimento ao presente recurso interposto pelo arguido B…, e, em consequência, confirma-se a sentença recorrida.

Custas pelo arguido, fixando-se a taxa de justiça em cinco (5) Ucs. [513.º n.º 1 e 514.º n.º 2 do C. P. P.; art. 87.º n.º 1 al. b) do C. C. J.].

Notifique.

Porto, 30 de Março de 2011
Joaquim Arménio Correia Gomes
Paula Cristina Passos Barradas Guerreiro
________________
(1) Aprovado pela Lei n.º 52/2008, de 28/Ago., alterada pelas Leis n.º 103/2009, de 11/Set., 115/2009, de 12/Out. e pelo Dec.-Lei n.º 295/2009, de 13/Out. e pela Lei n.º 3-B/2010, de 28/Abr.
(2) Doravante são deste diploma os artigos a que se fizer referência sem indicação expressa da sua origem.
(3) Aprovado pelo Dec.-Lei n.º 433/82, de 27/Out., alterado pelos Dec.-Lei n.º 356/99, de 17/Out., Dec.-Lei n.º 244/95, de 14/Set.; Dec.-Lei n.º 323/2001, de 17/Dez.; Lei n.º 109/2001, de 24/Dez.
(4) Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 10 Dezembro de 1948, aplicável por via 16.º, n.º 2 da C. Rep..
(5) Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos, de 1976, aprovado, para ratificação, pela Lei n.º 29/78, de 12/Jun.
(6) Convenção Europeia dos Direitos do Homem, que foi aprovada, para ratificação, pela Lei n.º 65/78, de 13/Out.
(7) Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, publicada no JOUE de 2007/Dez./14 (2007C 303/1)
(8) Relatado pelo Des. Vasco Freitas e acessível em www.dgsi.pt.
(9) Lei n.º 7/2009 de 12 de Fevereiro, estabelecendo-se naquele seu art. 549.º, que “As contra -ordenações laborais são reguladas pelo disposto neste Código e, subsidiariamente, pelo regime geral das contra –ordenações”.
(10) Aprovado pelo Decreto-Lei n.º 486/99, de 13 de Novembro e alterado pelos Decretos-Leis n.º 61/2002, de 20 de Março, 38/2003, de 8 de Março, 107/2003, de 4 de Junho, 183/2003, de 19 de Agosto, 66/2004, de 24 de Março, 52/2006 de 15 de Março (rectificado pela Declaração de Rectificação n.º 21/2006 de 30 de Março), 219/2006, de 2 de Novembro, 357-A/2007, de 31 de Outubro, 211-A/2008, de 3 de Novembro, Lei n.º 28/2009, de 19 de Junho, Decreto-Lei n.º 185/2009, de 12 de Agosto, Decreto-Lei n.º 49/2010, de 19 de Maio, Decreto-Lei n.º 52/2010, de 26 de Maio e Decreto-Lei n.º 71/2010, de 18 de Junho.
(11) “O tribunal pode decidir sem audiência de julgamento, se não existir oposição do arguido, do Ministério Público ou da CMVM”.