Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
3492/09.9TBVNG-C.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: GUERRA BANHA
Descritores: CASO JULGADO
SENTENÇA
FACTOS DECLARADOS PROVADOS
DEPOIMENTO
INVOCAÇÃO DE DEPOIMENTOS PRESTADOS NOUTRO PROCESSO
Nº do Documento: RP201101043492/09.9TBVNG-C.P1
Data do Acordão: 01/04/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO.
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Legislação Nacional: ARTº 514º E 522º DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
Sumário: I - O caso julgado resultante do trânsito em julgado de sentença proferida em anterior acção não se estende aos factos aí declarados provados para efeitos desses.
II - Para que os depoimentos prestados num processo possam ser invocados e valorados noutro processo, nos termos do art. 522.º, n.° 1, do Código de Processo Civil, é pressuposto indispensável que tais depoimentos tenham sido sujeitos a audiência contraditória entre as mesmas partes.
III - Os factos de que o tribunal se pode servir por deles ter conhecimento no exercício das suas funções, a que alude o n.° 2 do art. 514.º do CPC, são apenas os factos já julgados pelo mesmo juiz noutro processo, ficando excluídos os factos julgados por juiz diferente em tribunal diferente.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 3492/09.9TBVNG-C.P1
Recurso de Apelação
Distribuído em 27-10-2010
Relator: Guerra Banha
Adjuntos: Des. Anabela Dias da Silva
Des. Sílvia Maria Pires

Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto.

I – RELATÓRIO
1. Nos autos de reclamação de créditos instaurados por apenso ao processo de insolvência n.º 3.492/09.9TBVNG, que corre termos no 4.º Juízo Cível de Vila Nova de Gaia, em que foi declarada a insolvência de B………., residente em ………., Vila Nova de Gaia, C………., residente na cidade do Porto, impugnou a lista de créditos não reconhecidos apresentada pela administradora da insolvência, por não ter reconhecido o crédito por si reclamado, no montante de 260.000,00€, correspondente ao dobro do sinal que alegou ter pago ao insolvente, no âmbito de um contrato-promessa de compra e venda de imóvel agora apreendido para a massa insolvente, o qual não foi aceite pela administradora da insolvência com o fundamento de que tal contrato era simulado.
Responderam à impugnação a administradora da insolvência (fls. 62) e os credores reconhecidos D………. (fls. 59) e E………., S.A. Sociedade Aberta (fls. 65), invocando, além do mais, a simulação absoluta do alegado contrato-promessa de compra e venda de que emergia o reclamado crédito da impugnante.
Realizada a audiência de julgamento e decidida a matéria de facto controvertida, foi proferida sentença, a fls. 151-157, que decidiu, no que respeita à reclamação da impugnante, que o contrato-promessa em que se baseava fora ficcionado e, por isso, não tinha existência jurídica, pelo que julgou improcedente a sua impugnação e não reconhecido o crédito por si reclamado.

2. Não se conformando com esta decisão, a impugnante recorreu para esta Relação, de cujas alegações extraiu as conclusões seguintes:

1.ª - Nos autos de insolvência de B.………, a aqui Apelante apresentou a sua reclamação de créditos, alegando nomeadamente ter celebrado um contrato promessa de compra e venda em 1 de Março de 2006, referente a um imóvel composto de casa de cave, rés-do-chão, anexos, garagem, piscina, logradouro e outros, sita na ………., n.ºs … e …, da freguesia de ………., concelho de Vila Nova de Gaia, descrita na 2.ª conservatória do registo predial de Vila Nova de Gaia sob o n.º 01797/220493 e no competente devidamente serviço de finanças sob o artigo matricial n.º 4045.
2.ª - Alegou que o preço da prometida compra e venda fora de 330.000,00€, e que pagara de sinal e reforço de sinal, a quantia de 130.000,00€.
3.ª - Em 29 de Junho de 2009 interpelou a Sra. Administradora de Insolvência para cumprir o contrato, ao que esta respondeu, em 1 de Julho de 2009, que não pretendia cumprir o contrato promessa.
4.ª - Foi então formulada pela Apelante reclamação, com base no incumprimento definitivo e pedindo o reconhecimento de um direito de crédito igual ao sinal em dobro, ou seja, 260.000,00€ e ainda o reconhecimento do direito de retenção sobre o imóvel como garantia de obtenção do pagamento com prevalência sobre os demais credores, em virtude da tradição do imóvel desde a data da celebração do contrato.
5.ª - Tais pedidos não foram reconhecidos, e seguidos os trâmites legais, procedeu-se a julgamento.
6.ª - O Tribunal a quo considerou que nenhum dos factos ficou provado, salvo os que já constavam da matéria assente.
7.ª - Ora, em acção declarativa anterior, promovida pela Apelante contra os promitentes vendedores, e em que fora interveniente o credor E………., ficaram provados todos os factos referentes à efectiva existência do contrato promessa, do sinal pago e da posse do imóvel pela Apelante, tudo conforme certidão junta aos autos e bem assim apensação dessa acção à insolvência.
8.ª - O próprio Tribunal a quo salientou, por despacho, que: «Por fim, assinale-se que se encontra apensa aos autos a acção ordinária que a credora intentou contra os insolventes, a qual contém documentos relevantes e de que o Tribunal pode lançar mão se os mesmos se lhe afigurarem de relevo para a descoberta da verdade, o que se fez».
9.ª - Dispõe o artigo 671.º, n.º 1, do Código de Processo Civil que, transitada em julgado a sentença, a decisão sobre a relação material controvertida fica a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele é o que se chama de caso julgado material.
10.ª - O objectivo é precisamente impedir a repetição da uma mesma causa entre as partes e prevenir que uma decisão posterior seja contraditória com uma anteriormente proferida e transitada em julgado.
11.ª - No processo n.º 8554/06.1TBVNG, da 2.ª Vara Mista do Tribunal Judicial de Vila Nova de Gaia, entre as aqui mesmas partes, ficou determinada a matéria de facto acima referida (relembremo-nos, existência de um contrato promessa, pagamento de sinal e seu montante e existência de posse sobre o imóvel) por despacho que transitou em julgado.
12.ª - A Sra. Administradora de Insolvência, por inerência de funções, representa aqui os promitentes vendedores, mas sem mais direitos nem menos obrigações artigo 55.º do CIRE.
13.ª - Assim, todos os efeitos jurídicos e processuais dimanados do processo 8554/06.1TBVNG impunham-se a todas as partes na reclamação da Apelante.
14.ª - Tanto mais que entre as partes ficou esgotada a possibilidade de um juiz voltar a exercer o seu poder jurisdicional quanto à matéria da causa artigo 666.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.
15.ª - Desta forma, a decisão sobre a matéria de facto proferida naquele processo transitou em julgado, e produz efeitos fora desse processo, em especial nos presentes autos.
16.ª - Motivo pelo qual, ao decidir como não provada a matéria de facto dos pontos 1 a 16 neste processo, incorreu a decisão recorrida em frontal violação do caso julgado material, no que diz respeito às decisões sobre a matéria de facto que foram proferidas no processo 8554/06.1TBVNG.
17.ª - Pelo que, desde logo, tais factos 1 a 16 devem ser dados como provados.
18.ª - Além de tudo isto, o artigo 522.º, n.º 1, do Código de Processo Civil estabelece que os depoimentos e arbitramentos produzidos num processo com audiência contraditória da parte podem ser invocados noutro processo contra a mesma parte.
19.ª - Foi precisamente o que fez a Apelante, ao invocar a existência daquele processo e a força probatória do mesmo.
20.ª - Sendo que, por aplicação do artigo 514.º do Código de Processo Civil, não carecem de prova os factos de que o tribunal tem conhecimento por virtude do exercício das suas funções bastando a junção ao processo do documento que os comprove.
21.ª - Ocorreu pois, também nesta medida, uma incorrecta decisão sobre a matéria de facto, resultante de notório erro na consideração dos factos anteriormente provados entre as partes, que impunha ao Tribunal a quo o seu conhecimento e consideração nestes autos e a consideração das provas ali produzidas, existindo pois uma incorrecta valoração das provas.
22.ª - Por tudo o exposto, ficaram violadas as normas constantes do artigo 55.º do CIRE, do artigo 341.º do Código Civil e dos artigos 264.º, n.º 3, 497.º, 498.º, 514.º, 522.º, n.º 1, 664.º, 666.º n.º 1, 671.º n.º 1 e 677.º do Código de Processo Civil.
Contra-alegaram a administradora da insolvência e o E………., S.A., concluindo ambos no sentido de que o recurso deve ser julgado improcedente e mantida a sentença recorrida.

II FUNDAMENTOS DE FACTO
3. No despacho saneador, proferido a fls. 98-102, foram declarados assentes, com base em documentos constantes do processo e em acordo das partes, os seguintes factos:
a) Por sentença proferida em 28 de Maio de 2009, foi declarada a insolvência de B………., divorciado, nascido a 19 de Fevereiro de 1974, natural da freguesia de ………., concelho de Vila Nova de Gaia, filho de F………. e de G………., residente na Rua ………. n.º …, ………., em Vila Nova de Gaia.
b) Descrito na 2.ª Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Gaia, sob o n.º 1797/19930422, da freguesia de ………., encontra-se um prédio urbano, composto de cave, andar, anexos com 83m2, piscina com 57m2 e logradouro, sito na ………. n.ºs … e …, ………., daquela freguesia.
c) Tal imóvel, à data da declaração de insolvência, encontrava-se descrito a favor do Insolvente, no estado de casado, segundo o regime de comunhão de adquiridos, com H………..
d) Tal imóvel foi adquirido por doação.
e) Pelas apresentações 34 e 35, ambas de 2002-04-05, mostram-se registadas a favor do E………., S.A., duas hipotecas para garantia do pagamento dos montantes máximos de, respectivamente, 131.443,79€ e 118.555,67€.
f) Pela ap. 49, de 2005-08-10, mostra-se registada uma penhora, com data de 04-07-2005, a favor da Fazenda Nacional e para pagamento da quantia de 289.969,65€.
g) Pela ap. 5907, de 2009-01-26, mostra-se registada uma penhora, com data de 26-01-2009, a favor da Fazenda Nacional e para pagamento da quantia de 1.076,39€.
h) Correu termos, sob o n.º 8554/06.1TBVNG, na 2.ª Vara Mista deste tribunal, uma acção ordinária, na qual foi Autora a (ora) Credora Impugnante e Réus o Insolvente e a sua ex-esposa, H………., a qual se encontra apensa aos autos principais.
i) Em tal acção, a aí Autora, que indicou a sua morada na ………. n.º …, ..º Esq, no Porto, e a (morada) da aí Ré na ………. n.º …, ………., Vila Nova de Gaia, onde foi citada, tendo assinado o respectivo aviso de recepção, peticionou que fosse declarado resolvido o contrato-promessa de compra e venda celebrado no dia 1 de Março de 2006, e a condenação dos Réus no pagamento da quantia de 260.000,00€, acrescida de juros, à taxa legal desde a citação e até integral pagamento, e o reconhecimento do seu direito de retenção sobre o referido imóvel, para garantia do seu crédito.
j) Tal acção não foi contestada pelos ali Réus.
k) Por despacho proferido a fls. 43 foi admitida a intervenção principal provocada do Banco de Investimento Imobiliário, do E………., S.A. e da Fazenda Pública.
l) Tal acção veio a ser julgada improcedente, por decisão já transitada em julgado.
m) A Credora Impugnante, por carta datada de 29 de Junho de 2009, interpelou a Sra. Administradora da Insolvência para o cumprimento do contrato-promessa, o que esta recusou por missiva datada de 01-07-2009.

4. E foram levados à base instrutória os seguintes factos:
1 - No dia 1 de Março de 2006, C………., na qualidade de promitente-compradora, e B………. e H………., na qualidade de promitentes-vendedores, celebraram um contrato nos termos do qual estes prometiam vender àquela o imóvel identificado nas alíneas b) e seguintes?
2 - Pelo preço de 330.000,00€?
3 - Livre de ónus e encargos?
4 - Estabeleceram as partes em tal contrato que o preço seria pago da seguinte forma:
a) Em 1 de Março de 2006, a promitente-compradora, a título de sinal e princípio de pagamento, entregaria a quantia de 75.000,00€?
b) Em 31-07-2006, a título de reforço de sinal, a promitente-compradora entregaria a quantia de 25.000,00€?
c) Em 31-08-2006, a título de reforço de sinal, a promitente-compradora entregaria a quantia de 30.000,00€?
d) A parte remanescente, ou seja, 200.000,00€ seria paga no acto de escritura pública de compra e venda, a ser celebrada até ao dia 20 de Setembro de 2006?
5 - Estipularam ainda que seria a promitente-compradora a avisar os promitentes-vendedores, por carta registada com aviso de recepção, com pelo menos 8 dias de antecedência, indicando o dia, hora e local para a celebração da escritura pública?
6 - Estabeleceram ainda que a promitente-compradora, com o pagamento do reforço de sinal de 31-07-2006, ficaria investida na posse do referido imóvel, podendo realizar nele o que lhe aprouvesse, nomeadamente arrendar ou dar de comodato?
7 - Correspondendo à vontade da referida C………. e do Insolvente e da sua ex-mulher prometer comprar e vender, respectivamente?
8 - A referida C………. entregou ao Insolvente e esposa a quantia de 130.000,00€?
9 - Desde 31 de Julho de 2006 que a referida C………. se encontra na posse do referido imóvel?
10 - A referida C………. não tinha, nem tem, pelo seu nível de vida, pela sua ocupação profissional, nem pelas suas disponibilidades financeiras/meios económicos ou de fortuna para pagar 130.000,00€, a pronto e sem recurso a qualquer tipo de crédito bancário?
11 - Bem como não dispunha, como não dispõe, de fundos suficientes para pagar mais 200.000,00€ no acto da escritura?
12 - O prédio em causa foi sempre ocupado e fruído exclusivamente pelo Insolvente, que sempre suportou todas as despesas necessárias com o mesmo, designadamente despesas de água, luz, telefone, tv cabo, impostos e taxas municipais?
13 - Com aquele "contrato" visaram a referida C………., o Insolvente e a sua ex-mulher, em conjugação de interacções e procedimentos, criar uma situação patrimonial impeditiva para a satisfação integral dos direitos de crédito do Credor Hipotecário?
14 - Tentando criar um falso direito de retenção sobre o imóvel em causa, para garantia da devolução de sinal em dobro, no valor de 260.000,00€?
15 - Tentando, com tal conduta, prevalecer-se da invocada supremacia de tal direito de retenção sobre as hipotecas constituídas a favor do Banco Credor Hipotecário sobre tal prédio?
16 - A referida C……….s sabia, integral e claramente, da existência dos referidos débitos do Insolvente e sua ex-mulher para com o Credor Hipotecário?

5. Todos os factos constantes da base instrutória foram julgados não provados, em sede de audiência de julgamento, com a seguinte fundamentação:
«A convicção do Tribunal fundou-se no conjunto da prova produzida, ponderada e valorada segundo as regras da experiência comum, designadamente, nos esclarecimentos prestados pela SRA. ADMINISTRADORA (da insolvência) em sede de audiência de discussão e julgamento, que referiu ter-se apercebido que o imóvel se encontrava abandonado da primeira vez que aí se deslocou, quer pelo seu aspecto, quer pelas informações que recolheu junto de vizinhos, e que após a marcação de uma visita junto do insolvente passou o imóvel a ter uma aparência de ser habitado, sem que contudo a pessoa com quem contactou agisse com naturalidade e à vontade para lhe explicar os motivos da ocupação, sendo certo que posteriormente referiu ter passado pelo local e que nunca lá viu ninguém, o que foi conjugado com o depoimento da testemunha I………., ex-marido da Credora Reclamante, cujo depoimento se apresentou cheio de incongruências, nomeadamente, não conseguindo explicar porque razão a ex-mulher do insolvente foi citada na casa aqui em questão depois da data em que referiu ter sido ocupada pela sua ex-mulher (Verão de 2006, quando ia buscar aí o filho), revelando conhecimentos profundos sobre aspectos da vida da sua ex-mulher e que claramente a beneficiavam no âmbito do presente processo e afirmando ser desconhecedor de outros, que claramente a poderiam prejudicar, o facto de não explicar os rendimentos que esta pudesse obter que lhe permitiam adquirir as inúmeras propriedades que enumerou, a circunstância da Credora ter junto aos autos a cópia da frente do cheque com que afirmou ter procedido ao pagamento do preço e a sua negligência em não juntar aos autos o verso e os documentos bancários necessários para que se pudesse aferir que efectivamente, e pelo menos, houve uma deslocação patrimonial para a esfera do insolvente e sua ex-mulher, o que determinou a não prova dos factos supra enumerados.
Para além do já mencionado, a não prova dos demais factos deveu-se a total ausência de prova.»

III AS QUESTÕES DO RECURSO
6. Tratando-se de recurso interposto em acção instaurada no ano de 2009, a sua tramitação e julgamento rege-se pelo regime processual introduzido pelo Decreto-Lei n.º 303/2007, de 24/08 (cfr. art. 12.º deste decreto-lei).
De harmonia com as disposições contidas nos arts. 676.º, n.º 1, 684.º, n.ºs 2 e 3, e 685.º-A, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil, na redacção aplicável, o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões que o recorrente extrai das suas alegações, desde que reportadas à decisão recorrida, sem prejuízo das questões de que, por lei, o tribunal deva conhecer oficiosamente (art. 660.º, n.º 2, do Código de Processo Civil).
Percorrendo as conclusões formuladas pela apelante, as questões nelas enunciadas reconduzem-se às seguintes matérias:
(i) se a decisão sobre a matéria de facto proferida na anterior acção n.º 8554/06.1TBVNG produz efeitos no âmbito da presente impugnação instaurada nos termos do art. 130.º do CIRE, quanto aos pontos de facto aí julgados provados e, na afirmativa, se esse efeito abrange todos os factos constantes dos n.ºs 1 a 16 da base instrutória aqui elaborada;
(ii) se os depoimentos produzidos na primeira acção e que influenciaram a decisão ali proferia sobre a matéria de facto provada também valem para esta nova acção, seja por aplicação do art. 522.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, seja por aplicação do art. 514.º do mesmo código.
São, pois, estas as duas questões que cabe apreciar.

7. Quanto à primeira questão antes enunciada, pretende a recorrente que, por efeito do caso julgado que atribui à decisão sobre a matéria de facto proferida na anterior acção n.º 8554/06.1TBVNG, se considerem provados nesta acção todos os factos constantes da base instrutória sob os n.ºs 1 a 16.
O que impõe que se aprecie se o caso julgado, resultante do trânsito em julgado da sentença proferida na acção n.º 8554/06.1TBVNG, também abrange os factos ali declarados provados e, na afirmativa, se esse efeito é aplicável a esta acção de impugnação e compreende todos os factos constantes dos n.ºs 1 a 16 da base instrutória.
Ora, pode afirmar-se, desde já, que, segundo o entendimento unânime tanto da doutrina como da jurisprudência, o que constitui caso julgado é a decisão, e não, directamente, os fundamentos. Ficando excluídos da eficácia do caso julgado os factos subjacentes à decisão quando considerados isolados desta.
Pronunciando-se sobre esta matéria, o Prof. ALBERTO DOS REIS (em Código de Processo Civil Anotado, vol. III, 3.ª edição, reimpressão, Coimbra Editora, 1981, p. 139), citando Chiovenda, esclarecia:
"O raciocínio sobre os factos é obra da inteligência do juiz, necessária como meio para preparar a formulação da vontade da lei (ou seja, a decisão). Obtida esta finalidade, o elemento lógico perde toda a importância; a ordem jurídica não pretende que se considerem verdadeiros os factos que serviram ao juiz de base para a sua decisão. O que lhe interessa é: a vontade da lei, no caso concreto, é aquilo que o juiz afirma ser a vontade legal.
Enquanto raciocina, o juiz não representa o Estado; só o representa enquanto afirma a sua vontade. A sentença é unicamente a afirmação ou a negação duma vontade do Estado que garanta a alguém, no caso concreto, um bem da vida; só a este ponto pode estender-se a autoridade do caso julgado".
E concluindo esta sua exposição, no sentido de justificar que "o que constitui caso julgado é a decisão e não os fundamentos", disse:
"Consoante o exposto, o caso julgado só se forma, em princípio, sobre a decisão contida na sentença. O que adquire força e autoridade de caso julgado é a posição tomada pelo juiz quanto aos bens ou direitos (materiais) litigados pelas partes e à concessão ou denegação da tutela jurisdicional para esses bens ou direitos. Não a motivação da sentença: as razões que determinaram o juiz, as soluções por ele dadas aos vários problemas que teve de resolver para chegar àquela conclusão final (pontos ou questões prejudiciais)".
Esta doutrina continua a manter actualidade em face do preceito do art. 671.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, na redacção vigente, o qual dispõe do seguinte modo: "Transitada em julgado a sentença ou o despacho saneador que decida do mérito da causa, a decisão sobre a relação material controvertida fica a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele nos limites fixados pelos artigos 497.º e 498.º …".
Como se vê, é a própria lei que limita o efeito do caso julgado à "decisão sobre a relação material controvertida … nos limites fixados pelos artigos 497.º e 498.º".
Reportando-se directamente a esta disposição legal, REMÉDIO MARQUES (em Acção Declarativa à Luz do Código Revisto, Coimbra Editora, 2007, p. 447) diz que:
"A eficácia do caso julgado limita-se aos efeitos concretos que as partes tiveram em vista ao litigarem a acção. Por isso se diz que a força do caso julgado cobre apenas a resposta dada a essa pretensão, e não os fundamentos, os motivos ou o raciocínio lógico operado para lograr tal resposta. Que o mesmo é dizer que o caso julgado abrange a parte decisória da sentença final e não se estende, em princípio, aos fundamentos de facto da sentença final".
Também MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA (em Estudos sobre o Novo Processo Civil, p. 577), embora considere que "o caso julgado incide sobre a decisão como conclusão de certos fundamentos e atinge esses fundamentos enquanto pressupostos daquela decisão", logo acrescenta que "os fundamentos de facto não adquirem, quando autonomizados da decisão de que são pressuposto, valor de caso julgado".
E o Prof. ANTUNES VARELA (em Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, 1984, p. 697), referindo-se directamente à "exclusão dos factos subjacentes à decisão", escreve:
"Os factos considerados como provados nos fundamentos da sentença não podem considerar-se isoladamente cobertos pela eficácia do caso julgado, para o efeito de extrair deles outras consequências, além das contidas na decisão final".
Ao nível da jurisprudência, vale a pena citar o recente acórdão do STJ de 02-03-2010 (disponível em www.dgsi.pt/jstj.nsf/ proc. n.º 690/09.9.YFLSB). Nele se afirma que:
"… a problemática do respeito pelo caso julgado coloca-se sobretudo ao nível da decisão, da sentença propriamente dita, e, quando muito, dos fundamentos que a determinaram, quando acoplados àquela.
Os fundamentos de facto, nunca por nunca, formam, por si só, caso julgado, de molde a poderem impor-se extraprocessualmente: prova evidente do que acaba de ser dito é o que está estipulado no n.º 2 do artigo 96.º do Código de Processo Civil — "A decisão das questões e incidentes suscitados não constituem, porém, caso julgado fora do processo respectivo, excepto se alguma das partes requerer o julgamento com essa amplitude e o tribunal for competente do ponto de vista internacional e em razão da matéria e da hierarquia".
Pode, assim, concluir-se que o caso julgado resultante do trânsito em julgado da sentença proferida no processo n.º 8554/06.1TBVNG não se estende aos factos aí declarados provados para efeito desses factos poderem ser invocados, isoladamente da decisão a que serviram de base, num outro e diferente processo. O que só por si já contraria a pretensão da recorrente.
Acresce que a decisão proferida na anterior acção foi de "improcedência" [cfr. al. l) dos factos acima descritos como assentes]. O que quer dizer que dessa anterior decisão nenhuma consequência relevante resulta para a posterior acção em que se declara a insolvência do ali demandado e respectivos incidentes, incluindo a reclamação de créditos e a impugnação a que alude o art. 130.º do CIRE.

7.1. Mas para além disso, de acordo com o preceituado nos arts. 497.º, n.º 1, e 498.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, para que remete o n.º 1 do citado art. 671.º do mesmo código, a excepção do caso julgado pressupõe a repetição de uma causa já julgada, que se caracteriza por uma tríplice identidade: de sujeitos, de pedido e de causa de pedir (cfr. acs. do STJ de 27-10-2009 e de 22-06-2010, ambos disponíveis em www.dgsi.pt/jstj.nsf/ procs. n.º 1407/04.0TBAGD.C1.S1 e 326/04.4TBOFR.C1.S1, respectivamente).
Ora, entre a anterior acção declarativa, destinada a obter a resolução de alegado contrato-promessa com base no incumprimento do dito contrato [cfr. al. i) dos factos assentes] e instaurada contra o promitente-vendedor (ora insolvente) e sua ex-esposa, e a presente acção de impugnação da lista de credores a que alude o art. 130.º do CIRE, instaurada contra o administrador da insolvência e os credores reconhecidos, não existe nem identidade de sujeitos, nem identidade de objecto (pedido e causa de pedir).
Quanto aos sujeitos, não intervieram na anterior acção a globalidade dos credores reconhecidos, à excepção do E………., S.A. O que quer dizer que apenas a este credor podia ser oposta a decisão ali proferida. Aos demais credores não intervenientes nessa acção sempre seria inoponível o efeito do caso julgado inerente a essa decisão, por serem terceiros titulares de direitos incompatíveis com o direito da ora impugnante apreciado naquela anterior acção (cfr. ac. do STJ de 25-03-2010, em www.dgsi.pt/jstj.nsf/ proc. n.º 408.06.8TBACN.C1.S1).
Com efeito, em princípio, o caso julgado apenas produz efeitos entre as mesmas partes. E só a título excepcional esses efeitos são, por vezes, "extensivos a terceiros juridicamente indiferentes, que são aqueles que não podem alhear-se dos efeitos das sentenças transitadas e proferidas em processos nos quais não são intervenientes, desde que estas não lhes causem qualquer prejuízo jurídico, embora lhes ocasionem um prejuízo de facto ou económico" (cfr. ac. do STJ de 20-05-2010, em www.dgsi.pt/jstj.nsf/ proc. n.º 13465/06.8YYPRT-A.P1.S1). Nunca, porém, é oponível "a terceiros titulares de relações incompatíveis" (cfr. ac. do STJ de 25-03-2010, ibidem, proc. n.º 408.06.8TBACN.C1.S1), como neste caso sucede entre a ora impugnante e os credores que deduziram oposição à reclamação da ora impugnante.
E cremos que também seria inoponível ao administrador da insolvência, porquanto, ao contrário do que alega a recorrente, este não representa no processo de insolvência os interesses do insolvente. Que ali são defendidos pelo próprio insolvente.
Se é verdade que, nos termos do n.º 4 do art. 81.º do CIRE, "o administrador da insolvência assume a representação do devedor para todos os efeitos de carácter patrimonial que interessem à insolvência", não é menos verdade que o n.º 5 do mesmo artigo logo acrescenta que essa representação "não se estende à intervenção do devedor no âmbito do próprio processo de insolvência, seus incidentes e apensos, salvo expressa disposição em contrário". O que quer dizer que o interesse processual que ao administrador da insolvência cabe defender nesta impugnação é o de representante da massa insolvente, enquanto património afecto à satisfação dos direitos dos credores (cfr. arts. 1.º, 46.º, 55.º e 81.º do CIRE), e não, directamente, o interesse do próprio insolvente. E por isso, também não lhe era oponível o efeito do caso julgado das decisões proferidas na anterior acção.
Quanto ao objecto, a anterior acção visava obter a resolução do invocado contrato-promessa (pedido) com base no incumprimento do dito contrato por parte do ora insolvente (causa de pedir). Nesta acção de impugnação da lista de credores apresentada pelo administrador da insolvência o que está em causa é o reconhecimento da existência de um crédito que a impugnante alega ter sobre o insolvente, decorrente da celebração válida e eficaz do dito contrato e correspondente ao dobro do sinal que alegou ter pago ao insolvente.
Como em caso similar esclarece o acórdão do STJ de 22-06-2010 acima citado, "não ocorre identidade entre uma impugnação deduzida pela executada contra uma reclamação de créditos apresentada no apenso de reclamação de créditos em acção executiva (com base em simulação absoluta do negócio gerador do título do crédito reclamado) e uma acção de anulação desse mesmo negócio subsequentemente instaurada, a título autónomo, pelo exequente não impugnante desse crédito".
Também o acórdão do STJ de 20-05-2010 (em www.dgsi.pt/jstj.nsf/ proc. n.º 13465/06.8YYPRT-A.P1.S1) refere que a sentença que reconhece o direito de retenção sobre um imóvel é inoponível ao credor hipotecário sobre o mesmo imóvel que não interveio na acção onde tal sentença foi proferida, por se tratar de "terceiro juridicamente interessado, afectado na consistência jurídica do seu direito". E acrescenta: "O terceiro juridicamente interessado, não condenado na sentença que se executa, não pode considerar-se vinculado à sua observância, em virtude da ineficácia subjectiva do caso julgado material formado por aquela sentença". (V. ainda, a respeito de caso similar, o recente acórdão do STJ de 07-10-2010, em www.dgsi.pt/jstj.nsf/ proc. n.º 9333/07.4TBVNG-A.P1.S1).
Pode, assim, concluir-se que, ainda que algum efeito pudesse resultar, em termos de caso julgado, da decisão proferida sobre a matéria de facto julgada provada na anterior acção, esse efeito sempre seria inoponível quer aos credores que não intervieram nessa acção e aqui se opõem ao reconhecimento do crédito da impugnante, quer ao administrador da insolvência, enquanto representante da massa insolvente. E, consequentemente, tal decisão era insuficiente para julgar provados nesta acção os factos que constavam da base instrutória.

7.2. Importa observar ainda que, na anterior acção, cuja cópia da sentença consta a fls. 82-85, apenas constam como provados os factos ora descritos nos n.ºs 1 a 6, 8 e 9 da base instrutória. E, mesmo assim, alguns deles surgem aqui descritos em termos não exactamente coincidentes com o que foi considerado provado naquela acção, apresentando agora uma versão mais elaborada e mais completa. Como sucede, por exemplo, com o facto ora constante do n.º 6, onde se diz que [a C………., na qualidade de promitente-compradora, e o B………. e sua ex-mulher H………., na qualidade de promitentes-vendedores, "estabeleceram ainda que a promitente-compradora, com o pagamento do reforço de sinal de 31-07-2006, ficaria investida na posse do referido imóvel, podendo realizar nele o que lhe aprouvesse, nomeadamente arrendar ou dar de comodato", quando na anterior acção foi apenas dado como provado que "acordaram A. e RR. que a primeira, com o pagamento do reforço de sinal de 31-07-2006, ficava investida na posse do prédio", sem a referência de que "pod(iam) realizar nele o que lhes aprouvesse, nomeadamente arrendar ou dar de comodato".
Os demais factos ora constantes dos restantes números da base instrutória, ou seja, do n.º 7 e dos n.ºs 10 a 16, não constam provados na anterior acção.
Acresce que os factos dos n.ºs 10 a 16 correspondem a alegação dos aqui reclamados/recorridos, tendo em vista demonstrar que o alegado contrato-promessa de compra e venda invocado pela ora reclamante era simulado e que a ora reclamante nunca ocupou nem teve a posse do imóvel. Factos que não foram objecto de julgamento na anterior acção.
Por isso, não deixa de ser surpreendente que a recorrente pretenda que os factos dos n.ºs 10 a 16, relativos à simulação do alegado contrato-promessa, também sejam julgados provados, na justa medida em que tais factos, conduzindo à declaração de nulidade do contrato por simulação (art. 240.º do Código Civil), sempre impediriam o reconhecimento do crédito reclamado pela ora recorrente e, consequentemente, contrariam o efeito visado pela impugnante com a presente acção.
O que só revela a precipitação e a falta de rigor com que este recurso foi elaborado.

8. O que ficou dito anteriormente a respeito da inoponibilidade do caso julgado a quem não foi parte interveniente na anterior acção também se aplica ao princípio da eficácia extra-processual das provas a que alude o art. 522.º do Código de Processo Civil.
Com efeito, dispõe o n.º 1 do preceito legal citado que "os depoimentos e arbitramentos produzidos num processo com audiência contraditória da parte podem ser invocados noutro processo contra a mesma parte".
Como claramente se infere dos segmentos normativos destacados a negrito, para que os depoimentos prestados num processo possam ser invocados e valorados noutro processo é pressuposto indispensável que tenham sido objecto de "audiência contraditória" entre as mesmas partes. Isto porque, como refere o Prof. ANTUNES VARELA (ob. cit. p. 492), "desde que na produção da prova se tenham concedido às partes as garantias essenciais à sua defesa, nada repugna, com efeito, aceitar que a prova possa ser utilizada contra a mesma pessoa num outro processo, para fundamentar uma nova pretensão, seja da pessoa que requereu a prova, seja de pessoa diferente, mas apoiada no mesmo facto".
Foi também este o entendimento acolhido no acórdão desta Relação de 09-10-2008, Recurso n.º 4784/08 da 3.ª Secção, disponível em www.trp.pt/.
Ora, os depoimentos produzidos na acção n.º 8554/06.1TBVNG não foram sujeitos ao contraditório dos credores da insolvência que em tal acção não intervieram. O que é suficiente para obstar a que tais depoimentos pudessem ser utilizados nesta acção de impugnação.
Acresce que, se a recorrente pretendia fazer uso nesta acção desses anteriores depoimentos, deveria tê-lo requerido ao juiz da 1.ª instância antes da audiência de julgamento. Para evitar que as mesmas testemunhas fossem novamente chamadas a depor. Não tendo sido invocados oportunamente perante o tribunal de 1.ª instância, também não podem ser invocados em sede de recurso. Já que a finalidade do recurso não é a de permitir realizar novo julgamento, com a produção de novas provas, mas sim e tão-só a de reapreciar as mesmas provas que serviram de base à decisão de que se recorre. O que resulta dos preceitos dos arts. 685.º-B, n.ºs 1 e 2, e 712.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil, com a ressalva da situação prevista na al. c) do n.º 1 deste último preceito, que apenas se refere a "documento novo superveniente".
Tendo sido inquiridas em audiência contraditória realizada nesta acção, com todas as partes intervenientes, as mesmas testemunhas que na anterior acção tinham prestado os depoimentos ora invocados, é óbvio que os anteriores depoimentos, prestados noutro processo, jamais podiam ser sobrepostos aos depoimentos prestados pelas mesmas testemunhas neste processo. O que decorre quer do princípio da audiência contraditória a que alude o art. 517.º, n.º 1 do Código de Processo Civil, quer do princípio da imediação da prova.
Carece, pois, de fundamento a invocação pela recorrente dos depoimentos prestados na anterior acção, para os sobrepor aos depoimentos prestados pelas mesmas testemunhas nesta acção, com sujeição a audiência contraditória de todas as partes aqui intervenientes, o que não sucedeu na anterior acção.

9. Invoca ainda a recorrente o preceito do art. 514.º, n.º 2, do Código de Processo Civil para justificar que os factos julgados provados na anterior acção também deveriam ser julgados provados nesta acção, porque se consideram do conhecimento do tribunal "por virtude do exercício das suas funções".
Porém, tal invocação não tem razão de ser.
Dispõe o citado normativo que "não carecem de alegação os factos de que o tribunal tem conhecimento por virtude do exercício das suas funções".
Ora, os factos de que o tribunal se pode servir por deles ter adquirido conhecimento no exercício das suas funções, a que alude o preceito legal citado, são apenas os factos já julgados pelo mesmo juiz noutro processo. E não os factos julgados por outro juiz em tribunal diferente.
Sobre a interpretação deste preceito, no segmento que se refere aos "factos de que o tribunal tem conhecimento por virtude do exercício das suas funções" [que no Código de 1939 figurava no art. 518.º], o Prof. JOSÉ ALBERTO DOS REIS (em Código de Processo Civil Anotado, vol. III, 3.ª edição, reimpressão, Coimbra Editora, 1981, p. 264), escreve que: "O facto há-de constar de qualquer processo, acto ou peça avulsa em que o juiz tenha intervindo como tal". Esclarece ainda que, na sessão de 23-11-1937 da Comissão Revisora do Texto do Código do Processo Civil, tal como consta da Acta n.º 20, págs. 24 e 25, "acordou-se que o artigo se refere a conhecimentos obtidos (pelo mesmo juiz) noutro processo e que é sempre necessário juntar a documentação dos mesmos".
Também o Prof. LEBRE DE FREITAS (em Código de Processo Civil Anotado, volume 2.º, 2.ª edição, Coimbra Editora, 2008, p. 430), escreve que este normativo "constitui manifestação do princípio geral da eficácia do caso julgado (art. 671.º-1) ou do valor extraprocessual das provas (art. 522.º)". Esclarecendo que os factos aqui abrangidos são apenas os de que "o juiz tem conhecimento funcional". Para acrescentar que: "Mas, porque tal resultaria na utilização do saber privado do juiz, que é inadmissível, não constitui facto que o tribunal conheça por virtude do exercício das suas funções o respeitante a processo que corra ou tenha corrido em outro tribunal", ou seja, perante juiz diferente.
Ora, os factos a que a recorrente se refere foram julgados por juiz diferente e em tribunal diferente. O que os exclui do âmbito do conhecimento funcional do juiz que proferiu a decisão recorrida e, consequentemente, os coloca fora do âmbito do n.º 2 do art. 514.º do Código de Processo Civil.

10. Sumário:
i) O caso julgado resultante do trânsito em julgado de sentença proferida em anterior acção não se estende aos factos aí declarados provados para efeitos desses factos poderem ser invocados, isoladamente da decisão a que serviram de base, numa outra e diferente acção.
ii) Não existe identidade de sujeitos nem identidade de objecto (pedido e causa de pedir) entre uma acção declarativa, destinada a obter a resolução de contrato-promessa de compra e venda de imóvel com base no incumprimento do dito contrato, instaurada contra o promitente-vendedor, entretanto declarado insolvente, e a posterior acção de impugnação da lista de credores a que alude o art. 130.º do CIRE, instaurada contra o administrador da insolvência e os credores reconhecidos.
iii) Para que os depoimentos prestados num processo possam ser invocados e valorados noutro processo, nos termos do art. 522.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, é pressuposto indispensável que tais depoimentos tenham sido sujeitos a audiência contraditória entre as mesmas partes.
iv) Os factos de que o tribunal se pode servir por deles ter conhecimento no exercício das suas funções, a que alude o n.º 2 do art. 514.º do CPC, são apenas os factos já julgados pelo mesmo juiz noutro processo. Ficando excluídos os factos julgados por juiz diferente em tribunal diferente.

IV – DECISÃO
Pelo exposto:
1) Julga-se improcedente a presente apelação e confirma-se a sentença recorrida.
2) Custas pela apelante (art. 446.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil).
*
Relação do Porto, 04-01-2011
António Guerra Banha
Anabela Dias da Silva
Sílvia Maria Pereira Pires