Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0432833
Nº Convencional: JTRP00037036
Relator: OLIVEIRA VASCONCELOS
Descritores: ARRENDAMENTO
LICENÇA DE UTILIZAÇÃO
Nº do Documento: RP200407010432833
Data do Acordão: 07/01/2004
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: CONFIRMADA A SENTENÇA.
Área Temática: .
Sumário: Apesar de não constar de um contrato de arrendamento a menção à existência da licença de utilização do local arrendado, o mesmo pode ser considerado válido e produtor de todos os legais efeitos.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

Em 03.01.21, na .. Vara Mista de ............., B............. e mulher C............, instauraram contra D............ a presente acção com processo sumário

alegando
em resumo que
- são titulares do direito de propriedade sobre um prédio urbano;
- o r/c do prédio vem sendo ocupado pelo réu e seus familiares sem qualquer titulo que a legitime;
- interpelou o réu para desocupar o prédio, mas ele não acatou essa interpelação;
- a ocupação causa ao autor prejuízos

pedindo
a condenação do réu a
1. reconhecer o seu direito de propriedade;
2. restituir o local ocupado, livre de pessoas e bens;
3. pagar uma indemnização no montante de 13.750 euros.

Por via postal, o réu foi citado por carta com AR assinada por outra pessoa que não o réu em 00.02.28.

Em 03.03.27 veio o réu requerer que se declarasse interrompido o prazo para a contestação, pois tinha requerido junto da Segurança Social apoio judiciário, na modalidade de dispensa de pagamento de custas e nomeação de patrono por si escolhido, juntando cópia de pedido de apoio judiciário – folhas.47 a 49.

A Segurança Social, por decisão de 03.05.21 – cfr. folhas.58 - decidiu deferir o pedido quanto a:
- dispensa total da taxa de justiça e demais encargos com o processo;
- pagamento de honorários do patrono escolhido pelo requerente.

Em 03.06.18 foi comunicado à Dr.ª E.............. que tinha sido nomeada patrona oficiosa ao réu – cfr. folhas 95.

Em 03.06.02, por despacho de folhas 54, foi declarado interrompido o prazo para contestar.

Inconformados, os autores deduziram agravo, apresentando as respectivas alegações e conclusões.

O réu contra alegou, impugnando pela manutenção da decisão.

O Sr. Juiz manteve tabelarmente a sua decisão.

Em 03.06.26, o réu apresentou a sua
contestação
alegando, também em resumo, que
- habita o local apontado pelos autores por virtude de um contrato de arrendamento celebrado com o anterior proprietário do prédio;
- pagando desde então a renda convencionada no domicilio do de senhorio;
- os autores, apesar de saberem da existência do contrato, sempre se negaram a receber as referidas rendas.

Em 03.09.29 foi proferido despacho em que se designou dia para a realização de uma audiência preliminar “para os fins aludidos no art.508º-A, nºs 1 e 2 do Código de Processo Civil”.

Em 04.01.08 foi realizada essa audiência preliminar, em que se exarou que não foi conseguido o acordo das partes e se proferiu despacho saneador, no qual se proferiu sentença a julgar procedente o pedido de reconhecimento de propriedade mas improcedente o relacionado com a restituição do local ocupado pelo réu.

Inconformados, os AA deduziram a presente apelação, apresentando as respectivas alegações e conclusões.

O réu contra alegou, pugnando pela manutenção da sentença recorrida.

Corridos os vistos legais, cumpre decidir.

As questões

Tendo em conta que
- o objecto dos recursos é delimitado pelas conclusões neles insertas - arts. 684º, nº3 e 690º do Código de Processo Civil;
- nos recursos se apreciam questões e não razões;
- os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido
são os seguintes os temas das questões propostas para resolução:
do agravo
A) – interrupção do prazo para a contestação;
da apelação
B) – nulidade da audiência preliminar;
C) – pontualidade da contestação;
D) – nulidades do saneador;
E) – existência do contrato de arrendamento.

Os factos

São os seguintes os factos que foram dados como provados na 1ª instância:
A) - O imóvel sito na Rua .............. .../... em ............., que é composto por casa de dois pavimentos, logradouro e mais pertenças, esta inscrito na matriz respectiva, 2460 e descrita na conservatória do registo predial de .............., sob o nº 04158 da freguesia de ............. .
B) - O teor dos documentos 13 a 30 que se dá aqui por reproduzido.
C) O rés-do-chão do imóvel em questão vem sendo ocupado pelo réu e familiares.
D) - Por documento escrito, datado de 01 de Abril de 1998, foi celebrado contrato de arrendamento entre o aqui réu na qualidade de inquilino e o anterior proprietário na qualidade de senhorio.

E) - Pagando, desde essa data, a renda convencionada no contrato, ou seja Esc. 3.400$00 com as referidas actualizações no domicílio do senhorio.

Os factos, o direito e o recurso

A - Vejamos, então, como resolver a primeira questão.

No despacho agravado entendeu-se declarar interrompido o prazo para contestar porque o réu teria apresentado, na pendência desta acção, requerimento a pedir a nomeação de patrono.

Os agravantes entendem que quando foi proferido o despacho recorrido já tinha decorrido o prazo para a contestação, tendo em conta a data em que o réu foi citado, a data em que foi requerido o apoio judiciário e a data de alegado deferimento tácito proveniente do disposto no art.26º da Lei 30-E/2000, de 20.12.

Cremos que não têm razão.

Nos termos do disposto no n.ºº4 do art.25º da referida Lei “quando o pedido de apoio judiciário é apresentado na pendência de acção judicial e o requerente pretende a nomeação de patrono, o prazo que estiver em curso interrompe-se com a junção aos autos do documento comprovativo da apresentação do requerimento com que é promovido o procedimento administrativo”.

No caso concreto em apreço, a junção do citado documento ocorreu em 03.03.26, conforme se constata a folhas 46.

Assim, o prazo de 30 dias para o réu contestar interrompeu-se naquela data.

Uma vez que a citação do réu ocorreu em 03.03.09, tinham decorrido até então 17 (dezassete) dias.

Nos termos do disposto na al. a) do n.º5 do citado art.25º, o prazo interrompido reinicia-se a partir da notificação ao patrono nomeado da sua designação.

No caso concreto em apreço, essa notificação ocorreu em 03.06.18, conforme acima ficou referido.

Reiniciou-se então o prazo de 30 dias para o réu contestar, pelo que, tendo em conta que já tinham decorrido 17 dias até à interrupção, o seu termo ocorreu em 03.07.01.

A contestação do réu foi apresentada em 03.06.26, pelo que foi apresentada tempestivamente.

Concluímos, assim, que quando foi preferido despacho recorrido não estava ainda expirado o prazo para o réu contestar, pelo que o mesmo não merece qualquer censura.

B – Atentemos na segunda questão.

Entendem os apelantes que tendo sido a audiência preliminar convocada nos termos dos nºs 1 e 2 do art.508º-A do Código de Processo Civil, não cumpriu o objecto e a finalidade para que foi convocada, pelo que, tendo sido omitidos actos que a lei prescreve, a mesma deve ser considerada nula.

Cremos que não têm razão.

Em primeiro lugar, porque os autores não reclamaram da nulidade na altura em que ela teria ocorrido, nos termos do art.205º do Código de Processo Civil, tendo em atenção que dos despachos recorre-se, mas contra as nulidades reclama-se.

Em segundo lugar, porque, finda a audiência preliminar, os autores pediram a palavra para dizer o seguinte:
“Deseja reclamar e recorrer da douta decisão agora proferida, não só porque não considerou aspectos relevantes ainda pendentes de decisão e fundamentais para a decisão da causa, tanto porque não teve em consideração, nomeadamente nos factos em considerados assentes, elementos igualmente importantes, porventura decisivos e cujo conhecimento pelo Mmº Juiz é oficioso. (…)”.

Ao fazer esta intervenção e ao não aludir à nulidade invocada no presente recurso, os autores renunciaram tacitamente à sua arguição, pelo que não podem agora vir a argui-la – cfr. art.203º, n.º2, do Código de Processo Civil.

Ou seja, tendo os autores se pronunciado sobre o que se passou na audiência preliminar e não tendo aludido à nulidade agora invocada que nela teria ocorrido, é de concluir que a ela renunciaram.

C – Atentemos na terceira questão.

Entendem os autores que a contestação foi apresentada fora de prazo.

Já vimos que não têm razão, pelos motivos aludidos aquando da apreciação da primeira questão, para os quais remetemos.

D – Vejamos a quarta questão.

Invocam os autor três nulidades na sentença.

Sem razão, no entanto.

Quanto à prevista na al. b) do n.º1 do art.668º do Código de Processo Civil, porque é evidente que a alusão de que os autores não apresentaram replica se funda e tem origem no facto de se considerar tempestivamente apresentada a contestação do réu.

Quanto à prevista na al. c) do mesmo normativo, porque na decisão recorrida não se aludiu ao facto de os autores se terem negado a receber as rendas.

Quanto à prevista na al. d), o certo é que na decisão recorrida se apreciou o facto de os autores serem os proprietários do arrendado e, implicitamente, os senhorios no contrato de arrendamento invocado pelo réu.

E – Atentemos, finalmente, na quinta questão.

Na sentença recorrida julgou-se a acção improcedente quanto aos pedidos de restituição e pagamento de uma indemnização porque se deu como provado que o réu ocupava o local reivindicado pelos autores por virtude de um contrato de arrendamento constante de documento que foi junto com a contestação.

Os apelantes entendem que, de acordo com o disposto no n.º1 do art.9º do Regime do Arrendamento Urbano, para que haja contrato de arrendamento necessário era que se provasse a existência de licença de utilização, passada pela autoridade municipal competente, mediante vistoria realizada menos de oito anos antes da celebração do contrato, facto este que não estaria demonstrado em relação ao contrato invocado pelo réu.

Cremos que também não têm razão.

Vejamos porquê.

Estabelece o n.º1 do referido art.9º do Regime do Arrendamento Urbano que só podem ser objecto de arrendamento urbano, os edifícios ou suas fracções cuja aptidão para o fim pretendido pelo contrato seja atestado pela licença de utilização, passada pela autoridade municipal, mediante vistoria.

A medida foi imposta por razões de ordenamento urbanístico e territorial, culminando uma lenta evolução após o Decreto-Lei n.º38.382, de 51.08.07, que aprovou o Regulamento Geral das Edificações Urbanas – ver, sobre este assunto, Januário Gomes “in” Arrendamentos para Habitação 1994 páginas 72 e seguintes.

A exigência da licença de utilização está prevista na al. c) do n.º2 do art.8º do citado Regime do Arrendamento Urbano, onde se estabelece que o contrato de arrendamento urbano deve mencionar, quando o seu objecto ou o seu fim o impliquem, a existência da licença de utilização, o seu número, a sua data e a entidade emitente.

A falta deste elemento não determina a invalidade ou a ineficácia do contrato, quando possa ser suprida, nos termos gerais e desde que os motivos determinantes da forma se mostrem satisfeitos – cfr. n.º4 do citado art.8º.

A ineficácia existe quando por qualquer motivo legal um negócio jurídico não produz todos ou parte dos efeitos que, segundo o conteúdo das declarações de vontade que o integram, tenderia a produzir.

A invalidade é uma espécie do género ineficácia, provindo de uma falta ou irregularidade dos elementos internos (essenciais, formativos) do negócio, tais como a falta de capacidade, a falta ou defeito de declaração de vontade, a impossibilidade física ou legal do objecto.

No caso concreto em apreço, verifica-se que não está referido no texto do contrato de arrendamento a existência de licença de utilização ou de documento comprovativo de a mesma ter sido requerida, conforme o exige o n.º4 do art.9º citado.

No entanto, não está demonstrado – porque não foram alegados e provados factos a isso referentes – que com essa falta o contrato não podia produzir os seus efeitos, nem que existiram qualquer daqueles vícios intrínsecos que produziriam a invalidade do mesmo.

Temos, pois, que concluir que a falta da licença de utilização poderia não implicar a invalidade ou ineficácia do contrato e assim, poder ser suprida posteriormente à celebração do contrato.

Mas para que não houvesse esta invalidade ou ineficácia, necessário era, de acordo com o citado n.º4 do art.8º do Regime do Arrendamento Urbano, que os motivos determinantes da forma se mostrassem satisfeitos.

A exigência legal de submeter os contratos à forma escrita destina-se a precaver os declarantes contra a sua precipitação, a dar maior segurança às conclusões do negócio e ao conteúdo negocial, a facilitar o seu controlo no interesse geral, a assegurar a reconhecibilidade para terceiros – Vaz Serra “in” BMJ 111º-180.

Ora sendo assim, entendemos que a existência e validade de um contrato de arrendamento celebrado sob a forma escrita sem menção da licença de utilização satisfaz os motivos determinantes da forma.

E que a ausência da referida menção tem uma natureza acessória e poderá apenas levar a que o senhorio e o inquilino só discutam e extensão do objecto do arrendamento e de algumas obrigações, sem porem, no entanto, em causa a sua validade – neste sentido, Pais de Sousa “in” Anotações ao Regime do Arrendamento Urbano, em anotação ao referido art.8º.

A não ser que, no caso da falta ser imputável ao senhorio, o arrendatário – e apenas o arrendatário – queira resolver o contrato por esse motivo – cfr. n.º6 do referido art.9º.

Concluímos, pois, que apesar de não constar no contrato de arrendamento invocado pelo réu qualquer menção à licença de utilização, o mesmo deve ser considerado válido e produtor de todos os legais efeitos.

Nomeadamente, o de legitimar a ocupação que o Réu faz do local reivindicado.

Apenas mais uma nota.

Dispõe-se na parte final do n.º4 do art.9ºque vimos mencionando que não pode ser celebrado qualquer contrato de arrendamento sem a menção referente à licença de utilização.

A referência a “qualquer contrato de arrendamento” foi introduzida pelo Decreto-Lei 64-A/00, de 22.04, já que anteriormente a lei referia-se apenas a “qualquer escritura publica de arrendamento”.

Ora, tendo em conta que o contrato de arrendamento em causa não tinha que ser celebrado por escritura publica – cfr. art.7º do Regime do Arrendamento Urbano – a data em que foi celebrado – 98.04.01 – e que a alteração em causa dispôs sobre as condições de validade formal do arrendamento – cfr. art.12º, n.º2, do Código Civil - aquela impossibilidade de celebração do contrato não se aplicava ao caso concreto ema apreço.

Sobre a matéria da falta de licença de utilização pode consultar-se o acórdão desta Relação de 03.06.17 “in” CJ 2003 III 190.

A decisão

Nesta conformidade, acorda-se em
- negar provimento ao agravo;
- julgar improcedente a apelação;
- e assim, em confirmar a sentença recorrida.
Custas pelos agravantes e apelantes.

Porto, 1 de Julho de 2004
Fernando Manuel de Oliveira Vasconcelos
José Viriato Rodrigues Bernardo
João Luís Marques Bernardo