Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1548/12.0TDPRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MARIA DOS PRAZERES SILVA
Descritores: GRAVAÇÃO
VALIDADE
MEIO DE PROVA
CONVERSA TELEFÓNICA
Nº do Documento: RP201601271548/12.0TDPRT.P1
Data do Acordão: 01/27/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: PROVIMENTO PARCIAL
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º 666, FLS.179-194)
Área Temática: .
Sumário: I - Não existe regulamentação processual penal, relativa às provas obtidas por particulares em relação à tutela da vida privada, pelo que a validade da prova fica dependente da sua não ilicitude à face da legislação penal.
II – Pode ser considerada valida a gravação de palavras efectuada por particulares sem o consentimento do visado bem como julgada valida a prova recolhida por esse meio.
III – Se a gravação documenta a comunicação telefónica do autor daqueles ilícitos da iniciativa do arguido e que teve como destinatário o assistente, na qual se materializou a conduta ilícita do arguido (crimes de ameaça e injuria) é justificada a gravação das palavras dirigidas ao assistente sem o consentimento do autor daqueles ilícitos.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 1548/12.0TDPRT.P1

Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto

I – RELATÓRIO:
Nos presentes autos de processo comum, com intervenção do tribunal singular, foi submetido a julgamento o arguido B…, tendo sido proferida sentença que o condenou na pena de 130 dias de multa, à taxa diária de 20€, pela prática de um crime de ameaça agravada, previsto e punível pelo artigo 153.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 80 dias de multa, à taxa diária de 20€, pela prática de um crime de injúria, previsto e punível pelo artigo 181.º, n.º 1, do Código Penal, e em cúmulo jurídico na pena única de 180 dias de multa, à taxa diária de 20€.
Mais foi decidido condenar o demandado a pagar ao demandante a quantia de 1.300€, acrescida de juros, à taxa de 4%, desde a data da decisão até integral pagamento.
*
Inconformado com a decisão condenatória, o arguido interpôs o presente recurso, apresentando a motivação que remata com as seguintes
CONCLUSÕES:
Conclusão I. Na sentença proferida é dado como provada factualidade não constante das acusações, designadamente a apresentação da queixa junto da ACT, a existência de dois alegados telefonemas, os conteúdos de tais telefonemas e, principalmente, o facto de ter sido dado como provado de que o assistente advertiu o arguido de que, caso reiterasse o supradito tipo de conduta, iria gravar o conteúdo das chamadas telefónicas que lhe dirigisse e iria apresentar queixa ao Ministério Público, factualidade esta com manifesto relevo para a decisão da causa.

Conclusão II. A alteração de factos constantes das acusações e dos que foram dados como provados é relevante para a decisão da causa, sendo que, se dela tivesse tido conhecimento (ou seja, caso o tribunal tivesse dado cumprimento ao disposto no artigo 358º do CPP, o que não fez), o arguido teria apresentado a sua defesa de forma diferente, como também alteraria os meios de prova que apresentou.

Conclusão III. A defesa do arguido não pode ser surpreendida com essa alteração de factos, ainda que não substancial, tendo o direito de exercer o contraditório, que apenas poderá fazer se for dado cumprimento do artigo 358º do Código de Processo Penal, que o Tribunal omitiu.

Conclusão IV. Pelo exposto, é manifesto que ocorreu alteração não substancial dos factos, sem cumprimento do disposto no artigo 358º do Código de Processo Penal, determinando a nulidade da sentença (cfr. art. 379º, nº 1, alínea b) do Código de Processo Penal.

Conclusão V. É manifesto que da fundamentação da decisão, o Tribunal recorrido assentou a sua convicção na alegada gravação de uma suposta chamada telefónica ocorrida entre o Assistente e o Arguido.

Conclusão VI. A escuta constitui em si mesma um meio enganoso e insidioso de obtenção da prova, que o assistente não se coibiu de lançar mão – a ser verdadeira a gravação, o que não se admite - pelo que a sua utilização, para mais sem o consentimento do visado, não poderia deixar de ser entendida como uma inequívoca expressão de violação dos mais elementares direitos processuais penais de defesa do arguido.

Conclusão VII. É nula a prova constituída pela mencionada gravação - ilícita - da alegada conversa telefónica que fundamenta a convicção do Tribunal, tal como resulta das disposições conjugadas dos artigos 125°, 126°, nºs 1 e 3, e 167º, n° 1, todos do C.P.P. (tendo presente o estatuído nos arts. 192º., n°. 1 al. a) e 199°., nº. 1, als. a) e b), ambos do C. Penal).

Conclusão VIII. Neste sentido, foi doutamente decidido no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 16/12/2008, proferido no âmbito do Processo nº 3968/2008-5, em que foi Relator o Mmo. Desembargador SIMÕES DE CARVALHO, publicado em www.dgsi.pt, cuja fundamentação se dá aqui por integralmente reproduzida.

Conclusão IX. A gravação em causa não podendo ser utilizada como meio de prova, por ser nula, não pode ser valorada nem utilizada no processo penal, sendo que afeta todos os atos produzidos após a sua verificação.

Conclusão X. Surpreendente, o Tribunal recorrido fundamenta a sua decisão de valoração da gravação, socorrendo-se, para o efeito, do douto Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, que nada tem a ver com a situação dos presentes autos: Trata, aquele Acórdão, da audição em alta voz de chamada telefónica, manifestamente diferente da situação dos autos.

Conclusão XI. Fundamenta, ainda, o Tribunal recorrido a valoração da mesma gravação da alegada chamada telefónica no consentimento do arguido, sem qualquer razão.

Conclusão XII: Da conjugação de ambas as disposições constantes dos artigos 38º e 39º do Código Penal, temos que o consentimento pode ser expresso por qualquer meio que traduza uma vontade séria, livre e esclarecida do titular do interesse juridicamente protegido. O consentimento presumido reporta-se ao momento do facto e o titular do interesse ofendido deve dispor então da capacidade a que se refere o nº 3 do artigo 38º do Código Penal[1].

Conclusão XIII. O consentimento presumido assume sempre carácter subsidiário, no sentido de que só é legítima a sua invocação quando não for possível obter a manifestação expressa da vontade ou houver perigo sério na demora (cfr. a este propósito Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2.ª edição, p. 490).

Conclusão XIV. No caso concreto, não resulta dos autos qualquer razão para que fosse necessário invocar o consentimento presumido quando é certo que nada obstava à obtenção, em tempo útil, do consentimento efetivo do suspeito ou obter tais gravações através de outro meio legalmente admissível – cfr. artigo 189º, nº 2, do CPP.

Conclusão XV. Por outro lado, a simples declaração do Ofendido de que iria gravar a chamada telefónica – advertência curiosamente não constante da gravação – não poderá determinar um consentimento presumido por parte do Arguido, sob pena de total destruição das apertadas regras sobre a obtenção das provas, conforme decidiu, neste sentido o Douto Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa[2].

Conclusão XVI. De realçar que mesmo em sede de obtenção de prova através da escuta telefónica, esta deve ter carácter excecional, senão mesmo residual, de última ratio: só se deve a ela recorrer se e quando os fins da prova não puderem ser alcançados com o uso de meios menos danosos para os direitos fundamentais, ou seja, quando constitua uma “medida necessária, adequada e proporcional numa sociedade democrática para salvaguardar a segurança nacional, a defesa, a segurança pública e a prevenção, a investigação, a deteção e a repressão de infrações penais” [art. 15º da Diretiva 95/46/CE][3].

Conclusão XVII. Ainda para fundamentar o consentimento presumido do arguido, o Tribunal interpreta que a expressão “vai lá ao Ministério Publico”, alegadamente feita pelo mesmo, retifica tal advertência feita pelo assistente.

Conclusão XVIII. Porém, só por manifesta distração poderia o Tribunal recorrido retirar daquela expressão, alegadamente utilizada pelo Arguido, tal conclusão. É que a instâncias do Mmo. Juiz o próprio Ofendido refere que aquela expressão tem a ver com a queixa que o mesmo teria feito anteriormente à ACT, tal como se constata da transcrição, nesta parte, das declarações prestadas pelo Ofendido.

Conclusão XIX. Assim, para além de não ter ficado provada tal advertência, como se demonstrou, é manifesto que da mesma não decorre qualquer consentimento por parte do arguido, ainda que presumido.

Conclusão XX. A sentença recorrida viola o disposto nos artigos 38º e 39º do Código Penal, sendo que a gravação da alegada chamada telefónica consubstancia um caso de prova proibida e, consequentemente sem qualquer valor probatório.

Conclusão XXI. Sem prescindir, o Recorrente impugna a decisão proferida acerca da matéria de facto, considerando não ter ficado provada, ao contrário do que entendeu o Tribunal recorrido, a seguinte factualidade:
- No dia 30 de novembro de 2011, o assistente, C…, foi despedido pelo arguido;
- Por tal facto, por estar persuadido de que tal despedimento ocorreu sem justa causa, deu entrada de um processo no Tribunal de Trabalho do Porto e apresentou uma queixa à Autoridade para as Condições do Trabalho;
- Por motivos conexos com tal despedimento, em data não concretamente determinada, mas poucos dias antes de 09/02/2012, o arguido, B…, contatou o assistente, via telemóvel, e dirigiu-lhe os subsecutivos termos e expressões: “filho da puta! Paneleiro! agora é que tu estás fodido!... não sabes com quem te meteste, sei onde tu moras! ... vais ser apanhado!. .. vou-te matar!”;
- Na ocasião, o assistente advertiu o arguido de que, caso reiterasse o supradito tipo de conduta, iria gravar o conteúdo das chamadas telefónicas que lhe dirigisse e iria apresentar queixa ao Ministério Público;
- No dia 9 de fevereiro de 2012, a hora não concretamente apurada, o arguido, B…, utilizando o referido telemóvel com o n.º ………, telefonou para o telemóvel do assistente, com o n.º ………, quando este se encontrava em casa, sita na Comarca do Porto, Rua…, no Porto, dirigindo-lhe então, diversos termos e expressões:
a) - de um lado, proferiu as subsecutivas expressões: "eu vou-te preparar a manta!"; "se eu te apanho, mato-te!"; "deixa-te estar, eu vou-te apanhar!"; e
b) - de outro lado, apelidou-o de filho da puta, paneleiro do caralho, corno do caralho e cabrão e disse-lhe ainda: "a tua mulher pôs-te os cornos!"
- As expressões proferidas pela arguida, no segmento indicado sob a alínea a), causaram medo, inquietação e insegurança ao assistente, C…, perturbando-o no seu sossego, tranquilidade e liberdade de determinação, atendendo às circunstâncias e ao modo como foram proferidas (maiormente pelo seu tom sério e agressivo), fazendo-o temer pela sua integridade física e, inclusive, de alguma forma, pela sua própria vida;
- No plano sobredito em b), ao proferir as referidas palavras/termos, o arguido logrou atingir o assistente na sua honra e consideração, tendo consciência da carga ofensiva que elas envolviam;
- O assistente, por efeito das palavras que lhes foram dirigidas pelo arguido, ficou aborrecido, agastado e revoltado;
- O arguido agiu, em cada uma das matérias/planos da sua ação, sob a mesma resolução ou desígnio, com o propósito, concretizado, de atemorizar o assistente e de lhe determinar receio pela sua integridade física e pela sua vida;
- Atuou também com o desígnio, materializado, de ofender o assistente na sua honra e consideração;
- O arguido, B…, agiu, sempre, de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo serem as suas condutas proibidas e punidas por lei;

Conclusão XXII. É manifesto que tal factualidade não resultou provada em audiência de julgamento, pelas seguintes razões:
a) a gravação da alegada chamada telefónica é nula, tal como se expôs;
b) foi reproduzida em audiência de julgamento sem que constasse dos autos, apesar da imediata oposição manifestada pelo arguido;
c) as declarações do Ofendido são contraditórias e obscuras, não obstante ter ficado vincada a sua postura no sentido de obter a condenação do arguido a qualquer custo. Aliás, tal desiderato resultou do próprio conteúdo da conversa constante da gravação, ferida de nulidade, onde confessadamente é o Ofendido quem conduz a conversa e determina o próprio conteúdo da mesma (sempre sem que se admita como verdadeira).
d) O arguido negou todos os factos em causa;
e) Não se produziu qualquer outra prova.

Conclusão XXIII. O Tribunal permitiu a audição de uma alegada conversa, contendo declarações imputadas ao arguido em manifesta violação do disposto nos artigos 355º e seguintes do Código de Processo Penal, pois que não constavam dos autos.

Conclusão XXIV. Posto isto e sem prescindir, das próprias declarações do assistente prestadas em audiência de julgamento, assim como daquilo que consta da alegada gravação da suposta chamada telefónica, é manifesto – a ser o conteúdo da mesma verdadeiro, o que não se admite nem concede – ter sido o Assistente o agente quem ardilosamente provocou o arguido no sentido de obter provas – utilizando as suas próprias palavras - levando-o a proferir as expressões que o Tribunal conota com manifesta gravidade, conforme se constata da transcrição anteriormente efetuada.

Conclusão XXV. Aliás, até se depreende das próprias declarações do Assistente, que refere que nem sequer se lembra como começou a conversa, mas o que pretendia era recolher provas e até respondeu e provocou o arguido para o efeito, tanto mais que era do conhecimento pessoal do assistente que o arguido era uma pessoa temperamental e exaltado e facilmente recorria a essa expressão de advertência, facilmente recorria à asneira, e da advertência com expressões como “eu vou-te preparar a mantar”, “vou-te matar”! Segundo o Assistente, o arguido não está habituado nem no confronto de ideias, nem… muito menos neste confronto que foi mais contundente, de levar a estes extremos.

Conclusão XXVI. Por outro lado, é manifesto não ter ficado provada a advertência que o Ofendido terá feito ao arguido, do qual o Tribunal retira o “consentimento” deste.

Conclusão XXVII. Pelo exposto, tendo em atenção não ser credível retirar das declarações do Assistente se efetivamente “advertiu” o arguido que iria gravar as chamadas e, no caso afirmativo, se o fez antes ou depois da gravação em causa, sendo certo que não faz efetivamente parte da gravação tal advertência (nem no inicio nem no fim da conversa), estranha-se ter o Tribunal concluído, em sede de fundamentação da sua convicção, de que, na vertente situação, diante da advertência feita anteriormente pelo assistente ao arguido, de que gravaria uma futura chamada telefónica da parte deste, se verifica um claro consentimento presumido/implícito, por banda do arguido, no tocante a tal gravação (cf. o artigo 187.º, n.º 4, alíneas a) e c), do CPP);

Conclusão XXVIII. Por último e sem prescindir, face à natureza e ao contexto em que as expressões referidas nas acusações que dos autos constam, foram dirigidas ao Assistente, não pode extrair-se que com elas o Arguido quis ofender a honra e consideração devidas àquele ou que o quis ameaçar e incutir nele receio pela sua integridade física.

ConclusãoXXIX. Tais expressões, a terem existido, o que não se admite, surgem num contexto de revolta, de indignação, de discussão e, essencialmente, de provocação feitas pelo Assistente. Não são agradáveis, nem próprias, mas face ao contexto em que surgem, são mais uma reação às provocações perpetradas pelo Ofendido, que sabia da personalidade do arguido e como é que iria reagir face a tais provocações, fazendo-o de propósito para obter deste tal reação que bem sabiam ocorreria. Aliás, das próprias alegadas ameaças nem sequer resultou para o Ofendido receio que as mesmas se viessem a concretizar-se ou a correr perigo em face das mesmas, tal como se comprovou da transcrição anteriormente efetuada das declarações do Assistente a instâncias do Mmo. Juiz.

ConclusãoXXX Inexistem, pois, elementos probatórios que fundamentem a prática dos factos pelo arguido, suscetíveis de integrarem a tipicidade objetiva e subjetiva dos ilícitos pelos quais o arguido foi condenado.
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A demandante apresentou resposta ao recurso, na qual pugnou pelo respetivo não provimento.
*
O Ministério Público junto do tribunal a quo respondeu ao recurso, pronunciando-se no sentido da improcedência e formulando as seguintes
CONCLUSÕES:
I. Percorrendo os factos provados da douta sentença recorrida e os factos das acusações pública e particular que se mostram juntas aos autos e que ao recorrente foram em tempo notificadas, resultam de tais peças processuais a descrição dos factos objecto do processo e sobre o qual incidiu a prova.

II. A factualidade a que o recorrente ora se reporta consta das peças de fls. 119 a 123, de fls. 142 a 144 e de fls. 149 a 150, não se vislumbrando quaisquer factos novos que importem em termos formais a comunicação prevista no art.º 358.º n.º 1, do Código de Processo Penal.

III. Parte dos factos a que o recorrente se reporta, constam já dos autos como se pode ler dos artigos 6.º a 13.º da acusação particular e do despacho que acompanhou a acusação particular a fls. 149 a 150, bem como, da conjugação global dos elementos existentes nos autos valorados como um todo e em conjunto.

IV. Inexistem quaisquer factos novos ou outros factos ou provas que não constem das peças processuais e dos próprios autos. Na verdade, como bem sabe o recorrente essas peças processuais (acusações e despacho de pronuncia) foram-lhe notificadas em momento anterior e a gravação da conversa telefónica mostra-se nos autos desde a fase de inquérito (cf. requerimento de fls. 90) e já foi objecto de impugnação na fase de instrução pelo aqui recorrente.

V. Não se vislumbra dos autos qualquer surpresa ou o alegado desconhecimento invocado pelo recorrente como perturbador do seu direito de defesa, o que a nosso ver não se verificou ou sequer ocorreu.

VI. Inexistem como invoca factos novos que importem uma alteração não substancial e por isso não se justifica a comunicação de qualquer factualidade, nos termos previstos no art.º 358.º n.º 1, do Código de Processo Penal.

VII. Inexiste igualmente para nós a invocada nulidade da sentença, nos termos previstos no art.º 379.º n.º 1, alínea b), do Código de Processo Penal, por cair a invocada violação da comunicação prevista no art.º 358.º n.º 1, do Código de Processo Penal.

VIII. Como se defende na Jurisprudência “Não ocorrerá alteração não substancial dos factos quando se trata de uma simples descrição do contexto temporal e do ambiente físico em que a acção do arguido se desencadeou, quando o mesmo não é mais do que a reafirmação ou a ilação explícita de factos que sinteticamente já se encontravam narrados na acusação ou na pronúncia – Ac. TC n.º 387/2005 e de igual modo não se poderá falar de alteração dos factos com relevo para a decisão, quando a decisão condenatória se sustenta «exclusivamente nos factos constantes da acusação e da contestação e o recorrente não foi surpreendido com os factos, dadas as considerações que precedem. (cf. o AC. STJ Acórdão de 23.6.2005, C.J. 184, Tomo II, 2005).

IX. Carece, assim, o recorrente de razão quanto à alegada violação da comunicação de factos prevista no art.º 358.º n.º1, do Código de Processo Penal, não se verificando a invocada nulidade da sentença prevista no art.º 379.º n.º1, alínea b), do Código de Processo Penal como pretende.

X. Quanto à invocada nulidade ou prova proibida da gravação da conversa telefónica, concluímos que não assistirá razão ao aqui recorrente e que o mesmo confunde uma prova directa dos factos obtida por um particular, no caso o assistente, com os meios de obtenção de prova previstos e definidos pelo Código de Processo Penal.

XI. De acordo com o art.º 125.º, do Código de Processo Penal, “são admissíveis as provas que não forem proibidas por lei, podendo afirma-se ser a gravação admissível como meio de prova, por não se tratar de prova proibida - cf. Acórdão da Relação do Porto de 17-12-1997, CJ, ano XXII, Tomo 5, pág. 240, no qual pode ler-se o seguinte: pode ser utilizada como meio de prova de um crime de ameaça, a cassete que contém a gravação da mensagem ditada pelo arguido para o telemóvel do ofendido para aí ficar gravada”.

XII. No caso dos autos, a gravação da conversação telefónica foi efectuada porque o arguido realizou a referida chamada telefónica para o assistente, o que quis fazer e fez, não se tratando de prova obtida mediante tortura, coacção ou em geral ofensa à integridade físicas ou moral da sua pessoa, pelo que, não se conclui tratar-se de prova nula ou proibida, nos termos previstos no art.º 126.º n.º 1, do Código de Processo Penal.

XIII. Acresce que tendo a iniciativa do contacto telefónico partido do aqui recorrente (o arguido) daí surgindo o acordo do arguido ao estabelecimento daquela conversação e tendo o arguido proferido expressões que configuram a prática de crime, mostra-se excluída a proibição da prova prevista no art.º 126.º n.º 3, do Código de Processo Penal.

XIV. Concluímos assim que a gravação da chamada telefónica no caso em concreto, é uma prova admissível por fazer prova sobre factos que constituem a prática de um crime, não assistindo razão ao recorrente quando defende a sua ilegalidade e nulidade.

XV. A prova valorada na sentença, nada tem a ver com escutas telefónicas e as formalidades e requisitos a que estas obedecem, pois a prova trazida pelo assistente contrariamente ao que o recorrente defende, não se trata de escuta telefónica, concluindo-se que nenhuma das formalidades previstas para as escutas telefónicas se impunha neste caso.

XVI. Tal como a Douta sentença recorrida entendeu e valorou a prova da gravação, também do Acórdão da Relação do Porto: de 16/03/2005, publicado em www.dgsi.pt/jtrp se pode ler o entendimento de que: “As palavras proferidas em telefonema para casa de outrem e gravadas no respectivo aparelho de telefone não são prova proibida em processo penal contra o autor das mesmas” e no mesmo sentido vejam-se os Acs. da Relação de Coimbra, de 06-03-2013 e 10-07-2013, ambos publicados em www.dgsi.pt/jtrc.

XVII. No Acórdão da Relação de Coimbra de 06 de Março de 2013, publicado in www.dgsi.pt/jtrc, também se defende a mesma posição ou seja que: “Não constitui prova proibida a divulgação de uma conversa telefónica pelo sistema de alta voz quando essa precisa comunicação telefónica é o meio utilizado para cometer um crime de ameaça ou injúria e a vítima consinta, de modo expresso ou implícito, na sua divulgação a terceiros como forma de se proteger de tais ameaças ou injúrias, sendo por essa razão permitido o depoimento de quem a ouviu”.

XVIII. De igual modo, o Acórdão da Relação de Coimbra de 07 de Outubro de 2013 defende que “ 1- Quando a vítima seja interlocutora e destinatária da comunicação telefónica ou outra comunicação técnica equiparada, considera-se justificada a divulgação do teor da conversa telefónica pelo sistema de alta voz (a que é semelhante a mensagem sonora) quando essa precisa comunicação telefónica é um meio utilizado para cometer um crime de ameaças ou injúrias e a vitima consinta de modo expresso ou implícito na sua divulgação a terceiros como forma de proteger de tais ameaças e como tal não constitui prova proibida” (…).

XIX. Igualmente entendem serem válidas as conversações telefónicas o Acórdão da Relação do Porto de 9 de Janeiro de 2013, no processo n.º 1516/08.6PBGMR e assim nesta conformidade não se vislumbra que o Tribunal a quo e a douta sentença recorrida tenha admitido qualquer prova proibida por lei quando ponderou a gravação da chamada telefónica em conjugação com o depoimento do assistente (prova testemunhal credível) e a versão do arguido, sendo de referir que o assistente confirmou as palavras ameaçadoras que o arguido lhe dirigiu.

XX. Na douta sentença recorrida não foi valorada, nem admitida prova proibida, pois a prova produzida em sede de audiência de julgamento, tratou-se de prova válida e admissível, cuja valoração obedeceu ao princípio da livre apreciação da prova e foi valorada segundo as regras da experiência e livre convicção do julgador – art.º 127.º, do Código de Processo Penal.

XXI. Ressalta de forma clara do texto da sentença ter o Tribunal a quo efectuado a ponderação, reflexão e análise crítica sobre a prova recolhida e obtido a convicção plena sobre a verificação e prática dos factos imputados ao arguido.

XXII. O Tribunal recorrido bem ponderou a prova, pois se por um lado o arguido negou os factos que lhe são imputados, a prova dos factos como se constata foi alicerçada e sustentada nas declarações do assistente (prova testemunhal), C…, que como vítima, descreveu os factos, de forma linear, coerente e credível nos exactos termos como se considerou e deu como assentes.

XXIII. Igualmente ponderou a gravação da chamada telefónica, efectuada pelo arguido ao assistente no dia 9 de Fevereiro de 2012 e que foi objecto de reprodução em audiência, tendo resultado da sua audição que o telefonema em questão foi feito pelo arguido; e que, no domínio desse telefonema, o arguido proferiu os termos e expressões dados como consolidados.

XXIV. Resulta assim devidamente fundamentada na douta sentença recorrida que a versão do arguido não logrou convencer o Tribunal, tendo a factualidade dada como provada radicado nas declarações totalmente credíveis, do assistente, aliadas à prova documental, com a reprodução, em audiência, da gravação telefónica respeitante ao dia 9 de Fevereiro de 2012.

XXV. Do supra exposto, não se observa qualquer nulidade ou irregularidade na valoração da prova, pois a mesma foi minuciosamente descrita e valorada, ponto por ponto, especificando-se em concreto todas as questões e circunstâncias relevantes em termos probatórios e todas as particularidades que se passaram em julgamento e que foram tidas em consideração na fundamentação dos factos.

XXVI. Nestes termos e em face ao supra exposto, não ocorrendo, nem se verificando os invocados vícios, nulidades em relação à douta sentença recorrida e à prova, nem ocorrendo qualquer violação de direitos ou de princípios de direito constitucional; de direito penal e ou de direito processual penal, pugnamos pela rejeição e improcedência do presente recurso, com a manutenção da douta sentença e condenação do arguido B… pela prática, em autoria material e em concurso real, de Um Crime de Ameaça Agravada e de Um Crime de Injúria, p. e p., pelos art.ºs 153.º n.º1, 155.º n.º 1, alínea a) e 181.º n.º 1, todos do Código Penal, na pena única de 180 dias de multa, à taxa diária de €20 Euros, o que perfaz o montante global de €3.600 Euros (três mil e seiscentos euros).
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Nesta instância o Ministério Público emitiu parecer no sentido de que o recurso não merece provimento, aderindo à resposta.
*
Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, não foi apresentada resposta.
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Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
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II – FUNDAMENTAÇÃO:
A. Na sentença foram fixados os seguintes
Factos Provados:
O arguido, B…, é administrador da D…, SA;
É ainda administrador de mais seis sociedades, localizadas em Portugal e no estrangeiro, cujo objecto respeita ao sector automóvel;
O assistente, C…, durante um determinado período, trabalhou e colaborou com várias Sociedades pertencentes ao grupo D…, designadamente para a E…, SA, NIPC ………, com sede no …, Guimarães, de que o arguido era igualmente administrador;
O telemóvel com o n.º ……… encontra-se atribuído à D…, SA;
No dia 30 de novembro de 2011, o assistente, C…, foi despedido pelo arguido;
Por tal facto, por estar persuadido de que tal despedimento ocorreu sem justa causa, deu entrada de um processo no Tribunal de Trabalho do Porto e apresentou uma queixa à Autoridade para as Condições do Trabalho;
Por motivos conexos com tal despedimento, em data não concretamente determinada, mas poucos dias antes de 09/02/2012, o arguido, B…, contatou o assistente, via telemóvel, e dirigiu-lhe os subsecutivos termos e expressões: “filho da puta! Paneleiro! agora é que tu estás fodido!... não sabes com quem te meteste, sei onde tu moras! ... vais ser apanhado!. .. vou-te matar!”;
Na ocasião, o assistente advertiu o arguido de que, caso reiterasse o supradito tipo de conduta, iria gravar o conteúdo das chamadas telefónicas que lhe dirigisse e iria apresentar queixa ao Ministério Público;
No dia 9 de fevereiro de 2012, a hora não concretamente apurada, o arguido, B…, utilizando o referido telemóvel com o n.º ………, telefonou para o telemóvel do assistente, com o n.º ………, quando este se encontrava em casa, sita na Rua…, no Porto, dirigindo-lhe então, diversos termos e expressões:
a) - de um lado, proferiu as subsecutivas expressões: "eu vou-te preparar a manta!"; "se eu te apanho, mato-te!"; "deixa-te estar, eu vou-te apanhar!"; e
b) - de outro lado, apelidou-o de filho da puta, paneleiro do caralho, corno do caralho e cabrão e disse-lhe ainda: "a tua mulher pôs-te os cornos!"
As expressões proferidas pelo arguido, no segmento indicado sob a alínea a), causaram medo, inquietação e insegurança ao assistente, C…, perturbando-o no seu sossego, tranquilidade e liberdade de determinação, atendendo às circunstâncias e ao modo como foram proferidas (maiormente pelo seu tom sério e agressivo), fazendo-o temer pela sua integridade física e, inclusive, de alguma forma, pela sua própria vida;
No plano sobredito em b), ao proferir as referidas palavras/termos, o arguido logrou atingir o assistente na sua honra e consideração, tendo consciência da carga ofensiva que elas envolviam;
O assistente, por efeito das palavras que lhes foram dirigidas pelo arguido, ficou aborrecido, agastado e revoltado;
O arguido agiu, em cada uma das matérias/planos da sua ação, sob a mesma resolução ou desígnio, com o propósito, concretizado, de atemorizar o assistente e de lhe determinar receio pela sua integridade física e pela sua vida;
Atuou também com o desígnio, materializado, de ofender o assistente na sua honra e consideração;
O arguido, B…, agiu, sempre, de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo serem as suas condutas proibidas e punidas por lei;
O arguido é casado e tem quatro filhos, cujas idades correspondem a 18 anos, 23 anos, 29 anos e 32 anos, sucedendo que apenas os dois mais novos vivem consigo;
O arguido e o seu cônjuge são administradores de seis sociedades, localizadas em Portugal e no estrangeiro;
As referidas sociedades, no total, têm 400 funcionários;
Em termos formais, o arguido e o seu cônjuge recebem, cada um deles, 1100 € mensais;
O responsável pelo departamento financeiro da D… aufere 1880 € mensais;
O arguido vive em casa própria;
Não tem veículos, mas utiliza veículos pertencentes às sociedades de que é administrador;
O seu filho de 18 anos frequenta o 12.º ano de escolaridade, e o seu filho de 23 anos está a terminar o curso de gestão de empresas;
Do certificado de registo criminal do arguido consta que não tem antecedentes criminais.
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B. Não foram fixados Factos Não Provados.
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C. Consignou-se a seguinte
Motivação de facto:
A factualidade positiva resultou da convicção do Tribunal, formada com base no conjunto da prova produzida.
Sendo certo que as declarações e os depoimentos prestados foram objeto, nos termos legais, de gravação magnetofónica, limitar-nos-emos a sobrelevar os aspetos essenciais da pertinente prova.
Considerámos, desde logo, as declarações do assistente, C…, que, como vítima, descreveu os factos, de forma linear, coerente e credível, nos exatos termos dados como assentes.
Com valência, adicionou: que os factos sobrevieram após ter apresentado queixa junto da Autoridade para as Condições do Trabalho; as circunstâncias em que ocorreu o primeiro telefonema e os termos e expressões proferidos pelo arguido (neste tópico, ampliou o seguinte: ter reconhecido na ocasião, de imediato, a voz do arguido, que se trata de uma pessoa bastante temperamental e com uma voz típica; e tê-lo advertido de que, caso repetisse a conduta, iria gravar a(s) pertinente(s) chamada(s), para apresentar queixa contra ele); as circunstâncias em que se verificou o segundo telefonema e os termos e expressões pronunciados pelo arguido (neste excerto, agregou: que reconheceu, de pronto, a voz do arguido; que pôs a chamada telefónica em alta voz, aproximou-se do computador e gravou a chamada, tal como já tinha advertido o arguido); e os efeitos que as condutas do arguido lhe ocasionaram.
Anote-se, de outro lado, que o arguido reconheceu o seguinte: a singularidade de o assistente ter trabalhado para si; o facto de o telemóvel com o n.º ……… estar atribuído à D…, SA; a especificidade de o assistente ter sido despedido; e a singularidade de o assistente ter intentado um processo no Tribunal de Trabalho.
Convém agora destacar que o depoimento da testemunha F…, no que concerne aos factos aqui em apreciação, com relevância, nada logrou clarificar.
Todavia, a citada testemunha aclarou o montante por si auferido na qualidade de responsável pelo departamento financeiro do Grupo D….
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Ponderámos ainda a gravação da chamada telefónica, efetuada pelo arguido ao assistente no dia 9 de fevereiro de 2012 e que foi objeto de reprodução em audiência.
Na esfera de tal telefonema, alcança-se, com total facilidade, o seguinte: que o telefonema em questão é feito pelo arguido; e que, no domínio desse telefonema, o arguido proferiu os termos e expressões dados como consolidados (a propósito da valoração de tal gravação (da chamada telefónica feita pelo arguido) – não se tratando, ipso facto, de prova proibida -, vejam-se, com interesse, os subsecutivos Acórdãos, a cujos argumentos aderimos: da Relação do Porto: de 16/03/2005, publicado em www.dgsi.pt/jtrp (cujo sumário é o seguinte: “As palavras proferidas em telefonema para casa de outrem e gravadas no respectivo aparelho de telefone não são prova proibida em processo penal contra o autor das mesmas”), e da Relação de Coimbra, de 06-03-2013 e 10-07-2013, ambos publicados em www.dgsi.pt/jtrc.
Releva ainda sobressair aqui o seguinte: que, na vertente situação, diante da advertência feita anteriormente pelo assistente ao arguido, de que gravaria uma futura chamada telefónica da parte deste, se verifica um claro consentimento presumido/implícito, por banda do arguido, no tocante a tal gravação (cf. o artigo 187.º, n.º 4, alíneas a) e c), do CPP); de que a antedita comunicação telefónica foi o meio utilizado para o arguido cometer uma fração do crime de ameaça e do crime de injúria; e que, não assumindo o arguido a autoria do telefonema, “parece-nos claro que carece o arguido de legitimidade para taxar a sua audição de violadora da sua vida privada, e, consequentemente falece-lhe legitimidade para arguir a nulidade da correspondente gravações. É a natureza das coisas” (ver, de novo, o Acórdão da Relação do Porto, de 16/03/2005).
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Incumbe, hic et nunc, dizer que o arguido denegou, na totalidade, os factos que lhe são irrogados. No precípuo, declarou o seguinte: que jamais falou com o assistente ao telefone e que, por isso, nunca lhe dirigiu palavras e/ou expressões injuriosas e/ou ameaçadoras.
Anote-se, de pronto, que a versão alegada pelo arguido não nos persuadiu minimamente, tendo a factualidade dada como provada radicado nas declarações, totalmente credíveis, do assistente, concatenadas com a prova documental, com a reprodução, em audiência, da gravação telefónica respeitante ao dia 9 de fevereiro de 2012, com a inteira fragilidade e inconsistência das declarações do arguido e com as regras de experiências e os critérios de normalidade (no tocante ao recurso a presunções, ligadas ao princípio da normalidade ou à regra geral da experiência, cf. os Acórdãos da Relação do Porto, de 23/02/1983, de 16/01/1985 e 23/01/1985, todos no BMJ, respetivamente, n.º 234, pág. 620, n.º 343, pág. 377, e n.º43, pág. 376. Na doutrina espanhola, veja-se T.S. Vives Antón, Boix Reig, Orts Berenguer, Carbonell Mateu e González Cussac, Derecho Penal, Parte Especial, 3ª Edição, Tirant lo Blanch, pág. 374. A propósito das regras de experiência, vide, ainda, José Manuel Aroso Linhares, Regras da Experiência e Liberdade Objectiva do Juízo de Prova, Separata do Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra, Coimbra, 1988)
Observem-se ainda as subsecutivas especificidades:
- em primeiro lugar, vale protrair que o assistente asseverou (com inteiro crédito) que os factos sobrevieram nos termos por si descritos;
- compete igualmente evidenciar que o arguido se trata de uma pessoa com uma idiossincrasia cristalina/translúcida. Com efeito, a ipseidade/individualidade do arguido, evidenciada em julgamento (nesta tópico, foi sobremodo axial a imediação), corresponde plenamente à que decorre do teor do telefonema por si efetuado ao assistente. Tal como nesse telefonema, também em julgamento o arguido demonstrou tratar-se de uma pessoa impulsiva, inquieta, impaciente, incontida e nervosa;
- interessa outrossim destacar que o arguido, quando foi confrontado com a reprodução da gravação do telefonema referente ao dia 9 de fevereiro de 2012, afirmou que a voz em questão, na verdade, se aproxima muito da sua – é a voz do arguido, acrescentamos nós;
- é ainda oportuno acentuar que o arguido, na esfera do predito telefonema, a dada altura, disse ao assistente o seguinte: vai lá ao Ministério Público – trata-se de materialidade que, de alguma forma, ratifica a advertência que havia sido feita pelo assistente ao arguido na ocasião que este telefonou àquele pela primeira vez;
- por derradeiro, avulte-se que o arguido perfilhou a tese de que o telefonema em tela se tratou duma montagem do arguido, resultante de excertos/bocados de conversas – neste alinho, diga-se apenas que semelhante asserção se conforma completamente impertinente/inconcludente.
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À vista do exposto, emerge que a prova obtida, na sua dimensão holística, afastou/expungiu, de forma inequívoca, qualquer dúvida quanto à subsistência ou à verificação dos pressupostos de facto invocados pelo arguido.
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Relativamente às condições pessoais e económicas do arguido, saliente-se que, diante do quadro profissional descrito pelo arguido e da matéria de facto dada como assente nesta fração, não ficámos naturalmente persuadidos de que o arguido e o respetivo cônjuge apenas recebam, pela sua atividade nas seis sociedades, 1.100€ mensais. Adite-se que o arguido declarou ainda que ele e o seu cônjuge somente beneficiam de salário na esfera de uma das sociedades. Ora, podendo aceitar-se que tal ocorra assim formalmente, representa-se-nos inequívoco que os rendimentos do arguido e do seu cônjuge, na amplitude de todas as sociedades, são bastante superiores aos montantes declarados pelo arguido.
Alfim, no que concerne aos antecedentes criminais, atentamos no certificado de registo criminal do arguido.
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D. Apreciação do recurso:
Conforme jurisprudência assente, o âmbito do recurso delimita-se pelas conclusões extraídas pelo recorrente, a partir da respectiva motivação, sem prejuízo da apreciação de todas as matérias que sejam de conhecimento oficioso.
No caso concreto, o recurso incide sobre as questões seguintes:
a) Nulidade da sentença decorrente de alteração não substancial dos factos sem observância do disposto no artigo 358.º, n.º 1, do Código Processo Penal;
b) Nulidade da prova constituída por gravação de conversa telefónica;
c) Impugnação da matéria de facto;
d) Subsunção jurídica dos factos.

a) O recorrente invocou que a sentença enferma de nulidade por constituir condenação baseada em factos novos que envolvem alteração não substancial dos descritos na acusação, sem que tenha sido observado o disposto no artigo 358.º, n.º 1, do Código Processo Penal.
Alegou para tanto que foram incluídos factos na matéria de facto provada fixada na sentença que não constavam da acusação pública e da acusação deduzida pelo Ministério Público nos termos do artigo 285.º, n.º 4, do Código Processo Penal, tratando-se de alteração não substancial que não lhe foi comunicada em obediência ao preceituado no artigo 358.º, n.º 1, do Código Processo Penal.
Como decorre da alegação, o recurso incide sobre a matéria de facto da sentença por referência à acusação pública formulada a fls. 119-123 e à acusação deduzida pelo Ministério Público, nos termos do artigo 285.º, n.º 3, do Código Processo Penal, a fls. 149-151 dos autos, reportando-se concretamente aos factos provados seguintes:
«(…), por estar persuadido de que tal despedimento ocorreu sem justa causa, deu entrada de um processo no Tribunal de Trabalho do Porto e apresentou uma queixa à Autoridade para as Condições do Trabalho;»
«(…), em data não concretamente determinada, mas poucos dias antes de 09/02/2012, o arguido, B…, contatou o assistente, via telemóvel, e dirigiu-lhe os subsecutivos termos e expressões: “filho da puta! Paneleiro! agora é que tu estás fodido!... não sabes com quem te meteste, sei onde tu moras! ... vais ser apanhado!. .. vou-te matar!”;»
«Na ocasião, o assistente advertiu o arguido de que, caso reiterasse o supradito tipo de conduta, iria gravar o conteúdo das chamadas telefónicas que lhe dirigisse e iria apresentar queixa ao Ministério Público;»
«O arguido agiu, em cada uma das matérias/planos da sua ação, sob a mesma resolução ou desígnio, com o propósito, concretizado, de atemorizar o assistente e de lhe determinar receio pela sua integridade física e pela sua vida;».
Vejamos.
A disciplina do conhecimento de factos não descritos na acusação está conexionada com o princípio da vinculação temática do tribunal, segundo o qual o julgador está limitado ao conhecimento do objeto do processo definido pela acusação, ou pela pronúncia se existir. Desse modo é assegurada a plenitude da defesa, garantindo ao arguido que apenas tem que se defender dos factos que integram o thema decidendum, delimitado pela peça acusatória ou pronúncia, e não de outros, pois que só com base em tais factos poderá ser julgado e condenado[4].
Nos estritos limites e contornos previstos nos artigos 358.º e 359.º do Código Processo Penal, pode o tribunal, na sua atividade cognoscitiva e decisória, atender a factos que não foram objeto da acusação ou pronúncia.
A condenação por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, fora dos casos e das condições previstas nos citados preceitos legais, acarreta a nulidade da sentença, nos termos do artigo 379.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Penal.
O conceito de alteração substancial dos factos está definido na lei como «aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis», de acordo com a norma do artigo 1.º, alínea f), do Código Processo Penal. Em contraposição a alteração não substancial corresponde a uma modificação relevante[5] de factos com interesse para a decisão da causa, mas que não implique a imputação de crime diverso ou a agravação das sanções aplicáveis.
Quanto ao preenchimento do conceito de crime diverso é consensual que não deve significar tipo incriminador diverso, porquanto o mesmo juízo de desvalor pode ser comum a vários tipos que, tendo em comum o juízo de ilicitude, divergem apenas na sua quantidade ou gravidade, mas não na sua essência. Assim, se o bem jurídico tutelado for essencialmente o mesmo, não existe crime diverso. Neste seguimento, se os novos factos puderem ainda integrar a hipótese de facto histórico descrita na acusação, embora o evento material não seja inteiramente coincidente com o modo descrito, alterando-se as circunstâncias e a forma de culpabilidade, o crime não será materialmente diverso, desde que a razão do juízo de ilicitude permaneça a mesma.
No caso concreto, o recorrente aponta à decisão uma divergência factual relevante para a decisão, no concernente aos factos acima elencados, com reporte às acusações deduzidas pelo Ministério Público, e qualifica como não substancial essa alteração da matéria de facto.
Ora, examinada a sentença e consultados os autos, logo se verifica que o recorrente olvidou a existência de uma acusação particular deduzida pelo assistente a fls. 141-144 dos autos, para a qual remete expressamente o despacho de pronúncia proferido em 20-11-2013, constante da ata de debate instrutório, a fls. 208-211 dos autos.
Na realidade, documentam os autos que o arguido requereu a abertura de instrução, por se revelar inconformado com o teor da acusação pública e da acusação particular[6], tendo sido prolatado despacho de pronúncia, no qual o Mmo Juiz de Instrução Criminal considerou «suficientemente indiciados os factos imputados ao arguido» e pronunciou o arguido «pelos factos e disposições legais constantes das acusações de fls. 119 a 123; de fls. 141 a 147 e de fls. 149 a 151», cujo teor deu por reproduzido para todos os efeitos legais.
Assim, a aferição sobre a existência ou não de alteração fáctica relevante, para efeitos do disposto no artigo do artigo 1.º, alínea f), do Código Processo Penal, deve ser efetuada por referência ao despacho de pronúncia.
Analisadas as peças processuais relevantes, constata-se que os factos assinalados pelo recorrente, com exceção do último[7], resultam, no essencial, da descrição factual constante da acusação particular, constante de fls. 141 a 144 dos autos, para a qual remete o despacho de pronúncia, nomeadamente dos pontos 5.º a 7.º, 9.º, 10.º, 11.º, 13.º, do teor seguinte:
«5.º- No pretérito dia 30/11/2011, o Assistente foi despedido, sem justa causa, tendo sido impedido de prestar o seu trabalho nas instalações da sua Entidade Patronal, sem precedência de qualquer procedimento legal, sendo apenas instado pela filha do ora Arguido para abandonar aquelas instalações.
6.º- Após o que o assistente deu entrada do competente Processo, junto do Tribunal de Trabalho.
7.º - E, bem assim, de uma queixa junto da Autoridade para as Condições do Trabalho (doravante ACT);
9.º- Na sequência de tais factos, o Arguido, do telemóvel com o n.º ………, telefona ao assistente, para o seu número ………, o mais das vezes quando este se encontra em casa, dirigindo-lhe expressões injuriosas e ameaçadoras.
10.º- Assim, no pretérito dia 30/01/2012, o Arguido contactou o Assistente apelidando-o, entre outros, de “filho da puta”, “paneleiro”, “agora é que tu estás fodido!... não sabes com quem te meteste”, “sei onde tu moras! ... vais ser apanhado!. .. vais morrer”;
11.º- Ignorando as recomendações que o Assistente lhe dirigiu para cessar tais condutas e, desconsiderando o facto daquele o ter advertido que iria gravar o conteúdo das chamadas que lhe dirigisse.
13.º- Percute-se que, o Arguido ignorou sempre as advertências do assistente, inclusivamente de que iria proceder à documentação das suas condutas».
A modificação operada na descrição da matéria de facto provada na sentença relativamente à narrativa constante da acusação particular, acima reproduzida, reconduz-se a uma questão de estilo de escrita, por um lado, e, por outro, a uma mera imprecisão da data do primeiro telefonema, pelo que, nessa medida, não assume relevância.
Sucede, porém, que a primeira ação imputada ao arguido na acusação particular e transposta para a matéria de facto provada na sentença, consistente no primeiro telefonema realizado no dia 30/01/2012 (segundo a acusação particular), abrange, para além de expressões injuriosas, também afirmações de conteúdo objetivamente ameaçador, que encerram autênticas ameaças contra a integridade física e vida do ofendido, concretamente as seguintes: “agora é que tu estás fodido!... não sabes com quem te meteste”, “sei onde tu moras! ... vais ser apanhado!. .. vais morrer”. Apesar disso, ao nível da descrição da vertente subjetiva da conduta do arguido a acusação particular nada refere sobre esse aspeto e somente se reporta ao conteúdo injurioso das palavras dirigidas ao ofendido, declarando: «16.º- Ao proferir tais expressões, o Arguido tinha perfeito conhecimento da ilicitude da sua conduta, pois, bem sabia serem as ditas objetivamente injuriosas.
17.º- Quis e conseguiu o Arguido, com a sua conduta descrita, atingir a honra e bom nome do Assistente, molestando-o e amesquinhando-o no seu bom nome reputação pessoal.
18.º- Pelo que, o Assistente se sentiu profundamente ofendido e humilhado na sua honra e consideração.
19.º- Agiu o Arguido de forma voluntária, livre e consciente, sabendo não ser permitida, por lei, tal conduta». Uma vez que não existe qualquer destrinça quanto à abrangência dessa imputação subjetiva, a mesma envolve os dois telefonemas discriminados na acusação particular.
Ora, com base nos indicados factos, o assistente imputou ao arguido a prática de um crime de injúria, previsto e punível pelo artigo 181.º do Código Penal. Para além disso, manifestou adesão à acusação pública, pelos factos e qualificação jurídica nela constante, nos termos do artigo 284.º, n.º 1 e 2, alínea a), do Código Processo Penal.
Por seu turno, a acusação pública é inteiramente omissa quanto ao primeiro telefonema, mormente na parte em que integra ameaças contra a vida do ofendido, o que igualmente sucede na acusação deduzida nos termos do artigo 285.º, n.º 4, do Código Processo Penal, sendo certo que, em qualquer caso, seria inadmissível o aditamento posterior ou a simples adesão à acusação do assistente relativamente ao crime de ameaça, conforme decorre da jurisprudência fixada pelo [8].
Perante o quadro descrito o thema decidendum encontrava-se delimitado pela acusação pública e pela acusação particular, mas relativamente a esta última acusação circunscrito à descrição factual integradora do imputado crime de injúrias, sendo irrelevante a matéria que extravasa tal crime, ou seja, a parte que se reporta a expressões objetivamente ameaçadoras, a qual, aliás, para além de não estar acompanhada da vertente subjetiva da conduta, não teve qualquer reflexo na incriminação produzida pelo assistente[9]. Tampouco competia ao assistente legitimidade para, por sua iniciativa, deduzir acusação quanto a ilícito de natureza semipública, como é o caso do crime de ameaça, atentas as disposições dos artigos 284.º e 285.º do Código Processo Penal, sendo antes da responsabilidade do Ministério Público promover a ação penal, quanto a tais ilícitos, sob pena de ocorrência de nulidade insanável, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 48.º e 119.º, n.º 1, alínea b), do Código Processo Penal[10].
Assim, face ao objeto do processo, definido pelos limites indicados, não existia qualquer impedimento ao conhecimento dos factos descritos na acusação particular, suscetíveis de integrar o crime de injúria, ou seja, concretamente toda a factualidade indicada pelo recorrente com exceção dos factos que consistem na produção de afirmações de conteúdo ameaçador.
Por conseguinte, não se impunha o cumprimento do disposto no artigo 358.º, n.º 1, do Código Processo Penal, relativamente àqueles factos apontados pelo recorrente, na estrita medida em que correspondem à imputação do crime de injúria (consumado em dois telefonemas dirigidos ao ofendido), sendo certo, aliás, que o arguido já tinha tomado posição sobre os mesmos na fase da instrução e depois também os impugnou na contestação[11].
No concernente aos demais factos relativos a atitude ameaçadora do arguido[12] ocorre total inexistência de acusação pública[13], pelo que jamais se poderia suprir tal omissão por via do recurso aos mecanismos previstos nos artigos 358.º e 359.º do Código Processo Penal[14].
Sucede que, ao integrar na matéria provada a conduta ameaçadora apenas referida na acusação particular e ao aditar um facto novo, consistente na imputação de um propósito comum às duas condutas do arguido, de atemorizar o ofendido e o fazer temer pela vida, o tribunal a quo logrou superar a ausência de acusação pública quanto às ameaças proferidas na data anterior a 9/2/2012 e, ao mesmo tempo, suprir a omissão de indicação do elemento subjetivo já apontado, o que sempre lhe estaria vedado, mesmo a tratar-se de omissão detetada em acusação pública, isto é, no caso em que a acusação pública se reportasse a ameaças anteriores a 9/2/2012 mas não contivesse a descrição do elemento subjetivo, de acordo com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do STJ n.º 1/2015[15].
Por conseguinte, a sentença recorrida, nesta parte, padece de nulidade, que pode ser suprida por este tribunal ad quem, nos termos do artigo 379.º, n.º 1, alínea b), e n.º2, do Código Processo Penal.
Assim, determina-se a eliminação dos factos provados das expressões: «“agora é que tu estás fodido!... não sabes com quem te meteste”, “sei onde tu moras! ... vais ser apanhado!. . vais morrer”», constantes do 7.º parágrafo da matéria de facto, e bem assim a eliminação no 13.º parágrafo da expressão «sob a mesma resolução ou desígnio».
Deste modo, procede, parcialmente o recurso.

b) O recorrente sustenta que o tribunal a quo atendeu a prova nula, constituída pela gravação ilícita de alegada conversa telefónica, por força das disposições dos artigos 125.º, 126.º, n.º e 3, 167.º do Código Processo Penal, este último por referência ao disposto nos artigos 192.º, n.º 1, alínea a) e 199.º, n.º 1, alíneas a) e b), do Código Penal. Invoca em abono da sua tese o Acórdão da Relação de Lisboa de 16-12-2008[15], cuja fundamentação jurídica reproduz, e insurge-se contra o entendimento do tribunal a quo relativamente à existência de consentimento presumido da parte do arguido na gravação da conversa telefónica.
Vejamos.
Está em causa a gravação efetuada pelo assistente da chamada telefónica, proveniente do telemóvel usado pelo arguido e por ele estabelecida, tendo como destinatário o assistente, de acordo com a factualidade provada.
Como decorre da motivação de facto, o tribunal a quo ponderou o conteúdo da gravação, levada a cabo pelo assistente, de chamada telefónica rececionada no telemóvel deste, não existindo expresso consentimento por parte do arguido na gravação.
Face a tal procedimento, a questão que se coloca prende-se com a definição do valor probatório dessa gravação e não propriamente com a violação de proibição de prova.
Com efeito, as normas processuais convocadas pelo recorrente permitem distinguir duas distintas realidades, a que corresponde tratamento jurídico diferenciado, embora se possam traduzir num resultado comum, qual seja o não aproveitamento da prova recolhida contra o regime legal imposto.
Assim, as regras de proibição de prova obtida por intromissão na vida privada sem o consentimento do respetivo titular, consagradas no artigo 126.º, n.º 3, do Código Processo Penal, dirigem-se às instâncias formais de controlo, designadamente aos investigadores e autoridades judiciárias, mormente ao Ministério Público e ao Juiz de Instrução. Trata-se de normas que visam disciplinar a investigação e o procedimento penal, definindo os limites de interferência na vida privada com o objetivo de recolher prova, e que constituem orientações a observar no âmbito do processo penal.
Enquanto no tocante às provas obtidas por particulares e à tutela da vida privada, não existe regulamentação que decorra de norma processual penal, antes o legislador remete para a tipificação dos ilícitos penais previstos no Código Penal, na tutela do referido direito fundamental à privacidade, como decorre do disposto no artigo 167.º, n.º 1, do Código Processo Penal[17]. Donde, a validade da prova fica, nestes casos, dependente da sua não ilicitude à face da legislação penal[18].
Portanto, a validade da prova questionada no presente recurso está condicionada à inexistência de actividade criminosa na sua obtenção, por isso, não poderá ser atribuído valor probatório à gravação da conversa estabelecida pelo arguido com o assistente se for de concluir que a conduta traduzida na gravação das palavras proferidas nessa chamada telefónica configura um ilícito penal.
Ora, no concernente a gravações ilícitas a norma incriminadora corresponde ao artigo 199.º do Código Penal, onde se tutela o direito à palavra, contra a sua gravação e reprodução sem o consentimento do visado.
No entanto, o preenchimento, em abstrato, dos elementos constitutivos do ilícito criminal, pode ser afastado, em concreto, pela verificação de causa de justificação ou exclusão da ilicitude ou da culpa, e, em consequência, pode ser considerada válida a gravação de palavras efetuada por particulares sem o consentimento do visado, bem como julgada válida a prova recolhida por esse meio[19].
No caso sub judice, a gravação em causa documenta a comunicação telefónica, da iniciativa do arguido e que teve como destinatário o assistente, na qual se materializou a conduta ilícita do arguido, subsumível aos crimes de ameaça e de injúria[20]. Perante tais circunstâncias surge justificada a gravação das palavras dirigidas ao assistente, sem o consentimento do autor daqueles ilícitos criminais, pois que, como considerou o STJ[21] «a proteção da palavra que consubstancia práticas criminosas (…) tem de ceder perante o interesse da proteção da vítima e a eficiência da justiça penal: a proteção acaba quando aquilo que se protege constitui crime», sendo ainda de considerar, quando por meio da gravação é cometido o crime de ameaça, como sucede no caso dos autos, a verificação de legítima defesa como excludente da ilicitude da gravação[22].
No seguimento de tal entendimento, não sendo possível concluir pelo cometimento por parte do assistente de um crime mediante a gravação da comunicação telefónica que lhe foi dirigida pelo arguido, também não subsiste razão para considerar inválida a prova conseguida por via de tal gravação[23].
Assim sendo, nenhum obstáculo legal existia à respetiva valoração pelo tribunal e à sua reprodução em audiência, sendo certo que a audição, na audiência de julgamento, do conteúdo da gravação foi precedida de decisão judicial[24] que não foi impugnada.
Improcede, pois, nesta parte, o recurso.

c) O recorrente deduziu impugnação da matéria de facto provada.
Uma vez que se encontra documentada a prova produzida em audiência de julgamento, os poderes de cognição deste tribunal abrangem a matéria de facto e de direito, nos termos do disposto no artigo 428.º do Código Processo Penal.
Como se sabe, a matéria de facto pode ser sindicada por duas vias:
• no âmbito restrito, mediante a arguição dos vícios decisórios previstos no artigo 410.º, n.º 2, do Código Processo Penal, cuja indagação tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo, por isso, admissível o recurso a elementos àquela estranhos para a fundamentar, ainda que se trate de elementos existentes nos autos e até mesmo provenientes do próprio julgamento;
• ou na impugnação ampla a que se reporta o artigo 412.º, n.º 3, 4 e 6, do Código Processo Penal, caso em que a apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova documentada produzida em audiência[25].
Quanto a esta última modalidade de impugnação impõe-se ao recorrente o dever de especificar os «concretos» pontos de facto que considera incorretamente julgados e as «concretas» provas que impõem decisão diversa. Tal ónus tem de ser observado para cada um dos factos impugnados e em relação a cada um têm de ser indicadas as provas concretas que impõem decisão diversa, com a expressa definição do sentido que a decisão deve assumir, sempre na perspetiva do recorrente.
Este modo de impugnação não permite nem visa a realização de um segundo julgamento sobre a matéria de facto, ou seja, não pressupõe uma reapreciação total do acervo dos elementos de prova produzidos que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas antes constitui um mero remédio para obviar a eventuais erros ou incorreções da decisão recorrida na forma como apreciou a prova, isto é, trata-se de uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão do tribunal a quo quanto aos «concretos pontos de facto» que o recorrente especifique como incorretamente julgados[26].
De notar ainda que a censura quanto ao modo de formação da convicção do tribunal não pode assentar, de forma simplista, no ataque da fase final da formação de tal convicção, isto é, na valoração da prova; tal censura terá de assentar na violação de qualquer dos passos para a formação de tal convicção, designadamente por não existirem os dados objetivos que se apontam na motivação ou por se violarem os princípios para a aquisição desses dados objetivos ou por não ter existido liberdade de formação da convicção. Doutra forma seria uma inversão da posição das personagens do processo, como seja a de substituir a convicção de quem tem de julgar pela convicção dos que esperam a decisão[27].
No presente recurso o recorrente não cumpriu, com rigor, o ónus de especificação que lhe é legalmente imposto[28], quanto à indicação das concretas provas que determinam, na sua ótica, decisão diversa da recorrida relativamente à matéria de facto impugnada, sendo certo que a indicação dos factos impugnados se reconduz à totalidade das condutas que lhe são imputadas.
Na realidade, o recorrente não procedeu à especificação, nos termos referidos, da prova que determina, na sua perspetiva, decisão de conteúdo diferente da tomada pelo tribunal a quo, pois que, pese embora se tenha referido ao conteúdo das declarações prestadas pelo assistente (reproduzindo excertos dessa prova), e das declarações do arguido, não estabeleceu a correspondência dessa prova com os factos que, segundo ele, devem merecer decisão diversa da tomada na 1.ª instância.
Nesse seguimento, as conclusões que extraiu da motivação do recurso refletem a abordagem adotada no corpo do articulado, por isso, padecem das mesmas deficiências.
Ora, importa reiterar que a impugnação de facto está sujeita ao procedimento imposto pelo artigo 412.º, n.º 3, do Código Processo Penal, que onera o recorrente, donde resulta ser ao mesmo exigido que, para além dos factos concretos que, na sua perspetiva, foram julgados incorretamente, indique também, relativamente a cada um dos factos questionados, quais as concretas provas que impõem a decisão no sentido por si propugnado.
No presente recurso, ao invés do procedimento imposto por lei, o recorrente optou por mencionar excertos das declarações do assistente, ao que aditou comentários e apreciações da sua responsabilidade, sem referência discriminada aos concretos pontos da matéria de facto que essa prova impõe sejam alterados, incumprindo as exigências que lhe incumbiam, no âmbito da impugnação da matéria de facto.
Deste modo, inviabilizou a reapreciação da prova e o conhecimento da impugnação de facto, posto que a este tribunal ad quem não é lícito superar as omissões imputáveis ao recorrente.
Por outro lado, insurgiu-se o recorrente contra a valoração da prova contida na gravação da comunicação telefónica por ser nula, nos termos já apreciados supra, porém, sem razão, como se assinalou e se reitera.
Mais invocou a inadmissibilidade da reprodução em audiência do conteúdo da gravação, alegando que, logo manifestou a sua oposição. Sucede que, como decorre do já referido, o tribunal a quo apreciou o requerimento apresentado pelo Ministério Público no sentido da reprodução do conteúdo da gravação e a oposição manifestada pelo assistente, tendo determinado essa reprodução por despacho já transitado em julgado, pelo que está vedado a este tribunal a reapreciação do mérito do decidido.
Ademais, o recorrente estruturou a sua alegação com base em considerações pessoais, críticas e apreciações sobre o modo como o tribunal a quo avaliou a prova, distanciando-se do objetivo e finalidade da impugnação, que, como se disse, não constitui um meio de fazer valer a convicção pessoal do recorrente sobre a factualidade apurada e de a sobrepor à convicção formada pelo tribunal, sob pena de violação do princípio da livre apreciação da prova, previsto no artigo 127.º do Código Processo Penal.
Carece, pois, de fundamento a impugnação da matéria de facto.

d) Finalmente, o recorrente intentando, ao que parece, questionar a subsunção jurídica dos factos, alegou que, no contexto em que as expressões referidas nas acusações foram produzidas, não pode concluir-se que o arguido quis atingir a honra e consideração do ofendido ou incutir nele receio pela sua integridade física. Mais uma vez o recorrente socorreu-se da transcrição de excertos das declarações do assistente, sobre as quais fez incidir a sua apreciação pessoal.
Sucede que, por esta via, continuou o recorrente a pretender impugnar a factualidade provada sem observância do procedimento legal imposto no artigo 412.º, n.º 3, do Código Processo Penal.
Ainda assim, importa assinalar que nenhum reparo merece a subsunção jurídica dos factos apurados realizada na sentença, sendo também de realçar que a modificação da matéria de facto determinada por este tribunal ad quem não implica qualquer correção neste domínio, posto que os factos que subsistem continuam a integrar a prática de um crime de injúria e de um crime de ameaça, pelos quais o arguido foi condenado.
Igualmente se impõe esclarecer que nenhuma alteração em matéria de dosimetria das penas decorre da aludida modificação factual, posto que o tribunal a quo não ponderou na fixação da pena, pelo crime de ameaça, a circunstância de o comportamento do arguido se ter concretizado nos dois telefonemas, pelo que também não se impõe qualquer correção nesse âmbito.
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III – DECISÃO:
Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação do Porto em conceder parcial provimento ao recurso e, em consequência, determinam a eliminação dos factos provados das expressões: «“agora é que tu estás fodido!... não sabes com quem te meteste”, “sei onde tu moras! ... vais ser apanhado!. .. vais morrer”», constantes do 7.º parágrafo da matéria de facto, e bem assim a eliminação, no 13.º parágrafo da matéria de facto, da expressão «sob a mesma resolução ou desígnio».
No mais confirmam a decisão recorrida.
Sem custas.
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Porto, 27-01-2016
Maria dos Prazeres Silva
Borges Martins
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[1] Código Penal anotado, Vítor Sá Pereira, página 92
[2] Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa: Processo nº 3968/2008-5, de 16/12/2008, in www.dgsi.pt
[3] Acórdão do Tribunal da Relação do Porto: Processo: 494/09.0GAVLG.P1, de 27-02-2013, in www.dgsi.pt
[4] Vd. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, pág. 145.
[5] A tratar-se de mera concretização ou explicitação do constante da acusação, bem como de modificação de estilo ou esquema de descrição factual não chega a existir tampouco alteração a impor qualquer comunicação ao arguido.
[6] Vd. requerimento de abertura de instrução a fls. 169-173 dos autos.
[7] Ou seja o facto seguinte: «O arguido agiu, em cada uma das matérias/planos da sua ação, sob a mesma resolução ou desígnio, com o propósito, concretizado, de atemorizar o assistente e de lhe determinar receio pela sua integridade física e pela sua vida;».
[8] Publicado no DR, I Série A, de 6-01-2000, fixou jurisprudência no sentido de: «Integra a nulidade insanável da alínea b) do artigo 119.º do Código de Processo Penal a adesão posterior do Ministério Público à acusação deduzida pelo assistente relativa a crimes de natureza pública ou semipública e fora do caso previsto no artigo 284.º, n.º 1, do mesmo diploma legal».
[9] Como se disse, o assistente imputou ao arguido, na acusação particular, a prática de um crime de injúrias.
[10] Vd. neste sentido Acórdão da Relação de Évora de 26-02-2013, proc. 143/09.5T3GDL-A.E1, disponível em www.dgsi.pt, «Na nossa lei de processo constitui falta de promoção do processo pelo MP que o assistente acuse por crime semipúblico - como é o caso do crime de ameaça p. e p. pelo art. 153º do C. Penal, sem que o MP tenha, previamente, deduzido acusação por esse mesmo crime nos termos do art. 284º do CPP, apenas podendo deduzir acusação particular, desacompanhado do MP, quando o procedimento depender de acusação particular, como é o caso do crime de injúria – cfr art. 285º do CPP.»
[11] Vd. contestação a fls. 233-235 dos autos.
[12] Concretamente os seguintes: «(…), em data não concretamente determinada, mas poucos dias antes de 09/02/2012, o arguido, B…, contratou o assistente, via telemóvel, e dirigiu-lhe os subsecutivos termos e expressões: (…) agora é que tu estás fodido!... não sabes com quem te meteste, sei onde tu moras! ... vais ser apanhado!. .. vou-te matar!”;»
«O arguido agiu, em cada uma das matérias/planos da sua ação, sob a mesma resolução ou desígnio, com o propósito, concretizado, de atemorizar o assistente e de lhe determinar receio pela sua integridade física e pela sua vida;».
[13] Sendo, nesse aspeto, irrelevante o alegado na acusação particular, nos termos já indicados.
[14] Vd. Acórdão da Relação de Coimbra de 13-01-2016, proc. 540/13.1GBPBL.C1, disponível em www.dgsi.pt, no qual se colocou a questão da inexistência de descrição típica na acusação e se concluiu:
«- A imputação genérica de uma conduta, ou seja, sem a descrição fáctica integradora de um ilícito penal, é insusceptível de conduzir à aplicação, ao arguido, de uma pena ou de uma medida de segurança;
- Consequentemente, a falta de narração, na acusação, quer do tipo objectivo, quer do tipo subjectivo de crime, traduz uma pura inexistência de tipicidade, não sendo, neste contexto, admissível, em julgamento, a alteração posterior dos factos, neste ou noutro procedimento, por forma a que daquela passem a constar factos integrantes de um comportamento típico do agente;
- Nesse caso, tal alteração consubstanciaria a convolação de uma conduta atípica em conduta típica, em patente violação do princípio constitucional do acusatório.».
[15] Vd. Acórdão de Fixação de Jurisprudência n.º 1/2015, de 20-11-2014, publicado no DR, 1.ª série, n.º 18, de 27-01-2015, onde foi decidido «A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjectivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no art. 358.º do Código de Processo Penal.»
[16] Vd. Acórdão de 16-12-2008, proc. 3968/2008-5, disponivel em www.dgsi.pt.
[17] Vd. neste sentido Código Processo Penal Comentado, Almedina, 2014, comentário ao artigo 167.º, elaborado pelo Ex.mo Sr. Conselheiro Santos Cabral;, P. 701; Também Acórdão do STJ de 28-09-2011, proc. 22/09.6YGLSB.S2; e ainda Acórdão da Relação de Lisboa de 28-05-2009, proc. 10210/2008-9; Acórdão da Relação do Porto de 03-12-2010, proc. 371/06.5GBVNF.P1, disponíveis em www.dgsi.pt.
[18] Como se refere no citado comentário, Código Processo Penal Comentado, e no Acórdão do STJ de 28-09-2011, «pode-se dizer, de forma redutora, que a gravação (..) que não é crime, é admissível como prova».
[19] Vd. Acórdão do STJ de 28-09-2011, proc. 22/09.6YGLSB.S2; Acórdão desta Relação de 23-10-2013, proc. 585/11.6TABGC.P1, disponíveis em www.dgsitpt, quanto ao registo de imagem.
[20] Não se esgotando quanto ao crime de injúrias nesse contacto telefónico.
[21] Vd. citado Acórdão do STJ de 28-09-2011 e Código Processo Penal Comentado, página 705, «(…) o comportamento ilícito do titular do direito à palavra e imagem no uso da mesma determina a perda da dignidade penal da ofensa do referido direito e isto, desde logo, porque no caso concreto o mesmo não merece proteção. (…) Não se vislumbra qual a razão pela qual a protecção da vitima e a eficiência da justiça penal tenham de ser postergadas pela protecção da palavra e de imagem que consubstancia práticas criminosas ou da imagem que as retrata. A protecção acaba quando aquilo que se protege consubstancia a prática de um crime».
[22] Vd. Código Processo Penal Comentado, página 706.
[23] Assim se não acolhendo os argumentos expendidos no Acórdão da Relação de Lisboa de 16-12-2008 em que se apoia o recorrente.
[24] Vd. despachos proferidos na ata de audiência de 26-05-2015, a fls. 374-377 dos autos, sendo o primeiro referente à reprodução do CD junto aos autos e o segundo à reprodução da gravação com uso de equipamento facultado pelo assistente.
[25] Cfr. Acórdãos do STJ de 05/06/08, proc. 06P3649; de 14/05/09, proc. 1182/06.3PAALM.S1, disponíveis em www.dgsi.pt.
[26] Cfr. Acórdãos do STJ de 29-10-2008, proc. 07P1016 e de 20-11-2008, proc. 08P3269, disponíveis em www.dgsi.pt.
[27] Cfr. Acórdão do Tribunal Constitucional 198/2004 de 24-03-2004, DR, II S, de 02.06.2004.
[28] O que é patente quer na motivação do recurso quer nas conclusões do recurso.